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E scRITA, us~ DA ESCRITA EAVALIAÇÃO

Joao Wanderley Geraldi

A arte de narrar eStá definhando porque a sabedoria


- 0 lado épico da verdade - está em extinção.

W ALTER B ENJAM IN

rovavelm~nte o leitor procu rará obter aqui alguns critérios que


P lhe perm itam melh orar seu desempenho de professor na "corre -
ção" e na "avaliação" de redações de seus alunos. Uma das questões
mais freqüentes é precisamente: "com o avaliar redações?".
O título deste texto justifica essa expectativa. Revertamo-la de
imediato. De fato , minh a preocupação será pôr em questão precisa- 127
mente a questão: "com o avaliar redações?". Tentarei recuperar algun s
dos problemas prévios a essa questão, e que, como tais, podem ilumi-
nar as causas que não só levam a respostas diferenciadas mas tamb ém
produzem a próp ria questão.

Parceria entre sujeitos _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ __

Com o espero pode r demonstrar, a perg~nta é 6~m ~alocada: ~va-


liar redações. Porq ue a ningu ém ocorre_aval1ar o ed1tonal ?~
um Jor-
nal, uma conversação infor mal ou o discurso de um ~oln_ico. Nor-
malmente, disco rdam os ou concordamos com um ed1tonal; acres-
centamos argum entos a favor ou ~ontra uma idéia defendida num
tratar de. um assunto ou
dl.scurso; quest ·ionam os a oport unida de de
a1'nd a nos pergu ntam os pela validade ou pelos efeitos concretos de
. , . ~
uma conversação, etc. se pergu ntand o: e isso nao
leitor
ment o , O . esta
Se1· que, neste mo , .
é ava1·iar~., E u respo n deri·a que sim · Mas ha uma " nça
difere . -
funda
mental: quan do nós, professores, nos pergu ntam os como avaliar
redações?,,, ten1os em mente precis ament e o exercício simul ado da
produ ção de textos , de discur sos, de conve rsaçõe s: a redação. Isso
porqu e na escola não se produ zem textos em que um sujeito diz sua
palavr a, mas simula -se o uso da modal idade escrita , para que o alu-
no se exerci te no uso da escrita , prepa rando -se para de fato usá-la no
futuro . É a velha histór ia da prepar ação para a vida, encara ndo-s e o
hoje con10 não-v ida. É o exercício.
Qualq uer propo sta metod ológic a é a articu lação de uma con-
cepçã o de mund o e de educa ção - e por isso uma conce pção de ato
polític o - e uma conce pção episte mológ ica do objeto de reflexã o -
no nosso caso, a linguagen1 - com as ativid ades desen volvid as em
sala de aula. O pritne iro desloc ament o a fazer, de um lado, é o da
funçã o-alun o que escreve uma redaçã o para uma função -profe ssor
que a avalia e, de outro lado, o própri o ato de produ ção escolar de
textos . Por quê?
Porqu e é impos sível mante r uma coerên cia conce bendo o aluno
como aquele que se exerci ta para o futuro , exigin do ao mesm o tem-
po que use com adequ ação a modal idade escrita da lingua gem , já
que esta, nas palavr as de Benve niste, "é tão profu ndam ente marca da
128 pela expres são da subjet ividad e que nós nos pergu ntamo s se,
constr uídas de outro modo , poder ia ainda funcio nar e chamar-se
lingua gem".
Ao descar acteriz ar o aluno como sujeito , impos sibilit a-se-lhe o
uso da lingua gem. Na redação, não há um sujeito que diz, mas um
aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pela escola.
Percival Leme Britto, estuda ndo as condiç ões de produ ção do texto
escolar, conclu i que esta "é marca da, em sua origen1, por uma situa-
ção muito partic ular, onde são negadas à língua algun1as de suas ca-
racterí sticas básicas de empre go, a saber, a sua funcio nalida de , a sub-
jetivid ade de seus locuto res e interlo cutores e o seu papel n1edia dor da
relação home m-mu ndo. O caráte r artificial desta situaç ão doniin ará
todo o processo de produ ção da redaçã o, sendo fator detern1inante de
seu resulta do finar.
Para mante rmos uma coerên cia entre un1a conce pção de lin-
guage m como intera ção e uma conce pção d e educa ção , esta nos con-
duz a uma muda n ça d e atitud e - enqua nco professores - ante o
aluno. Dele precis amos nos tornar interlo cutores para, respei tando-
lhe a palavra, agirm os como reais parceiros : co ncord ando, discor -
dando, acrescen--tando, ques tion and 0 , perguntando N
1. ando de outr ' e~c. ote-se que,
agora, a ava taçao está se apro xim 0 sentido: aquele que
mos em relação ao uso qu e e1et1 L .
ap onta . vamente t
' ora
d
a esco
1
a, se
faz da mod alid ade escr ita.

Odireito à palavra - - - - - - - - -
Feitas essas breves considerações ' tomo-as como pontos de parti.da para
,., b d . • ças 1:
-- ;i) de cnan
a refl exao so re 01s textos (ou um texto e uma redaçao.
1. A casa é bonita.
A casa é do menino.
A casa é do pai.
A casa tem uma sala.
A casa é amarela.
2. Era uma vez umpionho queroia ocabelo
dai um emninopinheto dapasou um
umenino lipo enei pionho aí pasou
um emnino pionheto daí omenino 129
pegoupionho da amunhér pegoupionho
da todomundosaiogritãdo todomundo pegou
pionho di até sofinho begoupionho.
Ambos os textos são de crianças em seu segundo ano de experiên-
alunos
cia escolar. Que dizer de tais textos? Os dados a propósito dos
com o
nos mostram, no mín imo , um critério de avaliação da escrita, tal
vado
ela se dá, em term os gerais, na escola. O auto r do texto 1 foi apro
e foi,
no ano anterior; o auto r do texto 2 repetiu a primeira série
portanto, cons ider ado com o não-alfabetizado.
À luz das considerações que vínhamos fazendo, o auto r do pri-
ta o
meiro texto ente ndeu o jogo da escola: seu texto não represen
alidade
produto de uma reflexão ou uma tentativa de, usando a mod
Ao con-
escrita, estabelecer uma interlocução com um leitor possível.
ema,
trário, trata-se do pree nchi men to de um arcabouço ou um esqu
o
1 O primeiro texto é de um aluno que em 1983 freqüentava a segunda série do primeiro grau;
Os textos foram motivos
segundo texto é do aluno que estava , em 1984, repetindo a primeira série.
leitura e produção de textos"
de reflexão dos professores envolvidos nos projetos "Estratégias de
" (1984) no Programa de
(1983) e "Desenvolvimento de práticas de leitura e produção de textos
Integração do Ensino de Primeiro Grau , Unicamp-lEUMEC-Sesu.
baseado em fragmentos de reflexões, observações ou evocações desar-
ticuladas2. Ele está devolvendo, por escrito, o que a escola lhe disse,
na forma como a escola lhe disse. Anula-se, pois, o sujeito. Nasce o
aluno-função. Eis a redação.
O autor do segundo texto, ao contrário, usa a modalidade escrita
para contar uma história. Ainda que no outro pólo do processo de
interlocução a leitura possa ser prejudicada por problemas ortográfi-
cos e estruturais, há aqui de fato um texto, e não mera redação. Na
verdade, o autor ainda não aprendeu o jogo da escola: insiste em dizer
a sua palavra. Foi reprovado e repete a primeira série.
O fato de considerarmos a seqüência 1 como redação e a seqüên-
cia 2 como texto, e portanto avaliarmos positivamente este e negati-
vamente aquele, não quer dizer que tal texto não apresente proble-
mas. Que fazer com eles? O problema mais óbvio é o relativo à orto-
grafia oficial, e a prática da produção e da leitura de outros textos
ajudará o aluno a ultrapassar suas dificuldades. Apenas para facilitar,
faço uma "tradução em ortografia oficial" do texto:
Era uma vez um piolho que roía o cabelo de um menino piolhento
130 daí passou um menino limpo sem piolho aí um menino piolhento
daí o menino pegou piolho daí a mulher pegou piolho daí todo
mundo saiu gritando todo mundo pegou piolho daí até seu filhinho
pegou piolho.
Mais interessante do que os problemas ortográficos, neste tex-
to, são as influências da oralidade na escrita, repetições, uso de
conectivos como "daí", estruturação da narrativa, etc. É claro que
entre este texto, tal como produzido, e um texto na modalidade
escrita, variedade padrão, há um caminho a percorrer. Isto se acei-
tarmos a hipótese de que o compromisso político da aula de língua
portuguesa é oportunizar o domínio também desta variedade pa-
drão, como uma das formas de acesso a bens que, sendo de todos,
são de uso de alguns. Para percorrer este caminho, no entanto, não
é necessário anular o sujeito. Ao contrário, é abrindo-lhe o espaço
fechado da escola para que nele ele possa dizer a sua palavra, o seu
mundo, que mais facilmente se poderá percorrer o can1inho, não
pela destruição de sua linguagem, para que surja a linguagem da
2 Co_nform~,Cl~~dia Lemos (1977) . Nesse artigo a autora considera e analisa as "estratégias de preen-
chimento utilizadas por vestibulandos em suas redações.
esco la , mas pelo
. respeito a esta linguagem , a seu falante e ao seu
rnundo, consciente s de que também aqui, na linguagem, se revelam
diferentes classes sociais.
as É devolven do o d'ue1to· à pa1avra- e na nossa sociedade isto inclui
0
direito à palavra escrita - que talvez possamos um dia ler a história
contida, e não contada, da grande maioria que hoje ocupa os bancos
das escolas públicas. E tal atitude, parece-me, dá novo significado à
questão ((como avaliar redações?" apontando , no mínimo, para crité-
rios diferentes daqueles que reprovaram o autor do texto, e aprovaram
0 "autor -- 3
"da re daçao.

131 ·

· . . - tau uerendo dizer que a criança que produziu a seqüência 1 deva


3 Eevidente que com isso_ ~ao ~s i~o devolver-lhe o direito de dizer a sua palavra. Talvez, com a
ser reprovada Ao contrario, e prec
_ · m asseio a que nossos olhos se hab'1tuaram ...
devoluçao, seus textos perca O

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