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Calorimetria indireta (CI)

Guilherme T. Araújo, Me, MBA, MD

1. Introdução e definições

O gasto energético total (GET) diário compreende o gasto energético basal, o efeito térmico
dos alimentos e o gasto da atividade física. Podemos assim definir que:

 Gasto energético basal (GEB): O dispêndio basal representa a energia despendida por um
indivíduo mantido em repouso, em um ambiente termicamente neutro, pela manhã, ao
acordar após 12 horas de jejum, e depende da massa corporal magra e, em menor
extensão, da idade, do sexo e de fatores familiares. O dispêndio basal representa 60% a
75% do custo energético diário e inclui a energia gasta com a bomba de sódio-potássio e
outros sistemas que mantêm o gradiente eletro- químico das membranas celulares, a
energia em- pregada na síntese dos componentes do organismo, a energia necessária
para o funcionamento dos sistemas cardiovascular e respiratório e a energia despendida
pelos mecanismos termorregulatórios para manter a temperatura corporal;
 Gasto energético em repouso (GER): A condição basal não é encontrada nas situações
clínicas habituais. É denominado GER o gasto energético despendido em repouso pelo
indivíduo, em um ambiente que não é termicamente neutro e enquanto recebendo
medicamentos ou tratamento suportivo incluindo o suporte nutricional. O dispêndio de
.
repouso costuma ser 10% maior do que o dispêndio basal;
 Efeito térmico dos alimentos: refere-se ao gasto provocado pela digestão, absorção,
transporte, transformação, assimilação e/ou armazenamento dos nutrientes, que varia
de acordo com o substrato consumido. Em jovens eutróficos, com peso constante, a
ingestão de hidratos de carbono aumenta o gasto energético em 5% a 10%, a ingestão de
lipídios aumenta de 3% a 5% e a de proteínas aumenta aproximadamente 20%. Assim,
considera-se que, em uma dieta mista habitual, o efeito térmico do alimento em teoria é
de aproximadamente 5% a 7% do seu conteúdo energético.
 Efeito térmico do exercício: é o dispêndio de energia referente à realização do trabalho
mecânico externo; este representa 15% a 30% do dispêndio energético diário, e varia
com o nível de atividade física, levando-se em conta a intensidade e a duração do esforço
físico realizado.

Diversos fatores, como idade, composição corporal, hormônios tireoidianos, catecolaminas,


temperatura do ambiente e corporal, estados patológicos e uso de drogas/tratamentos podem
influenciar os componentes do GET.

Para uma terapia nutrológica adequada é fundamental o conhecimento do GET. Estudos


mostram que apenas 14 a 32% dos pacientes recebem regimes de nutrição que proveem ± 10%
da necessidade calórica diária. A subnutrição está associada à deterioração da massa magra,
imunossupressão, déficit da cicatrização de feridas e aumento do risco de infecções nosocomiais.
Por sua vez, a hipernutrição associa-se à lipogênese e hiperglicemia, que pode exacerbar um
quadro de insuficiência respiratória.

Podemos definir o GER de três formas:

 Equações preditivas: são práticas não havendo necessidade de equipamentos


especializados e profissionais treinados. Existem mais que 200 equações preditivas, que
podem não refletir a composição corporal, estado nutricional e etnia populacional. Por
exemplo, a equação de Harris-Benedict, que é a mais utilizada, estima o GER com uma
precisão de ±10% em 80% a 90% dos indivíduos normais. Quando empregada em
pacientes gravemente enfermos, porém, essa equação prediz corretamente o dispêndio
em menos de 50% dos indivíduos;
 Calorimetria direta: é a medida do calor produzido pelos processos metabólicos para
quantificar o GET. O calor corporal total é diretamente medido por uma câmara
termicamente selada. Apesar de ser o método com maior acurácia, é extremamente
dispendioso, não acessível e requer profissionais bem treinados. Portanto este método
está basicamente restrito ao meio acadêmico;
 Calorimetria indireta: é um método não invasivo que determina as necessidades
nutricionais e a taxa de utilização dos substratos energéticos a partir do consumo de
oxigênio e da produção de gás carbônico obtidos por análise do ar inspirado e expirado
pelos pulmões, sendo considerado como padrão ouro para medição do GER na prática
clínica.

2. Bases teóricas para a calorimetria indireta

A CI mede a produção de energia a partir das trocas gasosas do organismo com o meio
ambiente. A denominação indireta indica que a produção de energia, diferentemente da
calorimetria direta que mede a transferência de calor do organismo para o meio ambiente, é
calculada a partir dos equivalentes calóricos do oxigênio consumido e do gás carbônico
produzido. Admitindo-se que todo o oxigênio consumido é utilizado para oxidar os substratos
energéticos e que todo o gás carbônico produzido é eliminado pela respiração, é possível calcular
a quantidade total de energia produzida. Essa “produção de energia” significa a conversão da
energia química armazenada nos nutrientes em energia química armazenada no ATP mais a
energia dissipada como calor durante o processo de oxidação.

Sendo assim, a CI mede o volume do oxigênio consumido (VO2) e do volume do gás


carbônico produzido (VCO2) durante o ciclo respiratório, e a partir destes dados calcula o GER e
o quociente respiratório (QR), utilizando as seguintes equações:

A relação entre o VCO2 e o VO2 é referida como quociente respiratório (QR).

3. Tipos de calorímetros

Os aparelhos de CI medem o VO2 e o VCO2, analisando o ar inspirado e expirado pelo


indivíduo num determinado período de tempo. De acordo com o princípio de funcionamento, os
calorímetros são classificados em equipamentos de circuito fechado e equipamentos de circuito
aberto:

 Circuito fechado: o VO2 e o VCO2 são medidos por alterações no volume dentro de um
reservatório fechado contendo oxigênio. Os aparelhos clássicos consistem de um
espirômetro de selo d’água contendo oxigênio a 100%, um filtro com cal-sodada para
absorver o gás carbônico e um circuito respiratório com válvula inspiratória e válvula
expiratória. O indivíduo respira continua- mente o gás contido no espirômetro por meio
do sistema de válvulas direcionais. A redução no volume do gás contido no espirômetro,
no período do exame, permite determinar o consumo do oxigênio. Apesar de ser
considerado padrão-ouro este equipamento é pouco utilizado (Figura 1).
Figura 1: Esquema de um calorímetro de circuito fechado

FIO2 ; FICO2
inspirado; FEO2 ; FECO2
.

 Circuito aberto: ambos os extremos do sistema se comunicam com o ambiente. O ar


inspirado é mantido separado do ar expirado por meio de um sistema de válvulas
unidirecionais. A análise dos gases é realizada por meio de sensores ligados a um
computador (Figura 2).
Recentemente, foram desenvolvidos calorímetros portáteis, entretanto estes calorímetros
utilizam apenas um filtro de VO2 para medicação do gasto energético. Tais calorímetros são
apropriados apenas para pacientes em ventilação espontânea e em ambiente ambulatorial, uma
vez que ele assume um QR (por exemplo de 0,8) constante para todos os pacientes.

Figura 2: Esquema de um calorímetro de circuito aberto

FIO2 = Fração de oxigênio no ar inspirado; FICO2 = Fração de gás carbônico no ar


inspirado; FEO2 = Fração de oxigênio no ar expirado; FECO2 = Fração de gás carbônico
no ar expirado; Q: Fluxo total de ar.
4. Realização do exame

A CI é um exame não invasivo e relativamente fácil de se realizar, todavia para resultados


mais fidedignos alguns procedimentos devem ser observados. Abaixo listamos recomendações
que devem ser observadas para melhorar a acurácia do exame:

 O paciente deve permanecer em repouso em posição supina por pelo menos 30 minutos
antes do exame;
 Pacientes recebendo alimentação intermitente (por exemplo, nutrição enteral in bolus ou
ciclíca) devem ser examinados 1 hora após a última alimentação no caso de se desejar
avaliar o efeito térmico dos alimentos ou após 4 horas da última refeição caso este dado
não seja de interesse de estudo;
 Em pacientes recebendo nutrição contínua, a composição da nutrição deve estar estável
por pelo menos 12 horas antes do exame;
 As medidas devem ser feitas em ambiente silencioso, com pouca iluminação e
temperatura estável em cerca de 20°C;
 Todas as fontes de oxigênio suplementar (por exemplo cânulas ou máscaras de oxigênio)
devem ser retiradas, caso seja possível;
 A fração de oxigênio inspirado (FiO2) deve permanecer constante durante o exame e não
estar superior à 60%;
 O exame deve aguardar ao menos 90 minutos caso seja necessário ajustes nos
parâmetros ventilatórios;
 Deve-se verificar se não há vazamentos nas cânulas do sistema;
 O paciente não deve ter recebido anestesia geral nas últimas 6 a 8 horas antes do exame;
 Se o paciente estiver agitado ou com queixas álgicas, analgésico e sedativos devem ser
administrados 30 minutos antes do exame, e sua administração deve ser considerada
para a interpretação do exame;
 O estudo deve ser atrasado 3 a 4 horas após hemodiálise;
 O estudo deve ser atrasado em 1 hora após procedimentos;
 Procedimentos de cuidado de enfermagem devem ser evitados durante o exame.

A duração do exame depende da obtenção de um estado de equilíbrio metabólico e


respiratório, caracterizado pela estabilidade das leituras obtidas. Esta condição de equilíbrio é
reconhecida quando o VO2 e o VCO2 variam menos de10% e o QR menos de 5% num intervalo
de tempo de cinco minutos. O dispêndio energético medido nesse intervalo de cinco minutos
extrapolado para 24 horas é considerado como representativo do dispêndio energético de
repouso diário. Alguns pesquisadores recomendam um período inicial de adaptação de 5 a 10
minutos, para estabilização das leituras, e um período de medição de 20 minutos. Quando a
leitura não estabiliza, recomenda-se estender a determinação para 25 minutos. Quando se utiliza
o monitor metabólico como um parâmetro de perfusão tecidual, costuma-se medir
continuamente o VO2 até a normalização do estado hemodinâmico.

5. Indicações

Existe comprovação científica de que a calorimetria indireta pode ser usada nos pacientes
com déficits ou riscos nutricionais, fatores de estresse físico ou situações em que o uso de
equações preditivas esteja prejudicado, como, por exemplo:

 Trauma neurológico;
 Paralisia;
 Doença pulmonar obstrutiva crônica;
 Pancreatite aguda;
 Câncer com tumor residual;
 Trauma múltiplo;
 Amputações;
 Pacientes nos quais peso e altura não podem ser medidos com acurácia;
 Pacientes que não responderam ao tratamento previamente estimado;
 Paciente que requerem uso prolongado de cuidado intensivo;
 Sepse grave; 

 Pacientes extremamente obesos; 

 Pacientes com hiper ou hipometabolismo grave; 

 Pacientes em ventilação mecânica; 

 Doença de Chron; 

 Sobrepeso. 


6. Interpretação dos resultados


6.1. Interpretação do GER

Caso o exame tenha sido realizado com o paciente em jejum ou com nutrição intermitente,
deve ser adicionado 5% ao valor do GER para consideração do efeito térmico dos alimentos. Caso
o paciente esteja em alimentação contínua o valor encontrado no exame já abrange o efeito
térmico do alimento, tornando-se desnecessário o acréscimo de 5%.

Normalmente o valor de GER encontrado é multiplicado por um fator de atividade ou


estresse, entretanto estudos recentes demonstram que tais fatores tendem à sobrestimar o GET.
Desta forma, a adição de 5 a 10% em pacientes de UTI e 20% em pacientes não críticos parece
razoável para o cálculo do GET.

6.2. Interpretação do QR

Tradicionalmente o QR é utilizado para se determinar o substrato energético utilizado


(Tabela 1). Seguindo esta premissa, um QR menor que 0,85 sugere subnutrição. Um QR entre
0,85 e 0,9 sugere a utilização mista de substratos, sugerindo um regime nutricional adequado.
Por fim, um RQ maior que 1,0 sugere hipernutrição e potencial lipogênese. Valores abaixo de 0,65
e acima de 1,25 sugerem erro na técnica de medição.

Tabela 1: Interpretação do QR

Substrato utilizado QR

Etanol 0,67

Oxidação lipídica 0,71

Oxidação proteica 0,82

Oxidação mista de substratos 0,85

Oxidação de carboidratos 1,0

Lipogênese 1,0 – 1,2

7. Planejando uma intervenção nutrológica


Para um adequado planejamento nutrológico, é importante entender a resposta metabólica
ao estresse e como ela varia de acordo com o tempo. Existem três fases de resposta metabólica ao
estresse:
 Fase de estresse (fase ”ebb”): geralmente dura entre 12 e 24 horas. É caracterizada pela
instabilidade hemodinâmica, hipometabolismo, prevalência de hormônios
contrarregulatórios e resistência insulínica;
 Fase catabólica (fase “flow”): costuma durar entre 7 e 10 dias, caso não ocorra
complicações, mas pode persistir por semanas. As manifestações clínicas desta fase
incluem febre, hipercatabolismo, gluconeogênese e demanda aumentada de oxigênio;
 Fase anabólica: após a resolução da fase catabólica a fase anabólica pode durar por
meses. É caracterizada pela recuperação do peso corporal, restauração da massa
muscular esquelética e do tecido gorduroso. Clinicamente é marcada pela melhora do
apetite do paciente, que associa-se, por sua vez, da elevação sérica de GH, insulina, IGF e
androgênios.

O suporte metabólico é o foco da intervenção nutrológica durante a fase “ebb”e “flow”. Os


pacientes são nutritos com 100% ou menos do GER com alto valor de nitrogênio (1,5 a 2,0
g/kg/dia). O objetivo é preservar a massa magra sem os efeitos negativos da hipernutrição.

Quando o paciente migra para a fase anabólica, a necessidade energética tende a aumentar
significativamente. A ênfase da intervenção nutrológica se volta para a recuperação do estado
nutrológico do paciente. Nesta fase os pacientes podem ser nutridos com até 130% do GER,
mantendo-se o agressivo aporte proteico (1,5 a 2,0 g/kg/dia).

Preferencialmente os substrados energéticos utilizados para alcançar o GER devem ser não
proteicos, sendo 15 a 20% das calorias provindas de proteínas, 50% de carboidratos e 20 a 30%
de lipídeos.

8. Estudo de caso

Paciente masculino, de 62 anos, sofreu uma colisão frontal com um carro, tendo sofrido
hemorragia subaracnoide com lesão axonal difusa, fratura de quadril e acetábulo esquerdo. De
antecedentes pessoais apresenta doença arterial coronariana, diabetes mellitus tipo 1,
dislipidemia, hipotireoidismo, artrite e demência vascular. Sua estatura é 1,90 m, peso atual de
87,7 kg (IMC: 24,3 kg/m2). Pela equação de Harris-Benedict seu GER é 1804 kcal e levando em
consideração o fator de correção de 1,2 seu GET é 2165 kcal.

Sobre o caso clínico apresentado, discuta:

a. Este paciente possui indicação de realização de CI? Por que?


b. Abaixo é demonstrado os resultados da CI realizados durante a internação (Tabela 2):

Tabela 2: Dados da CI durante o período de internação

DATA 2° DIH 4° DIH 8° DIH 18° DIH

GER (kcal/dia) 986 1.822 2.214 2.673

QR 0,54 0,81 0,97 0,86

Estabilidade NÃO SIM SIM SIM


hemodinâmica

CI: calorimetria indireta; GER: gasto energético em repouso; QR: quociente respiratório; DIH: dia
de internação hospitalar
Sobre os dados da CI apresentados, discuta:

b.1. Discuta o resultado da CI do 2° DIH;

b.2. Explique por que houve alterações dos valores de GER ao passar do tempo de internação;

b.3. Baseando-se nos dados da tabela a terapia nutrológica aplicada neste caso estava correta?

9. Bibliografia recomendada
 DIENER JRC. Calorimetria indireta. Rev Ass Med Brasil 1997; 43(3): 245-53
 Dias ACF, Silva Filho AA, Cômodo ARO, Tomaz BA, Ribas DF, Spolidoro J, Lopes AC,
Marchini JS. Gasto Energético Avaliado pela Calorimetria Indireta. Projeto Diretrizes
AMB
 Haugen HA, Lingtak-Neander Chan, Li F. Indirect Calorimetry: A Practical Guide for
Clinicians. Nutr Clin Pract 2007 22: 377
 Wooley JA. Indirect Calorimetry: Applications in Practice. Respir Care Clin 12 (2006)
619–633
 Psota T, Chen KY. Measuring energy expenditure in clinical populations: rewards and
challenges. Eur J Clin Nutr. 2013 May ; 67(5): 436–442.

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