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Antropologia

Material Teórico
Questões de Antropologia Clássica

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
Questões de Antropologia Clássica

• Introdução
• Retomando Conceitos
• Os primórdios da Antropologia Clássica
• Raça e Cultura ao Longo da História
• Os Precursores da Antropologia Moderna
• A Estruturação de uma Antropologia Moderna

OBJETIVO DE APRENDIZADO
··Tratar do tema “Questões de Antropologia Clássica”. Do desenvolvi-
mento de uma área de estudos debruçada sobre as dimensões física
e cultural da existência humana; seus primeiros preceitos teóricos
matizados sob as perspectivas evolucionistas de Charles Darwin, até
o rompimento com essas explicações de cunho rácico e etapista por
meio do relativismo, da pesquisa participante e do estruturalismo,
estudaremos as mais significativas transformações nos paradigmas
dessa nascente área de conhecimento científico.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
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para estudar.

Mantenha o foco!
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Assim: e se manter
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da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Introdução
É comum, ainda hoje, nos mais variados âmbitos de nossa vida social, nos
depararmos com situações em que um indivíduo se julgue portador de uma cultura
superior à de outro. Pode ser o caso de europeus em relação a latino-americanos,
de brasileiros em relação a outros povos da América Latina, de paulistas, cariocas
ou sulistas, em relação a migrantes de outros estados.

É comum ainda ouvir de quem domine um repertório cultural erudito, por


exemplo, o musical, que apenas a música erudita (popularmente chamada de
“música clássica”) é “música de verdade”, os demais estilos “não são música”, por
entendê-los como inferiores.

O mesmo pode se verificar nas artes: “Cinema norte-americano é que é bom!”;


enquanto nem se procura conhecer o cinema latino-americano, iraniano ou indiano,
por exemplo.

Até mesmo a História está suscetível a essa lógica, quando ouvimos, por
exemplo, que “O passado dos povos europeus é que é glorioso! Já o nosso, está
repleto de índios atrasados!”.

Todas essas situações, perceptíveis no nosso cotidiano, provêm do mesmo


fenômeno: o da convicção de superioridade de uma cultura, ou de um sistema cultural,
sobre outra cultura ou sobre outros sistemas. Ocorre que já sabemos que não existe
indivíduo sem cultura, tampouco culturas superiores ou inferiores, segundo nos
ensina a Antropologia, área de conhecimento cujo objeto primordial de estudo é o
Homem e suas obras, mais especificamente, sua subárea, a Antropologia Cultural.

Sendo assim, sistemas culturais são distintos uns dos outros, mas não deve-
mos hierarquizá-los.

Como a Antropologia lidou com a questão da cultura? Como compreendeu, em


termos teóricos, as diferenças culturais? Como propôs métodos de estudo sobre
processos culturais? Que lições podemos tirar da Antropologia para compreender
e lidar com as diferenças culturais? É exatamente o que pretendemos investigar
nesta unidade, por meio dos temas centrais da Antropologia Clássica e das teorias
do relativismo, da pesquisa participante e do estruturalismo.

Estamos tratando ainda dos primórdios da Antropologia e das Ciências


Sociais, mas já enveredando por seus temas centrais, o que nos permitirá melhor
compreender as dinâmicas culturais a que pertencemos e partilhamos, bem como
aquelas que nos cercam.

Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo


conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais dessa unidade, a fim de
entendermos mais sobre a dimensão cultural da condição humana.

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Retomando Conceitos
Como vimos na primeira unidade, a Antropologia possui um objeto extrema-
mente complexo e denso, e que pode ser estudado desde os mais distintos pontos
de vista: o Ser Humano e suas obras; sendo assim, como ciência, pode-se dizer que
seus limites sejam pouco definidos.

Ocorre que dizer que a Antropologia é a “ciência do homem” não basta. Se assim
fosse, confundiríamos facilmente a Antropologia com a Medicina, a Psicologia, a
Biologia, a Sociologia, a Economia e tantas outras áreas de conhecimento que
focam o Homem a partir de um determinado âmbito de sua existência, individual
ou coletiva. Portanto, dizer que se trata da ciência cujo objeto é o indivíduo não
ajuda a definir esse campo de estudos.

Se recorrermos ao histórico de conformação dessa área, verificaremos que com a


especialização progressiva das ciências humanas, datada do séc. XIX, a Antropologia
se apropriava de questões que essas acabavam, não sendo consideradas por
essas disciplinas.

Dentre esses aspectos relegados pelas demais áreas de conhecimento, destacam-


se aqueles que levariam à cisão entre uma Antropologia Física e uma Antropologia
Cultural (ambas definidas na unidade anterior), respectivamente:
·· o estudo das raças humanas e suas características biológicas;
·· o estudo do homem do ponto de vista social e cultural.

Figura 1 – Tribo Karo, Etiópia, África


Fonte: iStock/Getty Images

Sobre essa segunda dimensão da Antropologia, na qual se insere a dimensão


social do existir humano, ou seja, sua organização em grupos e as dinâmicas de
convívio social que desenvolvem, poder-se-ia dizer que, aqui, esse objeto de interesse
se confunde gravemente com o da Sociologia, ciência cujo objeto são as interações
interindivíduos, conformando grupos sociais e como esses grupos interagem entre
si. Ocorre que a Sociologia se ocupa do estudo de sociedades que possamos chamar
de modernas, isso porque nelas se verificam um alto grau de alfabetização, são
densas demograficamente (podendo nelas se verificar o fenômeno do anonimato)

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

e geograficamente extensas. Já a Antropologia estuda sociedades mais simples,


ágrafas e conformadas por poucos membros, estabelecendo laços sociais muito
mais estreitos. Contudo, essa regra se aplica exatamente àquilo que podemos
caracterizar como Antropologia Clássica, ou seja, sua configuração conforme seu
período formativo; isso porque, hoje, subáreas como a Antropologia Urbana, a
Antropologia do Cotidiano e a Etnografia Urbana se ocupam exatamente de tipos
de sociedade complexas, agravando a distinção (por conta de sua abordagem e
métodos) com relação aos enfoques dados pela Sociologia.

Os primórdios da Antropologia Clássica


Como vimos, durante o séc. XIX, houve um relevante desenvolvimento científico,
produto da elaboração dos métodos de investigação dos séculos XVI ao XVIII.

Figura 2
Fonte: iStock/Getty Images

Decorreu daí o desenvolvimento, nas ciências da natureza (como a Química,


primordialmente), de métodos para datação de materiais orgânicos – dentre eles,
restos esqueletais –, o que possibilitava determinar a antiguidade do próprio ser
humano. O desenvolvimento desses métodos e técnicas para datação resultou em
um enorme esforço para determinar a antiguidade dos inúmeros restos humanos
que se encontravam guardados em museus, universidades e centros de pesquisa,
produto de descobertas arqueológicas por vezes muito anteriores a esse século
XIX. Esse esforço resultou no desenvolvimento de uma nova ciência, dedicada
exatamente a esses estudos e que passava a assumir como objetivo a determinação
não só da antiguidade do Homem, mas dos processos de evolução biológica e
social de nossos antepassados: a Antropologia.

A primeira cisão entre estudos de ordem física e de ordem cultural, dentro da


Antropologia, se deu exatamente nesse momento. Isso porque antropólogos já se
definiam como aqueles que estudavam sociedades distintas das europeias – como
grupamentos humanos autóctones ou sociedades primitivas, por exemplo – e um
novo grupo de cientistas surgia, autodenominando-se também como antropólogos,
mas voltados à investigação sobre aspectos rácicos, biológicos e evolutivos
do Homem.

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É importante salientar que, se não houve acordo quanto ao emprego do termo
antropólogo, tampouco houve em relação ao termo Antropologia. Apesar de nossa
conceituação ser bem clara, as distinções entre Antropologia Física e Antropologia
Social e Cultural, filiados a uma interpretação vigente nos Estados Unidos e na
Inglaterra, não ocorrem na escola francesa, que utiliza o termo Antropologia para
se referir ao que conhecemos como Antropologia Física, enquanto não utiliza o
termo Antropologia Social e Cultural, substituindo-o por etnologia – ao contrário
do que fazem os autores anglo-saxões.

Essa notável imprecisão terminológica se explica pelo fato de a Antropologia


ter progredido em círculos científicos e países muito distintos, resultando em um
relativo grau de autonomia entre as correntes que desde distintos pontos de vista
enveredaram por esse complexo campo de estudos.

Raça e Cultura ao Longo da História


Nas grandes religiões que atravessaram a História se verifica um princípio
comum: o de que os homens são iguais; contudo, se explorarmos as dinâmicas
sociais das mais distintas civilizações, encontramos a prática da discriminação racial,
o que pressupõe convicções de superioridade e atribuição ao outro à condição
de inferioridade.

Figura 3
Fonte: iStock/Getty Images

As civilizações clássicas – Grécia e Roma – praticaram o escravismo com base


fundamentalmente nesse princípio. Ainda que tenha se iniciado com a prática da
escravidão por dívida, quando se tornou o eixo central da economia antiga, o
escravo já era, invariavelmente, aquele que de fora dos limites dos domínios dessas
civilizações havia sido apresado; mais do que isso, por não pertencer à civilização
greco-romana, não seria merecedor da categoria de humano.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Figura 4 – Bárbaros invadindo Paris


Fonte: Wikimedia/Commons

No contexto da civilização romana, da qual herdamos uma série de caracteres,


isso valia para todos que estavam de fora de suas fronteiras, caracterizados como
bárbaros. Evidentemente, a barbárie se define pela contraposição ao conceito de
civilização; sendo assim, o termo é claramente pejorativo e expressa juízos de valor
assentados na convicção de superioridade cultural, traço característico dos povos
da antiguidade clássica.

Não estamos tratando, contudo, de condutas racistas; uma vez que a civilização
romana se constituiu de um mosaico de povos distintos, aprofundando-se as
dinâmicas de miscigenação já assistidas por séculos. Trata-se, em essência, de
uma distinção cultural, que permitia, por exemplo, submeter e dominar o outro,
entendido como bárbaro, em nome de uma cultura superior, signo de civilização.

Mesmo com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, a mesma lógica


atravessou os quase mil anos de Idade Média na Europa, sob domínio da cristandade.
Isso para dizer que as convicções religiosas medievais, sob o cristianismo, também
assumiram um caráter opressor não só sobre outros credos religiosos (como o
judaísmo e o islamismo, por exemplo), mas fundamentalmente compunham um
repertório cultural que se autorreferia como superior, frente a outras culturas que,
não mais nominadas bárbaras, eram referidas como pagãs (não-cristãs), sendo
assim inferiores, o que legitimava sua submissão ou conversão pela força.

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Figura 5 – A Primeira Missa no Brasil, por Victor Meireles (1861)
Fonte: Wikimedia/Commons

Na Era Moderna, inaugurada com a queda do Império Romano do Oriente


(quando Constantinopla cai sob domínio turco), em 1453, assistiu-se à mesma
lógica, obviamente readequada para um novo contexto histórico. A partir do
Renascimento, a expansão europeia para a Ásia e África, bem como a conquista e
dominação do Novo Mundo, estava carregada desse sentimento de superioridade
civilizacional, dessa vez associada ao Homem europeu, ou seja, ao Homem branco.
É aí, nesse momento, que a questão da superioridade cultural, ou civilizacional,
passa a ser associada à cor da pele.

Isso dado exatamente no contexto da expansão europeia por meio das


navegações, se explica também pelo fato de o contato com povos até então
desconhecidos possibilitar saber da existência de distintas etnias, hábitos culturais,
religiões e constituições biotípicas. Não se trata apenas do contato com o outro:
a Europa passava a dominar esses novos e antigos territórios, bem como seus
habitantes passavam a ser submetidos ao Homem europeu.

O contato, portanto, não despertou no europeu a vontade de incorporar o


outro, aquele que aos seus olhos parecia estranho, senão tornou o estranhamento
o princípio maior da violência da conquista, aliado às ambições econômicas e
políticas inerentes aos processos colonizadores.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Figura 6 – Peregrinos partindo da Europa


Fonte: iStock/Getty Images

Povos inteiros pereceram sob as convicções de superioridade europeia. Estima-


se que 70 milhões de índios na América tenham morrido, direta ou indiretamente,
pelo contato com os colonizadores espanhóis e portugueses. Africanos foram
apresados em seu próprio continente e trazidos como escravos para a América,
relegando-se toda a sua constituição cultural.

A questão é que não se tratava de uma opção


por não compreender a cultura de índios, negros
e orientais, senão a convicção de que se tratava de
povos não portadores de cultura, ou portadores de
culturas inferiores.

Ainda que o cristianismo, praticado nos


principais países colonizadores do período, ter
defendido em termos teológicos a igualdade entre
os homens; o histórico de violências da Igreja
em relação a povos não-cristãos, bem como as
necessidades de manutenção dos alicerces de
uma sociedade construída sobre bases escravistas,
reafirmava a bestialização dos povos não-europeus,
afirmando o princípio das raças.
Figura 07 – Escravidão
Fonte: iStock/Getty Images

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Os Precursores da Antropologia Moderna
Com o movimento chamado “Humanismo”,
no contexto do Renascimento, esse caráter
civilizador europeu passou a ser alvo de críticas
na própria Europa. Autores como Thomas
More, La Boètie, Montaigne e Erasmo de
Rotterdam, entre outros, fizeram pesados
ataques à moral europeia e suas convicções de
superioridade em relação aos povos dominados
pelo Homem branco.
Sua crítica expressa nas duas gerações do
humanismo do Renascimento, dos séculos
XVI e XVII, serviu de fundamento para o
desenvolvimento posterior do movimento Figura 8 – Michel de Montaigne
iluminista, que caracterizou o chamado Século Fonte: Wikimedia/Commons
das Luzes: o séc. XVIII.
Pensadores europeus, primordialmente franceses, subverteram a interpretação
valorativa dada aos “selvagens” como povos não-portadores de cultura, exaltando
o exótico, que seguia incompreendido, uma vez que foi criado para eles o mito do
“bom selvagem”.
A questão é que, do séc. XVI ao XVIII, a crítica à cultura europeia se deu por
meio de sua relativização com as culturas dominadas –ainda que as exaltando –,
marcou-se um relevante esforço primeiro para o reconhecimento de que se tratava
de povos portadores de cultura, seguindo para o fato de que não se tratava de
culturas inferiores.
Ainda assim, tratava-se de uma visão “de fora” e que acabava, na prática,
reafirmando a cultura europeia, uma vez que sua pretensão não era compreender
o outro, senão reformar a civilização ocidental.

O darwinismo
Vimos na unidade anterior que, na segunda metade do
século XIX, as teses de Charles Darwin sobre a evolução das
espécies influenciaram enormemente as ciências biológicas.

Esse século posterior às luzes, o século do cientificismo,


foi marcado então pela visão evolucionista. Se pensarmos
nas duas antropologias que estavam em prática nesse
contexto (física e cultural), o evolucionismo lançava novas
luzes a ambas. Isso porque restos arqueológicos, fossem
restos humanos ou artefatos desenvolvidos e utilizados
Figura 9 – Charles Darwin por humanos, além de datados, poderiam ser classificados
Fonte: iStock/Getty Images
segundo seu percurso evolutivo.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Com relação à Antropologia Física, muitos dos restos esqueletais não


correspondiam em alguns detalhes morfológicos às características do homem
atual. Darwin era o primeiro a dar uma explicação consistente, a partir da tese
da perpetuação dos mais aptos, a esse estranho fenômeno – ou seja, as diversas
configurações anatômicas diferentes do ser humano atual, verificadas em ossadas
humanas, validavam a tese de que também o Ser humano evoluía.

Era possível, então, ordenar logicamente as etapas que constituíam a linearidade evo-
lutiva humana, bem como criar tipologias para os artefatos arqueológicos escavados.

Figura 10 – Representação da Evolução Humana


Fonte: iStock/Getty Images

A Estruturação de uma Antropologia Moderna


Temos, então, a figura do antropólogo atrelada às pesquisas sobre a antiguidade
e o percurso evolutivo do Homem; sendo assim, o antropólogo em questão é,
essencialmente, um pesquisador de gabinete, ou seja, trabalha com os dados e
elementos coletados por outros pesquisadores em suas atividades de campo.

Até mesmo os antropólogos que se dedicavam aos estudos culturais se


caracterizavam também como intelectuais de gabinete, uma vez que lidavam
com dados obtidos por cronistas viajantes, navegantes, missionários religiosos
e exploradores mercenários. Sendo assim, o despreparo teórico daqueles que
descreviam a cultura até então desconhecida, era marcada por posturas eurocêntricas
e tendiam a sublinhar os caracteres culturais mais exóticos, ou seja, aqueles que
maiores estranhamentos causavam sobre o europeu, ainda portador de convicções
de superioridade cultural.

O resultado disso foi uma primeira Antropologia caracterizada pela excessiva


teorização e distante demais da realidade.
No que tange aos aspectos culturais, sob a influência do darwinismo que
impregnava sua dimensão física, a Antropologia do século XIX entendia as sociedades
primitivas como se estivessem em uma etapa infantil, em relação às sociedades
adultas: os povos civilizados europeus. Essa convicção alocava as sociedades
europeias como o fim máximo de um processo civilizador e cujo resultado seria
inexorável: todas as sociedades evoluiriam segundo o modelo europeu de cultura.

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Esse tipo de convicção, profundamente ideológica e preconceituosa, só mudaria
com o advento do trabalho antropológico de campo, instituído como prática no
final do século XIX.

Esse novo antropólogo não deveria restringir-se ao gabinete, isso porque não
deveria trabalhar com materiais e dados coletados ou descritos por amadores,
sob pena de comprometer gravemente a própria pesquisa. O antropólogo seria
convertido no pesquisador que se deslocaria fisicamente até a sociedade a ser
investigada. Trata-se das pesquisas de campo, nas quais o próprio antropólogo
observa e coleta os dados que deverá analisar.

É no final desse século que o antropólogo se torna o investigador cuja tarefa


é se deslocar aos lugares mais distantes do mundo, aprendendo a conviver com
pequenas comunidades, observando-as e coletando informações com o rigor
metodológico que também vai se estabelecendo em torno dessas novas tarefas.

As mudanças, para a Antropologia, foram extremamente significativas. O


contato mais íntimo com povos que até então eram compreendidos como simples
e inferiores, revelou práticas sociais e dinâmicas de organização extremamente
complexas e impôs uma possibilidade interpretativa: não se tratariam de povos
inferiores, mas sim distintos.

Essa primeira e mais importante barreira ideológica só foi rompida, sobretudo,


pela observação antropológica empírica.

Essas mudanças não se operaram imediatamente, tampouco em ambiente


harmonioso. Nesse final de século, o contato dos antropólogos ocidentais
com outros povos foi marcado por atitudes de superioridade – tanto é que na
literatura antropológica do período são comuns termos como “povos primitivos” e
“selvagens”, para referi-los.

Os Fundamentos Teóricos de Franz-Boas


Como foi citado na Unidade anterior, o trabalho pioneiro do antropólogo teuto-
americano Franz Boas e seus discípulos consiste no mais importante ponto de
inflexão nos estudos antropológicos, no que tange ao declínio da Antropologia
Rácica (tratada na unidade anterior e nesta), uma vez que sua proposta relativista
desmontava a ideia de proximidade entre evolução biológica e cultural.

No livro As Limitações do Método Comparativo em Antropologia, de


1896, Boas demonstrou como os primeiros antropólogos estavam preocupados
com questões puramente históricas e, enveredando por análises comparativas e
valorativas, identificavam semelhanças e afinidades dos povos como indicadores de
uma origem comum.

Seu pioneirismo consiste na construção teórica que assentou métodos


radicalmente distintos daqueles engendrados nos modos de conceber e estudar as
culturas humanas, propondo relativizá-las, ao invés de escaloná-las hierarquicamente.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Não que estudos comparativos não pudessem ser feitos entre distintas culturas,
ou mesmo que não se pudesse identificar uma origem comum para ambas; na
verdade, o que Boas propunha era um processo indutivo que identificasse as
relações que possibilitariam a comparação, para o então estabelecimento das
conexões históricas pertinentes.

Para Boas, o mesmo fenômeno tem sentidos variados em cada cultura – sendo
assim, o fato de ocorrências semelhantes serem identificadas em distintas culturas
não constitui prova de uma origem comum.

Consequentemente, não havendo uma única origem cultural, não se pode falar
em cultura, senão em culturas. Ou seja, cada cultura tem sua própria história, não
uma cultura humana universal e originária (como pressupunham os evolucionistas).

Sendo então autônomas, todas as culturas seriam também dinâmicas em suas


transformações ao longo do tempo.

Nesse contexto, suas críticas pesavam mais gravemente sobre os determinismos


biológicos e geográficos, bem como no transporte de categorias explicativas
evolucionistas para o tratamento das relações culturais, o que havia levado ao
fenômeno do evolucionismo cultural.

Contrário a essa explicação evolucionista para a diferenciação das culturas, Boas


demonstrou que cada sistema cultural constituía uma unidade integrada, resultado
de um desenvolvimento histórico específico.

Com isso, determinou a independência dos fenômenos culturais em relação


aos condicionantes geográficos e biológicos – vigentes como explicação desde o
período formativo da Antropologia. As dinâmicas culturais estariam desatreladas
desses elementos, obedecendo apenas à lógica da interação entre os indivíduos, o
meio e a sociedade.

A concepção evolucionista aplicada à cultura – responsável pelo assentamento


de uma visão de etapas linear, na forma de estágios evolutivos e obrigatórios pelos
quais, obrigatoriamente, todas as sociedades passariam – assistia ao surgimento de
sua mais severa e consistente crítica.

Essa nova postura teórica deslocou completamente os sentidos gerais da


Antropologia, desde seus objetos, objetivos, até o ofício do antropólogo, que
passava a ser o estudo de sistemas culturais particulares, não da identificação de
uma cultura universal.

Com relação ao método, o princípio fundamental é o da relativização, ou seja,


culturas são relativas e não mantêm relação hierárquica alguma no âmbito dos
valores que possam ser-lhes atribuídas. O papel do antropólogo seria, portanto, o
de não emitir juízos de valor, mas o de relativizar suas posturas.

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Os Fundamentos Teóricos de Bronisław Malinowski
O antropólogo polaco Bronisław Kasper Malinowski,
criador da chamada escola funcionalista, é considerado
um dos fundadores da própria Antropologia Social.

Sua maior contribuição se deu sobre a questão dos


métodos utilizados na coleta de material etnográfico e
constam do capítulo de abertura dos Argonautas do
pacífico ocidental, livro originalmente publicado em
1922. Até ali, os métodos existentes levavam a maior
parte dos antropólogos a concluir pela incoerência da
vida primitiva, comparada à ideia de civilização.

Figura 11 – Bronisław Para Malinowski, essa interpretação nada mais era


Kasper Malinowski do que um produto distorcido da falha de observação do
Fonte: Wikimedia/Commons antropólogo, que deslocava seus sentidos e significados
para ações que não correspondiam ao seu sistema cultural. Assim sendo, a tarefa
primordial consistiria em reconstruir o universo específico de significações da
cultura estudada.

Mas como os antropólogos, via de regra, europeus e portadores de um sistema


cultural completamente distinto, fariam para compreender esses significados?

As pesquisas de Malinowski nas Ilhas Trobiands, onde estudou uma população


de 1200 melanésios da costa nordeste da Nova Guiné, durante a década de 1910,
levaram ao desenvolvimento de um método inovador na forma de coletar dados
de campo, no qual o pesquisador passava a participar diretamente do cotidiano
social do grupo observado. Tratava-se da observação etnográfica, na qual a coleta
de dados seria realizada por aquele que passaria a vivenciar as práticas e partilhar
dos significados a elas atribuídos, permitindo correlacioná-los e compreendê-los
em profundidade.

Dessa forma, não importaria ao antropólogo apenas a ação engendrada pelo


povo estudado, mas essencialmente a representação da ação, para que se pudesse
tratar dos significados que constituiriam os fenômenos culturais sob enfoque.

Obviamente, o desafio do antropólogo seria muito maior do que meramente


descritivo e valorativo, tendo em vista que ações são, no mais das vezes,
multirrepresentacionais, ou seja, podem estar repletas de significados materiais,
sociais e simbólicos, englobando os mais variados aspectos, como: econômicos,
jurídicos, mágico-religiosos, etc.

Contudo, trata-se de um autor ainda preso à ideia de universalidade cultural,


apesar de reconhecer as particularidades das culturas, uma vez que a todo tempo
buscava as relações entre o particular e o universal, perdendo com isso a possibilidade
de explicar questões como a da diversidade cultural.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Ocorre que seus pressupostos teórico-metodológicos tiveram lugar paradigmá-


tico na Antropologia, deslocando irreversivelmente tanto os referenciais teóricos
quanto os objetivos gerais da disciplina, sendo hoje uma referência obrigatória
sobre o modo padrão da pesquisa etnográfica.

O trabalho de campo, depois de Malinowski, passou a se constituir mediante


a observação participante, em grupos sociais de dimensões reduzidas e distintos
daquele ao qual pertenceria o investigador. Esses pressupostos passaram a constituir,
desde então, com os pilares da nascente Antropologia Social e Cultural, marcando
a dimensão da importância do autor para as Ciências Humanas e Sociais; isso
porque o trabalho de campo, segundo definido por Malinowski, passou a constituir
o método privilegiado da Antropologia, influindo determinantemente na sua
constituição como disciplina científica autônoma.

Os Fundamentos Teóricos de Claude Levi-Strauss


O pensador francês Claude Levi-Strauss é o fundador da chamada Antropologia
Estrutural, corrente que se conformou a partir de seus estudos sobre povos indígenas
do Brasil, no período em que aqui permaneceu integrando à missão francesa
que teve como objetivo estruturar a área de Ciências Humanas da recém-criada
Universidade de São Paulo, no período que se estendeu de 1935 a 1939. Durante
esses quatro anos, estudando aspectos sobre a língua, costumes e lendas de povos
indígenas, coletou os dados que permitiriam criar uma nova teoria antropológica,
elaborada e apresentada entre o final da década de 1940 e início de 1950.

Figura 12 – Claude Levi-Strauss


Fonte: Wikimedia/Commons

O percurso que desenvolveu no curto período em que esteve no Brasil revela as


profundas mudanças que vinha sofrendo a própria Antropologia. Desde que chegou,
em 1935, passou a dar aulas de Sociologia na USP até 1938, já empreendendo
suas primeiras incursões de campo em território indígena. Contudo, a necessidade
de empreender pesquisas de campo mais demoradas levou-o a abandonar o
magistério, o que o possibilitou a passar mais tempo nas comunidades indígenas que
estudava: os Kaingang, no Norte do Paraná (na região do rio Tibagi); os Kadiweu,
na divisa com o Paraguai; e os Bororo, do Mato Grosso. Em 1938, retornou da
França, onde havia prestado exames para o magistério, e pôs-se a estudar os
índios Nambiqwara, do Mato Grosso, bem como os Tupi-Kaguahib, na região do
rio Machado, que se pensavam desaparecidos.

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Os pressupostos da nova corrente teórica foram publicados em duas de suas
principais obras: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949, e Tristes
Trópicos, de 1955, que o notabilizam mundialmente.

Lévi-Strauss fez uso da chamada teoria estruturalista francesa, a qual pressupu-


nha que “estruturas universais” estariam por trás de todas as ações humanas, dando
forma às culturas em suas mais variadas manifestações: linguagem, mitos, religiões,
etc. Ele foi responsável por uma “revolução intelectual considerável” e que consis-
tia na aplicação do método estruturalista ao conjunto dos fatos humanos de natu-
reza simbólica. Isso possibilitou ao antropólogo estudar o “pensamento selvagem”,
e não o “pensamento do selvagem”. Não se trata de uma mudança insignificante,
senão na subversão completa do enfoque das pesquisas antropológicas realizadas
até ali. Ou seja, Lévi-Strauss deixou de fazer a distinção do funcionamento mental
entre os povos primitivos e os povos europeus, para afirmar que o “pensamento
selvagem” poderia ser encontrado em cada um de nós.

Distinguiu-se gravemente dos demais antropólogos que buscavam revelar as


diferenças entre povos e culturas, na maioria das vezes valorativas; enquanto
buscava as estruturas universais, também chamadas de “estruturas profundas”.

Sem se preocupar com as diferenças, os estudos de Lévi-Strauss colaboraram


com a relativização entre povos e culturas, estreitando seus laços pela via da
aceitação do diverso, exatamente porque, para ele, as diferenças entre os povos
não constituíam o objeto central de interesse antropológico.

Para o antropólogo, a maior parte dos antropólogos estava preocupado com o


que nominou de “aparência”. Obviamente, utilizou-se de um dos fundamentos do
Estruturalismo para fazer essa afirmação, exatamente a oposição entre essência
e aparência. Suas pesquisas estavam dirigidas aos sentidos profundos das ações
humanas e de seus produtos, na busca pela essência, encontrando-se com a
psicologia, a lógica e a filosofia das sociedades estudadas – a mera descrição das
práticas rituais de uma determinada sociedade, a aparência, não lhe interessava.

Essa nova e revolucionária abordagem encontrou contornos teóricos acabados


na obra O Pensamento Selvagem, de 1962. Sobre o impacto que representou,
para além da Antropologia, implicava em como tratar o até então denominado
“homem primitivo”. Seu método estruturalista permitia compreender que socieda-
des tribais revelavam sistemas lógicos notáveis, de qualidades mentais racionais tão
sofisticadas quanto às de sociedades até então tidas como superiores.

Sua teoria desmontava as convicções comumente aceitas de que as sociedades


primitivas seriam intelectualmente deficitárias e temperamentalmente irracionais, e
que suas ações e obras, que constituíam seus pobres repertórios culturais, tinham
por finalidade a satisfação de necessidades imediatas – como as de alimento,
vestimenta e abrigo.

Sob esses novos pressupostos teóricos, a visão pejorativa sobre as tribos


primitivas estava fadada a desaparecer.

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UNIDADE Questões de Antropologia Clássica

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

  Sites
Site da Associação Brasileira de Antropologia
http://www.abant.org.br/
Site da Revista de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
https://goo.gl/IbqThi
Site da Revista Campos – Revista de Antropologia Social da Universidade Federal
do Paraná
https://goo.gl/nmBo6A

 Filmes
10.000 a.C.
10.000 a.C.; dir.: Roland Emmerich, EUA, drama, colorido, 2008.
A Guerra do Fogo
A Guerra do Fogo; dir.: Jean-Jacques Annaud, EUA / França / Canadá, drama,
colorido, 1981.
2001: Odisseia no Espaço
2001: Odisseia no Espaço; dir.: Stanley Kubrick, EUA, ficção científica, colorido,
1968.

 Leitura
Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento de Franz Boas
ALMEIDA, K.M. P. Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento
de Franz Boas. Mana, vol. 4, n. 2, Rio de Janeiro, out. 1998
https://goo.gl/qHexdk
Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz Boas
PALTRINIERI, A. C. Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz Boas. Revista
Outros Tempos, UFMA, São Luís, v. 6, n. 7, jul. 2009.
https://goo.gl/sRsMqK
Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente malinowskianas
GIUMBELLI, E. Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente
malinowskianas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 48,
fev. 2002.
https://goo.gl/eqPhPr
Claude Levi-Strauss e a experiência sensível da Antropologia
WERNECK, M. M. F. Claude Levi-Strauss e a experiência sensível da Antropologia.
Cronos, UFRN, Natal, v. 9, n. 2, dez. 2008
https://goo.gl/PXU0o0

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Referências
BENEDICT, Ruth. 1934. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1966.

ELIOT, T.S. Notas para a definição de Cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Coleção Os


Pensadores. São Paulo: Abril, 1977.

MARGARIDA MARIA MOURA. Nascimento da Antropologia Cultural: A Obra


de Franz Boas. São Paulo: Hucitec, 2004.

MELLO, L. G. Antropologia Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. Petrópolis:


Vozes, 2004.

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