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Dos Transtornos hipercinéticos (hiperativos)


ao sintoma da criança1 2

Ana Maria Costa da Silva Lopes3

Palavras-chave: Hiperatividade, déficit de atenção, sintoma, criança.

Na clínica atual, as demandas que nos chegam evidenciam um excesso dos objetos de
consumo  o paciente não chega falando de um sofrimento subjetivo, mas com a última
reportagem da revista semanal, com o best-seller do momento que trata deste ou daquele transtorno,
com as referências da home page, que constituem as novas formas de estar no mundo, por meio dos
objetos de consumo. Da mesma forma, os critérios diagnósticos pela Classificação Internacional de
Doenças  CID 104  ofertam um grande número de diagnósticos e, conseqüentemente, de
psicofarmacos, que se inscrevem como verdadeiros objetos a serem consumidos. Nesse sentido, o
diagnóstico baseado nas evidencias sintomáticas passou a anteceder a implicação subjetiva do
sintoma. Diante de tais situações, pode o clínico de crianças  pediatra, neurologista, psiquiatra,
psicólogo e profissionais afins  interrogar-se sobre como sustentar a condução do tratamento
considerando a singularidade de cada criança.
Inicialmente, a abordagem dos sintomas mentais na infância teve a psicanálise como
principal forma de abordagem, o avanço da indústria de psicofármacos efetua mudanças nas
diretrizes diagnósticas, que por vezes desconsidera a história particular de cada criança. Por um
longo tempo, a relação da psicanálise com o medicamento caracterizou-se como uma relação de
exterioridade. A revolução terapêutica do medicamento só aconteceu no final dos anos 1950, com
avanços progressivos. Atualmente, há gerações de antidepressivos, como há gerações de
computadores. Dessa forma, o medicamento, hoje, é onipresente, transforma a clínica

1
Participação na mesa-redonda “Conversando sobre a clínica – A criança medicalizada” , realizada em 19 de
maio de 2004, na XII Jornada de Psicologia da PUC Minas Coração Eucarístico.
2
Artigo publicado em 24/09/2004 na Internet. Textos Científicos da Sociedade Mineira de Pediatria.
www.smp.org.br.
3
Presidente do Comitê de Saúde Escolar da Sociedade Mineira de Pediatria. Pediatra e Psiquiatra da Infância
e Adolescência. Psicanalista membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais
4
Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes
Diagnósticas – Coordenação da Organização Mundial da Saúde. Tradução de Dorgival Caetano. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993.
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(LAURENT,2000)5. O desafio clínico é o de saber não se opor à prescrição medicamentosa, mas


mantê-la como auxiliar do essencial ao dispositivo analítico. Ou seja, que o medicamento não seja
um instrumento que faz-calar, mas que seja parceiro do faz-falar, campo possível ao trabalho
analítico (LAURENT, 2000), sobretudo com a criança.

As novas classificações diagnósticas


As atuais classificações psicopatológicas definem a clínica dos transtornos, que passa a ter
supremacia sobre a clínica clássica e define o ideal de tratamento - seja medicamentoso, seja
comportamental. Dessa forma, novos significantes-mestres são ofertados ao sujeito. O caso de
Bruna6  uma criança medicalizada  demonstra a possibilidade de uma prática clínica que
incide não sobre o discurso da ciência __ ou seja, sobre o medicamento ou o diagnóstico de um
transtorno __ mas na aposta de fazer surgir o sujeito.
No caso em questão, o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH e a
ritalina7 passam a nortear a relação entre Bruna e sua mãe, que se apropria do saber ofertado pela
Psiquiatria contemporânea. Evidencia-se, na condução do caso, que o analista ao interpretar a
articulação entre o discurso da ciência, em que a mãe inscreve a filha, e o discurso de Bruna, que
está referido ao seu sofrimento  o medo , possibilita que algo aconteça, ou seja, a experiência
analítica torna-se possível, ocorre uma retificação subjetiva do sintoma.
Bruna chega a clinica de Psicologia aos 10 anos de idade. É filha única, mora com os pais e
cursa a 4ª série do Ensino Fundamental. Após um percurso por vários profissionais 
neurologistas, psiquiatras e homeopatas  Bruna é encaminhada ao psicólogo para tratamento da
hiperatividade. A mãe acolhe os significantes da ciência para nomear a filha  hiperativa,
superdotada, comportamento anormal e desorganizado  ,porém inclui um outro sintoma que vai
possibilitar a escuta analítica  o medo. Percebe-se que, apesar de a mãe apropriar-se dos
significantes da ciência, algo do sujeito surge quando se introduz o medo como um sintoma.

5
LAURENT, E. Como engolir a pílula? Publicado originalmente em AMP: Congresso de Buenos Aires, 14
jul. 2000. Tradução de Sérgio de Mattos. In: Clique nº 1. Belo Horizonte.2002, p. 25-36.
6
Caso apresentado por Sarah Bernardes Rosa na XII Jornada da Clinica de Psicologia da PUC Minas, em
10 de maio de 2004.

7
Ritalina é o nome comercial do metilfenidato, uma anfetamina clássica cujo seu principal efeito, através do
sistema dopaminérgico é o de liberação de dopamina, noradrenalina e serotonina. É indicação terapêutica no
tratamento de TDAH. Essa droga aumenta o alcance da atenção, aumenta a capacidade de concentração e
diminui o comportamento de oposição.
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Da clínica dos transtornos a clínica do sintoma analítico


A Classificação Internacional de Doenças - CID 10 ou o Diagnóstico de Saúde Mental
Revisado - DSM-IV oferecem uma clínica descritiva baseada em evidências e no conjunto de sinais
e sintomas que determinam grandes síndromes, que passam a ser denominadas como transtornos.
Tais formas classificatórias operam mudanças, sobretudo criam novos significantes que serão
acolhidos pelo sujeito como ancoragem, nova roupagem para se apresentar diante do outro.
Nesse sentido, se, por um lado, Bruna, inicialmente, não sabe o motivo de seu
atendimento, atribuindo-o, talvez, ao seu comportamento  desatenta, agitada e nervosa, por
outro, relata medo do pai, que é nervoso e bateu nela por duas vezes. Bruna,ao afastar-se dos pais,
em uma viagem para a praia com a tia, sonha com eles se afogando e morrendo. Assim, os anjos e
deficientes  sem perna, sem braço , que trazem em si a marca da castração, passam a povoar
seus sonhos.
Bruna constrói uma fobia por meio da qual o sintoma, que, a princípio, se manifestava
somente no campo do fenômeno comportamental  a hiperatividade , passa a se inscrever de
forma a revelar a posição subjetiva do sujeito. Torna-se necessário que a mãe se apresente não
apenas como alguém que pode faltar, mas que essa falta se inscreva por intermédio da cena do
afogamento. Isso produz a queda da onipotência da mãe e inscreve a simbolização da castração
materna. É pela via da fobia que Bruna vai tratar das questões do romance familiar na perspectiva
do tratamento analítico  sobretudo da onipotência materna, que, por vezes, se confunde com a
onipotência do discurso científico, presentificado pela clínica dos transtornos e dos psicofarmacos.
Eric Laurent8 propõe, a propósito, uma abordagem sob quatro formas distintas da
dimensão libidinal do objeto medicamento: o pharmakon, o placebo, o “mais de vida” e o
anestésico. No caso em questão, pode-se pensar o medicamento como anestésico  ou seja, ele não
cura, mas permite o tratamento analítico de pacientes decididos. Assim, o medicamento e a
fenomenologia da hiperatividade possibilitam que algo se articule por meio do sintoma medo,
criando uma nova dimensão da demanda.
Nessa perspectiva, o médico deve estar atento à sua relação com a demanda para além de
sua função de distribuidor de remédios. A indústria farmacêutica requer do médico que autentifique
a eficácia de seus produtos e o paciente, por sua vez, quer estar apto a adquirir o medicamento como
mais um bem de consumo. Esse é o ponto que interessa, ou seja, a dimensão ética da avaliação da
demanda, o que se endereça ao sujeito presente no medicamento, de forma que a Psicanálise não se
oponha aos fármacos, mas possibilite o fazer existir na direção do tratamento, a dimensão do

8
Ibid.
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sujeito. Que o analista possa fazer do poder contingente do medicamento um auxiliar do


dispositivo analítico.

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