Autodeterminação é conceito que se aproxima da ideia de autonomia, ou seja, da faculdade de se
governar por si mesmo. Essa aspiração é tão antiga quanto a história da humanidade. No entanto, é relevante determinar em que momento esse anseio adquiriu importância legal e qual seu conteúdo nos dias de hoje. A fixação desse parâmetro é essencial para a exata compreensão, no plano jurídico, do que ocorre atualmente na Crimeia. Não obstante longa história – que remete, entre outros acontecimentos, às revoluções do século 18 (Americana e Francesa) e ao ocaso dos impérios Austro-Húngaro e Otomano –, foi a partir da Carta da ONU, de 1945, que o princípio da autodeterminação restou codificado. Esse documento faz menção expressa ao conceito nos artigos 1(2) e 55. Nos primórdios das Nações Unidas, a autodeterminação dizia respeito às situações de povos sob domínio colonial ou estrangeiro, bem como de povos sob regimes racistas. Há, ainda, situações em que determinados povos em um dado território são tratados de maneira discriminatória por governo pouco representativo. Desse modo, no caso de um povo ter bloqueado seu direito de "autodeterminação interna", ele poderia, como recurso derradeiro, exercer seu direito de "autodeterminação externa" (secessão). O princípio foi, com isso, elevado à categoria de norma de direitos humanos. Nesse sentido, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) estabelecem que todos os povos têm direito à autodeterminação. A Corte Internacional de Justiça, por sua vez, ao analisar o caso do Timor Leste, em 1995, destacou ser a autodeterminação um dos princípios essenciais do direito internacional contemporâneo. Tão certo quanto o que foi acima dito é a circunstância de o direito internacional considerar a integridade territorial (art. 2, 4, da Carta da ONU) como regra, à vista da igualdade soberana dos Estados, e a autodeterminação externa como exceção. Com esse propósito, os Estados reunidos na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos enfatizaram, em sua Declaração e Programa de Ação (Viena, 1993), que a realização do direito à autodeterminação não significa autorização ou estímulo a qualquer ato que possa desmembrar ou prejudicar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou unidade política de Estados soberanos e independentes que se conduzam em consonância com o princípio de igualdade de direitos e autodeterminação dos povos e que possuam, assim, governo representativo do povo como um todo pertencente ao território sem qualquer tipo de distinção. Esse o quadro, pode-se dizer que a autodeterminação externa, fora de contextos coloniais, surge em hipóteses extremas e em conformidade com circunstâncias cuidadosamente definidas. Do exposto, percebe-se que o caso envolvendo a Península da Crimeia e a cidade de Sebastopol não se ajusta, ao menos à vista das atuais circunstâncias, em uma hipótese de autodeterminação externa. Houve, de um lado, afronta ao princípio da integridade territorial ucraniana; de outro, inexiste indicação patente de que a Ucrânia afronte a igualdade de direitos entre os habitantes da península; ou de que aja com violência em relação a determinada parcela dessa população; ou de que obstaculize seu direito ao pleno desenvolvimento político, econômico, social e cultural; ou de que impeça, de forma contundente, eventual autodeterminação interna da população não autóctone de origem russa em solo crimeniano. Não há, por fim, nenhuma indicação de que esse segmento da população tenha sua própria existência ameaçada. A ser correta essa leitura, inexiste fundamento no direito internacional para os fatos recentes vinculados ao tema. Márcio Garcia, mestre em Direito Internacional pela Universidade de Cambridge e doutor em Direito Internacional pela USP, é professor do Instituto Rio Branco.