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MIELOMENINGOCELE
EPIDEMIOLOGIA
A incidência mundial média de DTNs é estimada Figura 1 A hemimie lomeningoce le combina defeito da gas-
trulação e da ne urulação primária. (A) Placódio lateralizado. (B)
em 1/1.000 nascidos vivos, divididos igualmente entre Malformação da medula fendida do t ipo 1 (diast ematomielia)
EBC e anencefalia. 52 A maior atenção das entidades de com placódio à esquerda (HM) e septo cartilaginoso (SC) inter-
saúde pública, o aconselhamento genético, a melhora dos posto entra as hemimed ulas .
cuidados pré-natais, os novos métodos diagnósticos, bem
como a suplementação dietética e o enriquecimento de
alimentos com ácido fólico, resultaram em acentuado hidrodinâmica, segundo a qual o tubo neural já fechado
declínio na incidência de DTNs. 17,21,52,53•1º1•1º3 Na Améri- reabriria em função de forças hidráulicas que atuariam
ca do Sul, a sua incidência, estimada em 5,1/10 mil nas- sobre o canal central da medula, é de difícil aceitação
cidos vivos, decaiu significativamente após a introdução pela maioria dos embriologistas.35•83 Seja qual for o me-
do ácido fólico nas dietas. 15,53 O risco de recidiva de DTNs canismo envolvido, o tubo neural permanece aberto em
após um primeiro evento é estimado em 5%, triplican- extensão variável, sem proteção da epiderme e sujeito
do após um segundo filho malformado. 14 A incidência aos efeitos deletérios do líquido amniótico.
familiar varia entre 2 e 6%. Os mais importantes fatores
ambientais são relacionados às más condições de saúde, ETIOLOGIA E GENÉTICA
higiene e nutrição. 52•75
A neurulação depende de uma precisa organização
EMBRIOPATOGENIA temporal e espacial da expressão de múltiplos genes em
níveis determinados e que também envolvem separada-
Os disrafismos espinais resultam de alterações do mente as porções anterior e posterior do tubo neural. Ci-
desenvolvimento embrionário durante a gastrulação, a tem-se como exemplos a proteína Sonic Hedgehog (SHH),
neurulação primária e a neurulação secundária. Na gas- essencial à indução da porção ventral do tubo neural, e
trulação desenvolve-se o embrião trilaminar formado os membros da família do fator de crescimento beta (TGF-
por ectoderma, mesoderma e endoderma. A mielome- -B) que participam da formação de porção dorsal do
ningocele é um defeito da neurulação primária. A neu- mesmo. Admite-se que a mutação de grande quantida-
rulação secundária envolve alterações regressivas na cau - de de genes seja reponsável por DTNs em animais, mas,
da do embrião, já totalmente recoberto por pele. 52•72 A em humanos, a etiologia é multifatorial, coexistindo fa-
superposição cronológica dos estágios embriológicos tores genéticos e ambientais em quantidade e natureza
pode resultar em múltiplas malformações e um clássico não determinadas. 14•25
exemplo é a hemimielomeningocele, na qual coexistem A possibilidade de deficiências vitamínicas serem
defeitos da neurulação primária e da gastrulação (Figu- causadoras de DTNs foi sugerida pela primeira vez por
ra 1). A descrição detalhada do desenvolvimento em- Smithells et al., em 1983. 103 Em 1991, um estudo multi-
briológico foge ao escopo deste capítulo. cêntrico internacional demonstrou o efeito positivo do
Admite-se que a anencefalia, a craniorraquisquise e ácido fólico na prevenção de DTNs em gestantes de alto
a MMC resultem da ausência de fechamento ou do fe- risco e, um ano após, seu uso foi recomendado a todas as
chamento defeituoso do tubo neural entre o 25 e o 27° mulheres em idade reprodutiva capazes de engravidar. 17•71
dia após a ovulação, conforme proposto por Lebedeff5 1 e O ácido fólico previne a ocorrência de DTNs por es-
von Recklinghausen 109 e, posteriormente, suportado por timular as reações de metilação celular, e altos títulos de
outros autores, com algumas variações.25,29•94•11º A teoria autoanticorpos para receptores de folatos foram detecta-
149 Mielomeningocele 1735
PATOLOGIA
A
à formação do encéfalo e dos ossos do crânio. Sem a atua- Os sinais indiretos são as alterações do formato do
ção dessas forças, a fossa posterior não se desenvolve ade- crânio fetal, da conformação do cerebelo e do volume e
quadamente, sendo incapaz de acomodar suas estrutu- forma dos ventrículos laterais. O sinal do limão (Figura
ras. Esses mesmos mecanismos são responsáveis pelas 3B) é a representação sonográfica do contorno côncavo
alterações mesenquimais que resultam nas malforma- ou linear dos ossos frontais, particularmente identificá-
ções descritas. vel até a 24ª semana de gestação.73 Ele é também visto em
fetos normais e em portadores de anomalias distintas da
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL, mielomeningocele.74 Alguns autores sugerem que seja
ACONSELHAMENTO GENÉTICO um precedente da craniolacunia,79•8º enquanto outros
E CONSIDERAÇÕES OBSTÉTRICAS acreditam que se deva à baixa pressão intracraniana de-
corrente do escape de LCR pela lesão aberta.88
A dosagem da a -fetoproteína (AFP) é amplamente O sinal da banana expressa a curvatura anterior dos
utilizada para a detecção de DTNs, tanto no líquido am - hemisférios cerebelares, obstruindo a cisterna magna.
niótico quanto no sangue. 10,11 O aumento de sua concen- Embora menos frequente que o sinal do limão, parece
tração é consequência do escoamento direto do sangue ser específico da MMC e indicativo de MCh II.3,79
fetal pela lesão aberta, o que não ocorre em disrafismos A ventriculomegalia é frequentemente associada à
fechados. 50 A concentração de AFP no líquido amnióti- MMC e algumas casuísticas registram uma incidência
co atinge o máximo entre a 12ª e a 14ª semanas de ame- superior a 80% de todos os casos examinados por USG. 13,79
norreia, declinando quatro semanas depois. No soro ma- Certas alterações presentes na M Ch II, como agenesia
terno, o aumento é um pouco mais tardio, detectado ou disgenesia do corpo caloso, heterotopias corticais e
entre a 13ª e a 32ª semanas de amenorreia, atingindo seu polimicrogiria, conferem uma forma característica ao
ápice próximo à 18ª semana.89 sistema ventricular, na qual o átrio e os prolongamentos
A acetilcolinesterase (AChE) é uma enzima relacio- occipitais são desproporcionalmente volumosos. Essa
nada ao metabolismo dos neurotransmissores e ligada à condição é denominada colpocefalia e não deve ser con-
membrana neuronal, por meio da qual se difunde ao fundida com hidrocefalia. 30
LCR, e em casos de DTNs, ao líquido amniótico.78 Sua Imagens por ressonância nuclear magnética (RNM)
determinação é apenas qualitativa, porém bastante con- são úteis para diferenciar os disrafismos abertos dos fe-
fiável, específica e altamente sensível. chados.77 A RNM fetal provê uma maior resolução ana-
A acurácia da ultrassonografia gestacional (USG) va- tômica das estruturas e melhor definição dos tecidos (Fi-
ria conforme a experiência do examinador, aproximan- gura 3C). No entanto, as imagens podem ser degradadas
do-se de 100% em centros de referência. 19 Na USG pro- por movimentos maternos e fetais, hoje minimizados
curam-se sinais diretos e indiretos do defeito. Os sinais por sequências ultrarrápidas. A avaliação de fetos mui-
diretos podem ser vistos a partir da 16ª ou 17ª semanas to jovens com órgãos muito pequenos pode ser um pro-
de gestação, quando a coluna vertebral fetal já está sufi- blema adicional. 102 A RNM ganhou maior importância
cientemente ossificada. Eles se expressam por solução de no diagnóstico pré-natal pela capacidade de fornecer da-
continuidade dos tegumentos, melhor observada em cor- dos relativos à localização e extensão da lesão, à MCh II
tes longitudinais e transversais. A imagem habitual é a e demais malformações associadas, fundamentais ao pla-
de um cisto contendo LCR em seu interior (Figura 3A), nejamento das correções intrauterinas da MMC. 57
provocando abaulamento na porção posterior da raque. 3
Figura 3 Diagnóstico pré-nata l por imagem: (A) USG mostrando cist o contendo LC R (setas) abau lando a porção posterior da
coluna lombar e (8) sinal do limão. (C) Ressonância magnética fet al most rando o defeito na porção inferior da coluna vertebral
fet al (MMC).
149 Mielomeningocele 173 7
O aconselhamento genético deve ser oferecido a ca- rizam a deformidade lacunar do crânio, também conhe-
sais que já geraram filhos com DTNs, pelo maior risco cida como craniolacunia ou Luckenschi:idel, vista em mais
de recidiva do defeito em gestações subsequentes. 14•7 1 de 80% dos recém-nascidos e que desaparece nos seis
Casos de MMC com ou sem hidrocefalia devem ser primeiros meses de vida.93
conduzidas mediante parto cesáreo. Partos por via vagi- Deformidades ortopédicas são observadas em apro-
nal podem ser responsáveis por paralisias severas e in- ximadamente 60% dos pacientes e as mais comuns são
fecções do sistema nervoso. 59 pé torto, luxação do quadril e deformidades da coluna
vertebral. 104
CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS O exame neurológico do recém-nascido é difícil pela
natureza passiva do paciente. Sinais e sintomas da MCh
O recém-nascido deve ser mantido em decúbito ven- II raramente estão presentes por ocasião do nascimen-
tral ou lateral, em leito aquecido; a lesão deve permane- to. Eles podem se manifestar por dificuldade de ingerir
cer coberta e umidificada com soro fisiológico, isolada líquidos, mamada prolongada e ineficaz acompanhada
do orifício anal. de tosse, cianose e sinais de asfixia. Refluxo gastroesofá-
A preocupação em dividir lesões em íntegras e ro- gico, regurgitação de alimentos e secreções pelas fossas
tas, estabelecendo assim critérios para cirurgias de emer- nasais e boca, bem como a perda dos reflexos orofarín-
gência, não é relevante, uma vez que o revestimento me- geo e traqueobrônquico, predispõem a pneumonias de
níngeo não é barreira natural à invasão do SNC por aspiração recidivantes.60•91 Crises de apneia podem ser
bactérias. É importante inspecionar atentamente todo o causadas por obstrução de vias aéreas ou disfunção bul-
dorso, pois assinaturas cutâneas de outros disrafismos har.63•1º8 No primeiro caso, a paralisia bilateral dos abdu-
espinais como hipertricose, fístulas neuroectodérmicas, tores das cordas vocais é responsável por respiração es-
crateras, etc., podem estar presentes (Figura 4) e devem tertorosa e esforço respiratório, precedendo a parada.
ser exploradas, pela possibilidade de segunda malforma- Essa forma é aliviada por intubação orotraqueal ou tra-
ções nesse nível. 47•85 queostomia. A apneia mediada por mecanismos centrais
Alguns recém-nascidos com spina bifida cística apre- também se associa a paralisia bilateral de cordas vocais
sentam-se com o pescoço retrofletido, possível manifes- e pode apresentar componente obstrutivo. Caracteristi-
tação da MCh II. Alterações do eixo da coluna vertebral, camente, ela ocorre imediatamente após a criança ser
notadamente cifose e escoliose, podem estar presentes. manipulada ou submetida a situações de intenso descon-
O perímetro cefálico dos neonatos pode ser normal, forto. A apneia ocorre durante a expiração, é prolonga-
diminuído ou aumentado, a despeito da existência ou d.a, acompanhada de intensa cianose e não costuma ser
não de hidrocefalia. A fossa posterior é pequena. Áreas aliviada por intubação ou traqueostomia.24
não ossificadas palpáveis na abóbada craniana caracte-
A B
Figura 4 Estigmas cut âneos associados a MMC: (A) hipertricose sacral. (B) A exploração dist al à lesão (MMC) evidenciou mal-
formação da medula fendida tipo 1 (MMF). (C) Outro exemplo de malformação associada revelada por estigma cutâneo de linha
média.
1738 Tratado de Neurocirurgia
convexidade dos hemisférios cerebrais. A aglomeração acesso à pele circund.a nte, uma vez que a rotação de re-
de estruturas na fossa posterior bloqueia a incisura ten- talhos pode ser necessária.
torial, podendo aumentar a resistência ao fluxo de LCR Os objetivos da cirurgia são o restabelecimento das
pelas cisternas e obstruir secundariamente o aqueduto barreiras naturais, a preservação da função neurológica
cerebral, que pode ser também congenitamente malfor- e a prevenção do ancoramento medular. Os princípios
mado. Adicionalmente, a compressão e obstrução de da técnica operatória consistem na identificação e disse-
veias da base do crânio pode ser causa de hidrocefalia, cação do placódio, reconstituição do tubo neural, fecha-
semelhante ao observado em algumas craniosinostoses. mento das meninges, reforço do defeito com fáscia e su-
É muito possível que diversas combinações desses me- tura da pele sem tensão.
canismos sejam responsáveis pelas diferentes respostas Inicialmente, o placódio é isolado circunferencial-
aos tratamentos oferecidos. 106 mente, cuidando-se para manter intactas as raízes ner-
Em alguns centros, válvulas têm sido implantadas si- vosas (Figuras SA e SB). Uma vez que a placa neural pode
multaneamente à correção da mielomeningocele.32·42•56 Uti- reter alguma capacidade funcional, tanto ela quanto sua
lizamos essa prática somente em pacientes operados nas suplência vascular devem ser preservadas. O placódio
primeiras 24 horas de vida e nascidos em nossa institui- deve ser totalmente liberado dos tecidos adjacentes, pois
ção. Nos casos corrigidos mais tardiamente e naqueles fragmentos cutâneos retidos podem gerar cistos dermoi-
oriundos de outros hospitais, a derivação é implantada so- des de inclusão e ancoramento medular.64·73 Nessa fase,
mente após a análise do LCR. Caso seja comprovada in- o uso de lupa ou do microscópio cirúrgico é de grande
fecção, o procedimento aconselhado é a instalação de uma valia. Se possível, o placódio deve ser reconstituído com
drenagem ventricular externa até a cura. suturas finas aplicadas aos bordos da pia-máter que são
A terceiroventriculostomia endoscópica (TVE) não aproximados, de modo a adquirir uma conformação se-
é aconselhável no tratamento da hidrocefalia de recém- melhante à da medula normal (Figura SC). 58·6º·64
-nascidos com mielomeningocele. Teo e Jones demons- Segue-se a identificação e a separação da dura-má-
traram que o índice de sucesso em menores de seis me- ter, que deve ser incisada próximo à sua linha de fusão
ses de idade é de 12,5% e que o procedimento é epidérmica. A dissecação continua superiormente até a
dificultado pelas variações anatômicas do III ventrícu- identificação do primeiro arco posterior, abaixo do qual
lo.107Em oposição, as possibilidade de sucesso são bem meninges íntegras são encontradas. Medialmente, o li-
mais elevadas em crianças mais velhas e quando a TVE mite é a gordura epidural e a emergência das raízes ner-
é realizada secundariamente à falência de uma deriva- vosas (Figura SD).
ção já implantada. 106·107 Após a definição da dura-máter, o seu conteúdo é ins-
Apesar de presente em praticamente todos os casos, pecionado em busca de outras malformações. Estas ge-
a MCh II é sintomática em apenas um terço dos neona- ralmente se encontram na área exposta ou imediatamen-
tos. Pacientes que desenvolvem sinais e sintomas da MCh te adjacente a ela, podendo, em alguns casos, ser
II nos primeiros seis meses de vida têm prognóstico bas- encontradas remotas à MMC. 100 As malformações da me-
tante reservado e muitos morrem de disfunção bulhar dula fendida e o filamento terminal espessado são as mais
ou de suas complicações tardias. 27·6º O tratamento inicial frequentes malformações associadas e, uma vez identifi-
das manifestações da MCh é a instalação de DVP ou re- cadas, devem ser tratadas no mesmo tempo cirúrgico (Fi-
visão de um sistema já implantado, sendo a descompres- gura 6). Uma laminotomia do tipo porta aberta pode ser
são craniocervical indicada em casos refratários, mas sua útil na identificação e no tratamento de malformações as-
eficácia em recém-nascidos e lactentes é discutível.26·55·62·97 sociadas que se estendem além dos limites da lesão.
O diagnóstico pré-natal permite mobilizar as equi- O fechamento da dura-máter deve ser hermético,
pes para o planejamento de um parto atraumático e re- evitando constrição de seu conteúdo e permitindo que
paro da lesão em ambiente asséptico.59A antissepsia deve o tubo neural criado permaneça envolto por LCR (Figu-
se estender por todo o dorso, com exceção do placódio, ra 7A). A aponeurose paravertebral pode ser utilizada
que é exaustivamente irrigado com soro fisiológico mor- como enxerto para aumentar o diâmetro do saco dural.
no. Compostos iodados devem ser evitados, pois há re- Uma vez completada a sutura, uma manobra de Valsal-
latos de hipotireoidismo associado à sua utilização. va permite identificar eventual ponto de saída de liquor.
Depois de anestesiado, o paciente é colocado em de- Em sequência, proeminências ósseas que pressio-
cúbito ventral com a face, o tórax e cristas ilíacas apoia- nem a pele são removidas. Deformidades cifóticas são
das e protegidas em superfícies macias, de modo a evi- tratadas nesse tempo. Os corpos vertebrais que consti-
tar compressão do abdome e úlceras de pressão. A tuem o ápice da deformidade são separados da dura-má-
colocação dos campos cirúrgicos deve permitir amplo ter e da musculatura circundante e removidos com goi-
1740 Tratado de Neurocirurgia
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