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Daniella Barroso | DEBORAH CARVALHO | JHONNY TORRES | WELLINGTON FERNANDES
Geogr
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no ensino

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Livro DE FORMAÇÃO CONTINUADA


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GEOGRAFIA
Ciê S oci
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Temas e

Hu l ic
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s
projetos
no ensino

L
médio

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DANIELLA BARROSO

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Licenciada e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo. Leciona
para o ensino médio no Centro Paula Souza, em São Paulo.

DEBORAH CARVALHO
Licenciada e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo. Atua na
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área de licenciamento ambiental e já lecionou nas redes pública e privada
de ensino.

JHONNY TORRES
licenciado em Geografia pela Universidade de São Paulo. Leciona na educação
básica e em cursinhos pré-vestibulares.

WELLINGTON FERNANDES
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licenciado em Geografia pela Universidade de São Paulo. Leciona no ensino


básico na rede municipal de São Paulo e em cursinhos comunitários.
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1ª edição • São Paulo • 2021

Livro DE FORMAÇÃO CONTINUADA


@ Boreal Edições, 2021.

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Edição: Daniella Barroso
Preparação: Luciana Baraldi e Flávia Gonçalves
Projeto gráfico e capa: Aline Martins (Sem Serifa)

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Ilustração de capa: Freepik
Ilustrações, mapas e pesquisa iconográfica: Daniella Barroso e Gabriel Calou
Impressão e acabamento:

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Laura Emilia da Silva Siqueira CRB 8-8127)

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Barroso, Daniella.
Temas e projetos no Ensino Médio: Geografia / Daniella Barroso ,
Deborah Carvalho , Jhonny Torres , Wellington Fernandes. 1a ed. – São
Paulo: Boreal Edições: 2021. (livro do professor)
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160 p. ; il. ; foto ; 20,5 x 27,5 cm.
ISBN 978-65-993549-1-5

1. Geografia: ensino 2. Geografia: ensino médio


3. Geografia: ciências sociais 4. Geografia: interdisciplinaridade 5.
Geografia: estratégias de ensino e avaliação
I.Barroso, Daniella. II. Carvalho, Deborah. III. Torres, Johnny. IV.
Fernandes, Wellington.
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CDU 910.1 CDD 910


Índices para catálogo sistemático:
1. Geografia: ensino
2. Geografia: ensino médio
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3. Geografia: ciências sociais


4. Geografia: interdisciplinaridade
5. Geografia: estratégias de ensino e avaliação
CDD 910

www.borealedicoes.com.br

Boreal Edições
Rua Teodoro Baima, 51/93 – 01220-040 –
São Paulo (SP)
(11) 95271-7778
PROFESSOR, PROFESSORA,

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Este é um livro de professores de Geografia. Nossa paixão pelo conhecimento geográfico
foi o fio condutor na elaboração das propostas de reflexão e de ação didática em sala de
aula. Aqui estão ideias e estratégias que utilizamos para formular nossos planos de trabalho;
isso não significa apenas que são propostas já realizadas em nosso itinerário profissional

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mas principalmente que nossas potencialidades e fragilidades estão expostas nesta obra.
Este é o principal convite que fazemos: deixar suas singularidades expressas nas pro-
postas que você leva aos alunos em todas as aulas. Nós adultos costumamos esconder
nossas fragilidades, posto que o erro é bastante execrado socialmente. No entanto, quando
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fazemos isso em sala de aula, um dos efeitos é também deixar na sombra as nossas poten-
cialidades; o que sabemos e o que ainda está por descobrir estão imbricados um no outro,
e preocupar-se com essa exposição (e o julgamento que pode vir dela) tem nos afastado
dos adolescentes com os quais interagimos todos os dias na escola. Ao propormos algo que
não sabemos exatamente como funciona ou no que pode resultar, nós nos abrimos para o
erro, mas também para repercussões positivas, entre as quais destacamos a possibilidade
de sermos vistos por nossos alunos como sujeitos na produção de conhecimento.
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Foi pensando nos encontros potentes que podemos ter todos os dias em sala de aula
que elaboramos as propostas que compõem este livro. Os desafios do ensino médio são
grandes, nós sabemos, mas nosso entendimento é que não há nenhuma possibilidade de
termos êxito no esforço de oferecer situações de aprendizagem eficientes aos alunos sem
contar com a participação massiva deles. Diversas estratégias contidas neste livro são
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resultado de ouvi-los a respeito do que os estimula a aprender: um jogo, um debate, um


podcast ou uma animação são sugestões que emergiram dessa escuta.
É o que desejamos a você e seus alunos.
Autores

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SUMÁRIO

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O DESAFIO DE CRIAR SITUAÇÕES DE ENSINO E CAPÍTULO 3. DINHEIRO E RIQUEZA, 82
APRENDIZAGEM DISCIPLINARES NO CONTEXTO Diga-me o lixo que produzes e eu te direi quem
DE UMA ÁREA DE CONHECIMENTO, 5 és, 84
Conhecimento de si, do outro e do nós, 8

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Quando as palavras informam de que lugar
O saber disciplinar em xeque, 9 falamos, 92
Área de conhecimento em foco, 12 A produção de resíduos sólidos como indicador
Repensando a avaliação, 12 de concentração de renda, 100
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A revolução industrial pelo olhar da Geografia,
CAPÍTULO 1. O CORPO É POLÍTICO, 24 105
O espaço na (auto)regulação dos corpos, 26
Circular ou não circular: é uma questão de
O corpo e a desigualdade no espaço tecnologia?, 112
geográfico, 33
“Tempo é o tecido da nossa vida” – a
A festa: a ressignificação do espaço e a racionalidade industrial imbricada na vida
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libertação dos corpos, 40 social, 124


Romper a naturalização, liberdade para os
corpos, 46 CAPÍTULO 4. CULTURA, IMAGINÁRIO
E REPRESENTAÇÕES, 130
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CAPÍTULO 2. ESTADO, TERRITÓRIO E PODER, 56 Como você vê a natureza, 132


Relações de poder em sala de aula, 58 A natureza invisível no dia a dia, 137
As escalas de análise dos conflitos entre Esse verde é meu!, 140
Estados, 64 Revisitar a divisão regional brasileira sob um
Cidade também tem fronteira, 73 novo ponto de vista, 144
Estados nacionais já não dão mais as
cartas?, 76 BIBLIOGRAFIA COMENTADA E OUTROS
MATERIAIS DIDÁTICOS, 150

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 156

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O DESAFIO DE CRIAR SITUAÇÕES DE ENSINO E

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APRENDIZAGEM DISCIPLINARES NO CONTEXTO
DE UMA ÁREA DE CONHECIMENTO

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O ensino médio sofreu profundas transforma- de interdisciplinaridade. Uma parte expressiva
ções nos últimos anos. É bastante provável que a da argumentação favorável a qualquer uma das
organização curricular que você vivenciou como concepções de interdisciplinaridade remete à
estudante, especialmente em relação à formação questão da fragmentação disciplinar do currí-

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técnica de nível médio, já não exista mais, pois culo: haveria, dentro dessa perspectiva, uma di-
ela foi modificada algumas vezes desde a promul- ficuldade de os alunos estabelecerem correlações
gação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação entre os saberes de que se apropriam nos diversos
(LDB), em 1996. Há, no entanto, alguns elementos componentes curriculares. Seria muito proveito-
que compõem o ensino médio que não se altera- so se pudéssemos assumir por um dia o lugar do
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ram, a despeito de terem sido objetos de crítica; antropólogo e realizar uma pesquisa participante
um deles, é a fragmentação disciplinar do currí- na escola de ensino médio, assumindo o lugar
culo. Observe o uso do termo “componente” nos de um estudante: após seis aulas de 50 minutos,
livros sobre educação e, claro, nas interações com como deve ser a “costura” que nossos alunos fa-
outros professores: em algum momento, não se zem das situações de aprendizagem que viveram?
assume o termo “disciplina” para falar das aulas Nesse exercício etnográfico, talvez pudésse-
de Geografia, História etc.? Algumas pessoas até mos reconhecer a fragmentação curricular muito
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utilizam “componente” com maior frequência, mais como uma falha na organização das se-
mas o sentido que elas aplicam ao termo é idên- quências didáticas do que uma necessidade de
tico ao de disciplina, não é? E talvez tenha mesmo trabalharmos nas intersecções das disciplinas
sido uma simples troca de termos sem alteração todo o tempo, como propõem algumas vozes
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de significado. No entanto, o termo “componente” favoráveis à interdisciplinaridade. Pode ser, por


se presta mais adequadamente ao sentido da ins- exemplo, que os professores de História da escola
trução escolar, já que a escola apresenta alguma abordem os impactos recentes da inovação tec-
unidade, ainda que isso não tenha sido articula- nológica sobre as relações de trabalho no mês de
do de forma consciente; cada componente traz agosto; já os professores de Sociologia podem ter
sua contribuição para esse grande objetivo da analisado a precarização das relações de traba-
escolarização. lho com a proliferação do uso de aplicativos em
Assim como há diferentes concepções de en- abril, enquanto que os professores de Geografia
sino e aprendizagem convivendo nas escolas, pretendem avançar no estudo das cidades no
também há muitos sentidos atribuídos à ideia mês de novembro, propondo a investigação dos

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impactos do teletrabalho sobre as centralidades tema comum são as relações contemporâneas de

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corporativas das metrópoles, logo após a aborda- trabalho; cada componente conta com suas estru-
gem do fenômeno da cidade global. turas analíticas e contribui, de maneira diferente,
São esforços intensos por parte desse corpo para o desenvolvimento cognitivo dos alunos.
docente, mas com repercussões diminutas no A área de Ciências Humanas e Sociais Apli-

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aprendizado: o que aconteceria se as mesmas cadas se apresenta por meio de quatro compo-
sequências didáticas pudessem ser sincroniza- nentes: considerando apenas a Formação Geral
das, de forma a ocorrer no mesmo período? Se- Básica – deixando de fora, portanto, o Itinerário
ria necessário que cada um desses grupos de Formativo, que pode ser em Ciências Humanas

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professores fizesse um esforço de dissolução de –,em grande parte das redes de ensino, são seis
suas fronteiras disciplinares para que os alunos aulas semanais em dois anos do ensino médio.
percebessem que se trata dos mesmos fenômenos Você provavelmente já ouviu muitas queixas dos
sociais? professores de Sociologia e Filosofia quanto às

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É com esse princípio que identificamos o sig- limitações de se desenvolver uma sequência di-
nificado de interdisciplinaridade como: toda dática contando apenas com 50 minutos de in-
e qualquer atividade que, fundada em um objetivo teração com os alunos a cada semana. Mesmo
comum, eleja um tema a ser analisado por mais nós, professores de Geografia, e nossos colegas
de uma disciplina. Em outras palavras, o obje- de História, apesar de termos o dobro do tempo,
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tivo da atividade interdisciplinar não é o de também sofremos limitações no desenvolvimento
confundir os discursos disciplinares, mas o de de situações de aprendizagem que demandam um
permitir ao educando perceber que um mes- aprofundamento no debate e na reflexão. É nesse
mo tema pode e deve ser tratado por diversas contexto que o sentido de interdisciplinaridade
disciplinas, as quais vão realçar aspectos e trazido pelo Douglas Santos pode nos interessar:
construir estruturas analíticas diferenciadas e se, em vez de estar refletindo sobre quatro te-
em torno de uma mesma realidade. mas diferentes em aulas pulverizadas ao longo
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SANTOS, Douglas. O saber escolar como da semana, os alunos estivessem lidando com o
saber disciplinar/interdisciplinar. Áreas do mesmo tema durante um quinto de seu tempo na
conhecimento no ensino fundamental: salto
para o futuro, boletim 18, out. 2007. p. 50. escola? Afinal, seis aulas correspondem a isso, a
um quinto do tempo das aulas de um aluno do
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ensino médio. Os encontros com os professores
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contribui com a construção de um objetivo co- de cada componente são distintos, assim como
mum, apontado pelo geógrafo Douglas Santos apontado no exemplo, mas, em algum momento,
como um elemento significativo da interdiscipli- os próprios alunos podem reconhecer diálogos,
naridade; cada uma das quatro áreas do ensino convergências e até mesmo tensões e divergências
médio conta, na BNCC, com um conjunto de nas abordagens.
competências e habilidades comum aos compo- Esta obra foi concebida sob essa lógica. Os
nentes da área, ainda que se possa reconhecer a quatro temas que a compõem foram formulados
predominância de um ou outro componente em por um grande coletivo de professores de ensi-
sua formulação. O outro elemento que ele aponta no médio dos diversos componentes da área de
é o uso de um tema comum a componentes distin- Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
tos. No exemplo que utilizamos anteriormente, o

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Nós listamos assuntos e temas que norteiam seus impactos econômicos e socioambientais,

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nossa interação com os alunos e fomos ligando com vistas à proposição de alternativas que
um assunto ao outro até chegar a quatro blocos respeitem e promovam a consciência, a ética
de convergência: socioambiental e o consumo responsável em
âmbito local, regional, nacional e global.

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ƒƒ CORPO: sexo, comida, obesidade, amor, 4. Analisar as relações de produção, capital e
afeto; trabalho em diferentes territórios, contextos
e culturas, discutindo o papel dessas relações
ƒƒ POLÍTICA: poder, capital, desenvolvimen- na construção, consolidação e transformação

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to, Estado; das sociedades.
5. Identificar e combater as diversas formas
ƒƒ RIQUEZA: modos de produção, consumo, de injustiça, preconceito e violência, adotando
ambientalismo, desigualdade; princípios éticos, democráticos, inclusivos e

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solidários, e respeitando os Direitos Humanos.
ƒƒ IMAGINÁRIO: cultura, arte, ideologia, 6. Participar do debate público de forma críti-
estética. ca, respeitando diferentes posições e fazendo
escolhas alinhadas ao exercício da cidadania
Confrontamos essa lista com as competências
e ao seu projeto de vida, com liberdade, auto-
específicas da BNCC para a área de Ciências
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nomia, consciência crítica e responsabilidade.
Humanas e Sociais Aplicadas e observamos que
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria
havia uma forte congruência entre elas: da Educação Básica. Base Nacional Comum
1. Analisar processos políticos, econômicos, Curricular. Brasília, DF: MEC; SEB, 2018. p. 570.
Disponível em: <http://basenacionalcomum.
sociais, ambientais e culturais nos âmbitos mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020.
local, regional, nacional e mundial em diferen-
tes tempos, a partir da pluralidade de procedi-
Assim, chegamos aos quatro temas que es-
mentos epistemológicos, científicos e tecnoló-
truturam esta obra: o corpo é político; Estado,
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gicos, de modo a compreender e posicionar-se


território e poder; dinheiro e riqueza; culturas,
criticamente em relação a eles, considerando
imaginário e representações. Nossa expectativa é
diferentes pontos de vista e tomando decisões
de que você possa construir situações de ensino e
baseadas em argumentos e fontes de natureza
aprendizagem da Geografia dentro desses temas
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científica.
e convidar outros professores da área a fazerem o
2. Analisar a formação de territórios e fron-
mesmo, de maneira que vocês estarão articulando
teiras em diferentes tempos e espaços, me-
suas aulas sob um determinado tema, ainda que
diante a compreensão das relações de poder
sigam executando um plano de trabalho discipli-
que determinam as territorialidades e o papel
nar. O exercício de recortar no tema fenômenos e
geopolítico dos Estados-nações.
abordagens próprias à Geografia é, dentro desse
3. Analisar e avaliar criticamente as relações
entendimento, a demanda interdisciplinar.
de diferentes grupos, povos e sociedades com a
natureza (produção, distribuição e consumo) e

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Do ponto de vista dos alunos, diversos fenô- cientistas sociais forjaram um termo adequado

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menos relacionados a um tema estarão em aná- para essa conversa: “naturalização”, que é quan-
lise nas aulas de distintos componentes; o que se do algo nos é apresentado como parte do que
entende por unidade é o conjunto de correlações se pode chamar de “ordem natural das coisas”.
que eles têm oportunidade de realizar – caso haja Como a divisão regional do IBGE, por exemplo.

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um produto final a ser realizado para mais de um É “natural” no Sudeste ouvir pessoas dizerem que
componente, isso pode impulsionar ainda mais baianos, pernambucanos e maranhenses têm os
as correlações entre saberes mobilizados nos di- mesmos sotaques, as mesmas práticas culturais,
ferentes componentes. já que, afinal, são nordestinos. No entanto, Bahia

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Para cada um dos temas, você encontra nesta e Minas Gerais viveram processos de colonização
obra diferentes propostas de reflexão e de traba- muito similares e partilham um conjunto rico
lho didático em sala de aula; elas estão organiza- de práticas sociais e também de falares; de fato,
das em função de quatro dimensões, explicadas Minas Gerais e Bahia já compuseram a mesma

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a seguir. região; o que chamamos de região Nordeste, com
Pernambuco, Bahia e Maranhão, foi concebido
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS apenas na década de 1970! Será que os alunos
Por que ensinamos aos alunos que o Brasil é fariam as mesmas reflexões se a divisão regional
dividido em regiões pelo IBGE? Alguma vez você do IBGE fosse apresentada como uma construção
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realmente conseguiu atribuir sentido a essa re- política da década de 1970? Sim, trata-se de uma
gionalização feita pelos técnicos do IBGE? É pro- construção política, pois são as relações de poder
vável que você tenha se formado em uma escola que explicam muitas transformações na divisão
onde essas perguntas nunca foram postas em sala regional do IBGE, não apenas aquele texto ge-
de aula e que sua formação inicial em Geografia nérico de apresentação com que o instituto nos
tampouco tenha se enveredado por explicitar brinda em suas publicações.
os contextos políticos – e até burocráticos – nos E por que estamos falando de naturalização e
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quais se conformou essa divisão regional, não é? fazendo perguntas incômodas em uma dimensão
Então, é tempo de pensarmos juntos, nós profes- que valoriza o conhecimento de si? É simples:
sores de Geografia, a respeito de como estamos a maneira como escolhemos contar aos nossos
contando nossas histórias. alunos as histórias todas que compõem os textos
A escritora Chimamanda Adichie destacou-se das aulas de Geografia tem repercussões signifi-
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em 2009 ao participar de uma rodada do TED cativas na forma como eles podem construir um
Talks (um tipo de conferência muito popular nos entendimento acerca do mundo em que vivem.
Estados Unidos) para alertar a respeito do “perigo Quando nós escolhemos contar a história da
de uma única história”. Seu objetivo era destacar construção do Estado brasileiro pelo dia em que
como nós compomos nossas inferências, e conse- a esquadra de Pedro Álvares Cabral aportou nas
quentemente nossas intepretações, com base em terras sul-americanas (inclusive nominando essas
nosso repertório de saberes e, portanto, quando terras de Brasil!), nós estamos naturalizando a
temos uma única versão sobre um fato, nós toma- invasão e a matança imposta pela Coroa portu-
mos decisões muito mais simplistas do que pode- guesa na pilhagem das populações que tinham
ríamos fazer se conhecêssemos outras versões. Os seus territórios nessas terras.

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Quando nós chamamos de “revitalização” os mais explícitos estão os contextos a partir dos

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projetos de inserção de trechos das cidades em quais produzimos conhecimento, mais críticos
circuitos dinâmicos de capital, estamos natura- podem ser os textos geográficos elaborados por
lizando a ideia de que a apropriação dos lugares nossos alunos.
por populações pobres significa “perda de vitali-

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dade”, “ausência de vida”. Será que todas as vezes O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE
em que reproduzimos os “cânones” da Geografia Uma das críticas mais consistentes sobre a
escolar na sala de aula (sem essas perguntas in- comunicação científica diz respeito ao fato de
cômodas) nós estamos conscientes de que esses que os acadêmicos ocupam-se pouco dela quando

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discursos são naturalizados pela forma como não é dirigida a seus pares, esta feita em teses,
apresentamos esses saberes? artigos, congressos etc. O que chamamos de “difu-
Nesta obra, nós entendemos que nem sem- são científica” raramente é mais do que uma sim-
pre estamos conscientes disso; por isso, em cada plificação de um saber produzido em ambiente

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tema, o primeiro passo é propor perguntas in- acadêmico: uma tese sobre o papel dos elementos
cômodas sobre nossos recortes geográficos da naturais na valorização imobiliária é transforma-
realidade: o pressuposto é de que nós somos um da em um texto jornalístico para difundir esse
corpo no mundo e observamos as coisas a par- novo saber. É evidente que essa comunicação
tir de um contexto específico, que é o lugar e o tem grande valor social; nossa crítica é sobre a
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instante que caracterizam nosso olhar. Toman- ausência de outras formas de comunicação: as
do novamente emprestado o termo das ciências perguntas que a sociedade formula a respeito dos
sociais, quando nós desnaturalizamos o olhar, fenômenos não segue a mesma lógica acadêmica
nossos saberes podem se deslocar e até ser con- e deveriam ser atendidas pelos pesquisadores por
frontados com outros saberes que estavam limi- meio de formatos distintos daqueles que conhe-
tados pela naturalização: muda bastante pensar cemos como “difusão científica”.
que os nordestinos e as culturas nordestinas não Essa lacuna é fortemente percebida na Geo-
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são esse monólito que os sudestinos e os sulistas grafia escolar. Desde o século XIX, quando o
criaram, não? Algumas situações certamente ga- currículo atual começou a ser gestado, a escola
nham novo sentido com essa perspectiva. básica sofre com o que alguns qualificam como
Nesta dimensão, você encontra um conjunto “caixa de ressonância”; ou seja, o currículo da
de reflexões elaboradas pelos autores para insti- escola repercute posições e transformações da
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gar perguntas, essas que estamos caracterizando Geografia acadêmica sem que isso constitua uma
como “incômodas” porque promovem desloca- pauta da escola, sem que esteja voltado para suas
mentos de saberes. O propósito dessas reflexões é demandas. O geógrafo Nestor André Kaercher, na
colocar você – sua filiação acadêmica, suas visões obra Se a geografia é um pastel de vento o gato come a
de mundo – em destaque, não para julgá-las ou Geografia crítica (Evangraf, 2014) abrangeu em sua
para modificá-las, mas sim para que elas estejam pesquisa doutoral as repercussões da chamada
presentes de forma consciente no seu plano de Geografia crítica na sala de aula; por meio de um
trabalho docente. Partimos do entendimento que estudo etnográfico em algumas escolas de Porto
nós professores somos sujeitos do conhecimento Alegre, ele revela como um conjunto de temas e
que comunicamos em sala de aula e que, quanto assuntos que marcaram a renovação da disciplina

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acadêmica nas décadas finais do século XX cir- para inventariar as teses, os artigos e as comuni-

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cularam mal nas escolas brasileiras, promoven- cações em eventos que nos possibilita atender às
do muito pouco o seu propósito, que seria o de demandas de nosso trabalho na educação básica.
descortinar engrenagens da desigualdade social Como funcionam as relações no campo bra-
e da produção do espaço. Lida em conjunto com sileiro? Que redes mobilizadas por exportadores

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a pesquisa de outro geógrafo, Rafael Straforini, de commodities agrícolas nos ajudam a entender o
que investigou em seu mestrado as correlações papel do Brasil na indústria da carne? Quais as
entre as concepções de Geografia e as estratégias implicações ambientais do tipo de pecuária que
didáticas levadas a cabo nos anos iniciais do ensi- realizamos no Brasil? Qual o real significado do

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no fundamental, pode-se inferir que a Geografia confinamento de gado para a saúde do animal?
crítica, integrada a estratégias didáticas da edu- Essas perguntas podem parecer a você distantes
cação bancária, em termos freirianos, esvaziou-se das demandas do ensino médio, mas há muitos
e empobreceu-se, posto que perdeu exatamente alunos inquietos com a ética do ser humano em

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o que a define, a criticidade. A monografia regio- relação a outros animais (se houver veganos en-
nal, mesmo sob uma roupagem aparentemente tre seus alunos, é provável que você já tenha sido
nova, ainda está presente nas aulas de Geografia indagado com uma ou duas dessas questões). As
no ensino fundamental, ainda mais agora que foi perguntas deles mobilizam saberes acadêmicos
legitimada em um documento como a Base Na- que estão pulverizados em centenas (talvez mi-
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cional Comum Curricular. Assim, nós recebemos lhares) de comunicações científicas dirigidas a
no ensino médio alunos que não raciocinam a outros acadêmicos, mas a produção de acadê-
respeito dos fenômenos geográficos em rede: não micos que contribuiria para esse conjunto de
reconhecem fluxos que interligam os lugares e questões é muitíssimo restrita e pouco numerosa.
promovem concentrações, por exemplo. O que fazer diante desse cenário? Nesta obra,
Nós professores do ensino médio lidamos, você encontra propostas de construção de co-
consequentemente, com uma situação complexa: nhecimento com os alunos: nós não precisamos
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os documentos oficiais e as demandas de nossos fingir que temos todas as respostas, no ensino
alunos criam necessidades de produzirmos em médio é possível criar um vínculo de confiança
aula textos geográficos com recortes singulares, com os alunos no qual cabe trazer da Geogra-
que reverberem nas pautas da juventude e que fia acadêmica um saber que ajuda a pensar as
abram espaço para serem construídos em cola- questões propostas. Aqui vale a mesma reflexão
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boração; mas, para cumprir essa demanda, pre- posta na primeira dimensão: os alunos precisam
cisamos conhecer estratégias didáticas distintas saber que aquele conhecimento apresentado a
da aula expositiva – que vem sendo nomeadas eles contribui para pensar uma pequena parte
de “ativas”, no sentido de que o aluno constrói do recorte que eles realizaram; retomando um
junto com os colegas e o professor seu texto – e exemplo já apresentado, não é ético naturalizar
também aprofundar nosso entendimento sobre a ideia de que a história brasileira começa com
os temas próprios da juventude. Essa necessidade os portugueses chegando à costa sul-americana,
esbarra na comunicação geográfica feita por aca- ainda que a justificativa para isso seja a ausência
dêmicos: atualmente, nós professores do ensino de registros documentais a respeito do período
médio precisaríamos de longas horas de estudo anterior à presença europeia. Se tudo de que você

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dispõe são saberes, dados, informações e interpretações relativas a um pequeno trecho da

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história contada, deixe isso explícito na abordagem em sala de aula.
Nossas propostas de reflexão e de ação didática não foram pensadas para acontecer em
sala de aula sem lacunas; pelo contrário, em nossa concepção, entendemos que as lacunas
são tão significativas quanto os saberes que estruturam uma sequência didática, posto

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que elas estão lá informando aos alunos que há muito a ser feito a respeito da produção
de conhecimento. Alguns professores entendem que essas lacunas podem parecer limita-
ções pessoais e que, portanto, precisam ser suprimidas para que não eles fiquem expostos
ao julgamento do outro, mas essa é uma visão limitada a respeito de nosso trabalho, já

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que estamos falando de um universo enorme de conhecimentos produzidos ao longo de
toda a história da produção de conhecimento geográfico: você realmente entende como
legítima a expectativa de que sejamos expertos em tudo isso? Como comunicadores de
conhecimento geográfico, o aspecto mais relevante de nosso trabalho é construir com os

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alunos saberes científicos. E o que isso significa?
[...] não pretendemos que o conhecimento científico, em contraste com o conhecimento do
senso comum, tecnológico ou filosófico, seja verdadeiro. Certamente o é com frequência,
e sempre intenta ser cada vez mais verdadeiro. Mas a veracidade, que é um objetivo, não
caracteriza o conhecimento científico de maneira tão inequívoca como o modo, o meio ou
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o método por meio do qual a investigação científica propõe problemas e põe à prova as
soluções propostas.
[...] para que um saber mereça ser chamado de “científico”, não basta – nem sequer é neces-
sário – que seja verdadeiro. Devemos saber, por outro lado, como se chegou àquele saber,
ou presumir que o enunciado em questão é verdadeiro: devemos ser capazes de enumerar
as operações (empíricas ou racionais) por meio das quais ele é verificável (confirmado ou
invalidado) de uma maneira objetiva, ao menos em princípio. [...] quem não deseja que a
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verificabilidade do conhecimento seja exigida deve abster-se de chamar de “científicas”


suas próprias crenças [...].
BUNGE, Mario. La ciencia: su método y su filosofia. Miami: Panamericana, 2003. p. 27-28. (Texto traduzido.)

O conhecimento que a Geografia produz, assim como qualquer outra produção cien-
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tífica, precisa ser objetivo e verificável. É devido a essas características que você encontra
nesta obra propostas construídas com base na leitura do espaço, na obtenção e manipu-
lação de dados, na simulação e também no debate estruturado de ideias: são estratégias
didáticas que possibilitam aos alunos reconhecer a natureza do conhecimento científico.
Ao elaborar uma afirmação sobre algo com base na interpretação de dados obtidos por
eles, os alunos têm a possibilidade de desnaturalizar a ideia de verdade absoluta – algo
pernicioso ao fazer científico – ao observar como as aproximações científicas de um fato
social ou fenômeno impõem limitações aos resultados obtidos.
Nesta dimensão, as propostas têm como propósito conduzir as situações de ensino e
aprendizagem em Geografia para o contexto da experimentação e construção colaborativa
de textos geográficos.

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ÁREA DE CONHECIMENTO EM FOCO avaliarmos as repercussões do teletrabalho nos

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A Geografia acadêmica está em constante espaços das metrópoles consagrados às sedes
diálogo com outras disciplinas. Ela contém in- administrativas de empresas, as chamadas cen-
vestigações sobre a sociedade e sobre o espaço, tralidades corporativas. Observe que o diálogo
o que implica lidar com a cisão da ciência em entre a Geografia, a História e a Sociologia, nesse

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social e natural; além disso, pesquisar as relações exemplo, se dá pelo tema (impactos do avanço
sociais que produzem o espaço nos exige avançar tecnológico sobre as relações de trabalho), sen-
pelos saberes e pelas estratégias metodológicas do que cada componente constrói textos de sua
das outras ciências sociais. A Geografia lê os competência.

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espaços com suas categorias (lugar, paisagem,
território, rede etc.) para compreender sua lógica REPENSANDO A AVALIAÇÃO
de produção e os conteúdos das relações sociais Os conselhos de escola são uma etapa desa-
que resultam nessa ou naquela forma espacial. fiadora, porém imprescindível na formação de

P
Na escola, isso poderia significar que não é ne- professores. Neles, é possível ler, com toda sua
cessário um grande esforço para estabelecer diá- força, o sistema de normas e controles que opera
logos com outros componentes. No entanto, uma na escola: o regimento escolar (imposto a toda a
parte expressiva dos professores de Geografia rede de ensino) regula, de maneira intensa, como
constata em seu cotidiano um isolamento muito a instituição vai lidar com a aprendizagem – ou,
IA
parecido com o que se observa entre a Geografia em muitos casos, como não vai lidar com a apren-
acadêmica e as demais ciências sociais (Antro- dizagem, posto que muitos regimentos esvaziam
pologia, Sociologia, Ciência Política, Demografia, completamente as possibilidades de discuti-la –;
Economia, História etc.). Um dos aspectos desse a gestão (diretores, coordenadores) lida direta-
isolamento mais visível é o pouco conhecimento mente com a burocracia escolar, já que os resul-
dos professores de outros componentes a respeito tados obtidos pela escola passam pelo escrutínio
das pesquisas geográficas e de suas obras-chave; de supervisores e dirigentes escolares; e o corpo
U

muitos desses professores conhecem basicamente docente, em sua diversidade, tem a possibilidade
a Geografia escolar com a qual tiveram contato de finalmente sair do isolamento do componente
na condição de aluno, o que dificulta nosso tra- e encontrar os diferentes contextos nos quais se
balho, mas não o inviabiliza. inserem os mesmos alunos. As concepções de es-
A base desta dimensão é oferecer uma estra- cola, de aprendizagem e de ensino se encontram
G

tégia para comunicar conhecimento geográfico no conselho escolar, o que faz dele um momento
para os demais professores da área de Ciências de tensão e conflito permanentes.
Humanas e Sociais Aplicadas: nós trazemos re- A rigor, pensando na engrenagem da escola, a
cortes e/ou autores das demais áreas para con- nota ou menção é uma expressão dos resultados
versar com a leitura geográfica dos fenômenos. obtidos com as estratégias didáticas nas aulas:
Se a Sociologia e a História estão, por exemplo, esses algarismos ou letras possibilitariam aos
analisando as mudanças recentes no mercado de alunos, aos pais, aos professores, aos gestores de
trabalho motivadas pelos avanços tecnológicos, educação e, claro, aos elaboradores de políticas
como poderia a Geografia oferecer sua contri- públicas educativas conhecerem os resultados
buição para essa discussão? Nossa proposta é alcançados em um período de tempo (bimestre,

12
trimestre, ano letivo etc.). Usamos o condicional havia seguido o itinerário relatado em minúcias

D
no verbo “possibilitar” pensando em duas ques- por ele. Seria essa aprendizagem algo que aque-
tões: (a) Todos esses sujeitos que compõem a es- le professor de Geografia poderia reconhecer e
cola assumem sua parcela de responsabilidade mensurar? Você se tornou professor(a) de Geogra-
no resultado da aprendizagem? (b) O que efeti- fia por causa de um(a) professor(a) de Geografia

L
vamente se pode mensurar em aprendizagem? e/ou de outro componente? Que aprendizagens
A primeira questão nos conduz a reflexões das estão relacionadas a essa decisão? Elas são reco-
mais significativas na escola brasileira: muitos nhecíveis, observáveis e, portanto, mensuráveis?
dos sujeitos que compõem a escola se esquivam Esse é o ponto de partida de nossas propos-

N
de suas responsabilidades pela aprendizagem. tas de avaliação: entendemos que as situações
Esta é uma lacuna que deixamos aqui demarcada de aprendizagem por nós sugeridas propiciam
em nossa análise: nós vamos pular para a segunda muito mais do que aquilo que é tangível a um
questão, que diz respeito mais diretamente ao instrumento de avaliação. Nós não temos con-

P
trabalho do professor, mas entendemos que ela só trole sobre as reverberações das experiências
ganha sentido se posta junto a esse contexto mais escolares em cada aluno; cada ser humano lida
amplo, afinal nós professores lidamos com diver- com as situações vividas de uma maneira singu-
sos tipos de limitação ao planejarmos e executar- lar e essa diversidade, que é uma riqueza humana,
mos planos de trabalho em sala de aula: políticas não deve ser evitada no ambiente escolar. O que
IA
públicas concebidas sem considerar as condições nós podemos fazer é circunscrever aquilo que é
materiais efetivas da escola; currículos exigentes observável na aprendizagem: isso fica expresso
quanto a “metodologias ativas” sem investimento pelo objetivo de aprendizagem, também chamado
em outro material didático que não seja o livro; de objetivo específico.
demandas por customização/individualização Trata-se de uma formulação em que são indi-
das situações de aprendizagem para turmas de cados os conhecimentos, os conceitos e as habili-
40 alunos, entre muitas outras incongruências. dades que devem ser mobilizados nas situações
U

Para saber o que se pode efetivamente men- de ensino e aprendizagem.


surar em aprendizagem, propomos que você se O objetivo específico é, às vezes, também cha-
pergunte primeiro o que não se pode mensurar mado de comportamental ou instrucional,
(e também o que nem se pode reconhecer como porque ele é formulado de modo a indicar os
aprendizagem no nosso sistema escolar). Uma comportamentos observáveis do aluno.
G

professora de Geografia ouvida na elaboração HAYDT, Regina Célia C. Curso de didática


geral. 8. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 114.
deste livro confidenciou que, depois de um longo
período em tratamento de saúde, tomou a decisão
Não há nenhum erro ou equívoco em se for-
de ir conhecer o Grand Canyon, nos Estados Uni-
mular um plano de trabalho docente ou uma
dos, dirigindo um carro pelas autovias estaduni-
sequência didática com o objetivo de os alunos
denses desde Los Angeles, atravessando, portanto,
serem capazes de compreender a cultura da soja
o extenso deserto da Califórnia. Algum tempo
no Brasil, por exemplo. Esse é um objetivo ade-
depois, ela se deu conta de que esse trajeto havia
quado ao planejamento das ações didáticas, mas
sido descrito em sala de aula por seu professor de
você não pode ter a expectativa de que seja pos-
Geografia, na antiga 5ª série do 1º grau, e que ela
sível realizar uma boa avaliação desse objetivo,

13
já que “compreender” está sujeito a muitas interpretações. O que exatamente se espera

D
observar no aluno? Podemos desdobrar esse objetivo (ou talvez complementá-lo) para es-
pecificar exatamente o que se espera que o aluno seja capaz de realizar. Alguns exemplos:
reconhecer a infraestrutura de transporte constituída pelo Estado para a exportação da
soja produzida no Centro-Oeste; apontar repercussões socioambientais da prevalência

L
da cultura da soja nos domínios do cerrado e amazônico; estabelecer correlação entre a
monocultura de soja e a lógica industrial de produção. É provável que essas formulações
tenham deixado mais evidente o que exatamente será abordado na sequência didática, pois
elas apontam exatamente o que se tem como expectativa de aprendizagem. Assim, em uma

N
avaliação para saber se os alunos são capazes de reconhecer a infraestrutura de transporte
constituída pelo Estado para a exportação de soja produzida no Centro-Oeste, pode-se
apresentar três mapas com diferentes infraestruturas de transporte no Brasil, sendo que
apenas um deles contém as estradas, hidrovias e ferrovias que ligam as áreas de produção

P
do Centro-Oeste aos portos por onde é exportada a soja. Ou, ainda, oferecer aos alunos
um texto sobre a hidrovia do rio Madeira e pedir que os alunos expliquem como ela se
relaciona à produção de soja. Enfim, são muitas as possibilidades: o que o aluno mobiliza
para chegar a uma resposta adequada na atividade é exatamente aquilo que está expresso
no objetivo de aprendizagem.
IA
Essa clareza no objetivo de aprendizagem é também um bônus na comunicação com os
alunos, pois eles podem participar mais das decisões sobre seu aprendizado quando con-
seguem saber o que se espera deles. Uma ferramenta fundamental para a democratização
das relações de poder em sala de aula é a autoavaliação. E ela se beneficia enormemente
da comunicação dos objetivos de aprendizagem aos alunos. Uma parte dos professores en-
xerga a autoavaliação como uma trapaça, seja porque acreditam que os alunos não podem
mensurar sua aprendizagem, seja porque acabam por creditar aos alunos um comporta-
U

mento desonesto. Independentemente do uso da autoavaliação ou não para compor a nota


ou menção final do bimestre (entendemos que os alunos têm, sim, direito de participar da
avaliação de seus resultados), ela é um poderoso instrumento de (re)planejamento para
os professores. Observe na página ao lado um exemplo de formulário de autoavaliação
respondido por uma turma de 3º ano do ensino médio.
G

Os quatro objetivos de avaliação que nortearam as situações de aprendizagem de cada


um dos bimestres foram transformados em afirmações a serem avaliadas pelos alunos de
acordo com cinco possibilidades, de “concordo completamente” até “discordo completa-
mente”. Pela imagem, fica bastante evidente que o segundo objetivo de aprendizagem foi o
mais bem sucedido de acordo com a avaliação dos alunos. Você pode indagar que os alunos
talvez possam não ter entendido a formulação e, por isso, podem ter cometido equívocos na
autoavaliação, e essa também é uma questão a ser repensada no planejamento do ano se-
guinte. Nesse exemplo, foram formuladas afirmações muito similares sobre o ensino médio
em geral e sobre o componente de Geografia; observe como a avaliação dos alunos sobre a
participação nas decisões e sobre as condições materiais são dois itens que se distinguem
bastante: eles reconhecem que a escola ofereceu menos possibilidade de participação nas
decisões sobre seu aprendizado do que o componente de Geografia; o mesmo ocorre com

14
D
L
N
REPRODUÇÃO

P
IA
U
G

as condições materiais. Já a afirmação sobre a as respostas individuais sejam expostas à turma.


contribuição para os projetos futuros tem um Além de aumentar a participação dos alunos nas
resultado contrário: a escola contribuiu mais do decisões a cada bimestre, tomar decisões com
que o componente de Geografia, de acordo com base nesse tipo de consulta, e não em impres-
a avaliação dos alunos. sões subjetivas sobre a turma, é uma excelente
Atualmente, com o uso de formulários eletrô- maneira de comunicar como ocorre a produção
nicos, pode-se realizar esse tipo de consulta com de conhecimento científico!
os alunos ao final de cada bimestre, de forma
instantânea, pois eles respondem ao questioná- No quadro a seguir, você pode conhecer as
rio e na mesma aula já se pode mostrar (e, prin- propostas que compõem cada capítulo, para cada
cipalmente, discutir) o resultado geral sem que uma dessas dimensões abordadas.

15
D
Tema Proposta / objetivo(s) Justificativa

Conhecimento de si, do outro e do nós


O espaço na (auto)regulação dos
corpos A normatização e o controle dos corpos

L
também são dados pela mediação dos
Provocar uma reflexão sobre uma arranjos espaciais, na escola e fora dela.
possível naturalização de arranjos
espaciais na escola e sua implicação na
regulação e/ou emancipação dos corpos.

N
A presente seção é um convite para
O saber disciplinar em xeque discutirmos as influências de algumas
realidades socioespaciais comuns aos
O corpo e a desigualdade no espaço grandes e médios centros urbanos e
geográfico suas influências sobre nossos corpos.
Dessa forma, ao colocar o espaço, o

P
Reconhecer as desigualdades cotidiano e as penalizações sentidas
socioespaciais e seu impacto sobre pelos diferentes corpos no campo
corpos pretos, pardos e pobres da discussão da Geografia escolar,
no tocante à mobilidade urbana.; avançaremos na compreensão do
estabelecer relação entre o ritmo espaço da cidade em termos bastante
acelerado das cidades e a exclusão de geográficos, sem a econometria que
corpos que acompanham esse ritmo. costuma caracterizar as abordagens
IA
didáticas.
Área de conhecimento em foco
O corpo é
A festa: a ressignificação do espaço e a
político A escassez de equipamentos urbanos
libertação dos corpos
em trechos das cidades brasileiras
Propor uma discussão sobre a habitados majoritariamente por
dicotomia entre a cidade dos pobres não impede que as pessoas
automóveis e a cidade como ocupem áreas e atribuam a elas novos
significados: é o caso das festas de rua
U

possibilidade de realização da
vida; inventariar acontecimentos e também dos espaços ocupados por
com a potência de questionar o crianças e jovens para o brincar.
espaço controlado, programado e
burocratizado das cidades.
G

O controle dos corpos está expresso


Repensando a avaliação pela naturalização do espaço escolar. Da
mesma maneira, esse controle também
Romper a naturalização, liberdade aparece nos espaços de convívio por
para os corpos meio de normas e previsibilidades.
Elaborar possibilidades de a escola Romper o espaço do controle e
ocupar/ressignificar espaços para a acessar o espaço comum (território do
promoção do aprender. abrigo) é um convite para alimentar a
criatividade.

16
D
Procedimentos e materiais Duração estimada

Refletir sobre a relação do corpo com o espaço


geográfico, por meio da observação e da vivência São necessárias quatro semanas: a primeira

L
de cada um dentro da escola. para a preparação da vivência, mais duas
semanas para a experiência e a última para a
Registro dessa experiência em um diário de bordo reflexão.
para relato de impressões e sensações.

N
Duas a três aulas serão necessárias para o
trabalho em sala de aula. Em uma primeira
Assistir ao documentário Trabalhadores que
aula, propomos a discussão do documentário,
passam até um terço do dia no transporte público e
de eventuais reportagens e vivências que

P
debater sobre ele, fazer um pequeno diário de
professor e alunos possam trazer, assim como
deslocamento e mapear as possibilidades de
a preparação dos alunos para o diário de
momentos e atividades a serem feitas durante as
deslocamento. Em seguida, durante sete dias,
longas jornadas de trabalho.
os alunos registrarão os dados no diário; em
sala de aula os resultados serão discutidos.
IA
Para enriquecer a discussão sobre a ressignificação A atividade com os alunos necessita de ao
do espaço com o cotidiano das festas e menos dois momentos. O primeiro acontece
brincadeiras do território, propomos um em grupos menores e pode variar de duas a
levantamento desses eventos e sua qualificação de quatro aulas. O segundo momento varia de
acordo com os espaços que ocupam e o período em acordo com o número de grupos ou mesmo
que ocorrem. da produtividade do primeiro momento;
sugerimos que o levantamento aconteça fora
U

O levantamento demanda a produção de quadros, da sala de aula e que sua classificação ocupe
que podem ser feitos em cartolinas ou, quando pelo menos dois aulas; pode-se reservar outras
possível, em planilhas eletrônicas. duas aulas para discussão.

Considerando o território da escola como recurso


G

para promoção de novos espaços do aprender, a O primeiro exercício pode ser feito em um
proposta é elaborar um plano de construção desses espaço de duas aulas, porém quanto maior o
espaços com o rompimento da espacialidade tempo disponível ou o número de repetições
naturalizada em sua escola. da experiência, maior a apropriação do
espaço.
A proposta pode ser elaborada com a realização
de dois exercícios práticos: a caminhada (deriva) No segundo, o mapa participativo será
pelo entorno da escola como momento de (auto) elaborado com os estudantes, ocupando duas
reflexão sobre uma possibilidade de andar na aulas.
rua que considera as especificidades de cada Para refletir sobre os exercícios e fazer o plano
corpo no mundo; e uma observação mediada de ocupação dos espaços, sugerimos doze
pela cartografia, sobretudo por meio de mapas encontros, que podem acontecer na sala de
participativos a serem elaborados junto com os aula e/ou fora dela.
alunos.

17
D
Tema Proposta Justificativa

Conhecimento de si, do outro e do nós Abordar relações de poder nas aulas


de Geografia implica necessariamente
Relações de poder em sala de aula analisar o espaço produzido sob

L
esse contexto; nessa proposta de
Interpretar as relações escolares no reflexão, o espaço analisado é o da
contexto das relações de poder e sua escola, e são sugeridas leituras sobre o
expressão espacial na configuração do funcionamento da escola com base na
edifício escolar e na organização da sala configuração espacial da sala de aula e

N
de aula. de outros locais do prédio escolar.

Circula socialmente um bom número


de interpretações simplistas sobre os
conflitos entre Estados: ora o olhar se
detém exclusivamente sobre os grupos

P
O saber disciplinar em xeque envolvidos diretamente no conflito
(de onde sai a ideia de “conflitos
As escalas de análise dos conflitos
étnicos”), ora as questões econômicas
entre Estados
são apresentadas como única causa.
Reconhecer diferentes escalas de Nossa proposta é levantar os sujeitos
atuação dos sujeitos envolvidos em envolvidos em conflitos entre Estados
IA
conflitos entre Estados. mobilizando diversas escalas: as
questões internas de cada país, os
interesses de potências mundiais, o
contexto da região onde o conflito se
Estado, localiza etc.
território e
poder As relações de poder na cidade podem
ser menos visíveis quando se trata de
Área de conhecimento em foco espaços segregados, já que costumam
prevalecer práticas discriminatórias
Cidade também tem fronteira
U

que não estão expressas claramente nos


Reconhecer formas de controle regulamentos de uso dos espaços. Essa
espacial exercidas em estabelecimentos é uma proposta de análise de um tipo
comerciais de acesso público, como de espaço de acesso público, mas de
shoppings. controle privado: os estabelecimentos
comerciais, com destaque para o
G

shopping.
Explicitar o significado de economia
globalizada é um desafio na escola
Repensando a avaliação média, por isso propomos o uso de parte
da metodologia do GaWC, responsável
Estados nacionais já não dão mais as
pelos rankings de cidades globais, para
cartas?
colocar os alunos em contato com
Discutir a inserção de trechos do um tipo muito específico de empresa
território dos Estados-nação na provedora de serviços globais, que
economia globalizada, por meio do emergiu junto com a intensificação da
reconhecimento das cidades que padronização da economia, nas quatro
integram a rede mundial de cidades. últimas décadas, e, por isso, traduz-se
como indicador da rede mundial de
cidades.

18
D
Procedimentos e materiais Duração estimada

Pode ser interessante levar uma cópia do trecho do

L
livro Cuidado, escola! para o trabalho coletivo com Os debates propostos podem ser
os professores, de forma a discutir com colegas de desenvolvidos em dois ou três encontros,
outros componentes o sistema escolar no contexto totalizando em torno de 5 horas.
das relações de poder.

N
A publicação Conflict Barometer é a base de toda a
proposta e precisa estar disponível on-line ou im-

P
pressa. Os alunos devem escolher algum conflito
e pesquisar todos os sujeitos envolvidos; assim, é
conveniente que possam ter acesso a um atlas e à Estimamos cerca de oito aulas para o trabalho
internet ou a uma biblioteca. em sala de aula, sendo ainda necessário que os
alunos trabalhem fora do horário de aula para
Para a realização da animação, eles podem pesquisa e montagem da animação.
produzir em papel os mapas e as figuras, gravando
IA
com celular ou câmera a história. Também
sugerimos plataformas on-line de animação para a
produção dos vídeos.

Nossa sugestão principal para a abordagem Estima-se que a proposta necessite de seis
U

proposta é a realização de uma saída a campo. aulas para ser realizada, além da saída
Seria importante contar com registros visuais e a campo e do tempo de preparação das
audiovisuais das observações de campo. apresentações finais.
G

Para realizar a pesquisa, os alunos precisam ter


acesso à internet, o que pode ser contornado se Estimamos em dez aulas a duração total da
for levada para a sala de aula a lista de escritórios proposta se os alunos fizerem a pesquisa
de cada uma das empresas sugeridas. A confecção e confeccionarem o diagrama em sala de
do diagrama pode ser em papel ou diretamente no aula; caso eles tenham autonomia suficiente
computador e os alunos devem ter a liberdade de para realizar fora do horário de aula, são
seguir outra configuração para suas representações necessárias quatro a cinco aulas.
gráficas (até mesmo com uso de um mapa mudo).

19
D
Tema Proposta Justificativa

Conhecimento de si, do outro e do nós Nessa proposta de vivência, os


resíduos sólidos são a matéria-prima
Diga-me o lixo que produzes e eu te
de uma reflexão sobre o jogo escalar
direi quem és

L
da ação individual e dos padrões de
Reconhecer expressões individuais comportamento impulsionados pelo
e padrões de comportamento pela modo de vida, de forma a revelar
análise de resíduos sólidos.; apontar desacordos entre o que prescrevemos
incongruências entre discursos e aos alunos e aquilo que é parte de
práticas na vida social. nossas práticas cotidianas.

N
Conhecimento de si, do outro e do nós O uso inconsciente de alguns termos
levam a um grave esvaziamento
Quando as palavras informam de que
da capacidade analítica: discutir o
lugar falamos
significado desses termos pode desfazer
Colocar em discussão a filiação do confusões dos alunos quanto às

P
professor e os desafios de abordar interpretações próprias de cada vertente
os assuntos de pontos de vista da Geografia e, também, de ciências
contrastantes. sociais aplicadas.
O saber disciplinar em xeque O volume de resíduo produzido
apresenta uma forte correlação
A produção de resíduos sólidos como
com a capacidade de consumo da
IA
indicador de concentração de renda
produção industrial, o que faz dele um
Estabelecer relação entre produção significativo indicador socioeconômico
industrial e sua desigual apropriação que pode propiciar uma análise
por meio de um indicador geográfica da concentração de riqueza
Dinheiro e socioeconômico. em diferentes escalas.
riqueza
O saber disciplinar em xeque A capacidade de produção de objetos
industriais acelerou-se enormemente
A revolução industrial pelo olhar da
desde a formação das primeiras fábricas,
Geografia
criando continuamente novos fluxos
U

Caracterizar fluxos e redes de deslocamento de recursos, capital


impulsionados pela indústria.; e pessoas. Reconhecer esses fluxos
reconhecer no espaço da fábrica possibilita caracterizar a fábrica como
elementos da Revolução Industrial. promotora de concentrações espaciais.
As novas formas de organização do
G

Área de conhecimento em foco


trabalho, em especial o teletrabalho,
Circular ou não circular: é uma repercutem na configuração das cidades,
questão de tecnologia? com destaque para transformações
nos fluxos de trabalhadores e na
Produzir um recorte espacial redução da demanda por escritórios
considerando mudanças recentes no em centralidades corporativas de
mercado de trabalho. metrópoles.
Repensando a avaliação Reconhecer no cotidiano a lógica
racional da indústria é um movimento
“Tempo é o tecido da nossa vida” – a
de pensamento fundamental para a
racionalidade industrial imbricada na
análise crítica do modo de vida urbano-
vida social
industrial e do sistema capitalista;
Reconhecer a lógica industrial na nesta proposta de processo avaliativo,
vida social.; expressar a racionalidade é valorizada a expressão individual dos
industrial observada no cotidiano. alunos.

2 0
D
Procedimentos e materiais Duração estimada

Materiais que compõem o lixo seco e que são


representativos dos resíduos produzidos em sua
moradia são triados, classificados e relacionados Para compor um inventário significativo

L
a elementos da dinâmica de sua família, o que dos materiais que compõem seus resíduos,
propicia uma correlação entre o modo de vida sugerimos uma coleta por pelo menos 7 dias
e questões ambientais como a produção de ininterruptos.
alimentos, as políticas públicas de resíduos e os
impactos da produção industrial de objetos.

N
Seria interessante imprimir os quadrinhos
A proposta, se realizada nos períodos de
(isoladamente) para que possam ser utilizados
trabalho coletivo dos docentes, demanda
em atividade coletiva docente de criação de uma
cerca de 6 horas, divididas em pelo menos 3
narrativa para relatar as mudanças no espaço
encontros (discussão dos quadrinhos; leitura e

P
urbano expressas neles. Essa narrativa pode ser
discussão dos textos de terceiros; debate sobre
revisitada após as leituras sugeridas e as reflexões
os termos que anunciam nossa filiação).
que estão contidas na proposta.

A proposta é composta de duas partes: na primeira,


são usados dados de instituições, o que demanda
possibilidade de impressão desses materiais; na A vivência com os alunos demanda o trabalho
IA
segunda, os alunos constroem uma estratégia de em pelo menos 6 aulas na primeira parte
mensuração dos resíduos em seus domicílios, o que e cerca de 8 aulas em sua continuidade, na
pode demandar a confecção em sala de aula de um segunda parte.
medidor padronizado, o que deveria ser feito com
materiais que seriam descartados.

Sugerimos experimentos em sala de aula, que são


A elaboração dos planos de aula, com seus
o pontapé para abordar a Revolução Industrial,
recortes, seguramente demanda um conjunto
e eles demandam papel, cópias de materiais e,
de pelo menos 6 horas de estudo; em sala de
U

também, objetos de dobra, corte e cola. Também


aula, estimamos um total de 12 aulas para o
sugerimos a exibição de vídeos, o que demanda
desenvolvimento das situações de ensino e
acesso em sala a equipamentos de exibição de
aprendizagem sugeridas.
audiovisual.

Elaborar um recorte coerente dessas questões


G

depende de um bom planejamento, por isso


Para a proposta de simulação de uma centralidade é razoável estimar em 6 a 8 horas de estudo
corporativa em uma metrópole fictícia, pode-se e reflexão. Em sala de aula, apresentar a
usar em sala de aula cartolina ou, ainda, peças de problemática e propor a simulação com
jogos e/ou materiais que seriam descartados. os alunos envolve pelo menos 8 aulas,
considerando que todo o material será
construído pelos estudantes em aula.
As situações de ensino e aprendizagem são Estimamos que a problematização das
propostas com base na exibição de curtas- questões do projeto demande um conjunto de
metragens e na leitura de trechos de textos, por 6 a 8 aulas; já o desenvolvimento do projeto
isso é fundamental ter acesso a equipamentos depende de os alunos terem duas a três
audiovisuais e poder distribuir textos para semanas de observação do cotidiano para que
os alunos. A confecção do fotolivro demanda possam realizar bons registros; a confecção do
impressora e papéis com gramatura mais espessa, fotolivro e sua apresentação pode ocorrer na
que podem ser reaproveitamento de materiais. escola ao longo de 2 a 4 aulas.

21
D
Tema Proposta Justificativa

Uma das temáticas presentes no ensino


de Geografia é a relação sociedade e

L
Conhecimento de si, do outro e do nós natureza.
Como você vê a natureza Na escola, ela aparece com frequência
Identificar, reconhecer e refletir nas discussões sobre produção do
sobre a concepção de natureza do espaço geográfico e apropriação de
recursos naturais. Esta proposta é um

N
professor, bem como reconhecer outras
perspectivas. exercício de reflexão (e identificação)
de sua visão de mundo e abordagem em
sala de aula.

P
O saber disciplinar em xeque
A dicotomia entre os elementos naturais
A natureza invisível no dia a dia e sociais (parte da relação natureza
e sociedade) é apontada como ponto
Reconhecer a invisibilidade dos crucial ao entendimento da crise
elementos da natureza usados como ambiental e do colapso do atual sistema
recursos naturais para a produção de de produção econômica.
IA
objetos industriais.

A presença de elementos da natureza


Cultura, nas cidades tornou-se uma raridade,
imaginário e especialmente nos grandes centros
representações urbanos.
Área de conhecimento em foco
O mercado imobiliário se apropria
Esse verde é meu! do simbólico presente na natureza
U

com a revalorização de bairros e


Analisar a presença de elementos empreendimentos.
naturais na cidade do ponto de vista da
especulação imobiliária, estabelecendo Propomos um estudo de caso que
relação entre valorização fundiária e envolve a produção do espaço
a apropriação dos elementos naturais geográfico em uma área de ocupação
escassos no espaço urbano. relativamente recente e com
G

apropriação da natureza (e imaginário


coletivo associado) como parte de
estratégia de marketing imobiliário, o
“marketing verde”.
Professores de Geografia tendem a
Repensando a avaliação ter uma concepção de região pautada
no senso comum e nos princípios
Revisitar a divisão regional brasileira científicos da década de 1970. Uma das
sob um novo ponto de vista razões para isso é a naturalização da
divisão regional como uma entidade
Revisitar a noção de região com autônoma, algo muito presente nos
base em uma atividade investigativa livros didáticos. A proposta é discutir a
de pesquisa de informações, sem a regionalização para superar a ideia de
intermediação do livro didático. que regiões são estáticas e estão dadas
pelas características do território.

2 2
D
Procedimentos e materiais Duração estimada

Nesta proposta de vivência, partimos da pergunta


“O que é natureza pra você?” para discutir as
concepções de natureza.

L
Essa pergunta deve ser respondida com uma
frase e uma imagem (pesquisada em um banco de
Estimamos que serão necessárias cerca de 5
imagens de licença livre).
horas de trabalho coletivo para a realização da
O compartilhamento das respostas e a reunião proposta.
em grupos de perspectivas comuns levarão a um

N
debate e reflexão sobre os conceitos ensinados
e outras abordagens possíveis. Sugerimos o uso
de plataformas on-line de compartilhamento de
informações, caso haja acesso a esses recursos.
Cada aluno deve selecionar (e levar para a aula) um

P
objeto de uso cotidiano.
Em grupos, deverão responder a uma série de
questões que mobilizam noções como técnica, São necessárias seis aulas para a realização
matéria-prima, produtividade, modo de produção da atividade (considerando que a pesquisa
capitalista e consumo, de forma a colocar em proposta para a elaboração do podcast seja
evidência os elementos da natureza presentes nos realizada fora do horário de aula).
objetos. Sugerimos um podcast como produto final
IA
a ser elaborado pelos alunos em uma atividade de
sala de aula.

O exercício analítico proposto para ser feito com


os alunos demanda o uso de imagens de satélite do
U

município (pode ser em tela do computador ou em A duração estimada entre levantamento de


impressão de boa qualidade). informações e a discussão dos resultados é de
A pesquisa sugerida para a análise depende da pelo menos seis aulas.
coleta de dados, seja em saídas a campo, seja pela
internet.
G

Apresentar a divisão regional do IBGE aos alunos


dentro de uma perspectiva distinta daquela
cristalizada na Geografia escolar, instigando-os a
reconhecer construções do imaginário social que A duração estimada do trabalho em sala
decorrem da abordagem estática e isolada de cada de aula é de cinco aulas, com uma ou duas
região. Os alunos irão confeccionar um modelo do semanas de trabalho fora da sala de aula.
território brasileiro e representar nele informações
que pesquisaram sobre um tema específico, de
forma a revelar desigualdades regionais.

23
Capítulo 1

D
O corpo é político

L
N
P
IA
U
G
D
L
A Geografia escolar tem como uma de suas abordagens a distribuição desi-

N
gual no espaço geográfico, que procura entender e explicar o processo de pro-
dução do espaço e suas consequências para a vida em sociedade. Desse modo,
trata de conteúdos da vida social, presentes na vida cotidiana e, portanto, fun-
damentais para entendermos o nosso atual modo de vida. Assim, esse tópico da

P
Geografia tem uma enorme potencialidade como ferramenta para deciframos
o mundo em que vivemos.
Sem dúvida alguma, a tarefa de compreensão de um mundo que teima em
“ficar na sombra” não é fácil de ser concretizada e exige que tenhamos um olhar
cada vez mais minucioso para desvendar seus mistérios. É por meio dessa re-
IA
flexão e convite que propomos direcionar nossas atenções não apenas para o
ordenamento espacial, as desigualdades socioespaciais ou mesmo sua produção
mas também nos voltarmos para as consequências desses fatos e processos nos
corpos produtores e nas produções dessas realidades socioespaciais.
Em um primeiro momento, o convite é pensarmos o ordenamento do espaço
da escola, das salas de aula (ou “celas de aula”) e as relações de poder presentes
no cotidiano escolar. Analisaremos como a estrutura da escola muitas vezes
U

apenas reproduz a mesma lógica socioespacial de um sistema socioeconômico


produtor de desigualdades e não permite encontrar nesse espaço uma possibi-
lidade de mudanças e emancipação de nossos corpos.
O passo seguinte é pensarmos como as desigualdades no espaço geográfi-
co atingem de maneiras diferentes os diversos tipos de corpos dos habitantes
G

das grandes e médias cidades. Também propomos um estudo sobre o ritmo


acelerado das cidades e a exclusão de corpos que não acompanham esse ritmo.
O terceiro passo é dedicado a entender a contradição entre a produção do
espaço para os automóveis e a produção do espaço para a vida. Nesse processo,
as festas, as manifestações e o espaço do brincar das crianças aparecem como
movimentos com a potência de questionar a lógica socioeconômica vigente de
produção do espaço.
Por último, iremos revisitar toda a discussão que fizemos nas três dimen-
sões e, com base em duas propostas de atividades (ambas com o objetivo de
rompermos a “cela de aula”), caminhar com a teoria e a prática no sentido de
interromper a naturalização do espaço social alienado e fomentar práticas que
tenham como orientação a liberdade dos corpos.
D
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS.

O ESPAÇO NA (AUTO)REGULAÇÃO DOS CORPOS

L
N
Nossa conversa começa com a proposta de “Ah, é tudo culpa da professora de Matemática,
leitura de dois contos: Conto de escola (1896), aquela cobra que fica pegando no meu pé, me
de Machado de Assis (1839-1908), e O aluno que chamando de burro, que me olha com nojo e
só queria cabular uma aula (2007), de Sacolinha que nem chega perto de mim.”

P
(1983-). Ambos os autores nos convidam a expe- A próxima aula depois do intervalo seria dela,
rienciar a vivência na escola sob a perspectiva de e Tedy, não querendo passar por tudo que pas-
duas crianças. Destacamos alguns trechos: sava, resolveu fugir da aula, já que não podia fi-
Com franqueza, estava arrependido de ter car fora da sala e muito menos ir embora antes
vindo. Agora que ficava preso, ardia por an- de bater o sinal do meio-dia. Um suplício para
IA
dar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, ele que só queria uma atenção da professora
pensava nos outros meninos vadios, o Chico no seu lento aprendizado.
Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a SACOLINHA. 85 letras e um disparo. 2. ed. São Paulo:
Global, 2007. p. 23-17. (O conto tem uma versão oral,
fina flor do bairro e do gênero humano. Para
narrada pelo autor, disponível em: <https://youtu.
cúmulo de desespero, vi através das vidraças be/mBZwRrJPO9M>; acesso em: 31 dez. 2020.)

da escola, no claro azul do céu, por cima do


morro do Livramento, um papagaio de papel,
Pilar (menino do conto de Machado de Assis)
U

alto e largo, preso de uma corda imensa, que


estava arrependido de entrar na escola e Tedy
bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na es-
realiza um plano de fuga. Ambos justificam suas
cola, sentado, pernas unidas, com o livro de
intenções pela situação de desespero em que se en-
leitura e a gramática nos joelhos.
contram e consideram que apenas fora da escola
G

tal suplício pode ser extinto. Histórias que têm em


ASSIS, Machado de. Conto de escola e outras histórias
curtas. Brasília, DF: Edições Câmara, 2008. p. 35- comum a privação de liberdade promovida pela
47. (Série Prazer de ler, v. 2). Disponível em: <www.
biblio.com.br/>. Acesso em: 31 dez. 2020.
regulação que a escola propõe aos corpos que a
ela (espaço/instituição) estão submetidos.
Ali, naquele pátio, nenhum dos adolescentes Textos escritos em tempos tão diferentes são
acreditou no que viu. Foi incrível. uma provocação, pois apresentam o quanto a
O Tedy subiu no bebedouro e, com um pulo, sensação de privação de liberdade vivida por
se agarrou no madeiramento que sustenta a alunos não é uma novidade; mesmo amplamente
cobertura do pátio da escola. Rapidamente discutida na(s) literatura(s), está longe de ser uma
empurrou uma telha e saiu pelo buraco. [...] preocupação prioritária na agenda escolar. Aqui
E começou a lembrar o porquê de ter feito não vamos encampar uma revisão bibliográfica
aquilo. para o assunto, mas sugerir reflexões.

2 6
O CORPO É POLÍTICO
ESCOLA COMO ESPAÇO

D
São 167 anos que separam os textos de Ma-

WHITE PINE VILLAGE/WIKIMEDIA COMMONS


chado de Assis e Sacolinha; essa distância tem-
poral está expressa nas transformações da língua
portuguesa, porém não aparece tanto no cenário.

L
As escolas de Pilar e Tedy parecem contemporâ-
neas, pois as sensações tão parecidas podem ser
depreendidas desde a arquitetura escolar até os
arranjos que a organizam. Algumas provocações

N
oriundas da Geografia possibilitam ler esse espa-
ço e, ao mesmo tempo, pensar um pouco sobre a
categoria central da ciência geográfica, o espaço.
Para a Geografia, o espaço é constituído pelas

P
relações sociais e, por isso, está sempre em movi-
Essa é uma sala de aula típica da área rural do
mento. O espaço é um conjunto, que para Milton estado de Michigan (EUA); ela integra um museu
Santos deve ser estudado com base na relação especializado na história de edificações do século
contraditória de sistemas de objetos e sistemas XIX. Há diferenças significativas que possam
de ações. Objetos geográficos, naturais ou sociais, causar espanto nos visitantes?
IA
em arranjo, são animados e preenchidos pela vida
contida nos sistemas de ação. é novidade; mas, apesar disso, ela não foi supe-
Não se trata de movimento harmônico ou pa- rada. Os arranjos são mantidos não apenas na
cífico: os arranjos podem ser aceitos ou não, po- organização dos móveis (objetos) mas também
dem ser refeitos ou não, podem coexistir ou não. nos sujeitos e nos acordos sociais (ações) que a
O espaço é movimento e conflito. Não devemos imagem permite reconhecer.
incorrer em uma análise simplesmente crono- Em uma sala de aula, os corpos de adultos e
U

lógica, em uma sequência contínua de eventos. crianças ocupam espaços preestabelecidos. Esse
Sobre isso, Milton Santos decreta a célebre afir- arranjo retrata a relação de poder que é esperada
mação de que o espaço é “um acúmulo desigual para aquele espaço. O professor fica à frente da
dos tempos”. turma e de pé; quando uma criança está de pé e
Agora, vamos transportar essa categoria geo-
G

também à frente da sala de aula, ela certamente


gráfica para a escola: seria nosso local de trabalho está sendo submetida a uma tarefa. Os outros
dotado de propriedades que lhe permitem uma corpos são organizados em fila, sentados e res-
espacialidade imutável? A priori, nossa resposta tritos a uma mesa. Essa descrição é proposital,
pode ser afirmativa, sobretudo quando analisa- pois reforça os elementos de uma sala de aula
mos os relatos de Pilar e Tedy, e também quando antiga que também estão presentes em nosso
comparamos imagens das salas de aula no início contemporâneo.
do século XX com aquela em que vamos logo mais A princípio, pode parecer que estamos ten-
encontrar nossos estudantes. tando defender a ideia de que o espaço da escola
As semelhanças entre a sala de aula mostra- permaneceu quase estático ao longo do último
da na fotografia e a maioria das salas de aula século; de fato, com base na análise dos conceitos
do nosso momento histórico são notáveis. Mais de Milton Santos, podemos argumentar que o
uma vez, afirmamos que essa constatação não

27
espaço da escola está, sim, em movimento; porém, disciplina. Em sua obra Vigiar e punir, o autor

D
precisamos ir além dessa observação e reconhe- apresenta que a aplicação da justiça, a partir do
cer o conflito. século XVIII, deixa de acontecer por meio da tor-
Voltemos a Pilar, personagem machadiano: tura (os suplícios) e passa ocorrer com a prisão.
sentado na carteira, observava o papagaio e so- O princípio era deixar de punir o corpo para, por

L
nhava estar fora da escola, o que deixava mais meio da privação de liberdade e da promoção da
latente seu desespero e a aflição a que seu corpo solidão, passar a punir a “alma”.
estava submetido. No século XIX, Machado de A punição física dos corpos era uma mani-
Assis mostrava que naquela escola não cabia a festação do que o autor chama de “poder real”.

N
criança. E o próprio Pilar já descobria isso. Manifestação material e física de um poder que
a todos era visível, mas que impunha ao rei um
CORPOS REGULADOS grande desgaste, político e financeiro. Dessa ma-
Um caminho para justificar a permanência neira, essa relação de poder vai dando lugar ao

P
dos arranjos espaciais na escola foi apontado poder disciplinar: a partir da ideia de panoptis-
pelo filósofo Michel Foucault (1926-1984). O autor mo, Foucault demonstra que a relação de força
é um dos principais intelectuais do século XX e (poder) sobre o indivíduo deixa de ser externa e
sua obra trouxe instrumentos para que diversos passa a ser interna.
campos das ciências humanas pensassem o poder A estrutura do panoptismo nos coloca diante
IA
e o controle social. de um olho que tudo vê, mas que não permite in-
Pretendemos utilizar alguns aspectos da vasta terlocução, promovendo assim uma nova lógica
teoria foucaultiana para entender tanto a perma- de poder que leva à domesticação e docilização
nência do modelo de organização do espaço es- dos corpos. O Estado, então, cria uma estrutura
colar como a centralidade do espaço no controle para realizar o poder disciplinar e, como no pre-
dos corpos em nossa sociedade. Dessa maneira, sídio ideal de Jeremy Bentham, instala torres de
daremos destaque ao conceito do panoptismo. vigilância que permitem a ele observar tudo e to-
U

O jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832) dos. Esses corpos dóceis e submissos podem, en-
propôs em 1765 um modelo ideal para uma pe- tão, se tornar corpos produtivos ou de força útil.
nitenciária, o panóptico; nele, o vigia poderia Parece inevitável não fazer relação entre esse
observar todos os prisioneiros sem ser visto por processo e nosso local de trabalho, a escola; in-
eles. Portanto, uma vigilância permanente, que se clusive o próprio Foucault a estabelece. A escola
G

justificaria pela garantia da ordem (muito mais é um componente dessa sociedade disciplinar e
assegurada pelo fato de o prisioneiro saber que os professores também fazem parte dessa cons-
está sendo vigiado do que pela vigilância em si). trução. Nas palavras do autor:
Bentham apontava que esse era um princípio Estamos na sociedade do professor-juiz, do
generalizável, ou seja, podia ser aplicado em toda médico-juiz, do educador-juiz, do “assistente-
situação em que fosse necessária a vigilância. social”-juiz; todos fazem reinar a universalida-
Assim, hospitais, manicômios, fábricas e refor- de do normativo.
matórios também poderiam utilizar o princípio FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 251.
do panóptico.
No século XX, Michel Foucault, resgatou essa
Assim, voltando às histórias de Pilar e Tedy
ideia para discutir as transformações das re-
do início da conversa, podemos agora notar as
lações de poder e controle social com base na

2 8
O CORPO É POLÍTICO
diferenças entre as formas de poder nos 167 anos O professor-juiz também está sujeito a um

D
que separam os dois contos. Pilar mantém seus juiz, fundamentando a (auto)regulação também
movimentos restritos a sua carteira por temer aos corpos de quem educa. Relação que, para
a palmatória de seu professor. Tedy impõe fuga além do plano subjetivo, também explorado por
após constatar a estrutura de vigilância impossí- Foucault, é mediada pela condição do professor

L
vel de romper dentro da escola; aliás, para retirar como trabalhador sujeito a relações de trabalho
Tedy de cima do telhado, o diretor chama a polí- cada vez mais fragilizadas.
cia. A escola, como outras instituições: Até aqui, conversamos sobre a tecnologia do
[...] submete o corpo, os gestos, os comporta- controle disciplinar, porém é importante apontar

N
mentos, as condutas, as aptidões, os desem- que para Foucault há outras faces (tecnologias)
penhos. de controle: são elas a soberania e o biopoder.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 251.

P
Corpos que, além de regulados, também es-
tão autorregulados pelo conceito de vigilância
permanente do panoptismo. E nós, professores
e professoras, temos um lugar central nessa vi-
gilância; por isso, refletir sobre nosso lugar nessa
IA
estrutura é primordial para (re)pensar a relação
com os alunos. Cabe também dizer que o panop-
tismo se dá não só sobre o aluno mas também

SME-PMRJ/REPRODUÇÃO
sobre os educadores:
O panóptico pode até constituir-se em apare-
lho de controle sobre seus próprios mecanis-
mos. Em sua torre de controle, o diretor pode
U

espionar todos os empregados que tem a seu


serviço: enfermeiros, médicos, contramestres,
professores, guardas; poderá julgá-los con-
tinuamente, modificar seu comportamento,
G

impor-lhes métodos melhores; e ele mesmo,


por sua vez, poderá ser facilmente observado.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da
prisão. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 227.

O vigilante também é (auto)vigiado. Pensando


na escola, o professor responsável pela sala de
Em 2014, uma propaganda da Secretaria
aula já passou pelo processo de escolarização.
Municipal de Educação do Rio de Janeiro
Seu corpo já foi submetido a condições que, como
comparou a escola a uma linha de produção.
adulto, hoje ajuda a reproduzir; desse corpo é es-
A associação fez a peça publicitária repercutir
perado um papel e um lugar para colaborar com nacionalmente. Muitas leituras foram feitas
o arranjo de poder. e tantas outras caberiam ser feitas. Quais
apontamentos você faria?

29
A primeira se dá em um tipo de exercício de [...] as lutas em reação ao poder devem ser da

D
poder presente nos governos monárquicos, onde ordem de criar formas de subjetivação que
temos o Estado (representado pelo soberano) de- escapem ao modo como o poder determina a
cidindo sobre o direito de vida ou morte daqueles liberdade dos indivíduos. Para isso, se faz pre-
que são submetidos a esse poder (súditos). Como ciso uma provocação permanente das práticas

L
aqui já dito, esse regime foi substituído pela so- de governo, estimulando formas de vida livres.
ciedade disciplinar. COSTA, Helrison Silva . O lugar das contracondutas
na genealogia foucaultiana do governo. Revista
Já o biopoder se faz presente em uma socie- de Filosofia moderna e contemporânea –: Dossiê
dade composta de indivíduos já disciplinados; Michel Foucault, Brasília, DF, v.7, n. 1, abr. 2019.

N
p. 77. Disponível em: <https://doi.org/10.26512/
usando instrumentos para subjugar e controlar rfmc.v7i1.20767>. Acesso em: 31 dez. 2020.
o corpo da população o poder político exercido
pelo Estado pode estar presente em todos aspec- Esse convite à reflexão é um assopro da obra
tos da vida. Políticas de controle de natalidade e foucaultiana, que, apesar de nunca ter tido a edu-
cação como um objeto de pesquisa, serviu de

P
políticas racializadas são exemplos do biopoder.
Mais adiante iremos, indiretamente, revisitar fundamento para diversas pesquisas na área.
esse conceito quando dialogarmos com as ideias Para uma aproximação do legado do autor na
de Achille Mbembe (1957-). educação, fica a sugestão de leitura do dossiê “O
Outra ponderação importante a ser feita nes- efeito Foucault na Educação”, organizado pela
IA
sa discussão é que Foucault não versa apenas revista Pro-Posições, da Universidade Estadual de
sobre as estruturas de poder e sua relação com Campinas, em 2014.
a opressão, ele teoriza também sobre as relações
de poder e a liberdade, uma vez que onde há o O ESPAÇO ESCOLAR PODE SER DIFERENTE
poder, há resistência, afinal é sobre indivíduos “Nada deve parecer natural / Nada deve pa-
livres que o poder é exercido. recer impossível de mudar” são dois versos do
Como resistência ao panoptismo das institui- poema Nada é impossível de mudar, do poeta e dra-
U

ções, temos os contrapoderes. O autor não apoia maturgo Bertolt Brecht (1898-1956). Ele cresceu
sua reflexão em uma dicotomia poder-liberdade, na Alemanha na primeira metade do século XX e,
já que, nessa leitura, o poder depende de sujeitos como poucos, entendeu o que acontecia à época
livres para existir; inclusive, é o próprio poder e os rumos que seu país tomava. Com a ascensão
quem determina a liberdade dos indivíduos. de Hitler ao poder e o avanço do nazismo, Brecht
G

Esse é o contexto, de acordo com argumen- precisou deixar a Alemanha para proteger sua
tação do filósofo Helrison Silva Costa, em que vida; o poema foi escrito nesse contexto.
Foucault situa a atitude crítica, premissa filosó- Com essa provocação, voltamos à análise da
fica que consiste em desconfiar, negar os dogmas, escola. Inovações e heranças, rebeldia e docili-
porém sem preconceitos. dade convivem nessa instituição. Essas simul-
taneidades apontam que a escola está em cons-
tante movimento; porém, as impressões comuns
observadas nas escolas de Pilar e Tedy, apesar de
separadas por 167 anos, nos mostram que há um
arranjo hegemônico.

3 0
O CORPO É POLÍTICO
Para pensar sobre ele, é necessário entender- aos estudantes que reflitam sobre o que desejam

D
mos que o século XX atravessou o processo da para sua vida. Esse processo é marcado pelo rom-
escolarização em massa embebido pela lógica per de condições e arranjos espaciais dentro da
industrial. escola, sobretudo em cenas que o professor con-
Hoje, até mesmo o chamado “mundo do tra- vida os estudantes a experimentar novos pontos

L
balho”, que moldou essa escola, questiona sua de vista subindo na mesa, outrora “território” do
eficiência; há muito tempo, outros sujeitos so- professor.
ciais questionam esse parâmetro de escola (ou Dialogando com a cena, que tal mudarmos
de aprender) ainda preponderante. Na África nosso ponto de vista? Da mesma maneira que

N
Ocidental, os griots são responsáveis por preser- Keating foi estudante da Academia Welton, cada
var e transmitir a história, utilizando, para isso, um de nós já esteve na cadeira de aluno na escola
música e rodas de conversa. Na Grécia Antiga, o básica. Nossos corpos em outro momento esta-
método peripatético promovia a leitura ou o diá- vam submetidos à regulação dessa posição dentro

P
logo durante uma caminhada. No século XIX, pe- dos arranjos espaciais da sala de aula.
ríodo a pertence Pilar, temos a criação de escolas Considerando as condições da escola, com
anarquistas, que em seu método contemplavam um grupo de colegas educadores, veja a possibi-
aulas ao ar livre. lidade de acompanhar uma turma durante uma
Ou seja, a escola ou o espaço do aprender não semana não na condição de professor, mas o mais
IA
é o mesmo “desde que o mundo é mundo”, embora próximo possível de estudante. Evidentemente,
em certas situações pareça ser. Teríamos então serão necessários alguns acordos entre gestores,
naturalizado essa espacialidade para a sala de coordenadores e também estudantes. Parece evi-
aula? O termo “naturalizar” é um empréstimo dente, mas é fundamental explicar aos colegas
da Sociologia, que atribui a ele o significado de que esse é um exercício de autocrítica e não uma
fazer um fenômeno e/ou prática social parecer avaliação do trabalho do outro; trocar de posição
ser inato ao ser humano, e não uma constru- com o mesmo educador na semana seguinte pode
U

ção social, ou seja, uma construção histórica. O ser uma proposta interessante para tornar mais
quanto somos submetidos ou somos sujeitos no confortável e potente o intercâmbio.
espaço da sala de aula? Qual nosso lugar volun- Caso não seja possível a vivência que estamos
tário nessa relação? sugerindo, uma alternativa é observar os estu-
dantes em outros momentos para além da sala
G

PROPOSTA DE ATIVIDADE de aula. Considere o diálogo com Milton Santos e


Para visualizar nossa condição, que tal expe- busque observá-los em um espaço que esteja car-
rimentarmos o lugar daqueles que nos enxergam regado com outros sistemas de objetos e ações.
todo dia? No célebre filme Sociedade dos poetas O pátio é geralmente a resposta imediata, mas,
mortos (direção de Peter Weir, 1989, 140 min), a dependendo do contexto, ele é um espaço que
ortodoxa escola de ensino médio (Academia Wel- replica o arranjo da sala de aula; leve em conta,
ton) tem sua ordem perturbada com a chegada por exemplo, a possibilidade de vivenciar o que
do professor de Inglês John Keating. Interpreta- acontece na porta da escola no horário de entrada
do por Robin Williams, o novo educador era um e saída. Essa sugestão será ainda mais rica para
ex-aluno do colégio que teria feito parte de um quem está em uma escola com portões diferentes
clube secreto de literatura. Nas aulas, o professor para alunos e professores.
Keating promove tanto a literatura como sugere

31
Potencialize a experiência com o seu registro por vezes classificada como indisciplina. Sobre

D
diário em um caderno de campo. Essa é uma prá- a relação de espaço em movimento e conflito,
tica comum e muita valiosa no desenvolvimento Milton Santos nos ensina que:
de uma pesquisa qualitativa. Apesar de ser uma O espaço aparece como um substrato que aco-
prática de muitos professores, sabemos que nem lhe o novo, mas resiste às mudanças, guardan-

L
sempre os tempos na/da escola permitem esse do o vigor da herança material e cultural, a
momento. Os dados recolhidos podem ser um força do que é criado de dentro e resiste, força
orientador no debate sobre a experiência e tam- tranquila que espera, vigilante, a ocasião e a
bém um ponto de partida para transformá-la em possibilidade de se levantar.

N
um artigo e/ou relato de experiência do educador. SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo:
globalização e meio técnico-científico
Acreditamos que a possibilidade de mudar o
informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 37.
ponto de vista no arranjo espacial da sala de aula
pode trazer implicações muito distintas para edu- A escola é o espaço da contradição, inclusive

P
cadores e para educandos. A postura e a posição em seus arranjos espaciais. Ali convivem dife-
do corpo no espaço são políticas e a consciência rentes tempos históricos. O velho entendimento
dessa relação pode emancipar os corpos e as re- de que a escola promove o encontro de gerações
lações ali mediadas. está presente em seus personagens e também nos
Um conhecido haicai do poeta Sergio Vaz objetos materiais e nas ideias que os alimentam.
IA
(1964-) nos lembra que são os adultos que im- Ao submeter as crianças a esse espaço, elas
põem “muros” à experiência das crianças (dis- resistem. A escola é um espaço que carrega essa
ponível em: <https://twitter.com/poetasergiovaz/ rebeldia, às vezes contida e guardada no controle
status/850753577501040640>; acesso em: 31 dez. dos corpos. Uma escola, mesmo em transforma-
2020). Sim, as crianças não cabem na arquitetura ção, carrega uma herança, que não será apaga-
de escola que lhes é apresentada. Elas relutam, da simplesmente pintando ou até destruindo
elas negam, elas se rebelam frente a essa espa- paredes.
U

cialidade a que são submetidas. Essa tensão é


G

3 2
O CORPO É POLÍTICO
D
O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE.

O CORPO E A DESIGUALDADE NO
ESPAÇO GEOGRÁFICO

L
N
A DESIGUALDADE NO ESPAÇO GEOGRÁFICO Uma série de pesquisas e reportagens reali-
SENTIDA NOS CORPOS zadas pelo Instituto de Políticas de Transporte
Jornadas longas e diárias de deslocamento são e Desenvolvimento (ITDP) intitulada “A cor da
um fato na vida de milhões de brasileiros: nos mobilidade”, realizada em 2020, nos dá um pa-

P
deslocamos corriqueiramente para ir ao trabalho, norama geral para responder a esse questiona-
para procurar trabalho, para estudar, para nos mento. Segundo a pesquisa, negros são a maioria
divertirmos etc. Muitas dessas viagens são peno- em regiões distantes do centro, que também são
sas, longos trajetos em conduções sem conforto e aquelas com os maiores problemas de transporte,
lotadas. Uma pesquisa da Associação Brasileira como a pouca quantidade de modos de transpor-
IA
de Comunicação Empresarial (Aberje) mostrou te disponíveis e os valores das passagens mais
que, em 2017, 31% dos brasileiros levavam até elevados. Selecionamos alguns trechos de duas
uma hora para concluir o trajeto casa-trabalho; reportagens da série, em que são apresentados
nos centros urbanos mais populosos, o tempo dados de cidades em diferentes regiões do país.
médio de viagem chega a dobrar – em São Paulo, Como a operação é pensada para atender as
a pesquisa “Viver em São Paulo: mobilidade ur- áreas mais nobres, há uma concentração de
bana” revelou que, em 2019, 58% dos paulistanos coletivos nas ruas entre 7h e 9h e poucos veí-
U

demoravam até duas horas para chegar ao local culos disponíveis entre 5h e 6h, quando os
de trabalho. moradores das regiões com população majori-
Como é o seu cotidiano de deslocamento: tariamente negra saem para o trabalho.
quantas horas gasta no transporte para ir tra- [...]
G

balhar e para outras atividades do dia a dia? E Em outras partes do país, o problema não
as demais pessoas que trabalham como você, é o horário de funcionamento, mas a dispo-
quantas horas ficam “presas” nos trajetos? Que nibilidade limitada do transporte público.
tal fazer uma média de deslocamento de todos Com 80% de população negra segundo o IBGE,
vocês e comparar com os dados das pesquisas Salvador abriga realidades que ilustram bem
que mencionamos? essa questão. O número de linhas de ônibus
Nessa nossa tarefa de melhor entender o mun- que cortam Pernambués, Itapuã e Brotas, os
do que construímos, devemos pensar em quais três bairros com maior número de moradores
são os corpos que “chacoalham” cotidianamente pretos e pardos, é menor do que a quantidade
durante horas nos meios de transporte muitas de linhas nos três bairros com menor popula-
vezes lotados e desconfortáveis. ção negra, Aeroporto, Centro Administrativo
e Plataforma.

33
O Distrito Federal tem 2 regiões com mais percentuais de moradores negros superiores a

D
de 70% de população negra: Fercal e SCIA/ 75% e se contrapõem a Aldeia do Vale e outros
Estrutural. Porém, não há nenhuma conexão condomínios de luxo, com boa infraestrutura
entre elas e as áreas do Lago Sul, Sudoeste/Oc- e menor presença de pretos e pardos.
togonal e Lago Norte, que apresentam o maior COMO a configuração das cidades reflete o racismo

L
e atrapalha a mobilidade. ITDP Brasil, Rio de Janeiro,
percentual de brancos e são interligadas entre
15 out. 2020. Disponível em: <https://itdpbrasil.org/
si por 7 linhas de ônibus diferentes. como-a-configuracao-das-cidades-reflete-o-racismo-
e-atrapalha-a-mobilidade/>. Acesso em: 31 dez. 2020.
COMO o serviço de transporte pública no Brasil
reflete o racismo estrutural. ITDP Brasil, Rio de Janeiro,
23 set. 2020. Disponível em: <https://itdpbrasil.org/ Em 2017, dados de um relatório sobre desen-

N
como-o-servico-de-transporte-publico-no-brasil-
reflete-o-racismo-estrutural/>. Acesso em: 31 dez. 2020.
volvimento humano divulgado pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) denuncia-
Pretos e pardos formam mais de 70% da po- vam Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,
pulação de Belém, capital do Pará. Os bairros como a capital mais desigual entre negros, pardos

P
com menor percentual de negros entre seus e brancos do país. Esse fato certamente se reflete
habitantes são Reduto, Nazaré e Batista Cam- nas condições de deslocamento e mobilidade ur-
pos. A menos de 5 km do Centro, eles apre- bana entre os moradores da cidade. Agora, mais
sentavam renda média mais de 3 vezes maior uma vez pensemos: Quais são os corpos ou de
do que o verificado no restante da cidade em quem são os corpos diariamente massacrados
IA
2010. A situação exemplifica como a configu- no cotidiano de deslocamento, principalmente,
ração urbana das cidades brasileiras reflete e nas grandes e médias cidades?
perpetua o chamado racismo estrutural, que
tem os problemas de mobilidade entre seus CORPOS CASTIGADOS, PARA ALÉM DA
efeitos colaterais. MOBILIDADE: A NECROPOLÍTICA
[...] A arquiteta e urbanista Kelly Fernandes en- Como estamos abordando desigualdades so-
xerga dinâmica parecida [em relação à cidade cioespaciais e, sobretudo, como esses fatos re-
U

do Rio de Janeiro] em investimentos recentes sultam em massacres de corpos de classes so-


realizados na capital paulistana. A 10 km do ciais específicas, é importante ressaltar o termo
Centro e com 85% de população branca, o “necropolítica” e sua potência no entendimento
bairro de Pinheiros ganhou 3 novas estações da realidade cotidiana da ação do Estado em
G

de metrô nos últimos 10 anos. Já o bairro de muitos lugares do país.


Guaianazes está a 30 km do Centro, tem 47% O conceito foi criado pelo filósofo camaronês
de população branca e até hoje não conta com Achille Mbembe: consiste no poder do Estado em
estação de metrô. ditar quem vive e quem morre em um território; o
[...] Estado é tomado como a instituição que gerencia
No limite, a identificação de territórios como a morte de seus habitantes. Um exemplo de ne-
espaços preferencialmente não brancos gera cropolítica encontrado em trabalhos de geógrafos
preconceito e tentativas de segregação. Anna e sociólogos são as forças de segurança pública e
[Benites, professora do Instituto de Química suas intervenções em regiões periféricas do país,
da Universidade Federal de Goiás] lembra a si- nas quais acontecem o extermínio de pretos, par-
tuação do Vale dos Sonhos e outros conjuntos dos, indígenas e pobres. Nas palavras de Mbembe:
populares em Goiânia, que chegam a registrar

3 4
O CORPO É POLÍTICO
[...] o poder necropolítico opera por um gêne- lamento de vivissecção, como se pode ver em

D
ro de reversão entre vida e morte, como se a todos os teatros contemporâneos do terror e
vida não fosse o médium da morte. Procura do contraterror.
sempre abolir a distinção entre os meios e os MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa:
Antígona, 2017. p. 65. (Grifos nossos.)
fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos

L
de crueldade. Aos seus olhos, o crime é parte
Talvez possamos analisar a distribuição não
fundamental da revelação, e a morte de seus
igualitária dos serviços essenciais à realização
inimigos, em princípio não possui qualquer
da vida no solo da cidade e o modelo de gestão
simbolismo. Este tipo de morte nada tem de
e planejamento urbano que não apenas escolhe

N
trágico e, por isso, o poder necropolítico pode
os privilegiados com a facilitação da mobilidade
multiplicá-lo infinitamente, quer em pequenas
mas também produz os excluídos (condenados)
doses (o mundo celular e molecular), quer por
como uma ação semelhante à que Mbembe ca-
surtos espasmódicos – a estratégia dos pe-
racteriza como necropolítica; porém, em vez da

P
quenos massacres do dia-a-dia, segundo uma
eliminação física dos corpos, ocorre a negação
implacável lógica de separação, de estrangu-
dos direitos dos indivíduos.

Quais são os corpos, ou de quem são os corpos diariamente massacrados no cotidiano de deslocamento?
IA
U

DIEGO TORRES SILVESTRE


G
Assim, as desigualdades no espaço geográfi- locamento por pelo menos um de seus familiares,

D
co – tomadas aqui na sua face de segregação da ou alguém escolhido por eles, como o modelo a
mobilidade: as longas jornadas diárias nos meios seguir.
de transporte que cortam a cidade, as horas de
vida perdidas nos deslocamentos, tudo a que os Diário de deslocamento semanal

L
corpos dos habitantes mais pobres da cidade
são submetidos (principalmente pretos, pardos O que eu faço, ou
Entrevistado(a):
posso fazer, nesse
e indígenas) – talvez resultem em uma forma de __________________
tempo
necropolítica vista sob a ótica da produção do
Segunda-feira.

N
espaço. Ao escolher quais lugares e corpos terão Fica __:___ horas no
mais acesso a uma infraestrutura de mobilidade transporte
urbana, o Estado se torna o produtor e adminis- Terça-feira. Fica __:___
trador das “estratégias dos pequenos massacres horas no transporte
Quarta-feira. Fica __:___

P
do dia a dia”, como nos coloca Achille Mbembe.
horas no transporte

PROPOSTA DE ATIVIDADE Quinta-feira. Fica __:___


horas no transporte
Que tal descobrir com os estudantes a
média de tempo que seus familiares passam no Sexta-feira. Fica __:___
horas no transporte
IA
transporte público? Nossa sugestão é o trabalho
com o documentário Os trabalhadores que passam No campo “O que eu faço, ou posso fazer, nes-
até um terço do dia no transporte público, dirigido se tempo”, oriente os estudantes para que sugiram
por Felipe Souza e Felix Lima (BBC News Brasil, atividades que possam ser feitas para aproveitar o
2019, 7 min, disponível em: <https://youtu.be/hx- tempo do deslocamento. Peça a eles que não repi-
sLtfsM0o>; acesso em: 31 dez. 2020). tam as atividades no quadro, pois a proposta visa
Após a exibição do documentário, em uma evidenciar aos alunos o tempo de vida gasto nos
U

roda de conversa, averigue com os estudantes deslocamentos; por isso, é interessante que eles
as semelhanças entre o cotidiano retratado no possam pensar na multiplicidade de atividades
documentário e o de seus familiares. Proponha e possibilidades perdidas em “uma vida inteira
que eles reconstituam, com uma descrição, os nos transportes”. Dessa forma, anotarem uma
cotidianos de Marlene, Sidinéia e Ludovico, pro- única atividade nesse campo não será produtivo
G

tagonistas do documentário. É interessante que para o debate.


professor e estudantes procurem reportagens
Outra possibilidade de trabalho com essa
ou mesmo relatos que apresentam o cotidiano
mesma proposta envolve o componente de Ma-
de deslocamento nas suas regiões, com informa-
temática. Pode-se produzir um censo com os
ções como o tempo médio de deslocamento em
estudantes buscando catalogar o deslocamento
seus municípios, ou mesmo nas capitais de seus
diário de um familiar, ou um pessoa escolhida
estados.
pelos estudantes, com o intuito de calcular a mé-
Para problematizar a questão do tempo gasto
dia de deslocamento semanal dessa pessoa. Seria
nos meios de transporte, proponha que os estu-
interessante também calcular a média de deslo-
dantes construam um diário de deslocamento
camento semanal de todos os entrevistados pela
semanal, uma tabela de tempo do gasto no des-
turma, como exemplificado no quadro a seguir.

3 6
O CORPO É POLÍTICO
As cidades modernas são marcadas pela lógi-

D
Média de O que eu faço, ou
deslocamento posso fazer, nesse ca produtiva das indústrias, ou seja, a organiza-
semanal em horas tempo ção das indústrias é caracterizada pela regulação
e pelo controle do tempo visando ao aumento
_____:______ contínuo da produtividade. E essa lógica deixa

L
Média de suas marcas na cidade.
deslocamento O que eu faço, ou Pensemos um pouco sobre a máxima ame-
semanal dos posso fazer, nesse ricana, atribuída a Benjamin Franklin, que diz
entrevistados pela tempo
turma que “tempo é dinheiro”. Se tempo é o mesmo que

N
dinheiro, então a velocidade é um dos requisitos
_____:______ para o lucro, e nosso tempo é sempre o tempo da
produtividade.
Por fim, ainda com a parceria de professor(a) Essa lógica produtiva invade as cidades: talvez
de Matemática, pode-se calcular quantos dias em

P
por isso ocorre a impressão de que na cidade o
média os escolhidos para o censo da sala empre- ritmo é sempre mais rápido. Como nos apresenta
gam no transporte público ao longo de um ano. o geógrafo César Simoni Santos:
Na discussão dos resultados, é fundamental A modernidade é marcada pelo fenômeno eco-
estabelecer a relação entre as atividades sugeri- nômico e social da industrialização. A indús-
das para os deslocamentos e o meio de transporte
IA
tria, a seu tempo, foi signo da abundância,
utilizado, assim como as condições de transporte. o objeto central de uma sociedade que op-
Essa proposta traz a possibilidade de analisar- tou pelo quantitativo. A produção tornou-se
mos a mobilidade urbana e suas consequências maior, a produtividade do trabalho também,
para os corpos por meio da análise do cotidiano a exploração do trabalhador seguiu o mesmo
de familiares e amigos dos nossos estudantes. caminho, somente o tempo de produção é que
Em outras palavras, quando se trata de mobili- diminui significativamente. Foi contra o tem-
dade e deslocamento, podemos jogar luz sobre
U

po lento que a indústria venceu a batalha.


os conteúdos geográficos presentes no cotidiano
SANTOS, César Simoni. O espaço da metrópole,
para entendê-los melhor e assim podermos atuar o tempo dos velhos e a alienação urbana. Mais 60:
estudos sobre envelhecimento, São Paulo: Sesc-SP, v. 27,
para mudá-los. n. 64, abr. 2016. p. 14. Disponível em: <www.sescsp.org.
br/files/artigo/7b08fd2f-6bd4-4db4-9501-92ba83fce6e5.
G

pdf>. Acesso em: 31 dez. 2020. (Grifos nossos.)


A CIDADE E OS CORPOS E TEMPOS LENTOS: PESSOAS
IDOSAS E PESSOAS COM DIFICULDADE DE MOBILIDADE Os tempos lentos são então “inimigos” da pro-
Provavelmente, em algum momento, você já dutividade e essa concepção determina a maneira
deve ter estado em uma conversa em que foram como a cidade é produzida.
discutidas as diferenças entre o ritmo de vida da Façamos uma ref lexão a respeito dos cor-
cidade e do campo. Nessas ocasiões, costuma-se pos que não conseguiram acompanhar o ritmo
ressaltar que as cidades parecem ter um ritmo frenético das cidades. Como ficam os corpos
de vida muito acelerado quando comparadas ao e tempos lentos dos idosos e das pessoas com
campo. Uma explicação para essas sensações de dificuldade de mobilidade? Será que o espaço
maior ou menor exigência do corpo pelo ritmo das cidades vem sendo produzido pensando em
de vida é a influência do processo de industria- todos os corpos?
lização nas cidades.

37
Na estrutura das nossas cidades, existem A análise da exclusão pelo ritmo no trânsi-

D
faixas de pedestres em todas as ruas? Nos cru- to é uma porta de entrada para estabelecer um
zamentos principais, o tempo de abertura dos diálogo entre a perversidade das cidades e a per-
semáforos acompanha o tempo do caminhar de versidade das salas de aula: as cidades, com seus
corpos com alguma dificuldade de mobilidade? ritmos acelerados, excluem corpos que não res-

L
Em São Paulo, uma pesquisa feita pela Facul- pondem a esses ritmos; para a pedagoga Flavia
dade de Saúde Pública da Universidade de São Terigi, muitas vezes acabamos reproduzindo nas
Paulo constatou que a velocidade média dos pe- salas de aula essa mesma lógica de exclusão. Ao
destres paulistanos acima dos 60 anos, ao cruzar utilizarmos abordagens pedagógicas monocro-

N
uma rua, é de 2,7 quilômetros por hora; o valor máticas, ou seja, metodologias que adotam um
usado como padrão pela Companhia de Enge- padrão único de ritmo como convencional para
nharia de Tráfego (CET-SP) para a regulagem todos os estudantes, acabamos por excluir aque-
dos semáforos é de 4,3 quilômetros por hora, ou les que têm ritmos de aprendizagem diferentes.

P
seja, muito acima das possibilidades dos pedes- Em suas palavras:
tres idosos. [...] temos trabalhado na construção do co-
Segundo outro estudo, dessa vez do Observa- nhecimento pedagógico, na construção em
tório Paulista de Trânsito (OPT) do Departamen- particular do conhecimento didático, com a
to Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), ideia de uma aprendizagem monocromática.
IA
os atropelamentos já representavam em 2016 Uma aprendizagem que segue um ritmo que
metade das ocorrências dos óbitos de idosos no é o mesmo para todos. E ainda que isso seja
trânsito paulista (49,2%). Para conhecer outros bastante discutido por meio de expressões
dados dessas pesquisas, consulte a reportagem como “adaptações curriculares”, “adequações
indicada a seguir. à diversidade ”,“diversificação curricular ” etc.,
PELEGI, Alexandre. Semáforos de SP penalizam boa parte do conhecimento pedagógico e em
população idosa. Diário do transporte, 4 maio particular, insisto, do conhecimento sobre
2017. Disponível em: <https://diariodotransporte.
U

com.br/2017/05/04/semaforos-de-sp-penalizam- ensino, está estruturado nesta ideia de apren-


populacao-idosa/>. Acesso em: 31 dez. 2020.
dizagem monocromática.

Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da TERIGI, Flavia. Las cronologías de aprendizaje: un


concepto para pensar las trayectorias escolares.
Universidade de São Paulo, divulgada em 2017, Jornada de apertura – Ciclo lectivo 2010. Santa Rosa:
Ministerio de Cultura y Educación, 23 fev. 2010. p.
G

constatou que 97,8% dos idosos da cidade de 3. Disponível em: <www.chubut.edu.ar/concurso/


São Paulo não conseguem caminhar a 4,3 km/h, material/concursos/Terigi_Conferencia.pdf>.
Acesso em: 31 dez. 2020. (Texto traduzido.)
velocidade exigida pelo padrão apresentado pela
Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP) A lógica fabril que permeia o tempo de reali-
para os semáforos. Esses dados envolvem pessoas zação do capital na cidade não estaria também
idosas, porém há outros corpos com dificuldades presente na escola?
de deslocamento, como um cadeirante, uma pes- Voltando à cidade, devemos considerar outro
soa com deficiência visual ou mesmo uma mulher fator importante para a análise das restrições es-
gestante – o descompasso entre o ritmo fabril paciais aos diferentes tipos de corpos: a estrutura
das cidades e ritmo singular de cada corpo cria física dos lugares onde vivemos e as dificuldades
dificuldades para um grande número de pessoas. que ela impõe aos diferentes corpos.

3 8
O CORPO É POLÍTICO
Por exemplo, no lugar onde você vive, qual é Será que a pouca atenção que é destinada à

D
a qualidade dos espaços para pedestres, como produção do espaço para diferentes corpos já não
calçadas e trilhas? Os corpos de tempos lentos é um indicativo de que são lugares excludentes
ou com dificuldade de mobilidade encontrariam para alguns corpos?
problemas para circulação? Como podemos notar, muitas cidades, inde-

L
É interessante pensarmos que, entre as pau- pendentemente do número de habitantes e da
tas mais debatidas durante campanhas eleitorais extensão de sua malha viária, não se apresentam
para representantes municipais, a qualidade das receptivas a corpos e tempos lentos. Voltando
vias, ruas e avenidas é muitas vezes um dos gran- mais uma vez à máxima atribuída a Benjamin

N
des focos dos debates e das propostas dos candi- Franklin (“tempo é dinheiro”), e refletindo sobre
datos. Esse tema pode ser inclusive usado como sua lógica aplicada ao espaço, nos parece que nos-
um termômetro para medir o desempenho de um sas cidades, muitas vezes, não apenas vêm sendo
prefeito. Contudo, as vias de circulação de carros, produzidas para corpos e tempos velozes (e para

P
ônibus e caminhões são a preocupação maior das a reprodução ainda mais veloz de capital) como
autoridades municipais em detrimento das vias também são hostis aos corpos e tempos lentos.
de pedestres (calçadas ou passeios).
IA DANIELLA BARROSO
U
G

Quais são as restrições de


mobilidade que o espaço onde
você vive impõe aos corpos?
D
ÁREA DE CONHECIMENTO EM FOCO.

A FESTA: A RESSIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO


E A LIBERTAÇÃO DOS CORPOS

L
N
A contradição entre a produção do espaço é necessariamente aquele que oferece o descanso
para os automóveis e a produção do espaço para adequado. O nascer e o pôr do sol já não dizem
a vida pode ser abordada sob o ponto de vista das muito sobre o ritmo de vida de grande parte da
festas, das manifestações e do espaço do brincar população.

P
das crianças, movimentos com a potência de O ritmo de funcionamento dos nossos corpos
questionar a lógica socioeconômica vigente de não é plenamente decidido por nós mesmos, em
produção do espaço. busca de bem-estar. O capital, para se reproduzir,
Quem controla seus horários? Quem decide o se assenhora dos laços da vida, que a submete à
horário em que você se levanta e o horário em que sua lógica. Mesmo nos tempos de pausa no tra-
IA
vai dormir? Quem decide o horário e quantidade balho, muitas vezes o que fazemos é possibilitar a
de tempo que você tem para si mesmo? reprodução do capitalismo por meio do consumo
Para o filósofo Henri Lefebvre (1901-1991), a de objetos.
lógica de produção e reprodução do capital não De certo modo, muitas vezes nosso cotidiano
ocorre exclusivamente no espaço das fábricas, ela é pautado por momentos de trabalho, momentos
invade todo o espaço e a vida cotidiana. Assim para se preparar para o trabalho (descansando o
como em uma indústria o tempo é racionalizado corpo ou muitas vezes fazendo cursos) e momen-
U

e controlado pensando em uma maior produtivi- tos do consumo. Ou seja, se não estamos produ-
dade, objetivando o lucro e a propagação de um zindo algo por meio de nosso trabalho, estamos
dado sistema socioeconômico, a produção dos consumindo algo. Sobre o poder do consumo em
espaços das cidades segue esse mesmo raciocínio. nossas vidas, Milton Santos afirma:
G

A industrialização introduziu uma série de Já o consumo instala sua fé por meio de obje-
mudanças em nossas práticas sociais. Ficaram tos, aqueles que em nosso cotidiano nos cer-
no passado os ritmos determinados pelas mudan- cam na rua, no lugar de trabalho, no lar e na
ças sazonais da natureza; hoje, mesmo longe do escola, quer pela sua presença imediata, quer
espaço das fábricas, o ritmo imposto é o fabril. pela promessa ou esperança de obtê-los. Numa
Nossos corpos e mentes seguem o horário sociedade tornada competitiva pelos valores
estipulado pelas tarefas cotidianas: acordamos que erigiu como dogmas, o consumo é verda-
com a preocupação de não chegarmos atrasados deiro ópio, cujos templos modernos são os
nos compromissos profissionais ou educativos shopping centers e os supermercados, aliás
(escolas, cursos e faculdades); o horário de dormir construídos à feição das catedrais. O poder
não é necessariamente o horário em que nossos do consumo é contagiante, e sua capacidade de
corpos estão exaustos e o horário de levantar não alienação é tão forte que a sua exclusão atribui

4 0
O CORPO É POLÍTICO
às pessoas a condição de alienados. Daí a sua pessoas, e sim para os roncos dos motores de suas

D
força e o seu papel perversamente motor na criações, os veículos automotores.
sociedade atual. O tempo abstrato da produção e do lucro, o
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7. ed. São tempo regulado na imagem e no instrumento
Paulo: Edusp, 2007. p. 48. (Grifos nossos.)
do semáforo, impunha-se sobre os ritmos da

L
vida por meio da nova espacialidade produzi-
Se nossas vidas e corpos muitas vezes pare-
da. Assim como o apito foi para a fábrica, o
cem programados para o trabalho e o consumo,
semáforo traz como representação o domí-
os tempos e espaços são capturados como meios
nio de uma temporalidade abstrata aplicada
de reprodução capitalista. A produção e raciona-

N
à regulação do espaço urbano.
lização do espaço nas cidades segue essa mesma
SANTOS, César Simoni. O espaço da metrópole,
lógica, ou seja, o objetivo não é necessariamente o tempo dos velhos e a alienação urbana. Mais 60:
o bem-estar de todos os habitantes. Como nos estudos sobre envelhecimento, São Paulo: Sesc-SP, v. 27,
n. 64, abr. 2016. p. 18. Disponível em: <www.sescsp.org.
coloca a geógrafa Isabel Pinto Alvarez: br/files/artigo/7b08fd2f-6bd4-4db4-9501-92ba83fce6e5.

P
[...] o capitalismo sobreviveu a suas próprias pdf>. Acesso em: 31 dez. 2020. (Grifos nossos.)

crises estendendo seu domínio, integrando ao


O espaço das cidades é pensado para um rit-
circuito geral de produção do capital setores,
mo de vida específico. Como já abordado, o es-
povos e espaços ainda não capitalizados. Do
paço das cidades não acolhe todos os corpos e
mesmo modo, ampliou a divisão social do tra-
IA
acaba por vezes excluindo os corpos mais lentos.
balho, transformou práticas sociais em novos
Para aprofundar a relação entre sociedade
setores econômicos, como o lazer, a cultura, o
e o automóvel, recomendamos o documentário
turismo, e induziu a formação da sociedade
Sociedade do automóvel (direção de Branca Nunes
urbana.
e Thiago Benicchio, 2005, 40 min, disponível em:
ALVAREZ, Isabel Pinto. A noção de mobilização
do espaço em Henri Lefebvre. Geousp – Espaço e <https://youtu.be/4eWvSwzkidE>; acesso em: 31
Tempo: Dossiê Henri Lefebvre e a problemática dez. 2020).
urbana, São Paulo, v. 23, n. 3, dez. 2019. p. 499.
U

Disponível em: <https://core.ac.uk/download/ 11 milhões de pessoas, quase 6 milhões de au-


pdf/276530527.pdf.> Acesso em: 31 dez. 2020.
tomóveis; um acidente a cada 3 minutos; uma
pessoa morta a cada 6 horas; 8 vítimas fatais
Em nossa tentativa de investigar a produção
da poluição por dia. No lugar da praça, o sho-
do espaço e o aprisionamento dos corpos, vamos
pping center; no lugar da calçada, a avenida; no
G

direcionar nosso olhar para elementos presentes


lugar do parque, o estacionamento; em vez de
nas cidades e para uma possibilidade de subver-
vozes, motores e buzinas.
são do espaço racionalizado e de liberdade dos
Trabalhar para dirigir, dirigir para trabalhar:
corpos: a festa.
compre um carro, liberte-se do transporte pú-
blico ruim. Aquilo que é público é de ninguém,
“A RUA É NÓIS!”
ou daqueles que não podem pagar. Vidros es-
A partir da primeira metade do século XX,
curos e fechados evitam o contato humano. Té-
muitas cidades começaram a ser moldadas para
dio, raiva, angústia e solidão na cidade que não
o automóvel. Isso significa que o espaço das ci-
pode parar, mas não consegue sair do lugar.
dades não contemplava mais a velocidade lenta
Sociedade do automóvel. Thiago
de deslocamento dos corpos e que suas ruas já Benicchio. Disponível em: <https://youtu.
não são mais feitas para o caminhar vagaroso das be/4eWvSwzkidE>. Acesso em: 31 dez. 2020.

41
Essa cidade produzida para o automóvel, e mulheres com seus corpos, dando outro sentido

D
pensada para ser o ambiente do trabalho e da para as ruas, agora como lugar de acontecimento
reprodução do capital, é antagônica à ideia de das celebrações da vida, não apenas como lugar
uma cidade produzida para a vida. Os espaços dos automóveis.
na cidade propícios para a troca e convívio de Além do carnaval, pensemos um pouco em ou-

L
seus habitantes são cada vez mais raridades. Nas tras manifestações populares que tomam as ruas,
grandes cidades, temos poucas praças e muitos como os bailes funk de rua – são apropriações dos
shoppings; nas médias e pequenas, a construção espaços por jovens que acabam por ressignificar
de um shopping é sinônimo de desenvolvimento. as ruas, de um local de trânsito para lugar do

N
A qualidade das calçadas (ou passeios) não são encontro, da festa.
uma preocupação de primeira ordem como é a
qualidade do asfalto; o acesso ao lugar de encon-
tro é quase sempre mediado pela compra de um

P
ingresso ou pela exigência do consumo de algum
produto em um estabelecimento.
O carnaval é bem emblemático para pensar-
mos a transformação da cidade de um lugar de
possibilidades de vida e experiências dos corpos
IA
para um lugar de consumo de experiências. O
carnaval no Brasil, de forma geral, surgiu como

FERNANDO FR AZÃO/AGÊNCIA BR ASIL


uma manifestação popular que toma as ruas
como palco. Por esse motivo, o acesso à festa de
libertação dos corpos não era mediado pelo di-
nheiro. Contudo, na cidade do Rio de Janeiro, a
partir da década de 1960, foram criados espaços
U

restritos para os desfiles de carnaval, cujo acesso


era liberado mediante a compra de um bilhete;
em 1984, foi inaugurado um espaço confinado
para o desfile que antes acontecia nas ruas da
cidade. Ou seja, aos poucos, o carnaval foi sendo
G

retirado das ruas e aprisionado em uma “rua fic-


tícia” chamada sambódromo. A rua permanecia,
assim, o lugar exclusivo dos carros.
O corpo e a vida se realizam no espaço; um
espaço fragmentado e burocratizado, no qual o
Embora o carnaval de rua nunca tenha deixado
acesso depende do dinheiro, corresponde ao apri-
de existir no país (inclusive vem ganhando força
sionamento dos corpos, sobretudo dos corpos dos
ao longo dos últimos anos), é emblemático que
mais pobres, que não tem condições de acessá-lo.
as principais agremiações de samba estejam
Assim, as festas de ruas e/ou as manifestações restritas, ou “presas”, na rua fictícia chamada
que tomam as ruas – como eram os grandes desfi- sambódromo. Na foto, desfile no Sambódromo da
les do carnaval – podem, de certo modo, represen- Marques de Sapucaí, no Rio de Janeiro (RJ), em
tar uma apropriação desses espaços por homens 2014.

4 2
O CORPO É POLÍTICO
O movimento de tomar as ruas para a festa é política. O poder necropolítico no Brasil tem

D
transformador, pois ele tem a potência de ques- como alvo do extermínio jovens negros e negras.
tionar para quem o espaço urbano é produzido. Uma pesquisa publicada pela Organização das
Quando ocupamos com os nossos corpos o es- Nações Unidas (ONU) relata que, em 2017, a cada
paço das ruas, nos atrevemos a questionar que 23 minutos um jovem negro foi morto no país. O

L
tipo de cidade queremos. Analisemos um trecho que aconteceu em Paraisópolis seria um exemplo
da letra da música A cidade, de Jaloo: de necropolítica?
Eu tô pensando em você
Sem barulho de motores PARA ALÉM DAS FESTAS: O ATO DE BRINCAR

N
JALOO. A cidade. Skol Music, 23 out. COMO FORMA DE APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
2015. Disponível em: <https://youtu.be/
rVu6CQ _5FbY>. Acesso em: 31 dez. 2020.
Ressignificar o espaço e transformá-lo ra-
dicalmente para que se torne lugar do viver é
E você, como é a cidade em que você anda também uma forma de libertação dos corpos.

P
pensando? Quais festas, ou apropriações das Nesse processo, apropriar-se do espaço carrega
ruas, existem no lugar onde você vive? uma certa potência enquanto subversão de uma
Vamos refletir sobre quem são os frequen- ordem imposta. Como argumenta Cesar Simoni
tadores dos bailes funk de rua? Os corpos que Santos:
ocupam as ruas e fazem os bailes são, na sua Henri Lefebvre coloca a apropriação, que se dá
IA
maioria, corpos de jovens pretos, pardos, pobres. pelo uso do espaço (na festa, no futebol, no ca-
São os mesmos corpos excluídos do lazer em uma minhar, etc.), simultaneamente como elemento
cidade onde essas atividades são mediadas pelo de subversão reverso à alienação do espaço
consumo, em uma a cidade onde a festa de rua, social e como horizonte utópico da sociedade
como uma possibilidade de libertação do corpo, urbana, da constituição de uma sociedade que
foi se transformando em espetáculo mediado por acolhe as diferenças e que, livre da autoridade
um bilhete de acesso a um ambiente encerrado. exclusiva da razão, respeita o corpo, os desejos,
U

Já abordamos um conceito muito importante as paixões e os ritmos diversos.


do filósofo camaronês Achille Mbembe, a necro- SANTOS, César Simoni. O espaço da metrópole,
o tempo dos velhos e a alienação urbana. Mais 60:
estudos sobre envelhecimento, São Paulo: Sesc-SP,
v. 27, n. 64, abr. 2016. p. 20. Disponível em: <www.
sescsp.org.br/files/artigo/7b08fd2f-6bd4-4db4-
G

9501-92ba83fce6e5.pdf>. Acesso em: 31 dez. 2020.


ROVENA ROSA/AGÊNCIA BR ASIL

Para além dos exemplos das festas, existem


outros momentos onde acabamos por ressigni-
ficar um determinado lugar: o ato de brincar,
por exemplo, é um deles. Ele está relacionado às
crianças e aos adolescentes, contudo não está
restrito apenas a essas fases da vida (pode ser
interessante nos questionarmos sobre os porquês
Em 1º de dezembro de 2019, uma ação violenta de muitos de nós, adultos, não brincarmos mais).
da polícia paulista terminou com a morte de 9 Para exemplificar o poder das brincadeiras de dar
jovens no “Baile da 17”, baile funk no bairro de outros sentidos ao espaço, pensemos novamente
Paraisópolis, na cidade de São Paulo (SP). sobre as ruas como lugares produzidos muitas

43
D
L
N
AFRICA STUDIO/SHUTTERSTOCK

P
IA

vezes apenas para os automóveis e analisemos e os adolescentes, uma infinidade de usos. A rua,
U

como as crianças e os adolescentes ocupam e quando não é tomada por carros, é um espaço
ressignificam esse espaço. livre para os corpos e mentes.
Para eles, a rua não é, ou ainda não é, sinôni- Além das ruas, as crianças e os adolescentes
mo unicamente de lugar dos carros. Crianças e imaginam muitos outros espaços como lugares
G

adolescentes transformam a rua em um verda- de realização da vida. Para eles, todos os lugares
deiro lugar de encontro, em espaço esportivo com são o lugar do brincar e de viver. A rua, o terreno
as partidas mais acirradas (certamente alguns baldio, o barranco íngreme, rios, lajes: todo espa-
de nós ainda lembramos de lances homéricos ço se torna lugar do viver.
– ou nem tanto – que fizemos em uma partida Para as crianças, nem o espaço, nem o tempo
de rua), em local do pega-pega, da amarelinha, são, ainda, normatizados e fragmentados. Cabe
ou mesmo o cenário para caçar Pokémons com a nós, como professores, pensarmos em ações
smartphones. A rua transforma-se no lugar das que contribuam para que, aos poucos, os alunos
disputas de taco, dos festivais de pipa (papagaio), possam enxergar o espaço para além do local da
torna-se pista para ensaiar os passos de dança reprodução de uma lógica econômica para a qual
da música da moda, é palco e arquibancada ao o valor de troca é prioridade em relação ao valor
mesmo tempo, enfim, a rua tem, para as crianças de uso e a vida.

4 4
O CORPO É POLÍTICO
PROPOSTA DE ATIVIDADE: ONDE SE FESTEJA para determinado espaço. Nas periferias das

D
E COMO SE BRINCA EM SEU TERRITÓRIO? grandes cidades brasileiras, nós temos saraus de
A potência e a criatividade das pessoas para poesia, por exemplo, acontecendo em bares, não
ressignificar os espaços é o grande enredo da em equipamentos culturais, como bibliotecas. É
nossa última conversa. Durante essa reflexão, um exemplo de subversão da norma, pois driblam

L
esperamos que sua memória afetiva tenha sido a escassez ou ausência completa desses equipa-
mobilizada e provocada. Recordações podem mentos com a ocupação de espaços numerosos
remeter a determinados festejos ou brincadeiras no território, como o bar.
que acontecem em um espaço (por vezes ressig- O resultado de cada grupo permite que se-

N
nificado) e também a um marco temporal. jam feitas discussões sobre o levantamento e sua
A proposta é inspirada por essa discussão: qualificação, porém, podemos ampliar a análise
pensar nas festas (e brincadeiras) que marcam unificando as classificações dos grupos parti-
o nosso cotidiano e dos nossos alunos, identifi- cipantes, sendo possível projetar uma planilha

P
cando como e quando elas acontecem. Quais são eletrônica no quadro e organizar os dados em
as principais festas do seu território? Quais são um único quadro.
as brincadeiras mais comuns? Em quais espaços É interessante que a reunião dos dados acon-
essas festas ou brincadeiras acontecem? teça de maneira coletiva, pois alguns eventos apa-
Para organizar a atividade, sugerimos que a recerão em mais de um grupo; assim, os alunos
IA
turma seja dividida em grupos menores. Agrupa- precisam decidir como registrar isso – você pode,
dos, os alunos podem conversar orientados pelas por exemplo, sugerir que eles criem uma coluna
perguntas acima e organizando suas respostas no quadro para anotar o número de vezes que
em um quadro. cada evento se repete. Eles também precisam de-
É importante que a conversa aconteça sem um cidir como lidar com eventos da mesma natureza
critério a respeito do que eles entendem por brin- que acontecem em contextos diferentes. Ao final,
cadeira e festa, pois é interessante que a maior uma legenda pode trazer a qualificação para cada
U

variedade possível de eventos seja relacionada categoria especificada no quadro.


em cada quadro. A segunda parte da atividade é Em uma roda de conversa, os alunos podem
qualificar o levantamento com base na reflexão discutir o panorama da festa e do brincar do ter-
que estamos propondo nesta dimensão: Quais ritório que elaboraram, refletindo sobre como os
dessas festas e brincadeiras fazem um movimen- corpos ocupam e ressignificam os lugares. Além
G

to de apropriação e ressignificação dos espaços disso, uma série de desdobramentos são possíveis
onde ocorrem? a partir dessa dinâmica. Durante o levantamento,
Uma sugestão é disponibilizar canetas mar- por exemplo, adicione outras perguntas, como se
ca-texto para cada grupo e propor a eles que esses eventos acontecem em espaço público ou
usem as cores para classificar os eventos: por privado, ou, ainda, quem participa deles. O recor-
exemplo, uma cor para brincadeiras e festas que te de gênero ou geracional, por exemplo, permite
acontecem em espaços esperados ou que seguem aprofundar essa conversa. Outra sugestão que
normas preestabelecidas e outra cor para marcar pode ampliar essa atividade é colocar esses even-
brincadeiras e festas que subvertem a norma e tos em um mapa ou em um calendário.
propõem uma ocupação diferente da esperada

45
D
REPENSANDO A AVALIAÇÃO.

ROMPER A NATURALIZAÇÃO,
LIBERDADE PARA OS CORPOS

L
N
Itaim Paulista, São Paulo, 2017. O novo profes- Ao levar a aula para a rua, independentemen-
sor de Geografia de uma escola pública daque- te do objetivo ou método, não encontramos uma
le bairro chega para conhecer a sala ambiente sala de aula vazia. Se dentro da institucionalida-
de seu componente. Na porta, logo acima do de da escola o espaço está em movimento, na rua

P
número 15, uma inscrição (“pixo”) com canetão isso ganha ainda mais fôlego. Apesar das tentati-
preto chama a atenção e perturba: em letra de vas de normatizar o urbano e regular a presença
fôrma uma criança ou adolescente escreveu dos corpos, como vimos anteriormente, a rua
“CELA”. está sujeita a ressignificações diversas, nas quais
Esse pequeno relato autobiográfico foi feito normas são rompidas por meio dos corpos. Os
IA
por um professor de Geografia especialmente conflitos presentes na rua resultam da desigual-
para esta obra. A situação pode parecer banal, dade social, que, como apontamos anteriormente,
mas é muito simbólica e nos convida a pensar. é também espacial e racializada. Ir a campo é ir
Vamos resgatar o início da nossa conversa sobre ao encontro dessas relações.
o corpo político? Esse recado anônimo poderia No início deste percurso, apresentamos o es-
ter sido deixado pelos personagens Pilar e Tedy paço como uma categoria da Geografia; porém,
ou até mesmo por Machado de Assis e Sacoli- neste momento, gostaríamos de dar outro passo
U

nha; considerando o exercício proposto em nossa e dialogar novamente com Milton Santos. O au-
primeira conversa, de relembrar o que vivemos tor fundamenta em sua trajetória de pesquisa
quando éramos alunos do ensino médio, quem um método que apresenta o espaço como uma
sabe não tenha sido escrito por você, por nós, instância social: ele é subordinado/subordinante
G

autores, ou por algum colega de profissão? à totalidade; dessa maneira, como instância, ele
Reverberando a reflexão sobre a importância se impõe a tudo e a todos, por isso não pode ser
do espaço na regulação ou libertação dos corpos, produzido.
o convite é dar mais um passo para a superação Trazemos esse debate metodológico para dia-
dos arranjos espaciais impostos na/pela escola. logarmos com outro conceito miltoniano, que é
Considerando os desafios que implicam esse mo- um potente recurso para pensar uma incursão
vimento, o debate sobre o urbano e sua relação a campo: Milton considera que o espaço geo-
de desigualdade espacial e a ressignificação dos gráfico deve ser compreendido em um tempo,
espaços, nossa proposta é pensar em colaboração historicizado, e, portanto, é o território usado,
com os alunos como levar nossa (sala de) aula submetido a mecanismos do plano material e do
para as ruas. Vamos para a rua? plano teórico.

4 6
O CORPO É POLÍTICO
O plano material consiste na construção de Essa modernidade que sugere aos corpos “ges-

D
estradas, redes de telecomunicações ou sistemas tos rotineiros e sem surpresa” (não ao acaso) nos
de transporte, que têm como objetivo aumentar convida a retomar a discussão sobre o controle
a circulação das mercadorias. De maneira com- dos corpos. O controle dos corpos, reproduzido
plementar, no plano teórico, temos a psicosfera, na escola, também está na rua da “cidade lumi-

L
que consiste no conjunto de ideias que dão signi- nosa”; assim, temos um desafio, ao qual propomos
ficado e justificam o plano material. O território um enfrentamento coletivo: como libertar os
usado se constitui como um recurso que serve aos corpos na escola e fora dela? Pode a experiência
interesses dos sujeitos hegemônicos. Mas Milton da aula de campo ser um momento de liberdade

N
também apresenta o território nosso, do espaço para os corpos?
banal, onde se realiza a sobrevivência, e os sujei-
tos hegemonizados têm o território como abrigo: PRÁTICA (E CONSIDERAÇÕES) PARA
[...] buscando constantemente se adaptar ao LIBERTAR O CORPO E A AULA

P
meio geográfico local, ao mesmo tempo que Para pensarmos sobre o romper com os dis-
recriam estratégias que garantam sua sobre- positivos de controle dos corpos, na aula e na
vivência nos lugares. rua, vamos sugerir uma prática chamada “deriva”.
SANTOS, Milton et al. O papel ativo da Geografia, Trata-se de uma proposta de vivência do movi-
um manifesto. In: XI Encontro Nacional de Geógrafos,
Florianópolis, 2000. Disponível em: <www.ub.edu/
mento situacionista, que sugere um exercício
IA
geocrit/b3w-270.htm>. Acesso em: 1º jan. 2021. de crítica dos aspectos das cidades industriais
europeias em meados do século XX. A ideia é a
Esse raciocínio nos mostra um conflito: o ter-
priori muito simples, pois propõe um movimento
ritório usado como recurso é produzido a serviço
de transeunte em meio a cidade, porém há muitos
dos interesses privados e para a intensificação da
desdobramentos e considerações que precisam
circulação das mercadorias e do consumo; dessa
ser colocados, inclusive para transpor essa prática
maneira, a “instalação” da tecnosfera é cada vez
a cada contexto.
mais densa, normatizante e concentrada. Esse
U

A poesia de Charles Baudelaire (1821-1867)


movimento reverbera no aumento das desigual-
pode nos ajudar a compreender a ideia de deriva.
dades entre ricos e pobres. Sobre essa relação
Sugerimos a leitura do poema A uma passante
Milton Santos nos diz:
(disponível em: <w w w.ufrgs.br/psicoeduc/
Na cidade “luminosa”, moderna, hoje, a “natu-
chasqueweb/poesia/baudelaire.htm>; acesso em:
G

ralidade” do objeto técnico cria uma mecânica


1º jan. 2021). Baudelaire viveu Paris de meados
rotineira, um sistema de gestos sem surpre-
do século XIX e a sua poesia nos apresenta o
sas. Essa historicização da metafísica crava
andarilho (flâneur) – figura sem pressa e atenta
no organismo urbano áreas constituídas ao
a todos os detalhes, surpresas e prazeres da
sabor da modernidade e que se justapõem,
rua – em forte contraste com o indivíduo das
superpõem e contrapõem ao uso da cidade
cidades industriais europeias em expansão
onde vivem os pobres, nas zonas urbanas “opa-
naquele momento. Esse personagem foi bastante
cas”. Estas são os espaços do aproximativo e
explorado para evidenciar a sujeição do indivíduo
da criatividade, opostos às zonas luminosas,
moderno ao tempo cada vez mais intenso e veloz.
espaços da exatidão.
Ainda na Europa, mas em meados do século
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4. XX, artistas e intelectuais se organizaram em
ed. São Paulo: Edusp, 2006. p. 326.
um movimento conhecido como Internacional

47
Situacionista. Críticos à sociedade de consumo e A deriva então é um perambular orientado

D
aos modelos autoritários de Estado, acreditavam por uma atitude criativa e não ordenada, mas,
ser necessário alterar a ordem social pelo cotidia- como Debord aponta, não é um caminhar alheio
no e pela reinvenção das suas relações. Um dos à integridade física de quem se propõe a ser tran-
métodos situacionistas era justamente a deriva: seunte. Inclusive, cabe refletir sobre o quão dife-

L
caminhar ao acaso pela cidade como forma de rente serão essas correntes constantes de acordo
estimular outras interpretações para a realida- com o corpo que projeta seu caminhar pela cida-
de. A potência da experiência do perambular era de. Mulheres, negros e negras, e LGBTQI+ podem
fortalecida por outro princípio, a intervenção no mergulhar nas ruas da mesma forma que homens

N
espaço urbano frente ao cotidiano. brancos cisgêneros e heteronormativos?
O exercício em uma pergunta: Você já peram-
Ordem da PM determina revista em pessoas
bulou pelo entorno da escola em que trabalha?
“da cor parda e negra” em bairro nobre de
Campinas (SP)

P
CONSIDERAÇÕES SOBRE OCUPAR (ESTAR) (N)A RUA
A PM (Polícia Militar) de Campinas (93 km de
São Paulo) determinou, em uma OS (Ordem de
ƒƒ Andarilhos e andarilhos, andarilhas, an-
Serviço), de 21 de dezembro [de 2013], que seus
darilhes…
integrantes abordassem jovens negros e par-
Guy Debord (1931-1994), um dos principais
dos, com idade entre 18 e 25 anos, na região do
IA
nomes desse movimento, explica a deriva:
bairro Taquaral, uma das áreas mais nobres da
[...] a deriva se apresenta como uma técnica de
cidade. Segundo a determinação, dirigida ao
passagem rápida por ambiências variadas [...]
Comando Geral de Patrulhamento da região,
e a afirmação de um comportamento lúdico-
pessoas que se enquadrem nessa categoria são
construtivo, o que torna absolutamente oposto
consideradas suspeitas de praticar assaltos a
às tradicionais noções de viagem e de passeio.
casas na região e devem ser abordadas prio-
[...] A parte aleatória não é tão determinante
ritariamente.
U

quanto se imagina: na perspectiva da deriva,


SCHIAVONI, Eduardo. Ordem da PM determina
existe um relevo psicogeográfico das cidades, revista em pessoas “da cor parda e negra” em bairro
como correntes constantes, pontos fixos e tur- nobre de Campinas (SP). UOL, São Paulo, 23 jan. 2013.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/
bilhões que tornam muito inóspitas a entrada ultimas-noticias/2013/01/23/ordem-da-pm-determina-
revista-em-pessoas-da-cor-parda-e-negra-em-bairro-
ou saída de certas zonas.
G

nobre-de-campinas-sp.htm>. Acesso em: 1º jan. 2021.


DEBORD, Guy. A teoria da deriva. In:
JACQUES, Paolo. Apologia da deriva. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 87.
ALEXANDRE BECK

4 8
O CORPO É POLÍTICO
Em Campinas, uma ordem interna de serviço As situações aqui relatadas reforçam o nosso

D
da polícia militar foi exposta pela mídia e reforça convite de ocupar as ruas: essa ocupação precisa
a tese de que há correntes diferentes para corpos estar atenta à normatização dos gestos repetiti-
diferentes em deriva pela cidade. A Ordem de vos da escola e da cidade moderna e também não
Serviço explica ser necessário providenciar que: deve ser alheia às correntes permanentes (de cor e

L
gênero demarcadas) da cidade – aliás, correntes
[...] a viatura do Taquaral (AISP 208-AB) rea- em constante tensionamento para que sejam
lize o patrulhamento preventivo e ostensivo rompidas. Para alguns, é óbvio marcar essa po-
(saturação) [...] focando em abordagens a tran- sição, porém, para outros, essa preocupação não

N
seuntes e em veículos em atitude suspeita, es- é latente; dessa maneira, trata-se de um conteú-
pecialmente indivíduos de cor parda e negra do da vida social que influencia a produção do
com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os território: se a você não se aplica, com certeza
quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indiví- se aplica para algum dos alunos que sai a campo
duos na prática de roubo a residência daquela

P
com a turma.
localidade.
Ordem de Serviço da Polícia Militar do Estado de ƒƒ Território como abrigo e os espaços co-
São Paulo apud SCHIAVONI, Eduardo. Ordem da
PM determina revista em pessoas “da cor parda e muns
negra” em bairro nobre de Campinas (SP). UOL, São
Paulo, 23 jan. 2013. Disponível em: <https://noticias.
Quando Milton Santos define o território
IA
uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/23/ como abrigo, ele não está necessariamente falan-
ordem-da-pm-determina-revista-em-pessoas-
da-cor-parda-e-negra-em-bairro-nobre-de- do do que a palavra “abrigo” por si só representa,
campinas-sp.htm>. Acesso em: 1º jan. 2021. mas pensando um pouco sobre o sentido de abri-
go como elemento marcante para a resistência
Na canção Cabô, a artista Luedji Luna pergun-
cotidiana (histórica) ao extermínio de corpos
ta “Cadê menino?” (disponível em: <www.letras.
negros e indígenas (necropolítica).
mus.br/luedji-luna/cabo/>; acesso em: 1º jan. 2021),
Para pensar sobre esse abrigo, vamos dialogar
em uma referência à situação abordada na tira
U

com o sociólogo Muniz Sodré (1942-); em sua obra


do Armandinho: estar na rua é uma situação de
O terreiro e a cidade, ele explica que, para as classes
perigo para a população negra, especialmente jo-
não hegemônicas, o espaço é fundamental; assim,
vem, como se pode observar na Ordem de Serviço
o povo negro, sequestrado na África para ser
da Polícia Militar. A dura realidade nos versos de
escravizado nessas terras, irá aqui reterritoriali-
G

Luna também está expressa em números pelo


zar seu lugar de origem por meio dos terreiros.
Atlas da violência: em 2018, 75,7% das vítimas de
Portanto, para quem foi arrancado de sua terra e
homicídios foram pessoas negras.
expropriado do acesso à terra, o espaço é catego-
Isso nos faz retomar o diálogo que fizemos
ria hegemônica (e não o tempo): essa relevância
sobre a necropolítica a partir da obra de Achille
vai se dar pela criação de lugares de interação.
Mbembe. Há corpos que estão sujeitos à morte a
O autor também explica que esses lugares de
todo o tempo e a cor da pele é um fator determi-
interação são construídos considerando uma “no-
nante para dizer quais são esses corpos. Assim, os
ção africana de um espaço plástico, que se refaz
corpos não ocupam a rua sujeitos à mesma con-
simbolicamente”. Essa plasticidade só é possível
dição de manutenção da segurança e integridade.
devido aos corpos negros construírem no espaço
o sagrado negro-brasileiro, como:

49
[...] algo que refaz constantemente os esque- Ampliar a compreensão do conceito é o pri-

D
mas ocidentais de percepção do ou pelo es- meiro passo para perceber mais elementos de
paço, os esquemas habituais de ver e ouvir. onde caminhamos. Aliás, neste momento, pode
Ele fende, assim, o sentido fixo que a ordem ser interessante resgatarmos o entendimento
industrialista pretende atribuir aos lugares miltoniano do tempo lento.

L
e, aproveitando-se das fissuras, interstícios, A pressa é inimiga da paisagem
infiltra-se. Verso de poema de Américo Jorge (Sarau
DiverCidade, Itaquaquecetuba-SP, 2014).
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social
negro-brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2019. p. 77.
A poética de Jorge Américo poderia andar

N
Esses espaços remetem ao território do abri- junta da canção Estrada de Canindé (composição
go de Milton Santos; tanto é que, não por acaso, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), que relata
Muniz Sodré dialoga com o geógrafo ao dizer os elementos da paisagem que, para serem per-
que esse espaço: cebidos, “o cristão tem que andar a pé”. São duas

P
[...] [que] aos olhos das elites parece irracional inspirações em tempos e espaços muito distintos:
e passível de “correção educacional”, é visto do a canção de Luiz Gonzaga aborda o meio rural
lado popular como uma oportunidade para em sua infância, na primeira metade do século
decisões autônomas [...]. Nesses espaços “co- XX, enquanto o poeta Jorge Américo, no início
muns” [...] o sagrado tem, no entanto, existido do século XXI, tem como contexto de sua obra a
IA
em toda a sua plenitude. metrópole paulista – ele é parte do movimento
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social de literatura marginal (sua poesia pode ser en-
negro-brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2019. p. 79.
contrada com maior chance em algum sarau na
Zona Leste de São Paulo).
Muniz e Milton nos ensinam que, para ir a
Para além da interpretação sobre a lentidão
campo, é necessário romper com os óculos das
dos corpos na apropriação dos lugares, o tempo
elites que, porventura, algum de nós possa es-
lento, nos termos de Milton Santos, possibilita
tar usando. De forma que a rua que se pretende
U

juntar essa análise com a discussão sobre a fes-


apreender seja aquela que foge da métrica das
ta e a subversão que ela representa em algumas
“cidades luminosas”.
situações. A banda mineira “A fase rosa” tem um
disco nomeado Homens lentos, com composições
ƒƒ Sobre o tempo e a paisagem
G

que dialogam com o sentido de resistência à ex-


Ao caminhar, temos a oportunidade de nos
clusão, já que a aceleração do ritmo de vida está
aventurar pela categoria geográfica da paisagem,
imbricado com o funcionamento do modo capi-
lembrando que, para a Geografia:
talista de produção. Assim, uma interpretação
Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão
interessante é de que a rapidez percebida pelo
alcança, é a paisagem. […] Não é formada ape-
poeta Jorge Américo em sua vivência paulistana,
nas de volumes mas também de cores, movi-
em relação à lentidão rural da canção do “rei do
mentos, odores, sons etc.
baião”, é uma implicação da inovação nos trans-
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço
habitado. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 61. portes e nas comunicações, que possibilita ace-
lerar a reprodução do capital.

5 0
O CORPO É POLÍTICO
Outra interpretação pode ser mais bem ƒƒ Finalmente, à deriva

D
apreendida nos versos de uma das canções do Agora, depois de tudo isso, vamos para a rua?
álbum, Colorida, que aborda o carnaval como uma Nossa proposta é que você faça uma deriva no
expressão das dores e ausências da vida social, entorno da escola. Assim, você pode começar
para muito além de um produto da indústria resgatando a ideia da deriva dos situacionistas,

L
cultural e do turismo: “E ninguém só ri”, diz um contextualizando-a em nosso tempo e espaço, a
dos versos. Ele pode ser uma ponte para ligar a partir dos apontamentos que fizemos sobre as
questão da apropriação dos lugares, já que a festa especificidades de cada corpo no mundo e das
do carnaval, dentro desse contexto, é uma enorme potências que podemos encontrar nos “espaços

N
subversão das normas de uso do espaço público, comuns”.
e também cabe na “lentidão” a que se refere o Com as reflexões aqui sugeridas, dentro da
termo miltoniano “homens lentos”. sua realidade possível, saia para caminhar con-
Nosso convite é de ocuparmos a rua. Cabe, siderando o território da escola como recurso

P
assim, uma reflexão sobre o que ocorre ao fa- para promoção de novos espaços do aprender.
zermos isso, já que tanto nossos corpos como as Anote suas principais impressões desse momen-
ruas estão nutridos das ideias presentes em nosso to transeunte para alimentar as etapas seguintes
tempo histórico. Na letra da canção Um corpo no do trabalho. Esse é um momento de avaliação
mundo, a compositora e cantora Luedji Luna ofe- de como tais discussões reverberam em cada
IA
rece um ingrediente incrível para correlacionar um de nós. Assim, não se esqueça de registrar
essas ideias todas, ao sintetizar, com muita sen- as sensações que seu corpo enfrentou durante
sibilidade e profundidade, a reflexão da des(re) a caminhada, além das descobertas e encontros
territorialização na cidade pelos corpos negros que foram possíveis.
em movimento: “Um corpo só / Tem cor, tem
corte / E a história do meu lugar”. Sugerimos a O QUE TEM NA RUA DA ESCOLA?
exibição do videoclipe da canção em sala de aula, Um professor, na condição de alienígena no
U

de forma que os alunos possam fruir a melodia território dos estudantes, pode ter uma percep-
e também discutir os elementos dramatúrgicos ção limitada de manifestações de conf lito ou
que compõem o vídeo (disponível em: <https:// solidariedade entre os jovens com quem convive
youtu.be/V-G7LC6QzTA>; acesso em: 1º jan. 2021). diariamente. Pode não ser possível reconhecer a
O corpo que “tem cor, tem corte” pode “cidade” à qual os adolescentes pertencem ou da
G

ser bem contextualizado em uma discussão qual usufruem. Dessa forma, como esse professor
bastante espacial, a mobilidade urbana. O pode desvendar o território da escola e dos seus
perfil dos usuários de bicicleta, por exemplo, estudantes?
é major ita r ia mente bra nco; enegrecer o Um primeiro recurso já foi apresentado: ao
sistema cicloviário passa por desconcentrar os caminhar no entorno da escola, com um olhar
investimentos em infraestrutura e democratizar atento e sensível, podemos desvendar as potên-
a circulação metropolitana, como explica a cias e fragilidades da vizinhança que nos recebe
cicloativista Lívia Suarez em sua conferência diariamente. Mas há outras formas de desvendar
no TEDx Talks (disponível em: https://youtu.be/ esse entorno, tanto objetivamente como, mais
u1UffCjANxk; acesso em: 1º jan. 2021). A discussão uma vez, subjetivamente.
proposta por ela também amarra muitas das
ideias aqui discutidas.

51
Um recurso para o levantamento de uma rea-

D
lidade mais objetiva (demográfica) é o levanta-
mento de dados sobre a localidade, um movi-
mento interessante, e que, porém, muitas vezes
esbarra em recursos e habilidades técnicas para

L
manusear dados espaciais.
Por meio do site do IBGE, é possível explorar
dados censitários ou de outras pesquisas amos-
trais; além disso, dependendo do estado e da cida-

N
REPRODUÇÃO
de, é possível acessar bases com dados tabulares
e espaciais. Uma alternativa interessante para
manusear dados demográficos com facilidade é a
plataforma Cultura Educa (disponível em: <http://

P
culturaeduca.cc/>; acesso em: 1º jan. 2021). Nela
é possível visualizar as informações dos setores
censitários no raio de 1 km de todas as escolas
do país, além de contar com ferramentas de ma-
peamento colaborativo para a rede de agentes da
IA
escola no território.
Porém, estando dentro na escola, buscando
desvendar o território do abrigo (espaço plástico,
espaço comum, os lugares de interação), o melhor O Quebrada Maps é uma metodologia
caminho é ouvir os alunos. Com atenção coti- experimental de diálogo com os territórios
diana, é possível ouvir suas histórias e descobrir de periferia a partir de mapas críticos e
seus afetos, onde realizam sua vida. Nessa escuta, participativos. Ela tem sido desenvolvida dentro
e fora de escolas da periferia da cidade de São
U

pode-se inclusive descobrir que alguns alunos


moram na vizinhança imediata da escola enquan- Paulo (SP) por um coletivo de pesquisadores
e alunos da educação básica. Um resumo das
to outros são até mais estrangeiros do que você.
técnicas de mapeamento participativo que o
Boas conversas já nos trazem um ótimo cená-
grupo utiliza está sistematizado em um guia
rio, sobretudo em um plano subjetivo. Para apro-
G

metodológico que pode ser acessado no blog do


fundar essas impressões, a escuta pode ganhar
projeto (disponível em: <https://quebradamaps.
um recurso para mediar o diálogo sobre e com o
wordpress.com/>; acesso em: 1º jan. 2021).
território: os mapas participativos são uma gran-
de ferramenta para ampliar essas descobertas.
Uma metodologia de mapeamento consiste
em construir um mapa de determinado terri-
tório a partir das informações de quem vive (n) mais recursos tecnológicos, outras se propõem a
aquele território. Preocupadas em revelar outras ser mais simples e acessíveis.
narrativas espaciais e democratizar a linguagem Conhecer essas técnicas para adaptar à rea-
cartográfica, ao longo das últimas décadas, as lidade da sua escola é um ótimo caminho para
metodologias têm desenvolvido diversas técnicas mapear as relações territoriais dos estudantes
para elaborar mapas coletivos. Algumas utilizam que encontramos cotidianamente.

5 2
O CORPO É POLÍTICO
PARA ONDE QUERO LEVAR MINHA AULA? É importante sinalizar que Célestin Freinet

D
Esse momento final é uma proposta de não trabalhava sozinho; ele integrava o movi-
atividade, mas também traz uma derradeira mento Escola Moderna, com outros profissionais
contribuição. Debatemos um pouco a ideia igualmente preocupados em superar o muro da
de trabalho de campo e sua correlação com escola, como Francisco Ferrer y Guardia, funda-

L
a Geografia; em seguida, considerando toda dor, em 1901, da Escola Moderna de Barcelona,
discussão até aqui, relataremos de maneira até hoje apontada como uma referência de pro-
organizada os espaços para onde você e sua turma posta de uma educação libertária.
podem levar os corpos em uma determinada aula. Ampliando esses personagens para além do

N
plano das ações individuais, é razoável afirmar
ƒƒ Trabalho de campo: escola e Geografia que as escolas anarquistas são as que, já no início
do século XX, colocavam o trabalho de campo
O pedagogo Célestin Freinet (1896-1966)
como prática corriqueira na escola, atribuindo a
argumentava que a escola precisava se abrir para

P
ele o significado de fortalecer as capacidades de
a vida e criticava diversas práticas escolares:
transformação da sociedade por parte do aluno.
Lamento os educadores que são apenas trata- A proposta de que as aulas também podem
dores e pretendem tratar metódica e cientifi- acontecer na rua, de acordo com a geógrafa
camente os alunos, encerrados em salas onde, Nídia Nacib Pontuschka, foi apropriada pelo
felizmente, permanecem apenas algumas ho-
IA
movimento da Escola Nova na perspectiva de
ras por dia. [...] Conserve nos seus alunos o integração ao território, e não da transformação
apetite natural. Deixe-os escolher os alimentos como propunha a Escola Moderna ou as escolas
no meio rico e propício que você lhes prepara. anarquistas.
Então, você será um educador. Pe n s a ndo a G e og r a f i a a c a d ê m ic a , o
FREINET, Celestin. Pedagogia do bom senso. 7. trabalho de campo tem um lugar central na
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 39.
fundamentação da disciplina. Nas raízes da
U

Freinet propõe inserir no cotidiano da prática Geografia brasileira, destaca-se o geógrafo


pedagógica “expedições” diárias para além da Pierre Monbeig (1908-1987), que entende que,
escola, buscando acabar com o isolamento do além de fazer descrições, o trabalho de campo
aluno na sala de aula, mas também fazer uma poderia contribuir para estabelecer associações
aproximação com a comunidade e estimular a entre sociedade e natureza. Além disso, seguia
G

observação e a descoberta da realidade pelos a corrente francesa, que à época se instalava


próprios alunos, sem mediação dos manuais no Brasil, um país muito distinto daquele que
escolares (em suas palavras, enfadonhos e fundamentava suas categorias de análise. Isso
desinteressantes). Essa proposta intitula-se “aula- potencializa a inclinação de Pierre Monbeig para
passeio”, porém existem outras denominações a prática de observações em campo. Sobre esse
para essa prática pedagógica, como aula de assunto, o geógrafo Aziz Ab’Sáber (1924-2012)
campo, estudo do meio ou trabalho de campo. relata que:

53
Monbeig nos alertava que toda a teorização precoce acabava por ser repetitiva e in-

D
fértil. Era necessário iniciar-se por trabalhos analíticos sobre temas reais, percebidos
no teatro geográfico das atividades humanas, quer no mundo rural, quer no urbano.
Antes de se iniciar nos trabalhos de campo e na percepção das relações entre os ho-
mens e a terra, e os homens e a sociedade, era impossível teorizar. Foi um lembrete

L
oportuno e definitivo para a formação de jovens geógrafos que um dia teriam de tratar
das sérias e diferenciadas questões regionais brasileiras.
AB’SABER, Aziz. Pierre Monbeig: a herança intelectual de um geógrafo. Revista
de Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, 1994. p. 226. Disponível em: <www.
revistas.usp.br/eav/article/view/9699/11271>. Acesso em: 1º jan. 2021.

N
As colocações de Monbeig para o trabalho de campo na pesquisa geográfica acadêmica
também valem para a Geografia escolar (até mesmo em outros campos disciplinares): assim
como a multiplicidade da realidade continental brasileira não cabia em uma teorização

P
homogeneizante, na visão do geógrafo, isso também é válido para nós professores hoje.
O trabalho de campo amplia o saber geográfico, não só de maneira conteudista mas
com a possibilidade de trazer o território em que a escola está inserida para o centro do
diálogo. Ele também permite dar atenção a especificidades e emergências de determinada
localidade.
IA
O estudo do meio é um dos métodos que pretendem apreender o espaço em suas múlti-
plas dimensões; a sua historicidade, as relações que determinado espaço mantém com
outros e as problemáticas vividas pela população em práticas efetivadas nas escolas.
PONTUSCHKA, Nídia Nacib. O conceito de estudo do meio transforma-se... em tempos de
escolas diferentes, em escolas diferentes, com professores diferentes. In: VESENTINI, José W.
(org.). O ensino de Geografia no século XXI. 7. ed. São Paulo: Papirus Editora, 2004. p. 267.

Essa abordagem da Geografia ganha potência e é mais uma alternativa à superação


U

daquela que Yves Lacoste chamou de disciplina simplória e enfadonha. Elas nos convida a
temas percebidos na observação do real e, mediada pelas provocações da Geografia, pode
romper com a naturalização de interpretações de cenas cotidianas. Voltando à canção de
Jaloo, A cidade:
É fácil se emocionar
G

Com mundo internacional


Mas na esquina de casa
Mendigo mora em jornal
JALOO. A cidade. Skol Music, 23 out. 2015. Disponível em: <https://
youtu.be/rVu6CQ _5FbY>. Acesso em: 31 dez. 2020.

Os versos de Jaloo chamam atenção para o real no cotidiano; questionam também o


excesso de teorização em detrimento do empírico. Um trabalho de campo sugere uma ex-
periência física, no real, no cotidiano. Ao pisar no chão, a sua demanda não deve ser mais
“internacional”, e sim local. Experiências diversas convidam a essa inversão de prioridade
e colocam a rua como central em sua construção metodológica.

5 4
O CORPO É POLÍTICO
ƒƒ Espaços para ter uma aula

D
Propomos que seja organizado um “catálogo” de lugares que você e sua turma desco-
briram durante essa experiência. O exercício é simples: recordar as descobertas e então
relacioná-las de maneira organizada em algum formato que possa ser resgatado em outros
momentos. A seguir, sugerimos um modelo de ficha, que pode ser reproduzido no papel,

L
em um planilha eletrônica ou até em uma plataforma de mapa digital.

Atividade Que nome você daria para essa atividade?

Experiência Como descrever essa experiência para o corpo?

N
Considerações Anote as possibilidades e as imprevisibilidades para essa prática.

Conteúdo Existe algum conteúdo disciplinar nessa experiência?

P
Considere relacionar esses lugares não apenas pautado por um conteúdo predefinido
mas também pela experiência possível. Considere também que há experiências que não
são um destino, mas o próprio deslocamento. O registro é simples e serve principalmente
para que não percamos nossas ideias e vontades.
Boa aula!
IA
U
G

55
Capítulo 2

D
Estado, território

L
e poder

N
P
IA
U
G
D
L
“Território” é uma categoria potente de análise geográfica. Na Geografia
escolar, ele é exageradamente presente como um elemento do Estado, seu do-
mínio territorial, mas não necessariamente discutido. Isso porque a Geografia

N
escolar há muito colabora com a naturalização do Estado e seu território – nós
dizemos, por exemplo, que Cabral aportou no Brasil em 1500, tamanha é nossa
dificuldade em estabelecer uma historicidade para o território do país; é como
se essas terras emersas sempre tivessem sido o Brasil.

P
Neste capítulo, partilhamos com você algumas estratégias em sala de aula
que promovem a reflexão sobre as relações de poder e suas implicações na
produção do espaço. Entendemos que são ações didáticas significativas para
contribuir com a desnaturalização do olhar sobre o domínio do Estado.
Começamos com uma discussão urgente: as relações de poder na sala de
IA
aula e na escola. Negociar o funcionamento das aulas com os alunos é cada
vez mais um caminho trilhado por professores do ensino médio; ler o espaço
escolar nos parece um ponto de partida para esses acordos pedagógicos.
Na segunda dimensão, tomamos mais “ao pé da letra” a demanda apresen-
tada na competência específica 2 da área de Ciências Humanas e Sociais Apli-
cadas da BNCC:
Analisar a formação de territórios e fronteiras em diferentes tempos e espaços, median-
U

te a compreensão das relações de poder que determinam as territorialidades e o papel


geopolítico dos Estados-nações.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília, DF: MEC; SEB, 2018. p. 574 e 576. Disponível em: <http://basenacionalcomum.
mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020.
G

Propomos o uso do Barômetro de conflitos, publicação anual que inventaria e


classifica conflitos intra e entre Estados, para colocar em relevo as relações de
poder em distintas escalas que participam do funcionamento do Estado-nação.
A terceira dimensão propõe um deslocamento do olhar: depois de analisar
fronteiras do Estado-nação, o convite é para observar fronteiras em ação na
cidade, por meio de um estudo de caso sobre o shopping center brasileiro.
Por fim, trazemos uma parte da metodologia do Globalization and World
Cities (GaWC) para que os alunos possam investigar a inserção de territórios
dos Estados sul-americanos na economia globalizada, dentro de um contexto
de debate sobre a tensão que a padronização dos fluxos econômicos impõe ao
funcionamento do Estado-nação.
D
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS.

RELAÇÕES DE PODER EM SALA DE AULA

L
N
Durante o período de formação, muitos licen- postas de 8 carteiras postas uma após a
ciandos acreditam na máxima: “Da porta da sala outra.
de aula para dentro, eu posso fazer o que quiser”. Existem alguns experimentos muito interes-
A ideia até pode nascer da boa-fé – no intuito de santes para desnaturalizar nosso olhar a respeito

P
driblar os entraves do sistema escolar brasileiro da configuração do espaço escolar. Um deles é
à aprendizagem –, mas costuma gerar enorme modificar a disposição das carteiras, desfazendo
frustração em professores recém-ingressados nas a organização matricial típica da sala de aula.
redes de ensino. Eles acreditam que, dentro do Também é possível mudar a localização da mesa
espaço da sala de aula, podem criar regras que do professor, deixando-a no fundo da sala, por
IA
vão modificar características do funcionamento exemplo. A ideia é deixar o espaço aberto para
da escola consideradas entraves à boa qualidade os alunos ocuparem livremente; uma fotografia
do aprendizado. Pode levar um tempo até que os é tirada antes da chegada dos alunos para que
professores consigam observar que ali, naquela eles possam compará-la com a situação pós-ocu-
sala de aula, há um grupo de pessoas submetido a pação. Frequentemente, os jovens ficam bastante
normas e valores estabelecidos em diferentes es- perdidos ao se darem conta de que, mesmo não
feras de poder e impostos a todas as salas de aula havendo um pedido formal para que as carteiras
U

do país. Como professores de Geografia, podemos fossem alinhadas, eles inconscientemente reto-
reconhecer no espaço escolar alguns indicativos maram a configuração em fileiras.
desse processo, como listamos a seguir: Os professores de História, Sociologia e Fi-
losofia são, claro, bem-vindos a essa discussão.
G

ƒƒ Em quase todas as escolas, os alunos são Uma versão com leves ajustes pode ser realiza-
organizados em grupos fixos, que seguem da nos encontros de formação continuada da
a mesma grade de aulas e precisam se unidade escolar, para que possa haver troca de
deslocar conjuntamente para espaços pre- percepções entre os diferentes componentes das
viamente determinados. Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Algumas
perguntas podem estruturar a conversa sobre o
ƒƒ As salas de aulas contam quase sempre que aconteceu no experimento: Que práticas es-
com uma ou duas lousas e 41 mesas e ca- colares explicam a organização das carteiras em
deiras (ou carteiras com braço para os fileiras? Por que há uma lousa e uma mesa para o
alunos e um mobiliário exclusivo para professor na parede para a qual os alunos estão
marcar a distinção do professor), dispos- direcionados? Por que os alunos veem a nuca do
tas como uma matriz, com 5 fileiras com- colega à frente e não seu rosto?

5 8
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
D
L
N
R AWPIXEL .COM/FREEPIK

P
IA
Esta é a configuração padrão de uma sala de aula em que você pensa quando escuta o termo
“sala de aula”? Que relações de poder são expressas nessa configuração espacial?
U

Outro experimento interessante diz respeito mente evidente que estamos conversando sobre
aos fluxos dos alunos dentro da escola. Usando relações de poder. Nós, professores de Geografia,
um aplicativo de celular que registra o desloca- lemos essas relações no espaço que produzimos
mento (há diversos aplicativos de corrida que socialmente (nesse caso, o espaço escolar). Há um
G

contam com essa função), os alunos podem re- controle do tempo e do uso do espaço implícitos
gistrar os itinerários que realizam durante um à experiência escolar; é também um controle so-
dia escolar e representá-los sobre uma planta do bre o corpo, que precisa estar em uma posição
prédio escolar. De um modo geral, os alunos se fixa durante a aula, só podendo se deslocar para
deslocam da sala de aula para o banheiro, para determinados lugares e sob permissão de uma
o local do recreio e para o portão: esses são os autoridade escolar. Em 1978, um grupo de edu-
fluxos mais significativos. cadores lançou na Europa uma publicação em
Esse mapa de itinerários revela a apropriação que expõem as engrenagens da escola, mostrando
que os alunos fazem do espaço escolar: alguns essas e outras relações de poder que constituem a
cômodos da escola nem chegam a ser conhecidos instituição escolar. Um trecho do material, publi-
pelos alunos, o que demonstra uma alta rigidez no cado no Brasil em 1980, descortina os impasses a
uso do espaço. É provável que já esteja razoavel- que nós professores estamos submetidos.

59
O que são os professores? De acordo com os autores da publicação, nós

D
Todo-poderosos em suas aulas, senhores do professores estamos imprensados entre pelo me-
destino das crianças que lhe são confiadas, nos três papéis: (1) somos “guardiões” do funcio-
como acreditam alguns pais? namento do sistema escolar e sofremos, portanto,
Ou, ao contrário, simples executores a serviço a ação das normas institucionais, dos programas

L
de uma instituição da qual são apenas correias curriculares e da pressão de alguns pais (os que
de transmissão? detêm poder); (2) somos parte de um coletivo de
Na verdade, o professor está enredado num professores que não se comporta como um bloco
sistema de normas e controles tão forte quan- homogêneo e é majoritariamente composto de

N
to o que ele impõe aos seus alunos. colegas “conformados”, que resistem a mudan-
Uma parte dos professores aceita esse siste- ças; (3) por fim, também somos quem impõe aos
ma, assumindo-o muitas vezes a tal ponto que alunos o “sistema de normas e valores”, ou seja,
estabelece em sua classe normas ainda mais somos os “tiranos”, os agentes do Estado.

P
pesadas do que as que a própria instituição Nós não atuamos sobre um conjunto enorme
impõe. de condições objetivas do funcionamento da es-
Outros, ao contrário, desejam aproveitar os cola: são 40 alunos por turma; são dois tempos
espaços livres, criar alguma coisa nova. de 50 minutos de aula por semana (com alguma
Na verdade, qual é a margem de liberdade que diplomacia, pode-se negociar com quem elabora
IA
eles têm... o horário de aulas uma “dobradinha”); há regras
1 ... diante das autoridades, para definir quem está habilitado para esse ou
guardiões mais ou menos intransigentes das aquele componente, já que se trata de uma car-
normas da instituição? reira regulamentada pelo Estado; também há
2 ... diante dos colegas, uma matriz de componentes, dias letivos por ano
cujo conformismo é incomodado por qualquer e horas mínimas de aulas oferecida pela Lei de
tentativa de mudança? Diretrizes e Bases da Educação (LDB) como pa-
U

3 ... diante dos pais, râmetro para a definição do funcionamento das


fiadores por vezes ainda mais eficazes das escolas. Nós atuamos parcialmente sobre a ma-
normas escolares e sociais? É verdade que não triz curricular da rede de ensino à qual perten-
é de todos os pais que se tem medo: temem- cemos: em algumas redes, há forte engessamento
se apenas os que são capazes de se expressar do programa curricular, com intervenção até
G

bem, os que escrevem para os jornais, os que mesmo nas situações de ensino e aprendizagem a
podem utilizar o poder de que dispõem. serem realizadas em sala de aula (mas há também
4 ... diante dos programas, redes de ensino que oferecem parâmetros para
programas tirânicos aos quais é necessário a elaboração do plano de trabalho docente sem
curvar-se a qualquer preço, por causa do con- restringir demais as possibilidades de atuação).
trole social, por causa do ano seguinte – por Além disso, há, ainda, a disponibilidade ou não
causa do professor do ano seguinte de quem de materiais didáticos, que tampouco está sob
se teme o julgamento – programas que são controle dos professores, o que leva uma parte
acusados de todos os males... expressiva do corpo docente a pagar por eles com
HARPER, Babette et al. Cuidado, escola!: seus recursos; em muitos casos, são materiais
desigualdade, domesticação e algumas saídas.
26. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 66-67.
concebidos pelos próprios professores.

6 0
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
Então, sobre o que nós professores atuamos? convém a certos grupos se as demais partes não

D
Quais são as práticas escolares sobre as quais nós conhecem o regimento que estrutura a escola.
temos ampla interferência? Buscar responder a Ainda assim, cada vez mais chegam à impren-
essas perguntas pode ter levado você a formular sa experiências escolares de democratização da
novas questões, não? instituição, nas quais alunos e seus responsáveis

L
Uma das questões decorrentes de se pensar são incentivados a participar das decisões sobre
sobre o alcance de nossa atuação na escola diz o funcionamento da escola. Os pedagogos fre-
respeito ao papel dos estudantes nesse processo. quentemente insistem, nas formações inicial e
Será que partilhar com os alunos essa reflexão continuada de professores, na proposta de um

N
sobre as relações de poder na sala de aula, assim acordo pedagógico entre professores e alunos
como sobre as condições objetivas de funciona- na sala de aula. Alguns professores, contudo,
mento da escola, modifica o ambiente de sala entendem que se trata de prescrever regras de
de aula? Você poderia perguntar a seus alunos comportamento em sala de aula por meio de

P
sobre o que eles entendem das regras da escola uma falsa participação: os alunos são instados a
e é provável que perceba que grande parte deles estabelecer quais comportamentos são inaceitá-
chega ao ensino médio conhecendo muito pouco veis, atribuindo punições a quem os realizar na
a respeito delas. sala de aula; o professor é o guardião do sistema
A instituição escolar não é discutida dentro de punições e, não raro, pode receber ajuda dos
IA
das escolas. Mesmo nós professores aprendemos alunos para garantir que funcione. Entretanto,
de forma pulverizada o significado do conselho o acordo pedagógico é uma ferramenta muito
de classe ou até mesmo sobre os procedimentos mais potente do que esse uso restrito apresenta:
permitidos ou proibidos previstos no Estatuto negociar as regras de funcionamento das aulas e
da Criança e do Adolescente. Quem atua ou já dividir com os alunos a avaliação das situações
atuou em mais de uma unidade escolar de uma de ensino e aprendizagem promovidas em uma
mesma rede de ensino já deve provavelmente ter sequência didática são formas de comprome-
U

se deparado com regras distintas em cada unida- tê-los com sua própria aprendizagem. Entre as
de, que são legitimadas pela gestão escolar como ferramentas utilizadas para o desenvolvimento
sendo impostas por alguma instância superior, do acordo pedagógico, destaca-se a autoavaliação.
uma diretoria de ensino ou a própria secretaria O formulário de autoavaliação pode ser cons-
de educação. Isso significa que, se todos os en- truído com os alunos de forma a levantar infor-
G

volvidos estiverem realmente agindo de boa-fé, mações que darão subsídio para uma negociação:
um mesmo regulamento deu origem a interpre- você apresenta suas demandas, assim como as
tações distintas – e, consequentemente, a práti- condições objetivas da aula, e os alunos fazem
cas escolares diferentes. Raramente os alunos ou outras demandas, relativas a seu aprendizado:
seus responsáveis legais recebem um manual de Do que eles precisam para aprender Geografia?
regras da escola quando realizam sua matrícula Com uma plataforma de quiz (Mentimeter, Slido),
anual. Se estamos conversando sobre relações os alunos poderão votar nas propostas e chegar
de poder, é conveniente destacar que é em meio a uma ação a ser implementada no bimestre; ao
a essa ausência de comunicação sobre as regras final desse período, pode-se repetir o processo,
que atuam os diferentes sujeitos que compõem com autoavaliação e nova rodada de discussão
a gestão e o corpo docente: é muito mais fácil para se chegar a uma nova ação para o bimestre
interpretar os regramentos de acordo com o que seguinte.

61
Democratizar as relações em sala de aula im- formadas, impulsionando, portanto, mudanças

D
plica, claro, informar aos alunos quais são as em outras escalas.
estruturas rígidas que comandam a experiência Utilizamos até aqui alguns termos-chave para
escolar, mas também abre caminho para uma uma análise do Estado-nação, como “poder” e
parceria muito benéfica à aprendizagem; profes- “território”. Por isso, trazemos alguns trechos do

L
sores e alunos acordam práticas escolares possí- clássico do geógrafo Claude Raffestin, Por uma
veis na sala de aula, o que contribui, ainda, para geografia do poder, em que ele define esses termos.
pressionar o sistema escolar a aumentar a par- Observe como a relação professor-aluno em sala
ticipação de alunos nas decisões da escola. Isso de aula pode ser mais bem circunscrita nesse

N
cria um ambiente propício a levar as demandas contexto: o campo formado por professores e
também para as demais instâncias do sistema alunos é um campo de poder; e o espaço que essa
escolar, nas quais as condições objetivas são con- relação produz é territorial.

P
Em 2015, a rede estadual paulista anunciou que cada unidade escolar passaria a funcionar com apenas
um segmento da educação básica (séries iniciais, séries finais do ensino fundamental e ensino médio),
o que acarretaria a transferência compulsória de milhares de alunos. Alguns alunos decidiram ocupar
suas escolas, em Diadema e São Paulo, até que fossem ouvidos pelos gestores da secretaria de educação;
o movimento se expandiu rapidamente pela rede pública do estado e chegou a outros municípios do
IA
país. Chamou atenção a forma coletiva das deliberações e uma demanda forte por maior participação nas
decisões do sistema escolar, algo que pode ser interpretado como uma demanda por democratização das
relações de poder na escola.
U

ROVENA ROSA/AGÊNCIA BR ASIL


G

6 2
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
O que é o poder? não que englobe tudo, mas vem de todos os lu-

D
Se há uma palavra rebelde a qualquer defini- gares” [citação do filósofo Michel Foucault]. [...]
ção, essa palavra é poder. “Por quê? Por con- O poder se manifesta por ocasião da relação.
sistir em atos, em decisões, ele se representa É um processo de troca ou de comunicação
mal. É presente ou não, atual – em ato – ou quando, na relação que se estabelece, os dois

L
não” [citação do filósofo Henri Lefebvre]. Con- polos fazem face um ao outro ou se confron-
tudo, não é possível nos restringirmos a essa tam. As forças de que dispõem os dois par-
declaração de impotência que nos confina a ceiros (caso mais simples) criam um campo:
uma constatação de derrota. É preciso agir por o campo do poder. Para compreender isso,

N
meio de aproximações sucessivas. pode-se recorrer à imagem do ímã e dos frag-
[...] O Poder com uma letra maiúscula postula, mentos de limalha que se orientam e assina-
“como dados iniciais, a soberania do Estado, lam linhas de força. O campo da relação é um
a forma da lei ou da unidade global de uma campo de poder que organiza os elementos e

P
dominação; essas não são mais que formas ter- as configurações.
minais” [citação do filósofo Michel Foucault]. [...]
“Formas terminais”? A expressão é de grande O que é o território?
valor, pois dá conta dessa concepção unidi- Espaço e território não são termos equiva-
mensional do poder que quase obscureceu lentes. [...] O território se forma a partir do
IA
por completo a visão possível, que é incompa- espaço, é o resultado de uma ação conduzida
ravelmente mais rica. O “Poder”, longe de ser por um ator sintagmático (ator que realiza um
negligenciável, se torna mais familiar, mais programa) em qualquer nível. Ao se apropriar
marcante e também mais habitual quando de um espaço, concreta ou abstratamente (por
aparece envolto em sua dignidade de nome exemplo, pela representação), o ator “territo-
próprio. [...] O poder, nome comum, se esconde rializa” o espaço. [O filósofo Henri] Lefebvre
atrás do Poder, nome próprio. Esconde-se tan- mostra muito bem como é o mecanismo para
U

to melhor quanto maior for a sua presença em passar do espaço ao território: “A produção de
todos os lugares. Presente em cada relação, na um espaço, o território nacional, espaço físi-
curva de cada ação: insidioso, ele se aproveita co, balizado, modificado, transformado pelas
de todas as fissuras sociais para infiltrar-se redes, circuitos e fluxos que aí se instalaram:
até o coração do homem. A ambiguidade se rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos
G

encontra aí, portanto, uma vez que há o “Po- comerciais e bancários, autoestradas e rotas
der” e o “poder”. Mas o primeiro é mais fácil aéreas etc.”. O território, nessa perspectiva, é
de cercar porque se manifesta por intermédio um espaço onde se projetou um trabalho, seja
dos aparelhos complexos que encerram o ter- energia e informação, e que, por consequência,
ritório, controlam a população e dominam os revela relações marcadas pelo poder. O espaço
recursos. É o poder visível, maciço, identificá- é a “prisão original”, o território é a prisão que
vel. [...] O poder é parte intrínseca de toda re- os homens constroem para si.
lação. Multidimensionalidade e imanência do RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia
do poder. São Paulo: Ática, 1993. p. 51-
poder em oposição à unidimensionalidade e à
53 e 143-144. (Série Temas, v. 29.)
transcendência: “O poder está em todo lugar;

63
D
O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE.

AS ESCALAS DE ANÁLISE DOS


CONFLITOS ENTRE ESTADOS

L
N
“Estado”, “território” e “poder” são termos tão Internacional (disponível em: <https://hiik.de/>;
imbricados uns nos outros que seguramente nos acesso em: 14 dez. 2020). A cada ano, esse gru-
remetem imediatamente ao contexto dos confli- po publica um relatório apontando os conflitos
tos envolvendo Estados-nação. Nesse contexto, a ocorridos no ano anterior dentro de uma hierar-

P
Geografia escolar caminha a passos lentos, pois quização elaborada por eles e composta de cinco
ainda destaca conflitos de pouca repercussão no níveis de intensidade: disputa, crise não violenta,
mundo atual – é frequente encontrar capítulos crise violenta, guerra restrita e guerra. Para esse
de livros didáticos (e programas curriculares de coletivo científico
cursos de treinamento para vestibular) dedicados [...] um conflito político é uma incompatibi-
IA
a conflitos como a desintegração da Iugoslávia e lidade percebida das intenções entre indi-
a atuação de grupos de resistência na Irlanda e víduos ou grupos sociais. Essa incompatibi-
no País Basco em termos completamente desa- lidade emerge da presença de atores que se
tualizados, com baixíssima contribuição para a comunicam e agem em relação a determinados
compreensão das relações atuais entre os países objetos. Essas ações e comunicações são co-
no mundo. nhecidas como medidas, enquanto os objetos
Como, então, levar para a sala de aula análi- formam as questões relacionadas a diferenças
U

ses de conflitos atuais que realmente informem posicionais. Atores, medidas e questões são os
algo relevante a respeito das relações entre os atributos constitutivos do conflito político.
países no atual “ordenamento” mundial? Essa
não é uma tarefa simples, pois nós professores da O conceito de intensidade de conflito
G

educação básica contamos com apenas um terço


de nossa jornada para estudo e acompanhamen- 1 disputa
conflitos não baixa
to da bibliografia essencial de nosso campo do crise não violentos intensidade
saber. Uma estratégia eficiente nessas situações 2
DANIELLA BARROSO

violenta
é encontrar algum grupo acadêmico que esteja
3 crise
violenta
média
intensidade
produzindo continuamente relatórios e estudos
sobre o assunto, de forma que se possa levar para
4 guerra
restrita
conflitos
violentos
a sala de aula dados “quentes” sobre o assun- alta
to. Para acompanhar os conflitos entre Estados, intensidade
5 guerra
temos o Conflict Barometer (em tradução livre,
“Barômetro de conflitos”), publicação alemã do HEIDELBERG INSTITUTE FOR INTERNATIONAL
CONFLICT RESEARCH. Conflict Barometer 2019,
Instituto Heidelberg para Pesquisa de Conflito
Heildelberg, n. 28, 2020. p. 6. (Texto traduzido.)

6 4
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
Um grande número de pesquisadores é res- dos países em função de conflitos, entre outros.

D
ponsável por pesquisar dados e informações Os dois mapas a seguir informam o resultado da
sobre os países, como o emprego de armas, o manipulação desses dados e informações: eles
número de pessoas envolvidas diretamente nos expressam a classificação realizada pela equipe
conflitos, a quantidade de mortos em ações vio- do instituto em duas escalas distintas: em nível

L
lentas ou em consequência delas, o número de re- nacional e observando a divisão interna dos paí-
fugiados e pessoas forçadas a se deslocar dentro ses (estados, províncias etc.).

Conflitos em 2019

N
P
HEIDELBERG INSTITUTE FOR INTERNATIONAL CONFLICT RESEARCH/REPRODUÇÃO

IA
NM
0 2.025 km
U
G

NM
0 2.025 km

HEIDELBERG INSTITUTE FOR INTERNATIONAL CONFLICT RESEARCH.


Conflict Barometer 2019, Heildelberg, n. 28, 2020. p. 10-11.

65
A antiga canção do grupo carioca O Rappa

D
chamada Fogo cruzado tem uma estrofe que po-
deria muito bem circular junto com esses mapas:

REPRODUÇÃO
“Vivendo em fogo cruzado / Entre a Bélgica e a
Índia / Entre a Jamaica e o Japão / Entre o Congo

L
e o Canadá / Onde a guerra nunca tá”. O mapa
com a divisão interna dos países é o mais apro-
priado para uma análise de “onde a guerra está”:
ela se concentra na América Latina, na região

N
centro-leste africana, no Oriente Médio/Pérsia e Nessa animação, As fitas de Noura Mansur,
na península indiana. realizada por três alunas do ensino médio, foram
criadas duas personagens, uma jornalista e uma
Esse relatório conta, ainda, com uma apre-
refugiada palestina no Líbano, para apresentar
sentação de cada conflito registrado no mapa, de
o contexto do conflito árabe-israelense. Embora

P
forma que os leitores podem conhecer a origem
as personagens sejam fictícias, toda a pesquisa a
deles. Esse é um ponto de partida interessante
respeito do conflito serve como apoio para que
para o trabalho em sala de aula com conflitos suas ações correspondam ao que de fato ocorreu.
políticos entre nações: separar os conflitos de Disponível em: <https://youtu.be/X784TGYUCOs>.
acordo com sua origem pode colocar os alunos Acesso em: 15 dez. 2020.
IA
em contato com as questões políticas prementes
no mundo atualmente. No relatório de 2019, des- A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO
tacam-se os grupos fundamentalistas religiosos Escolhemos a República Democrática do
na região do Sahel africano, as organizações de Congo como exemplo para a análise que esta-
tráfico de drogas na América Latina e a atuação mos propondo em sala de aula. Trata-se de um
de milícias e grupos paramilitares em diversas conflito muito mal comunicado pela imprensa
regiões do mundo. Cada uma dessas categorias mundial, que abusa do sentido do termo “étni-
co” para informar a situação dos conflitos em
U

de classificação está relacionada a diferentes


contextos políticos mundiais: os enfrentamentos território congolês. Nosso ponto de partida é o
ao autoritarismo político de segmentos sociais mapa do relatório Barômetro de conflitos de 2019 –
fundamentalistas, a geografia das drogas ilícitas inserimos nele os nomes das províncias do país
e os resquícios do armamentismo da Guerra Fria. e também os nomes dos países vizinhos. Veja na
G

Nossa proposta é escolher um país ou uma página ao lado.


região e analisar com os alunos o conflito, des- O analista internacional Igor Castellano da
tacando atuações políticas de diferentes potên- Silva, em pesquisa sobre o Estado do Congo, ca-
cias mundiais (players). Eles podem se organizar racteriza o período atual do país como “Estado de
em grupos para fazer a pesquisa dos conflitos violência”, que decorre de uma série de conflitos
que lhes chamarem atenção no mapa e preparar internos ao longo dos quais três ditadores se su-
uma animação para apresentar aos colegas os cederam no comando do Estado sem que fossem
sujeitos do conflito, sua origem e a situação atual capazes de construir um Estado-nação razoavel-
das partes. Plataformas como Powtoon e Pixton mente presente na vida social da população – há,
possibilitam montar cenários de histórias e até inclusive, uma grave confusão entre o Estado e
animar alguns personagens; depois, é só gravar as figuras dos ditadores, chegando mesmo a di-
o áudio e está pronto o vídeo. ficultar a consolidação de um exército nacional,

6 6
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
República Democrática do Congo: consenso de que “Estado fracassado é aquele

D
conflitos em 2019 a cuja existência normativa não corresponde
uma existência empírica (ao menos não plena)
SUDÃO
[...]. Alguns Estados não são Estados” [citação
REP. C. AFRICANA DO SUL
de Leandro Nogueira Monteiro]. [...]

L
Podem-se citar aqui três exemplos principais
de percepções opostas sobre quais são as fun-
DANIELLA BARROSO

ções básicas do Estado. A posição de Robert


RUANDA Jackson assume que Estados fracassados são

N
BURUNDI
aqueles que não conseguem prover domes-
NM
ticamente “condições civis mínimas, como
paz, ordem e segurança”. A posição de Robert
3 crise
violenta
Rotberg é mais ampla: assume que um Esta-

P
ANGOLA do falido é aquele que não consegue manter
4 guerra
restrita a ordem política interna e a ordem pública;
5 guerra
ZÂMBIA oferecer segurança às suas populações; con-
0 325 km
trolar fronteiras e todo o território; manter
HEIDELBERG INSTITUTE FOR INTERNATIONAL o funcionamento de sistemas legislativos e
IA
CONFLICT RESEARCH. Conflict Barometer
judiciários independentes; e prover educação,
2019. Heildelberg, n. 28, 2020. p. 11.
serviços de saúde, oportunidades econômi-
distinto das forças que chegam ao comando do cas, infraestrutura e vigilância ambiental. Por
Estado a cada tomada de poder. Para o pesquisa- seu turno, o Fund for Peace (FFP) possui uma
dor, a República Democrática do Congo poderia percepção ainda mais abrangente. A partir de
ser enquadrada no conceito de “Estado falido”: um conceito de segurança humana, produz o
Os princípios básicos que deram origem ao índice de Estados falidos, baseado em doze
conceito de Estado falido surgiram na década
U

indicadores amplos.
de 1980, sobretudo com os trabalhos seminais A despeito de sua multiplicidade, cumpre fazer
de Robert Jackson. Por outro lado, somente em um parêntese para ressaltar que este conceito
1992 o termo passou a ser utilizado – em subs- tem sido politicamente instrumentalizado pe-
tituição a Estados fracos ou “quase estados” – los países centrais em seu próprio benefício.
G

dando um novo marco aos debates. [...] [Lean- Em primeiro lugar, é necessário recordar a
dro Nogueira] Monteiro ressalta, contudo, parcela de responsabilidade dos países cen-
que uma unidade básica foi mantida entre as trais para a falência dos Estados periféricos.
teorias. Por exemplo, no que concerne ao signi- Segundo [Grasiela de Oliveira] Licório, “uma
ficado básico da falência do Estado, prevalece das razões do fracasso dos Estados é a ação
a percepção comum de que alguns Estados das grandes potências que ao intervir colo-
reconhecidos internacionalmente (estatida- cam esses Estados numa situação de maior
de jurídica ou soberania negativa) não detêm dependência”.
condições empíricas que os caracterizariam SILVA, Igor Castellano da. Congo: a guerra
como um Estado de fato (estatidade empírica mundial africana – conflitos armados,
construção do Estado e alternativas para a paz.
ou soberania positiva). Ou seja, há razoável Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. p. 48-50.

67
Índice de Estados frágeis 2020

D
L
N
sustentável

REPRODUÇÃO
estável

P
atenção

alerta
IA
NM
0 2.025 km

Fonte: THE FUND FOR PEACE. Disponível em: https://fragilestatesindex.org/. Acesso em: 16 dez. 2020.

Fraqueza, fragilidade e falência são os termos forte – para o Estado e é em relação a ele que se
acoplados ao Estado por analistas internacionais avaliam os demais Estados. O mapa produzido
U

para abordar uma atuação estatal menos consoli- por The Fund for Peace, em seu relatório anual
dada. Além do alerta feito pelo próprio autor de Fragile States Index, possibilita observar como essa
que as potências políticas utilizam esse termo abordagem do Estado insere regiões africanas no
para catapultar Estados sob seu domínio, tam- panorama mundial.
G

bém é preciso considerar que qualquer análise Para chegar a uma mensuração objetiva do
em que se faz uma comparação entre elementos que seria a fragilidade dos Estados, The Fund
toma um aspecto como parâmetro principal, ou for Peace utiliza dados quantitativos como indi-
seja, algum funcionamento de outro Estado em cadores de características entendidas pela insti-
oposição ao que se considera “falido”, “frágil” e/ tuição como definidoras da noção de fragilidade
ou “fraco”. Países como Canadá, Islândia, Suécia, estatal. Eles coletam, assim, dados sobre o des-
Noruega, Finlândia, Austrália, Nova Zelândia, locamento de pessoas em função de perseguição,
Alemanha, Áustria, Estados Unidos, Reino Unido, tensão ou conflito; a chamada “fuga de cérebros”;
França, Japão, Coreia do Sul, entre outros, costu- o desempenho econômico (geração de riqueza);
mam ser usados como referência. Isso significa, a qualidade dos serviços públicos; condições de
portanto, que existe um modelo do que seria um funcionamento das forças armadas; entre outros.
funcionamento consistente – sustentável, estável, De acordo com essa mensuração, Botsuana é o

6 8
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
Estado africano mais bem posicionado no ranking, ranking do desenvolvimento humano, sendo, por-

D
em uma situação de estabilidade; em estado de tanto, um país de alto desenvolvimento humano,
atenção, temos, da melhor à pior posição: Gana, mesma categoria em que se encontra o Brasil, que
Namíbia, Tunísia e Gabão (em amarelo); África ocupa a posição nº 84.
do Sul, Marrocos, Benim, Senegal e Argélia (em É provável que você esteja se questionando

L
laranja-claro). Nas piores posições, da pior à me- sobre o que pode ter acontecido no Congo para
lhor posição no ranking, temos Somália e Sudão que o país figure tão mal nesses rankings; em sala
do Sul, 2º e 3º piores colocados em nível mundial. de aula, os alunos costumam explicar as dificul-
A região centro-leste da África é a que concentra dades no desenvolvimento humano alegando que

N
os piores resultados em relação a essa mensura- o país não tem uma economia forte, não produz
ção de fragilidade dos Estados: essa região vive riquezas. Alguns dados sobre a economia do Con-
uma enorme pressão sobre os recursos naturais go, retirados do site IBGE @Países (disponível em:
– desertificação do Sahel, disputa pela posse de <https://paises.ibge.gov.br/>; acesso em: 16 dez.

P
recursos hídricos, minerais e de reservas de pe- 2020) podem confirmar essa hipótese: em 2018,
tróleo – o que contribui para a interpretação de o produto interno bruto (PIB) foi de pouco mais
que são Estados falidos (ou frágeis) por uma jun- de 47 bilhões de dólares, ocupando a posição de
ção de fatores internos e externos, com enorme nº 85 entre os países; já quando se trata do PIB
destaque para a pilhagem europeia no período per capita, a situação é muito pior, pois o valor em
IA
colonial e para o contexto em que essas nações 2018 foi de 561 dólares, que o levou à posição de
tiveram êxito no encerramento do colonialismo nº 184 entre os países. Olhando para esses dados,
(isso ocorreu majoritariamente no período da trata-se de um país com dificuldades na produ-
chamada Guerra Fria). Some-se a isso a atuação ção de riquezas, não? Bom, ocorre que a bacia
chinesa recente nessa região, especialmente nos do Congo é uma das áreas mais abundantes em
países com reservas de petróleo, como Angola, recursos minerais. E isso cria um embaraço para
Sudão e Sudão do Sul; parte expressiva das obras essa narrativa de país pobre, afinal os recursos
U

de infraestrutura nessa região tem sido realizada retirados de seu território enriquecem alguém;
por empresas chinesas, com eventual financia- o que se pode depreender desses dados é que a
mento pelo capital chinês. completa maioria dos congoleses não se beneficia
E a República Democrática do Congo? O país dessa riqueza.
ocupa o 5º pior lugar nesse ranking de Estados frá- Afinal, de que recursos minerais estamos fa-
G

geis. Quanto ao desenvolvimento humano, ocupa lando? O Serviço Britânico de Geologia produz
um dos piores lugares, a posição nº 175 em um anualmente um relatório sobre esses recursos,
total de 189 países analisados pelo Programa das chamado de World Mineral Production, onde po-
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) demos observar que a República Democrática do
em seu relatório de 20201. Congo está entre os maiores produtores2 . Foram
Em uma comparação justa entre países afri- listados 74 recursos minerais no relatório mais
canos que guardam semelhanças quanto ao co- recente, que cobre o período de 2014 a 2018; o país
lonialismo, Botsuana ocupa a posição nº 100 no aparece em 2018 como produtor de 15 diferentes

1. ONU. PNUD. Human Development Report 2020 – The next 2. BRITISH GEOLOGICAL SURVEY. World Mineral Production
frontier: human development and the Anthropocene. Nova 2014-2018. Nottingham, 2020. Disponível em: <https://www2.
York: ONU, 2020. p. 347-350. Disponível em: <http://hdr.undp. bgs.ac.uk/mineralsuk/download/world_statistics/2010s/
org/sites/default/files/hdr2020.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2020. WMP_2014_2018.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2020.

69
minerais: carvão, cobalto (65% do total mundial centro-africana, temos de observar que diversos

D
do minério bruto), cobalto refinado, cobre (6% países vizinhos estiveram (alguns ainda estão)
do total mundial do minério bruto), cobre refi- envolvidos em conflitos pela conquista do Esta-
nado, diamante (10% do total mundial), ouro, aço do – você pode retomar os mapas do Barômetro
bruto, petróleo bruto, prata, minerais de tântalo de conflitos para observar a concentração atual

L
e nióbio, estanho, tungstênio e zincoO passo se- de conflitos nessa região. Um dos conflitos mais
guinte em nossa análise é localizar as áreas de violentos ocorreu em Ruanda, onde centenas de
onde esses minerais são extraídos no território milhares de ruandeses foram assassinados, sendo
congolês e compará-las ao mapa do Barômetro de a maioria dos mortos pertencentes ao povo tutsi.

N
conflitos para saber se a guerra ocorre no mesmo A inação das potências diante do genocídio
local. Afinal, isso poderia nos fornecer uma pista ruandês, especialmente dos Estados Unidos, à
consistente a respeito das reais motivações des- época sob um governo democrata, rendeu ao
ses conflitos, não? Estado ruandês alguns apoios internacionais

P
Pelo cruzamento das informações, podemos no período pós-genocídio, sob o argumento de
perceber que há uma forte correspondência entre que o reestabelecimento do ordenamento do
as províncias mais ricas em minerais e aquelas país seria fundamental para garantir um acordo
que apresentam os níveis de conflito mais ele- entre os grupos étnicos que compõem Ruanda.
vados. Também chama atenção o fato de que os Esses grupos não estão circunscritos ao país e
IA
conflitos se concentram nas fronteiras com os também ocupam parte do território congolês, o
países vizinhos. Isso demanda um deslocamento que coloca toda uma parte da República Demo-
no ponto de vista sobre os conflitos, em uma es- crática do Congo em um contexto supranacional:
cala menor, mais panorâmica, portanto; na região membros desses grupos étnicos transitam por
essa fronteira, criada por europeus de acordo
República Democrática do Congo: com seus interesses, especialmente em momen-
recursos minerais (2013) tos de conflito armado. Na virada do século XX
U

para o século XXI, diante da investida das forças


armadas ruandesas teve início um conflito ainda
mais sangrento no Congo, no qual quase quatro
milhões de pessoas morreram em consequência
direta da violência e também de suas repercus-
G

sões, como a fome e as doenças.


DANIELLA BARROSO

Recomendamos a animação feita pelo projeto


NM “El mapa de Sebas”, que narra a ocupação da ba-
C
O
cia do Congo destacando as invasões europeias
LEGENDA e os conflitos que envolvem o Estado congolês.
diamante
ouro
coltan Historia de República Democrática del Congo en 15
cobre, cobalto
estanho U minutos. El mapa de Sebas, 22 fev. 2020. Disponível em:
manganês
chumbo e zinco <https://youtu.be/v52-kl-TEsE>. Acesso em: 4 jan. 2021.
área de cobalto
área de estanho
C carvão 0 325 km
U
O
urânio
petróleo
Em nível mundial, há muito que se pode ex-
plorar a respeito do papel das potências oci-
Fonte: DR Congo: Cursed by its natural wealth. BBC dentais na situação do Estado congolês; esse
News, 9 out. 2013. Disponível em: <www.bbc.com/
news/magazine-24396390>. Acesso em: 4 jan. 2021. provavelmente é um assunto que atrai muitos

7 0
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
adolescentes, pois mobiliza redes de relações

D
políticas. Nossa sugestão é abordar o tema por
meio de fotografias, especialmente as imagens

FR ANK HALL/WIKIMEDIA COMMONS


do ditador Mobutu Sese Seko (1930-1997), que
comandou o Estado congolês de 1965 até 1997 em

L
uma ditadura fortemente apoiada pela Europa e
pelos Estados Unidos. Ele chegou ao poder por
um golpe de Estado com apoio belga e usou a
Guerra Fria para justificar frente à opinião pú-

N
blica a queda de Patrice Lumumba (1925-1961),
um dos líderes da independência congolesa: uma
suposta aproximação com o comunismo foi o Mobutu e o secretário da Defesa dos Estados
pretexto utilizado por Mobutu. Indicamos três Unidos, no Pentágono (EUA), em 1983.

P
imagens em que o ditador foi recebido por auto-
ridades europeias e estadunidenses.

DAVID VALDEZ/WIKIMEDIA COMMONS


Considerando a definição de poder formulada
pelo geógrafo André Roberto Martin, “capacidade
de controlar espaços e homens”3 , pode-se propor
IA
uma discussão em sala de aula a respeito do pa-
pel de países estrangeiros sobre a “capacidade”
de determinado Estado; é comum percebermos o
apoio explícito, com financiamento e armamento,
ou ainda o apoio discreto, com acordos de comér-
cio e livre-circulação, mas é importante lembrar
Mobutu e George Bush, presidente do Estados
que a ausência de repúdio também influencia a Unidos, na Casa Branca (EUA), em 1989.
U

capacidade do grupo que está no poder de contro-


lar pessoas e territórios. Não é difícil reconhecer
a hipocrisia das potências europeias e norte-
americanas quando utilizam o discurso da falta

ROB MIEREMET/WIKIMEDIA COMMONS


de democracia – como fazem os europeus com a
G

Turquia, candidata à União Europeia há décadas


– para recusar algum acordo, mas suas empresas
seguem deslocando as unidades de produção para
países asiáticos de governos autoritários, como a
China e a Indonésia.
Nossa sugestão didática para abordar esse
imbróglio político são os episódios 7 e 8 da se-
gunda temporada da série dinamarquesa Borgen,
nos quais a primeira-ministra recebe o pedido de

3. MARTIN, André Roberto. Geopolítica e poder mundial. São Paulo: Mobutu e príncipe Bernhard dos Países Baixos,
Programa Pró-Universitário, 2004. p. 14. (Geografia, v. 2). no Zaire (atual Congo), em 1973.

71
um rico industrial do país para que a Dinamarca legitimada pelo apoio das potências mundiais?

D
seja mediadora de um conflito separatista entre Se, por um lado, apoio externo é fundamental,
dois países fictícios, Kharum e Kharum do Sul por outro, sem apoio de grupos sociais dentro
– em clara referência ao Sudão e Sudão do Sul. do próprio país tampouco se pode manter um
Buscando aumentar sua popularidade na Dina- governo, seja democrático, seja autoritário, seja

L
marca e, assim, driblar a oposição a seu governo, até mesmo ditatorial.
ela decide mediar um acordo de paz e precisa, Ainda que a análise fique em um nível superfi-
para isso, convencer a China a retirar seu apoio cial, é fundamental que os alunos possam experi-
a Kharum, argumentando que o novo país possui mentar uma pesquisa orientada a respeito de um

N
a maior parte das reservas petrolíferas, mas não conflito que vá além da sucessão de fatos e bus-
conta com infraestrutura para exportação do que reconstituir os sujeitos envolvidos nele: quem
recurso; assim, a China retém o armamento que apoia declaradamente, quem apoia sem alarde,
seguiria para Kharum, forçando seu governo a quem repudia, a quem interessa que o Estado

P
entrar em um acordo. Os sujeitos envolvidos no tenha determinada característica, se há recursos
conflito correspondem a diferentes escalas de naturais envolvidos, quem se beneficia de sua
atuação: o arranjo político interno, os interesses extração, quem são os parceiros na exportação
da burguesia industrial, as demandas de recursos e na importação de mercadorias, entre outras
naturais, o imaginário político dos grupos sociais questões. Esse tipo de atividade possibilita mo-
IA
que formam o Estado, os líderes populares etc. bilizar escalas distintas de atuação dos sujeitos,
A quem, portanto, serve um “Estado forte” ou deixando a análise geográfica menos propensa à
um “Estado falido”, já que a centralização do po- simplificação de se buscar entender os conflitos
der durante o governo de Mobutu no Congo era entre Estados apenas por um ponto de vista.
U
G

7 2
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
D
ÁREA DE CONHECIMENTO EM FOCO.

CIDADE TAMBÉM TEM FRONTEIRA

L
N
Em agosto de 2000, integrantes de movimen- Claro que o desejo não era apenas de visitar
tos por moradia da cidade do Rio de Janeiro um centro comercial como o shopping, tratava-se
organizaram uma manifestação que pegou de de uma manifestação; a imprensa inclusive foi
surpresa muitas pessoas: eles decidiram alugar chamada pelos movimentos sociais para acompa-

P
ônibus e visitar o shopping Rio Sul, no bairro de nhar todo o trajeto. O que chama atenção nessa
Botafogo. Policiais militares acompanharam os manifestação é que ela consistia simplesmente
ônibus e também estavam presentes em frente em entrar no shopping, visitar lojas e usar a “pra-
ao estabelecimento quando eles desembarcaram; ça de alimentação”. A principal razão para o al-
dentro do prédio, foram acompanhados por po- voroço que se sucedeu é a ausência de poder de
IA
liciais e pelo conjunto dos seguranças privados consumo, algo presumido pelos proprietários e
do shopping. Muitos lojistas baixaram as portas, funcionários de lojas, já que não foi perguntado
impedindo a entrada; os manifestantes queriam a eles se estariam ali para consumir algo. Há,
conhecer as lojas e usar a “praça de alimentação” portanto, uma “parede invisível” que foi revelada
para comer os lanches que haviam levado, algo a todos, tornada visível pela manifestação, e que
que a pesquisadora em comunicação Ivana Ben- nos informa mais a respeito das regras de uso
tes chamou de “banalidade”, posto que se trata daquele espaço (e das relações de poder, eviden-
U

de uma prática social muito frequente entre mo- temente) do que qualquer regulamento escrito.
radores de grandes e médias cidades. Trata-se de um espaço segregado. Importa-
Ir ao shopping é a coisa mais normal do mun- do dos Estados Unidos, onde tem outra confi-
do, né, é a banalidade cotidiana em pessoa. guração espacial, o shopping center aportou no
G

Então, nessa banalidade, o fato de pessoas de Brasil nos anos 1960, mas foi apenas a partir da
outro grupo social entrarem no shopping pro- década de 1990 que se tornou relevante no setor
duz uma cena de pânico, uma cena de portas varejista, em especial no vestuário. Aos poucos,
sendo baixadas, da chamada de seguranças, incorporou um conjunto diversificado de serviços
ou seja, toda uma mobilização de repressão, e comércios, de forma que se pode realizar um
de polícia, contra o quê? Contra pessoas de grande número de atividades ali. A populariza-
um outro grupo social que estão atravessando ção de um determinado shopping costuma levar
uma parede invisível. à inauguração de outro empreendimento para
Ivana Bentes em entrevista para o documentário grupos sociais mais abastados, de maneira que
Hiato: (direção de Vladimir Seixas, 2008, em metrópoles tem-se claramente uma hierar-
20 min; disponível em: <https://youtu.be/
UHJmUPeDYdg>; acesso em: 4 jan. 2021). quia entre os shoppings de acordo com o poder
de compra de seus frequentadores. Mesmo em

73
shoppings voltados para grupos de menor poder como é um monte de gente pobre, preto, eles

D
aquisitivo há regras de acesso e permanência que estão fazendo isso: estão entrando, batendo
não estão necessariamente registradas nos regu- em todo mundo e botando pra fora.
lamentos desses estabelecimentos, sendo a equipe Jefferson Luís, MC Jota L, em entrevista para
a revista Carta Capital, publicada em 24 de
de segurança privada a principal responsável por janeiro de 2014. Disponível em: <http://youtu.

L
colocá-las em funcionamento. be/KigTaAhV2RQ>. Acesso em: 4 jan. 2021.

Os shoppings criam espaços de “acesso públi-


co”, mas não são efetivamente públicos, o que
Jefferson Luís destaca em sua fala dois eixos
fica claro se averiguarmos o tipo de práticas
de análise dessa situação e também da manifes-

N
permitidas, toleradas ou proibidas pelas res-
tação que abordamos anteriormente: só é bem-
pectivas administrações, evidenciando um
vindo quem pode consumir os produtos e/ou ser-
controle eminentemente privado.
viços oferecidos pelos lojistas – os proprietários
do shopping alugam os espaços e podem cobrar
FRÚGOLI JR., Heitor. São Paulo: espaços públicos e
interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995. p. 95. mais quanto maior for o poder aquisitivo dos

P
frequentadores. Para deixar de fora quem não é
O que o sociólogo Heitor Frúgoli Jr. informa o consumidor-alvo, são mobilizadas as represen-
sobre esse tipo de empreendimento comercial tações mais preconceituosas que circulam em
ajuda a compor uma explicação para o que ocor- nosso país, sendo as ações de vigilância nesses
reu com o grupo de manifestantes no shopping espaços voltadas majoritariamente para reduzir
IA
carioca: o controle do espaço é privado. Em 2013, a presença de pessoas negras. Nem sempre se
diante da emergência de um tipo de sociabilida- pode ter evidências tão fortes quanto as relatadas
de juvenil conhecido como “rolezinho”, alguns pelo jovem, porque não são regras explícitas nos
shoppings da cidade de São Paulo decidiram, de regulamentos dos shoppings. Um exame atento
forma unilateral, selecionar quem poderia aces- das práticas menos toleradas e das proibidas,
sar as instalações criando regras absurdas, como no entanto, permite depreender como o racismo
restrição para adolescentes sozinhos e proibição integra a segregação imposta nesses espaços.
U

de grupos numerosos. Um jovem barrado em um Na dimensão anterior, trouxemos uma defini-


desses estabelecimentos apontou diretamente ção de poder do geógrafo André Roberto Martin
para o tipo de segregação que a situação revela: – “capacidade de controlar espaços e homens”
Esses dias eu assisti a uns vídeos sobre os – para refletir sobre o papel das potências mun-
G

rolezinhos. Tem certos shoppings que estão diais na pretensa fragilidade do Estado congolês.
com segurança na porta selecionando quem Como toda boa definição, ela também pode nos
entra ou quem não entra. Se você tem “cara de ajudar a pensar o shopping center, que é:
bandido”, você não entra. Se você tem “cara de [...] um espaço comercial produzido de manei-
que vai gastar”, você entra. Isso pra mim é um ra monopolística, na verdade um espaço que
preconceito. [...] Se eu convidasse um monte de não depende da existência de uma centralida-
gente rica pra ir ao shopping, você acha que a de prévia, dado que ele a cria.
reação deles ia ser assim? Você acha que eles
PINTAUDI, Silvana Maria. São Paulo, do centro aos
iam entrar com polícia lá, tirando todo mun- centros comerciais. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri;
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (org.). Geografias
do pra fora? Não ia! O dono do shopping ia ser das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2006. p. 215-216.
capaz de me convidar pra levar mais gente.
“Pode trazer que está dando lucro!” Então,

74
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
A geógrafa Silvana Pintaudi caracteriza o sho- Nossa proposta de ação didática é também

D
pping em contraposição ao comércio de rua, cuja um convite a uma saída a campo. Dentro das
configuração é mais pulverizada, ainda que possa possibilidades da região onde a escola se locali-
haver um mesmo proprietário para diversos imó- za, seria interessante organizar uma atividade de
veis lindeiros e as associações comerciais de rua, observação da organização da atividade comer-

L
que atuam de maneira coordenada. O shopping é cial. Os alunos podem ajudar a decidir onde ir
um empreendimento imobiliário monopolista – com base no que conhecem; se eles frequentam
muitos deles são propriedade de fundos de inves- shoppings, pode ser conveniente que a observa-
timento e fundos de pensão – cuja circunscrição ção ocorra em uma rua comercial, por exemplo.

N
espacial propicia a formação de fluxos diversos, Outra possibilidade é abranger uma diversidade
compondo uma centralidade. de configurações de concentração comercial: ga-
Dentro desse empreendimento, toda a confi- lerias, ruas comerciais exclusivas para pedestres,
guração espacial é pensada de forma a favorecer a avenidas de tráfego rápido com grandes estabe-

P
exposição dos clientes ao maior número possível lecimentos comerciais, shoppings etc.
de lojas e serviços. Se um shopping é muito pro- É fundamental preparar a saída a campo en-
curado nos horários de almoço e jantar, é pouco volvendo os alunos na formulação do que deve
provável que o usuário encontre restaurantes e ser observado e quais registros são pertinentes.
lanchonetes próximos à entrada; possivelmente O objetivo da saída a campo é reconhecer formas
IA
ele terá de circular bastante internamente até de controle de pessoas e do espaço por estabe-
chegar lá – também é provável que grande parte lecimentos comerciais. Assim, eles devem estar
dos estabelecimentos que vendem refeições este- atentos para barreiras físicas à circulação de
jam concentrados em um mesmo local, geralmen- pessoas, elementos nas entradas e saídas dos esta-
te chamado de “praça de alimentação”, um termo belecimentos, sistemas de vigilância (presencial
provocativo, já que em nada lembra uma praça. e eletrônica – por câmeras, por exemplo), entre
Se, aos finais de semana, as salas de cinema são outros elementos. Caso eles decidam realizar si-
U

muito procuradas pelos usuários, pode-se fazer mulações, criando situações nos estabelecimen-
algum tipo de restrição aos elevadores (a mais tos como se fossem clientes, é preciso que tudo
comum é deixar de servir alguns andares para seja preparado com antecedência e que a situação
forçar os visitantes a utilizar as escadas rolantes), seja acompanhada pelo restante do grupo, mesmo
o que também é parte da estratégia de forçar a que à distância – as situações de racismo e de
G

circulação pelos corredores. O aluguel de uma segregação social experimentadas por frequen-
loja próxima a uma escada rolante é muito maior tadores dos estabelecimentos comerciais podem
do que de alguma loja localizada no fim de um colocar os alunos em situação de perigo, além das
corredor que não leva a pontos muito procurados. repercussões emocionais; por isso, a preparação
Afinal, o que se pode dizer desses empreen- da saída a campo é tão importante.
dimentos quanto à “capacidade de controlar es- De volta à sala de aula, proponha aos alunos
paços e homens”? que organizem uma apresentação sobre o que
observaram em campo com base nos registros
que realizaram (anotações, fotografias etc.).

75
D
REPENSANDO A AVALIAÇÃO.

ESTADOS NACIONAIS JÁ NÃO DÃO MAIS AS CARTAS?

L
N
“Globalização” é um termo que circula na es- décadas exatamente porque a demanda de ser-
cola e na imprensa com sentidos muitos diversos. viço cresceu enormemente e o setor de gestão
Uma das interpretações aponta a perda de poder dos grandes conglomerados mundiais já não é
dos Estados-nação à medida que a economia se suficiente. Vamos imaginar um empreendimento

P
torna mais e mais padronizada. A complexidade bastante enxuto, como as empresas que interme-
em que ocorre essa padronização escapa a nos- deiam serviços por meio de aplicativos: Airbnb
sas possibilidades de aproximação ao longo do (acomodações), Uber (deslocamentos em automó-
ensino médio; mesmo em nível superior, na gra- vel) e Rappi (entregas). A princípio parece muito
duação, ocorrem algumas simplificações quando simples disponibilizar os aplicativos nas lojas de
IA
se trata da análise das repercussões da existência celulares de todo o mundo para que os clientes
de conglomerados empresariais atuando mun- e os reais fornecedores de serviços baixem. No
dialmente e, claro, setores financeiros muito in- entanto, cada país onde operam essas empre-
terligados trabalhando de forma concomitante. sas têm seus próprios sistemas de pagamento;
O desafio de realizar uma aproximação cien- quando algo funciona mal e os clientes acionam
tífica, mesmo que rasa, sobre a relação entre a essas empresas na justiça, são as regras do país
padronização econômica e uma suposta perda de que servem como parâmetro para decidir se há
U

soberania por parte dos Estados não deve, entre- ou não uma sanção às empresas.
tanto, ser visto como um impedimento. Isso significa que esses aplicativos precisam,
no mínimo, de termos de uso adequados a cada
UMA ESTRATÉGIA DE INVESTIGAÇÃO país e sistema de pagamento que opere localmen-
G

SOBRE A ECONOMIA GLOBALIZADA te. Evidentemente, o aplicativo pode escolher ope-


Utilizando parte da metodologia do coletivo rar em um sistema de pagamento mundial, como
Globalization and World Cities (GaWC), podemos o Paypal, o que limita bastante seu alcance local,
demonstrar aos alunos as repercussões da opera- mas, mesmo nesse caso, trata-se de uma empresa
ção de empresas em nível mundial, por meio da financeira de atuação global que tem bases em
identificação de um tipo específico de negócio diferentes países para operar dentro do sistema
que serve a elas: as empresas globais de serviços nacional: quando você cadastra seu cartão de cré-
profissionais, tradução livre da expressão global dito brasileiro no Paypal, pode fazer transações
professional service firms, um tipo de fornecedora no exterior, mas a empresa está lidando com as
de serviços para empresas de atuação mundial. regras brasileiras.
Essas empresas dão suporte a outras em- Bom, estamos falando de empresas simples,
presas. Elas emergiram com força nas últimas que intermedeiam serviços por meio de um

7 6
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
aplicativo e já encontramos uma situação ra- Algumas cidades, portanto, atuam como nós,

D
zoavelmente complexa, posto que cada opção de interligando as redes econômicas em nível mun-
pagamento no aplicativo mobiliza redes financei- dial; elas foram chamadas pela socióloga de “cida-
ras, assim como cada regra de funcionamento do des mundiais”, fronteiras da “cultura globalizada,
aplicativo (que é mundial, mas opera localmente) padronizada”. Essas cidades são as conexões da

L
precisa respeitar a legislação do país (e até do economia local e nacional com os fluxos e as re-
município, como ocorre com a Uber). É aí que des globais.
entra o trabalho das global professional service fir- Essa ideia pode ser abordada de outra manei-
ms: elas contam com escritórios em dezenas (até ra: na divisão regional elaborada por Milton San-

N
centenas) de cidades ao redor do mundo para tos, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espí-
apoiar a atuação internacional das empresas. rito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
No exemplo das empresas de aplicativo, as global do Sul formam a Região Concentrada, que:
professional service firms poderiam redigir os ter- [...] caracteriza-se pela implantação mais con-

P
mos de uso em cada região e dar suporte para as solidada dos dados da ciência, da técnica e da
transações financeiras em diferentes formatos, informação.
como consultoria ou assumindo efetivamente [...]
algumas tarefas. Atividades ligadas à globalização que produ-
É do maior interesse dessas empresas de ser- zem novíssimas formas específicas de terciá-
IA
viços que as legislações e os sistemas de circula- rio superior, um quaternário e um quinque-
ção de capital caminhem para uma padronização. nário ligados à finança, à assistência técnica
Isso pode implicar uma interligação dos sistemas e política e à informação em suas diferentes
e também a criação de um padrão de referên- modalidades vêm superpor-se às formas an-
cia para os países. Nesse momento da análise, é teriores do terciário e testemunham as no-
comum perguntar-se a respeito do interesse de vas especializações do trabalho nessa região.
um país em colaborar com essa padronização/ Esse novo setor de serviços sustenta as novas
U

interligação. De acordo com as investigações da classes médias que trabalham nos diversos
socióloga Saskia Sassen, participar dos fluxos setores financeiros, nas múltiplas ocupações
globais de mercadorias, capital e conhecimento técnicas, nas diversas formas de intermedia-
implica integrar essa economia globalizada. ção, marketing, publicidade etc. Uma cidade
O sistema global está dominado pelas finan- como São Paulo, onde em 1971 havia 204 mil
G

ças - um produto digital que pode circular, pessoas ligadas a atividades técnicas, cientí-
um setor que tem muitíssimo poder. Por que ficas e artísticas, conta, em 1986, com 508 mil
precisam de cidades globais? trabalhadores nessas atividades, número que
As cidades globais são um espaço fronteiriço pula para 1 milhão em 1997.
para implantar uma cultura globalizada, pa- SANTOS, Milton; SILVEIRA, María Laura. O
Brasil: território e sociedade no início do século
dronizada, em um nível muito complexo, em
XXI. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 269.
economias nacionais que até então estavam
marcadas por sua própria especificidade. Nas pesquisas de Milton Santos, ele reconhece
SASSEN, Saskia. Ciudad global y la lógica de essa região do país cuja economia é profunda-
expulsión del neoliberalismo. CCCB, 19 jan. 2011.
Disponível em: <https://youtu.be/7Dc-2v_YjJ4>.
mente alterada pela implantação de atividades
Acesso em: 4 jan. 2021. (Texto traduzido.) científicas, técnicas e de informação, que são
exatamente as áreas mais dinâmicas das redes

77
econômicas globais. Ou seja, a Região Concen- Isso é fundamental em nosso trabalho em sala

D
trada está mais interligada a esses fluxos e redes de aula: a infraestrutura de circulação e comu-
econômicas de atuação mundial do que o restan- nicação não define a rede mundial de cidade. É
te do território brasileiro. um indicador relevante, mas não definitivo. Ain-
Para o geógrafo Peter Taylor, membro do da que partam de pressupostos e bases teórico-

L
GaWC, as cidades se interligam em redes desde metodológicas distintas, Milton Santos e Peter
muito antes da emergência dos Estados-nação e Taylor estão apontando para interpretações em
seguem se organizando dessa maneira mesmo diálogo: para Santos, a Região Concentrada é o
após sua formação. Apesar de não ser um fenô- trecho do território brasileiro onde as atividades

N
meno novo, a rede mundial de cidades ganha de serviços avançados estão alocadas; para Taylor,
destaque nas últimas décadas devido à descon- são essas atividades que definem a rede mundial
centração industrial desde o pós-guerra. Observe de cidades, pois “constituem uma vanguarda da
como ele delimita essa rede: economia mundial”.

P
Uma rede consiste em nós e links que exibem Assim, para conhecer a inserção de um Esta-
um padrão de conexões. [...] Para cidades do do-nação nessa economia globalizada, é preciso
mundo, voos de companhias aéreas interna- observar a presença das atividades de serviços,
cionais foram usados para definir uma rede de que são “formas específicas de terciário superior,
transporte global e novas ligações de comuni- um quaternário e um quinquenário ligados à
IA
cação eletrônica foram pesquisadas. Essas não finança, à assistência técnica e política e à infor-
são as redes das quais este documento trata. mação”. Ou seja, a divisão da economia em três
As redes de infraestrutura são importantes e setores – primário, secundário e terciário – não
necessárias para apoiar a rede da cidade mun- dá conta dessas atividades, o que indica sua com-
dial, mas elas não a definem. Aqui, a preocupa- plexidade. Para desenvolvê-las em seu território
ção é com a rede da cidade mundial como uma e assim participar dos setores econômicos mais
rede social, uma forma de organização em que dinâmicos e rentáveis, o Estado-nação precisa
U

os nós são atores e os vínculos são relações garantir que algumas de suas cidades tenham
sociais. As relações sociais dessa rede mundial as condições objetivas para que essas atividades
de cidades são econômicas, especialmente as se instalem. Isso contribui para explicar por que
inter-cidades, que operam para estruturar os Estados-nação colaboram na padronização
geograficamente a economia mundial. de procedimentos e regulamentos de fluxos de
G

[...] as cidades fornecem serviços, mas serviços mercadorias e capital: essa é uma demanda para
contemporâneos de produtores avançados integrar essas redes globais.
(por exemplo, contabilidade, publicidade, fi-
nanças, seguros e leis aplicadas em contextos RECONHECENDO A INSERÇÃO DE UMA REGIÃO
transnacionais) são diferentes; eles constituem NA REDE MUNDIAL DE CIDADES
uma vanguarda da economia mundial por di- O êxito da atividade que propomos aqui como
reito próprio. As cidades do mundo tornaram- estratégia para abordar a economia globaliza-
se centros de produção e consumo de serviços da em sala de aula depende fundamentalmente
avançados na organização do capital global. de os alunos compreenderem o papel das global
TAYLOR, Peter. Specification of the World professional service firms: elas estão presentes nas
City Network. Geographical Analysis, n. 33, 2001.
Disponível em: <www.lboro.ac.uk/gawc/rb/rb23.
regiões do globo onde há operações econômi-
html>. Acesso em: 4 jan. 2021. (Texto traduzido.) cas das grandes empresas de atuação mundial.

7 8
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
Nesse sentido, sua presença possibilita inferir

D
quais são as regiões mais integradas à economia
globalizada. Elas estão sendo usadas, portanto,
como um indicador econômico: o que queremos
saber é quais são as porções do território dos

L
países e das regiões que participam dos circuitos
mais dinâmicos da economia. Para isso, vamos
observar um tipo muito específico de empresa

REPRODUÇÃO
que nasceu exatamente da necessidade de se pa-

N
dronizar procedimentos e fluxos econômicos, de
forma a apoiar a atuação mundial de empresas.
Como esse tipo específico de empresa vai ser
utilizado em sala de aula? Vamos recorrer nova-

P
mente ao geógrafo Peter Taylor; no diagrama ao
lado podemos observar um exemplo simples de
como os dados serão utilizados. Ele apresenta
uma pequena fração da rede mundial de cidades:
temos dez cidades no topo do ranking de cidades
IA
globais e três empresas fornecedoras de serviços Fonte: TAYLOR, Peter. Specification of the
globais (denominadas pelo geógrafo de advanced World City Network. Geographical Analysis, n.
33, 2001. Disponível em: <www.lboro.ac.uk/
producer service firms, em tradução livre “empre- gawc/rb/rb23.html>. Acesso em: 4 jan. 2021.
sas de serviços avançados de produção”). Cada
círculo corresponde a uma cidade; as bolinhas
internas abrigam escritórios das empresas; cada O primeiro passo é pesquisar empresas que
escritório de uma empresa está interligado por se encaixam no perfil de fornecedoras de servi-
U

uma linha a todos os demais escritórios dela ços globais (frequentemente, os alunos ignoram
presentes em outras cidades. Para reconhecer a essa recomendação e constroem seus diagramas
empresa com a maior abrangência, basta obser- com empresas que conhecem, como Coca-Cola
var as linhas no centro do diagrama, pois elas e McDonald’s, por isso é fundamental insistir
indicam interligação entre escritórios de uma
G

na caracterização das global professional service


mesma empresa. As cidades de Nova York, Lon- firms ou advanced producer service firms). A lista a
dres e Tóquio contam com escritórios de todas seguir não pretende ser exaustiva, apenas forne-
as empresas representadas, então estão no topo cer alguns exemplos; mais nomes de empresas
do ranking. podem ser obtidos no site do GaWC (disponí-
Essa diagrama poderia estar representado so- vel em: <www.lboro.ac.uk/gawc/rb/rb349.html>;
bre um mapa-múndi, de forma que pudéssemos acesso em: 4 jan. 2021).
reconhecer as regiões que concentram mais es-
ACCENTURE. Disponível em: <www.accenture.com/
critórios desse tipo específico de empresa. Porém, br-pt/about/location-index>. Acesso em: 4 jan. 2021.
nossa sugestão para a sala de aula é elaborar um
diagrama circunscrito à América do Sul. O obje- BAIN & COMPANY. Disponível em: <www.bain.
com/about/offices/>. Acesso em: 4 jan. 2021.
tivo é identificar a(s) região(ões) sul-americana(s)
integrada(s) à economia globalizada.

79
BOSTON CONSULTING GROUP.

D
Disponível em: <www.bcg.com/en-br/
offices/default>. Acesso em: 4 jan. 2021.

BLOOMBERG. Disponível em: <www.bloomberg.


com/company/what-we-do/>. Acesso em: 4 jan. 2021.

L
DELOITTE. Disponível em: <https://www2.
deloitte.com/br/pt/footerlinks/global-office-
directory.html/>. Acesso em: 4 jan. 2021.

DANIELLA BARROSO
EY. Disponível em: <www.ey.com/en_gl/

N
locations>. Acesso em: 4 jan. 2021.

KPMG. Disponível em: <https://home.kpmg/xx/en/


home/about/offices.html>. Acesso em: 4 jan. 2021.

MCKINSEY & COMPANY. Disponível em: <www.

P
mckinsey.com/locations>. Acesso em: 4 jan. 2021.

PwC. Disponível em: <www.pwc.com/gx/en/about/


office-locations.html#/>. Acesso em: 4 jan. 2021.

THOMSON REUTERS. Disponível em:


IA
<www.thomsonreuters.com/en/locations.
html>. Acesso em: 4 jan. 2021.

Você pode fixar um número mínimo de em-


presas a serem pesquisadas, considerando que
um maior número de empresas implica um dia-
grama mais denso e consistente. Os alunos pre-
cisam anotar dois dados sobre cada empresa
U

pesquisada: a(s) área(s) de atuação e os nomes


das cidades sul-americanas que contam com es-
critórios. O formulário ao lado pode auxiliar no
registro da pesquisa. Os alunos devem escrever os
nomes das empresas nas colunas e preencher as
G

DANIELLA BARROSO

linhas com os nomes das cidades que aparecerem


na pesquisa, marcando o quadradinho a cada vez
que a cidade contiver um escritório da empresa.
Ao final, eles conseguirão saber as empresas mais
presentes na América do Sul e também as cidades
com mais escritórios.

8 0
E S TA D O , T E R R I T Ó R I O E P O D E R
O passo seguinte é usar esses dados para uma linha com a cor da empresa interligando

D
preencher o diagrama (também pode ser um São Paulo a Santiago, São Paulo a Buenos Aires
mapa mudo da América do Sul com as cidades e Santiago a Buenos Aires. Na legenda, as duas
listadas no formulário). Esse modelo de diagrama bolinhas também devem ser interligadas com a
tem espaços para oito cidades, mas os alunos po- cor da empresa.

L
dem criar diagramas com outras configurações. Elaborar o diagrama não é tão desafiador
Cada círculo corresponde a uma cidade, então quanto demandar dos alunos uma interpretação
a proposta é que eles indiquem as cidades com de seus resultados; por isso, pode ser conveniente
maior número de escritórios de acordo com suas pedir que eles expliquem por que usaram os da-

N
pesquisas. Os alunos devem atribuir uma cor a dos das global professional service firms, de forma
cada empresa pesquisada – anotando-a na legen- que tenham que revisitar as explicações sobre a
da do diagrama. Cada bolinha dentro do círculo formação da rede mundial de cidades e apontar
deve ser colorida com a cor correspondente às por que esse tipo de empresa contribui para uma

P
empresas que contam com escritórios naquela aproximação científica a respeito da inserção de
cidade – imagine que os alunos pesquisaram 8 regiões do mundo na economia globalizada.
empresas e São Paulo conta com escritórios de Essa é uma oportunidade de explicitar uma
todas elas; então, São Paulo vai ter 8 bolinhas estratégia de produção do conhecimento em ciên-
dentro de seu círculo coloridas com as cores des- cias humanas, por isso seria interessante convi-
IA
sas empresas. O último passo é interligar cada dar os professores dos demais componentes para
bolinha a todas as outras da mesma cor – se uma apoiar a construção das ideias que legitimam
empresa tem escritório em São Paulo, Buenos a interpretação de que esse diagrama revela as
Aires e Santiago, por exemplo, é preciso traçar regiões mais bem inseridas na economia global.
U
G

81
Capítulo 3

D
Dinheiro e riqueza

L
N
P
IA
U
G
D
As atividades e vivências propostas para este tema foram elaboradas sob
o contexto oferecido pelas competências específicas 3 e 4 da área de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

L
Analisar e avaliar criticamente as relações de diferentes grupos, povos e sociedades
com a natureza (produção, distribuição e consumo) e seus impactos econômicos e so-
cioambientais, com vistas à proposição de alternativas que respeitem e promovam a
consciência, a ética socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional,

N
nacional e global.
Analisar as relações de produção, capital e trabalho em diferentes territórios, contextos
e culturas, discutindo o papel dessas relações na construção, consolidação e transfor-
mação das sociedades.

P
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC; SEB, 2018. p. 574 e 576. Disponível em: <http://basenacionalcomum.
mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020.

A primeira proposta, “Diga-me o lixo que produzes e eu te direi quem és”,


possibilita um olhar sobre suas práticas sociais, suas escolhas dentro do modo
IA
de vida da sociedade que integra. A segunda proposta, “Quando as palavras
informam de que lugar falamos”, também propõe uma reflexão interna, dessa
vez, a respeito dos termos que utilizamos para expressar um fenômeno; trata-
se de uma escolha que revela nossa filiação, ou seja, o campo interpretativo do
qual fazemos parte. Na terceira proposta, “A produção de resíduos sólidos como
indicador de concentração de renda”, entram em cena, com grande destaque,
um conjunto de procedimentos próprio da Geografia: a construção de questões
U

com base na coleta, manipulação e análise de dados quantitativos. A proposta


seguinte, “A Revolução Industrial pelo olhar da Geografia”, traz reflexões que
pretendem apoiar um recorte geográfico a respeito das transformações capi-
taneadas pela invenção da máquina a vapor, que repercutiu em mudanças no
modo de produzir objetos, de deslocar pessoas e mercadorias, assim como na
G

forma como vivemos na cidade e no campo. Na quinta proposta, “Circular ou


não circular: é uma questão de tecnologia?”, propõe-se um diálogo mais arti-
culado com os demais componentes da área de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas: o eixo da discussão é o impacto da tecnologia nos deslocamentos na
cidade e chega a uma questão muito atual, a respeito das repercussões espaciais
do trabalho remoto, cada vez mais adotado pelas empresas desde a pandemia
de coronavírus, em 2020. A sexta proposta, “‘Tempo é o tecido da nossa vida’
– a racionalidade industrial imbricada na vida social”, que traz essa belíssima
afirmação do cientista social Antonio Candido (1918-2017), em oposição à ideia
de que “tempo é dinheiro”, faz convergir essas discussões em uma proposição
que junta observação objetiva e sensibilidade: registrar no cotidiano situações
e paisagens que revelam a presença da lógica fabril/industrial na vida urbana.
D
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS.

DIGA-ME O LIXO QUE PRODUZES


E EU TE DIREI QUEM ÉS

L
N
Nós, professores de Geografia do ensino mé- E se você usasse o lixo que produz para elen-
dio, lidamos cotidianamente com indicadores car características suas e do seu modo de vida?
quantitativos: aquela visão panorâmica das socie- Ainda que a abordagem geográfica das ques-
dades e de sua relação com o espaço conta com tões ambientais esteja longe de ser consensual,

P
o exercício de análise de dados que funcionam nas últimas décadas observa-se a emergência de
como indicadores de um fenômeno que se quer situações de ensino e aprendizagem no compo-
observar. Nosso olhar treinado para esse exercí- nente de Geografia que buscam estabelecer cor-
cio possibilita depreender um sem-número de relações entre a lógica da produção de objetos
características da vida em um país pela leitura industriais e as problemáticas ambientais, como
IA
de uma pirâmide etária, por exemplo. a finitude de recursos vitais à produção e ao des-
Chegamos até a abstração dos índices, que carte de materiais. Os documentos curriculares
combinam diversos indicadores para expressar elaborados nas últimas duas décadas atestam o
alguma síntese sobre as condições de vida das florescimento de propostas didáticas que valori-
populações, como é o caso do índice de desen- zam essa correlação, entre os quais destacamos a
volvimento humano, tornado popular no mundo Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que
pelo trabalho do Programa das Nações Unidas propõe como expectativa de aprendizagem no
U

para o Desenvolvimento (Pnud). Trata-se de uma ensino médio:


observação indireta: nós não temos possibilidade (EM13CHS301) Problematizar hábitos e prá-
de observar o fenômeno da desigualdade econô- ticas individuais e coletivos de produção,
mica, na maneira como fazem frequentemente os reaproveitamento e descarte de resíduos em
G

cientistas que estudam processos naturais, então metrópoles, áreas urbanas e rurais, e comuni-
é parte de nossa estratégia de estudo construir dades com diferentes características socioeco-
indicadores do que se pretende observar. nômicas, e elaborar e/ou selecionar propostas
Esse procedimento é igualmente legítimo de ação que promovam a sustentabilidade so-
quando se trata de nos colocarmos consciente- cioambiental, o combate à poluição sistêmica
mente como sujeitos das situações de ensino e e o consumo responsável.
aprendizagem: aquilo que escolhemos levar para (EM13CHS302) Analisar e avaliar criticamen-
a sala de aula e que colocamos à disposição dos te os impactos econômicos e socioambientais
alunos – os discursos! – expressam muito quem de cadeias produtivas ligadas à exploração
somos e aquilo que compreendemos a respeito de recursos naturais e às atividades agrope-
dos temas e assuntos abordados. cuárias em diferentes ambientes e escalas de
análise, considerando o modo de vida das po-

8 4
DINHEIRO E RIQUEZA
D DANIELLA BARROSO
L
N
P
IA

Essa é uma amostra de lixo seco acumulada em uma semana. O que ela informa sobre seu dono?
U

pulações locais – entre elas as indígenas, qui- Essas expectativas informam aquilo que se
lombolas e demais comunidades tradicionais espera que os alunos sejam capazes de realizar,
–, suas práticas agroextrativistas e o compro- tanto ações de desenvolvimento de uma forma de
G

misso com a sustentabilidade. se pensar a problemática ambiental (analisar im-


(EM13CHS304) Analisar os impactos socioam- pactos, avaliar criticamente) quanto ações de pro-
bientais decorrentes de práticas de institui- moção de práticas sociais que se convencionou
ções governamentais, de empresas e de indi- chamar de sustentáveis, abrangendo, inclusive, a
víduos, discutindo as origens dessas práticas, adoção de tais práticas pelos alunos (incorporar
selecionando, incorporando e promovendo práticas que favoreçam a consciência e a ética so-
aquelas que favoreçam a consciência e a ética cioambiental). Isso significa que se está propondo
socioambiental e o consumo responsável. que o conhecimento extravase o confinamento
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria que a instituição escolar muitas vezes promove: a
da Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC; SEB, 2018. p. 575.
abordagem geográfica do ambientalismo serviria
Disponível em: <http://basenacionalcomum. também, dentro dessa perspectiva, para transfor-
mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020. mar práticas sociais.

85
No centro dessa perspectiva, temos o indiví- Existem excelentes projetos sobre lixo nos

D
duo. Sim, essa escala nos é, por vezes, estranha: quais um jornalista e/ou artista inventaria dife-
professores de Geografia estão mais acostumados renças culturais por meio do registro das pessoas
às abordagens em pequena escala – o mundo, com seus resíduos; o fotógrafo Gregg Segal, por
o Estado, a região. O que propomos aqui é que exemplo, tem projetos muito significativos des-

L
você possa começar uma análise ambiental pe- sa natureza, como “7 Days of Bargage” e “Daily
las suas práticas sociais, usando conhecimento Bread” (disponível em: <https://www.greggsegal.
geográfico. As suas práticas sociais vão emergir com/Projects/thumbs>; acesso em: 22 dez. 2020).
da observação do lixo que você produz: o que Como a proposta é reconhecer nos resíduos ca-

N
ele revela sobre as decisões do dia a dia que têm racterísticas do modo de vida de quem o produz,
implicações ambientais? cabe muito bem uma classificação do material
Vamos fazer juntos uma análise desse tipo? que foi coletado: a que e a quem esses materiais
Seria interessante reunir esse material durante servem? É provável que, assim como no exemplo,

P
uma ou duas semanas, de forma a ter realmente a maior parte dos seus resíduos seja composta de
uma amostra fidedigna do que você produz em embalagens, não é? Pensando na função dessas
sua residência. A imagem a seguir traz um exem- embalagens, podemos chegar a um quadro como
plo para ajudar em nossa análise. o que segue, em que destacamos a função dos
materiais.
IA
Transporte entre o comércio e Proteção do produto até o Embalagem que acompanha o
a residência início do seu uso produto até o fim do uso

caixa de papel da pasta de


sacola plástica caixa de papel do hambúrguer
dente

envelope plástico de proteção


envelope lata de refrigerante
U

do sachê de chá

caixa de isopor (delivery) pacotes de salgadinhos pote plástico de manteiga

embalagem plástica que


G

envolve a caixa de papel dos lata de leite condensado embalagem plástico do queijo
sachês de chá

caixa de papel do adesivo de


embalagem de desodorante
nariz

embalagem plástica de waflle

caixa de papel com sachês de


chá

embalagens plásticas de
iogurtes

8 6
DINHEIRO E RIQUEZA
Você pode estar se perguntando por que agrupar Voltamos ao exemplo para pensar nas ações

D
os resíduos de acordo com um critério. Os geó- que poderiam reduzir cada um dos grupos de
grafos José Bueno Conti e Sueli Angelo Furlan materiais.
assim se pronunciam sobre isso:
O homem é essencialmente um ser “classifi- O TRANSPORTE DOS OBJETOS ENTRE

L
cador”. A classificação é uma das formas de O COMÉRCIO E A RESIDÊNCIA
ordenar nossa interpretação da realidade. Em diversos países do mundo, entre os quais
CONTI, José Bueno; FURLAN, Sueli Angelo. o Brasil, há políticas públicas que visam reduzir
Geoecologia: o clima, os solos e a biota. In:
ROSS, Jurandyr L. Sanches (org.). Geografia do
o uso de sacolas descartáveis. Em São Paulo, no

N
Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1998. p. 137. ano de 2012, uma tentativa de estabelecer paga-
mento pelas sacolas plásticas descartáveis causou
O critério que você utiliza para fazer o agru-
alvoroço: um acordo entre uma associação de su-
pamento já reflete como compreende a relação
permercados e o Ministério Público previa que os
entre os resíduos e as práticas cotidianas: em

P
supermercados deixassem de fornecer as sacolas
nosso exemplo, há uma hierarquização quanto ao
plásticas e colocariam à disposição dos clientes
tempo em que as embalagens permanecem em
caixas usadas de papelão e sacolas reutilizáveis
uso, desde aquelas que apenas servem ao trânsito
que poderiam ser compradas. As reações foram
do local de compra à residência até aquelas que
significativas porque colocaram em discussão
estão em uso enquanto o que elas contêm está
IA
ações individuais – grande parte dos clientes
em uso. É uma forma de “ordenar nossa inter-
dos supermercados considerou uma atitude de
pretação da realidade”, por isso é um elemento
difícil execução levar suas sacolas reutilizáveis
que revela os meandros de nossa compreensão
para as compras, alegando esquecimento e cos-
da realidade.
tume, principalmente – e também interesses das
Pode ser um exercício significativo esparra-
instituições, pois foi revelado o enorme custo das
mar todos os materiais coletados em uma super-
sacolas plásticas para os supermercados, que era
fície lisa e começar agrupá-los sem uma grande
U

o impulso principal para o fechamento do acordo.


reflexão prévia, juntando materiais que você julga
Você utiliza sacolas reutilizáveis? Em que
serem similares – é um caminho inverso ao con-
situações aceita as sacolas descartáveis forneci-
vencional, em que se constrói o critério de clas-
das pelo comércio? Como você se coloca nessa
sificação para, então, agrupar os elementos; isso
questão: o que é necessário para convencer você
G

contribui para uma reflexão posterior a respeito


a abolir completamente o uso desse tipo de ma-
do que levou ao agrupamento e, assim, levantar
terial? Sua resposta está mais inclinada para o
bons critérios de classificação.
que se convencionou chamar de “conscientização
E, afinal, como essa classificação contribui
ambiental”, que põe em evidência a decisão indi-
para identificar suas práticas cotidianas? A aná-
vidual sobre o uso, ou para a adoção de políticas
lise pode ser mais efetiva se há uma questão mo-
públicas? E quanto às embalagens de comidas
bilizadora, algo que direciona o olhar para cada
prontas entregues em domicílio? Certamente
um dos elementos analisados – e se perguntás-
elas deixam essa discussão mais complexa, pois
semos a respeito da possibilidade de eliminar
não há uma decisão individual: as empresas são
esses materiais? Se esses resíduos são fonte de
obrigadas a garantir que a comida transportada
problemas e inquietações, reduzir sua existência
chegue lacrada até o cliente, o que implica uso
é uma medida de primeira ordem, não?
de diversas embalagens.

87
É uma pena que a fotografia tenha se tornado experimento, lá pra meados do século XX, e

D
acessível há pouco tempo, pois seria muito po- saber se era possível abrir mão da cozinha; se
tente contar com registros das compras de super- era possível consumir alimentos totalmente
mercado de sua família em diferentes períodos da industrializados, que não precisa de nenhuma
infância, adolescência e vida adulta: as soluções preparação [...]. Tenho uma má notícia: esse

L
de transporte das compras e de recebimento de experimento falhou”. Ou seja, não é possível
comida comprada pronta eram distintas? Objetos ter saúde com esses alimentos que aboliram
antes de uso cotidiano em todo o mundo, como o a cozinha.
jogo de marmitas de alumínio e o casco de gar- Carlos Augusto Monteiro em entrevista para

N
Conversa com Bial, 27 ago. 2020. Disponível
rafa de refrigerante, hoje são restritos a algumas em: <https://globoplay.globo.com/v/8812022/
sociedades e locais. programa/>. Acesso em: 22 dez. 2020.

É uma prática comum no cotidiano de metró-


poles a realização de compras em algum ponto É uma ideia poderosa, não? As sociedades
urbano-industriais caminharam, desde o pós-

P
de um itinerário frequente ou casual: ao trocar
o modo de transporte em uma estação de trem guerra, para a eliminação da cozinha. Com as
ou terminal de ônibus, as pessoas podem realizar categorias geográficas, é possível analisar a planta
alguma compra ou um serviço. A pessoa vê uma das moradias nas últimas décadas, pensando na
farmácia ali por perto e se recorda de algo que (perda de) valorização do espaço da cozinha. Aqui
em nossa análise do lixo, essa é uma chave signifi-
IA
está em falta em sua casa; acontece, ainda, de
aproveitar alguma promoção que encontre nes- cativa de interpretação dos dados coletados: nas
se itinerário. É mais oportuno o uso das sacolas moradias em que predominam os alimentos in
reutilizáveis quando se sai de casa com o intuito natura, a quantidade de embalagem é seguramen-
de realizar uma compra, o que ajuda a explicar o te menor do que naquelas em que predominam
acúmulo de embalagens descartáveis em signifi- os alimentos industrializados, especialmente os
cativa parte dos domicílios urbanos. ultraprocessados, que costumam ter embalagens
mais elaboradas (o hambúrguer e os empanados
U

Já o aumento expressivo das comidas prontas


entregues nos domicílios mobiliza outro conjun- de frango são bons exemplos, pois contam com
to de práticas sociais. A reflexão proposta pelo uma caixa de papel externa e internamente são
médico e nutricionista Carlos Augusto Monteiro revestidos de saco plástico – os hambúrgueres
pode nos ajudar nessa análise. são embalados um a um nesse saco). E as comidas
G

Se eu abrir mão da cozinha, eu preciso basear


prontas entregues nas residências? Nesse caso, a
minha alimentação no alimento feito pela
cozinha foi terceirizada: em alguns casos, o es-
indústria. Então, a gente tem duas opções: o
tabelecimento onde esse alimento é preparado
alimento vem da natureza, a indústria vai fa-
utiliza alimentos in natura, mas, em muitos ou-
zer algum tipo de modificação nesse alimen-
tros, a cozinha do restaurante apenas aquece e/ou
to, sem destruir o alimento, aí ele chega nas
monta o prato, após receber o alimento congelado
nossas cozinhas e a gente vai combinar esses
da rede de empresa que integra.
alimentos, vai temperar [...] e eu vou ter os nu-
O que está por trás desse movimento de eli-
trientes que preciso, vou ter saúde [...]; a outra
minação da cozinha é o ritmo da vida nas me-
opção, que é você abrir mão da cozinha... tem
trópoles. Os compromissos são postos em uma
um pesquisador americano [Robert Lustig]
sucessão que é, ao mesmo tempo, temporal (vai
que fala: “A humanidade resolveu fazer um
do acordar até o momento de dormir) e espacial

8 8
DINHEIRO E RIQUEZA
(os itinerários precisam ser organizados cuidado- recebê-la onde está. Tudo isso aparece no lixo!

D
samente para possibilitar que os compromissos Não é um indicador potente do modo de vida
aconteçam de fato). A geógrafa Ana Fani Ales- urbano-industrial?
sandri Carlos assim se pronuncia sobre a vida
na cidade: AS EMBALAGENS QUE SERVEM À

L
As horas do dia determinam atitudes e ati- DISTRIBUIÇÃO DOS PRODUTOS
vidades do cidadão num ritmo alucinante. A Na próxima ida ao supermercado, que tal lan-
grande metrópole “funciona” vinte e quatro çar um olhar demorado sobre as embalagens? Às
horas por dia, o ritmo é diferente do ritmo do vezes, acontece de encontrarmos um funcionário

N
relógio biológico. O tempo aqui é diferente repondo objetos nas prateleiras e pode-se obser-
daquele do campo. O ritmo não é dado pela var como eles chegam ao comércio: em caixas de
natureza, estações do ano, nem pelo clima. A papelão, por exemplo. Alguns chegam embalados
vida é normatizada pelo uso do relógio e as dentro dessa caixa: as caixas de pasta de dente,

P
atividades na e da cidade se desenvolvem no por exemplo, costumam estar embaladas em uma
período de 24 horas, independente do clima, cinta plástica; ou seja, o que necessitamos é ape-
das condições físicas ou mesmo biológicas. [...] nas o creme dental, mas ele conta com diversas
O sinal dá a ideia do tempo e do entendimen- embalagens. O creme dental é embalado em um
to sobre o tempo. O semáforo é o símbolo da tubo para que possa ficar em nosso banheiro ou
IA
cidade de hoje, do seu ritmo febricitante, dos dentro de uma bolsa à espera de seu uso; esse
signos que emitem ordem. Do tempo visto tubo chega a nossas casas dentro de uma caixa de
como sinônimo de pressa. De um tempo social papel, que descartamos assim que se inicia o uso
diferencial construído por relações produti- do produto; para chegar ao ponto do comércio,
vistas. [...] O tempo passa a mediar a vida das essas caixas de papel são cintadas e acondicio-
pessoas, do seu relacionamento com o outro, nadas em uma caixa de papelão.
uma relação coisificada, mediada pelo dinhei- Uma parte significativa das campanhas de
U

ro e pela necessidade de ganhá-lo. consumo consciente aposta na pressão dos con-


CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 8. sumidores como forma de reduzir a quantidade
ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 15-18.
de embalagens desnecessárias: a ideia é que o
consumidor dê preferência a produtos que se
É o ritmo do uso do tempo que impulsio-
preocupem com a racionalização das embala-
G

na a eliminação da cozinha. Comer é mais uma


gens. Trata-se de uma proposta significativa-
das atividades imprensadas entre outros tantos
mente vazia de sentidos, pois isso se limitaria às
compromissos cotidianos. Basear as refeições no
situações em que há produtos embalados de ma-
preparo de alimentos in natura ou minimamente
neira distinta – o que levaria uma empresa a mo-
processados (arroz, feijão etc.) implica investir
dificar sua estrutura de produção é um conjunto
um tempo que cada vez menos pessoas têm a
amplo de situações, que certamente envolvem
sua disposição: comprar uma lasanha congela-
custos e pressão social, por meio de instituições
da e aquecer em um forno se encaixa de forma
do Estado e associações da sociedade civil. Outra
mais apropriada aos períodos do dia reservados
possibilidade que começa a ocupar reportagens
para a alimentação. Outra possibilidade a quem
da imprensa é fabricarmos nosso próprio creme
possui os recursos é fazer o pedido de uma la-
dental em casa! Em uma sociedade urbano-indus-
sanha fresca preparada em algum restaurante e
trial cada vez mais fragmentada quanto ao uso

89
do tempo e do espaço, cabe a possibilidade de em bases aceitáveis do ponto de vista ambiental.

D
fabricarmos xampu, sabonete e creme dental nas Podemos observar alguma similaridade com as
residências? A proposta de “lixo zero” esbarra, as- experiências de educação ambiental nas escolas:
sim, nas condições objetivas da vida nas cidades. a escola comporta práticas muitas vezes esvazia-
das de sentido para os alunos, pois seu significado

L
OS DISCURSOS E AS PRÁTICAS AMBIENTAIS está muito mais ligado à burocracia escolar (a
Um dos principais objetivos da abordagem escolarização básica dá acesso a um título que
das questões ambientais na escola é vulgarizar é parte da vida social); assim, temas como con-
comportamentos e práticas sociais que favore- sumismo e responsabilização pelos resíduos, se

N
çam o consumo consciente, uma vez que o con- obtiverem êxito em sua vulgarização no ambiente
sumo é a mola propulsora da produção e, conse- escolar, deveriam levar os alunos a modificar suas
quentemente, de seus impactos sobre recursos e práticas, o que implica, evidentemente, a constru-
processos naturais. Os movimentos ecológicos ção de uma postura crítica a respeito das condu-

P
também têm na transformação das práticas so- tas nos ambientes que frequentam. Em conversas
ciais um fundamento de sua existência. O geó- de professores, são frequentes situações em que
grafo Carlos Walter Porto-Gonçalves destaca que: os alunos, de diferentes segmentos, questionam
Ao propugnar uma outra relação dos homens a ausência de coleta seletiva na própria escola,
(sociedade) com a natureza, aqueles que cons- apesar de serem cobrados em avaliações pontuais
IA
tituem o movimento ecológico estão, na ver- a respeito do papel da destinação adequada dos
dade, propondo um outro modo de vida, uma materiais descartados e sua enorme importância
outra cultura. Chocam-se com valores já con- ambiental.
sagrados pela tradição e que, ao mesmo tempo, É uma situação clássica de desacordo entre
perpetuam os problemas que queremos ver o discurso construído na escola e as práticas
superados. É por esse caráter difuso de um levadas a cabo pelos sujeitos que a compõem.
movimento que, no fundo, aponta para uma Uma reflexão que pode, portanto, suceder à aná-
U

outra cultura, que os ecologistas se encon- lise dos resíduos que você produz diz respeito
tram envolvidos com questões tão diferentes ao que eles informam sobre sua própria adesão
como a luta contra o desmatamento, contra a práticas ambientais que serão abordadas em
os agrotóxicos, os alimentos contaminados, suas aulas. É também nesse sentido que nós, pro-
o crescimento da população, a urbanização fessores, nos colocamos em relação aos objetos
G

descontrolada, o gigantismo tecnológico e o de conhecimento que mobilizamos em nossos


nuclear, a poluição, a erosão dos solos, a ex- planos de trabalho docente. A escola brasileira é
tinção de animais etc. ainda bastante prescritiva, mas se costuma evi-
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os (des)caminhos tar discutir em sua comunidade: apresenta aos
do meio ambiente. 15. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p. 21. alunos movimentos políticos variados, como o
ambientalismo, e, no entanto, preocupa-se pou-
Nessa obra, o geógrafo aponta situações de
co em possibilitar que os alunos vivenciem esses
enorme complexidade da ação política dos movi-
movimentos não apenas como discursos, mas
mentos ambientais, quando, por exemplo, se luta
também como práticas cotidianas.
pelo fim de uma prática nociva a um ambiente e
Isso não significa, entretanto, que se está
o êxito nisso repercute em favorecimento a gran-
exigindo do professor de Geografia que aborda
des empresas que podem realizar aquelas ações
ambientalismo em suas aulas que ele seja um

9 0
DINHEIRO E RIQUEZA
ativista ambiental. Seria uma exigência bastante estudo sobre o que uma comunicação ambien-

D
rasa do ponto de vista intelectual. O que estamos tal precisa conter para convencer os munícipes
propondo é que você possa refletir sobre situa- a aderir às regras de uma política de resíduos
ções em que prescreve aos alunos mais do que sólidos. O que pode tornar essa comunicação
analisa com eles a realidade por você recortada eficaz: explicar o que ocorre com o resíduo após

L
em seu plano de trabalho. O passo fundamental a coleta pública? Informar as multas previstas
para reconhecer prescrições de comportamento em lei? Mostrar a decomposição de resíduos em
embutidas nos planos de aula levados a cabo um aterro?
na sala de aula é indagar-se a respeito de quais É provável que as perguntas reverberem em

N
práticas destacadas são realmente factíveis em você, pois elas dizem respeito ao que seria efi-
seu cotidiano. ciente para sua experiência pessoal. É nessa in-
Pode ocorrer de você se dar conta de que seus tersecção que sua abordagem pode ganhar sen-
resíduos têm uma destinação completamente tidos para além de um objeto de conhecimento

P
inadequada do ponto de vista ambiental: diferen- com o qual os alunos lidam burocraticamente;
temente do que seus planos de aula prescrevem em outras palavras, você parte dos sentidos que
como destinações adequadas – compostagem, constrói reconhecendo-se como sujeito das prá-
reciclagem etc. –, todo seu resíduo vai parar em ticas sociais que aborda em sala de aula! E, então,
um mesmo saco levado pela coleta pública do pode propor um exercício similar aos alunos, que
IA
domicílio. Por que não transformar isso em ma- podem fazer com você descobertas significativas
téria-prima para o plano de aula? Você é, nessa sobre o funcionamento das coisas.
situação, um sujeito interessantíssimo para um
U
G

91
D
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS.

QUANDO AS PALAVRAS INFORMAM


DE QUE LUGAR FALAMOS

L
N
A história se repete “mundo afora”: trechos da vai, assim, expulsando a população que estava ali.
cidade, como sua área de origem e antigos equi- Essa é a narrativa mais encontrada em estudos
pamentos urbanos (galpões industriais, estações urbanos sobre esse assunto: da estrutura espacial
ferroviárias em desuso), recebem investimento em desuso até sua conversão em um empreendi-

P
público em algum elemento de infraestrutura mento para um grupo social mais abastado.
ou em uma construção para abrigar uma insti- Na reportagem sugerida a seguir você pode ter
tuição cultural e isso deflagra uma mudança nos acesso a essa e outras nove tiras de quadrinhos
grupos sociais frequentes ali, cada vez mais ricos, sobre o tema da gentrificação.
de forma que o comércio se modifica, os serviços
IA
KWENORTEY, Emmanuella. From Doonesbury
to Grayson Perry: 10 of the best gentrification
também, levando a uma busca de moradia por
cartoons. The Guardian, 13 jan. 2016. Disponível em:
grupos sociais mais abastados e, consequente- <www.theguardian.com/cities/gallery/2016/jan/13/
from-doonesbury-to-grayson-perry-10-of-the-best-
mente, a uma valorização dos imóveis e muita gentrification-cartoons>. Acesso em: 8 jan. 2021.
especulação imobiliária.
Um quadrinho do livro Playing to the Galery, O especialista em marketing estadunidense
de autoria do artista britânico Grayson Perry, Scott Doyon produziu mais duas cenas para esse
circula bastante pela internet há alguns anos em quadrinho como forma de destacar o ciclo econô-
U

artigos sobre gentrificação. O quadrinho começa mico no qual se insere esse processo: o prédio de
com um antigo edifício industrial aparentemente apartamentos sai de moda e começa a dar sinais
em desuso (um colchão na calçada e uma bicicleta de abandono pelos proprietários, até que, na úl-
na rua dão indicação de que há ocupação, mas tima cena, o edifício está completamente aban-
G

facilmente percebemos o edifício como abando- donado, em uma condição similar à do prédio
nado) e termina com o terreno ocupado por um da fábrica, no início da história. O quadrinho de
edifício residencial de alto padrão claramente Grayson Perry, com as duas cenas acrescentadas
voltado para jovens ricos. Entre essas cenas, fica por Scott Doyon, ganha novo sentido, pois pare-
evidente que a valorização do imóvel se deve ao ce retornar à situação inicial, em que o edifício
uso do edifício como espaço de moradia de jovens construído no terreno da antiga fábrica parece
artistas “descolados”, levando um grupo social em desuso. No artigo indicado a seguir você pode
mais abastado a frequentar o edifício e, assim, ver como ficou a intervenção na tira:
modificar os usos predominantes ali – gentrificar DOYON, Scott. Gentrification examined from a wider
time frame. Public Square, 26 jul. 2017. Disponível em:
significa, nos estudos urbanos, trocar o grupo <www.cnu.org/publicsquare/2017/07/26/gentrification-
social dominante em um território urbano por examined-wider-time-frame>. Acesso em: 8 jan. 2021.

outro mais abastado, o que provoca valorização e

9 2
DINHEIRO E RIQUEZA
Esta proposta de reflexão tem o termo “pontos [...] O Soho, em Nova Iorque, é um dos bairros

D
de vista contrastantes” em seu objetivo; os dois onde ocorreu a gentrificação e a partir dele
pontos de vista contrastantes trazidos pelos dois foi elaborado esse modelo teórico que identi-
quadrinhos, o original e o ampliado, são críti- fica as três fases do processo. O antigo bairro
cos ao processo de valorização/desvalorização industrial oferecia galpões que puderam ser

L
imobiliária na cidade e eles divergem quanto à convertidos em apartamentos e galerias de
narrativa produzida para expressar o fenômeno. arte: os famosos lofts.
Essa escolha tem a intenção de provocar uma Inicialmente, os lofts tiveram como grandes
discussão a respeito do que destacamos quando atrativos: os baixos preços de aluguéis; a

N
elaboramos uma narrativa para abordar um fe- possibilidade de saciar demandas individuais
nômeno socioespacial em nossas aulas de Geo- em relação a estilo de vida, moradia, decoração,
grafia. Que tal levar esses quadrinhos para um independência, acessibilidade e proximidade
encontro coletivo de professores em sua escola a locais e serviços importantes. Com o baixo

P
e propor que cada um relate a história que cada custo dos aluguéis e múltiplas possibilidades
quadrinho conta? E se vocês criassem outra ver- criativas para o espaço de vivência, os novos
são do quadrinho elaborando duas cenas a se- inquilinos adaptaram suas moradias ao
rem acrescidas ao início do quadrinho original, seu próprio estilo. O grande centro urbano
mostrando esse prédio em período anterior a seu também possibilitava a esses grupos certo
IA
desuso como fábrica: isso modificaria a história anonimato e liberdade frente aos valores
contada por Grayson Perry? Seria um ponto de tradicionais e familiares que caracterizavam
vista contrastante? E se ficasse mais evidente o o subúrbio. [...]
uso da antiga fábrica como moradia de coletivos Em um primeiro momento, os novos inquili-
de sem-teto ou de squatters, inserindo uma cena nos conviviam bem com as classes trabalha-
no meio do quadrinho original, como isso modi- doras e pobres que tradicionalmente ocupa-
fica a abordagem? vam aqueles bairros. A ambiência do bairro
U

O quadrinho original, de Grayson Perry, é par- permanece semelhante à precedente: com seu
te de um conjunto de obras do artista a respeito comércio local tradicional, heterogeneidade
do funcionamento do mercado de artes visuais. étnica e a presença dos antigos moradores.
Sua história destaca, portanto, o papel de artistas Todavia, partir da ação desses pioneiros desen-
na valorização de áreas da cidade ocupadas por volveu-se um novo estilo de vida. Até os anos
G

população pobre e que, como resultado dessa pre- 1970 a ideia de viver em uma espécie de galpão
sença, é expulsa à medida que o custo de vida se de fábrica antiga, com pisos de madeira polida,
encarece. É uma referência bastante direta a um fachadas de ferro fundido e paredes de tijolos
caso emblemático de gentrificação: o Soho, em expostos não era atrativa à classe-média. Po-
Nova York – um artigo do historiador Matheus rém, a partir de então o loft living passaria a se
Cássio Blach aborda o processo nova-iorquino e tornar um estilo de moradia “burguês-chique”.
o ocorrido no Le Marais, bairro de Paris; ele des- Enquanto os teóricos atribuem aos pioneiros
taca a expulsão dos antigos moradores do Soho da primeira fase um processo mais livre e des-
como consequência da atração de grupos sociais pretensioso, a segunda fase está associada a
mais ricos e pouco dispostos a viver em um bairro uma classe média socialmente e culturalmente
heterogêneo, com populações mais pobres. mais consciente: são profissionais de áreas di-
versas que visualizam a moradia nos aparta-

93
mentos reformados como um passo de sua tuais que buscam promover um determinado

D
jornada para adquirir uma casa própria. conceito de cultura e de história segundo seus
O número de propriedades compradas se tor- próprios interesses. Ocorre a exclusão defini-
na crescente nos bairros e os apartamentos re- tiva daqueles inquilinos mais pobres.
formados entram em evidência. A ambiência e BLACH, Matheus Cássio. Gentrificação,

L
modelos teóricos e estudos de caso: ensaio de
a paisagem do bairro começam a ser transfor-
crítica historiográfica. Revista de Arquitetura
madas e diante do público em potencial surge IMED, Passo Fundo, v. 8, n. 1, jan.-jun. 2019.
Disponível em: <https://doi.org/10.18256/2318-
um novo comércio de lojas e restaurantes. 1109.2019.v8i1.3443>. Acesso em: 22 dez. 2020.
O processo iniciado por aqueles moradores

N
pioneiros atrai a atenção de investidores e a A afluência de artistas e jovens universitários
especulação imobiliária tem início no bairro. no Soho modificou gradativamente as caracte-
O preço dos aluguéis aumenta, o comércio rísticas socioeconômicas de seus moradores e
local é transformado e as novas lojas são mais dos visitantes frequentes a seu comércio e seus
serviços. Isso encareceu o preço da terra, o que

P
caras e cosmopolitas, perdendo suas caracte-
rísticas tradicionais e locais. Os antigos mo- criou dificuldades para a população mais antiga,
radores lentamente começam a sofrer as con- de classe pobre, quanto aos contratos de aluguel,
sequências da chegada dos novos inquilinos mas também em seu consumo cotidiano. Ao lon-
e das transformações ocorridas no bairro. O go do tempo, houve, assim, expulsão dos antigos
IA
processo de exclusão se inicia. moradores e um afluxo de grupos sociais muito
Ironicamente, os pioneiros que deram início mais abastados.
a esse processo estão dentre os que mais la- Você nomearia esse processo descrito de “re-
mentam a descaracterização do ambiente em vitalização”? Ou, ainda, de “requalificação”, “rea-
que escolheram viver. bilitação” e “regeneração”? Bem, esses são os ter-
[...] Neste ponto, mais um grupo de novos mo- mos amplamente usados por cientistas sociais e
radores surge. A vida nos lofts, de uma alter- urbanistas para se referir a situações bastante
similares. O prefixo “re” indica que se pretende
U

nativa economicamente viável para aqueles


que procuravam escapar da monotonia dos implementar algo que já esteve presente ali e pre-
subúrbios, torna-se uma moda burguesa. cisa retornar, ser retomado. Mas esse é o ponto
O interesse majoritário desses grupos está de vista de quem?
muito mais ligado ao status social do que a Os termos “revitalização” e “regeneração” já
G

ideia de um ambiente de vivência heterogê- foram enormemente contestados pela postura


neo. Os apartamentos e o comércio tornam- em relação à apropriação do espaço: assumem
se investimentos de alto valor e não exercem que haveria ausência de vida ou uma ferida no
mais a função de uso alternativo e adaptativo tecido a ser regenerado, o que naturaliza como
característico da primeira fase. “deteriorado” o território apropriado pela popu-
O novo grupo de moradores e proprietários lação mais pobre e/ou pelos setores da economia
mais ricos passa a habitar o bairro por mais menos dinâmicos e rentáveis quanto à reprodu-
tempo e a constituir família. Os movimentos ção do capital. O geógrafo estadunidense Neil
que visavam resistir à especulação imobiliá- Smith foi um grande crítico dessa “eufemização
ria, à expulsão dos moradores originais e às da linguagem”, em suas palavras, para abordar
transformações da ambiência do bairro são ações na cidade.
reduzidos a grupos de interesse de intelec-

9 4
DINHEIRO E RIQUEZA
Para começar, de onde vem essa linguagem? da implantação dessa estratégia. Esse debate

D
Um termo biomédico, aplicado a espécimes de fez surgir outros termos equivalentes, como
plantas, espécies ou grupos de espécies – um recuperação, reabilitação, renovação, requa-
fígado ou uma floresta podem se regenerar – lificação e gentrificação. As discussões acerca
por isso sua aplicação metafórica é muito reve- das especificidades de cada termo empregado

L
ladora. Ainda que a linguagem da regeneração nesses projetos de refuncionalização ainda
tenha sido sempre utilizada para descrever a permanecem, não havendo consenso entre os
cidade, ela só se afirmou realmente com os profissionais envolvidos com o planejamento
neoliberais anos noventa. O que implica que e o estudo dos espaços urbanos.

N
a gentrificação estratégica da cidade é verda- [...]
deiramente um processo natural. Assim, os A substituição sistemática do termo revitali-
arautos da estratégia de regeneração masca- zação por requalificação urbana é evidente nos
ram as origens sutilmente sociais e os objeti- projetos e ações observadas recentemente em

P
vos da mudança urbana, apagam as políticas centros históricos degradados ou edifícios
de ganhadores e perdedores de onde emergem isolados. Comumente presente em planos es-
tais linhas de ação. tratégicos de cidades atuais, a requalificação
SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de apresenta propostas alicerçadas na recupera-
uma anomalia local à “regeneração” urbana como ção e na valorização das origens e das verda-
estratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHARIASEN,
IA
Catherine (coord.). De volta à cidade: dos processos deiras representações sociais, humanizando e
de gentrificação às políticas de “revitalização” dos
centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p. 83. controlando o sistema de exclusão das cidades
contemporâneas (se opondo ao sentido exclu-
Para o geógrafo, a adoção de termos oriundos dente do termo revitalização), e, ao mesmo
das ciências biológicas promove um apagamento tempo, reinventando identidades baseadas em
da destinação das pessoas que ocupam os espa- produções socioculturais locais.
ços sob as intervenções pretendidas nos planos SOTRATTI, Marcelo Antonio. Revitalização. In:
urbanos: ao caracterizar esses territórios como REZENDE, Maria Beatriz et al. Dicionário Iphan
U

de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro/Brasília:


“vazios”, “abandonados”, “deteriorados”, entre ou- Iphan, 2015. Disponível em: <http://portal.iphan.
gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/58/
tros termos, isso abre caminho para a adoção de revitalizacao>. Acesso em: 22 dez. 2020.
planos urbanos que promoveriam “revitalização”,
“regeneração”, “renovação”. De acordo com o geógrafo Marcelo Sotratti,
G

O verbete “revitalização” do Dicionário do houve substituição do termo “revitalização” por


Patrimônio Cultural, do Instituto do Patrimônio outros equivalentes, o que possibilita depreender
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), reverbera que a crítica ao termo, trazida pelo geógrafo Neil
a crítica: Smith, pode ter sido compreendida por parte dos
No Brasil, o termo inicialmente e amplamente urbanistas e outros gestores de projetos urbanos
empregado foi revitalização urbana. No entanto, mais como um incômodo com o vocábulo do que
a precisão e a riqueza da língua portuguesa uma resistência ao lugar (ou à ausência dele) da
fizeram surgir uma séria discussão entre os população pobre nesses projetos.
profissionais envolvidos com tal prática, uma Vamos analisar dois exemplos de uso desses
vez que o termo revitalização claramente su- termos chamados de equivalentes na publicação
gere uma conotação de exclusão dos usos e de do Iphan. O primeiro exemplo diz respeito a uma
grupos sociais que ocupavam tais áreas antes publicação do antigo Ministério das Cidades, o

95
Manual de reabilitação de áreas urbanas, que traz num bairro reabilitado, a melhoria da quali-

D
o termo “reabilitação” já no título. dade de vida será sensível.
Morar no centro: opção que ressurge BALBIM, Renato (coord.). Manual de Reabilitação
de Áreas Urbanas Centrais. Brasília: Ministério
Os centros das grandes cidades brasileiras
das Cidades; Agência Espanhola de Cooperação
apresentam uma grande quantidade de imó- Internacional – AECI, 2008. p. 9-10.

L
veis vazios: prédios residenciais ou comerciais
totalmente desocupados ou com utilização
O diagnóstico é de que há imóveis vazios e
apenas do andar térreo. Isso contribui para o
famílias pobres que não podem pagar para mo-
grande percentual de domicílios vazios iden-
rar ali, assim o uso do termo “bairro reabilitado”

N
tificados pelo IBGE nas grandes cidades, che-
parece indicar uma política pública de incentivo
gando a ultrapassar 18% em cidades como
à apropriação do território por grupos sociais
Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
heterogêneos. De fato, a definição do termo “rea-
Muitas famílias de classe média optaram por
bilitar” nesse mesmo documento destaca isso:
REABILITAR um centro urbano significa

P
sair do centro nas últimas décadas porque
recompor, através de políticas públicas e de
preferiam morar em apartamentos ou casas
incentivos às iniciativas privadas, suas ativi-
mais modernos, em bairros mais segregados,
dades e vocações, habilitando novamente o
ou porque consideravam as condições do cen-
espaço para o exercício das múltiplas funções
tro deterioradas. Para as famílias de menor
urbanas, historicamente localizadas naquela
IA
renda, o acesso a essas unidades deixadas va-
área, que fizeram de sua centralidade uma
zias no centro é economicamente impossível,
referência para o desenvolvimento da cidade.
e as opções mais viáveis continuaram sendo
os cortiços, favelas e loteamentos precários na BALBIM, Renato (coord.). Manual de Reabilitação
de Áreas Urbanas Centrais. Brasília: Ministério
periferia. No entanto, em algumas áreas cen- das Cidades; Agência Espanhola de Cooperação
Internacional – AECI, 2008. p. 5.
trais, ainda moram muitas famílias para quem
essa localização é importante em função, espe-
“Reabilitar” e “recompor” são os termos-chave
U

cialmente, da proximidade do trabalho.


desse ponto de vista: o gestor público promove-
Embora morar no centro possa ser uma op-
ria o retorno de atividades que conferiam àquele
ção para famílias de qualquer faixa de renda,
trecho da cidade uma centralidade na vida social
a preocupação principal do Ministério das
e que já não estaria mais presente nas dinâmicas
Cidades é viabilizar a permanência e vinda
G

urbanas, por meio de instrumentos jurídicos que


daquelas com renda inferior a cinco salários
oferecem regras distintas de operação naquele
mínimos, que constituem a maior parte do
território, como a oferta de determinadas van-
déficit habitacional brasileiro.
tagens fiscais para determinados tipos de cons-
Ao promover a reforma de parte desses imó-
trução e/ou reforma de imóveis.
veis centrais e destiná-los a estas pessoas, a
Em uma publicação do Banco Interamericano
política pública está tratando de incluir uma
de Desenvolvimento – Volver al centro: la recupera-
parcela da população na cidade formal, per-
ción de áreas urbanas centrales (Nova York: Banco
mitindo-lhe habitar uma região consolidada,
Interamericano de Desarollo, 2004) –, também
provida de toda infraestrutura e mais próxima
são abordadas estratégias para promover a “re-
de locais de trabalho.
cuperação” de áreas urbanas centrais america-
Para as famílias já moradoras no centro, que
nas e, assim, possibilitar o “retorno” ao centro.
passam a ter uma moradia adequada e a viver

9 6
DINHEIRO E RIQUEZA
Após uma identificação de possíveis causas para edifícios, infraestruturas e espaços públicos,

D
a “deterioração” dos centros urbanos, o autor, o e a obsolescência funcional de certas formas
urbanista chileno Eduardo Rojas, apresenta um edificadas cujos programas arquitetônicos e
amplo conjunto de exemplos organizados em níveis de serviço não respondem às necessida-
torno dos resultados esperados: (a) recuperação des contemporâneas, são fatores simultâneos

L
de áreas abandonadas ou subutilizadas, que traz no processo de abandono e deterioração das
como exemplos Puerto Madero, em Buenos Ai- áreas centrais.
res, o porto fluvial de Hamburgo, e as docas de ROJAS, Eduardo. Volver al centro: la
recuperación de áreas urbanas centrales.
Londres; (b) recuperação urbana para modificar Nova York: Banco Interamericano de

N
a tendência de crescimento, com os exemplos Desarollo, 2004. p. 7. Texto traduzido.

do bairro parisiense de Bercy, a cidade de Bil-


bao e o Eix Macià na antiga cidade industrial “Obsolescência” é um termo bastante revela-
catalã Sabadell, ambas cidades espanholas; (c) a dor do que está em jogo quando se trata do uso
de todos esses termos com o prefixo “re”: o espaço

P
recuperação de áreas urbanas deterioradas, com
exemplos do bairro Penn de Washington, o centro que servia bem à reprodução do capital em um
histórico de Quito e o centro de Santiago. São período torna-se obsoleto em outro, posto que
centros urbanos em decadência em seu desempe- não atende mais às “necessidades contemporâ-
nho econômico e/ou pedaços desses centros com neas”. O acréscimo das duas cenas ao quadri-
nho sobre gentrificação remete diretamente aos
IA
alguma infraestrutura outrora significativa para
a reprodução de capital também em decadência ciclos de valorização/desvalorização imbricados
quanto à sua inserção em circuitos econômicos. nessa inserção/desinserção de um equipamento
Desse ponto de vista, o que se busca recuperar? urbano ou até de uma parte da cidade em circui-
É o mesmo sentido do termo “reabilitar” no do- tos econômicos dinâmicos; em outras palavras,
cumento de ministério brasileiro? Um trecho da enquanto se reproduz capital em um porto, fer-
publicação aponta diretamente as correlações rovia, galpão industrial, enfim, na cidade, esses
fixos espaciais participam de fluxos de capital
U

entre o que o autor chama de “deterioração” e


mudanças na economia. e se mantêm relevantes, mas quando se tornam
Na maior parte dos casos, o abandono ou de-
um empecilho à reprodução de capital, podem
terioração central é o resultado de mudanças
tornar-se marginais nos circuitos econômicos
progressivas nas atividades econômicas e re-
ou até deixar de integrá-los.
G

sidenciais e da gradual deterioração física e


Caso seja possível, retome a história que você
funcional nos ativos imobiliários. Outras ve-
contou para cada quadrinho: você alteraria os
zes o processo se move com maior velocidade
termos que utilizou nelas? Como um adolescente
impulsionado por eventos de grande impacto.
brasileiro compreenderia a destinação desse edi-
São casos de áreas de armazéns e serviços de
fício industrial se você apresentasse a construção
trabalho ferroviário que são gradualmente
do “Bohemia Apartments” como uma intervenção
abandonados devido à suspensão dos serviços
de revitalização do bairro? E se o termo utilizado
de trem ou a deterioração de bairros inteiros
fosse “regeneração”, “requalificação” ou “reabili-
como resultado da construção de uma obra
tação” do bairro, mudaria algo em sua leitura do
viária que os fragmenta visual e funcional-
quadrinho?
mente em relação à cidade. Em resumo, as
Uma possibilidade de abordar um ponto de
mudanças de uso, a obsolescência física de
vista contrastante é contrapor essa literatura a

97
outra que aborde o fenômeno sob um embasa- lução Industrial do país, nas décadas finais do

D
mento teórico-metodológico distinto. século XX, já não se encontram as unidades fabris
A interpretação do geógrafo britânico David mais rentáveis, que se deslocaram para novas
Harvey, por exemplo, aponta para uma contra- estruturas adequadas às novas configurações da
dição do modo de produção capitalista: a ne- produção, em muitos casos, em países periféricos;

L
cessidade constante de inovação para acelerar a por algum tempo esses edifícios são ocupados por
circulação de capital (que é vital para reproduzir atividades fabris de baixa tecnologia ou funcio-
o capital nas formas mais ágeis e, portanto, mais nam como estoques de redes comerciais.
rentáveis) acaba por tornar obsoletas estruturas Barcelona, desde a década de 1980, capitaneou

N
antes eficientes; essas estruturas, entretanto, são uma configuração de intervenções na infraes-
capital imobilizado. trutura sob capital público e privado investido
Essas estruturas espaciais se manifestam na em infraestrutura: a estratégia girou em torno
forma fixa e imóvel de recursos de transporte, da realização da edição dos Jogos Olímpicos de

P
instalações fabris e outros meios de produção Verão em 1992. O Vale do Ruhr, o mais poderoso
e consumo, impossíveis de serem movidos sem centro industrial alemão, nos anos 2000, con-
serem destruídos. [...] A paisagem geográfica, verteu seu patrimônio industrial em um centro
abrangida pelo capital fixo e imobilizado, é cultural europeu, com festival de música, museus,
tanto uma glória coroada do desenvolvimento centros de convenções e diversos outros equipa-
IA
do capital passado, como uma prisão inibido- mentos fundamentais para o setor cultural e de
ra do progresso adicional da acumulação [...]. turismo – em 2010, a região foi Capital Cultural
O desenvolvimento capitalista precisa supe- da Europa, concentrando diversos eventos de
rar o delicado equilíbrio entre preservar o grande porte. Reportagem da Folha de S.Paulo, em
valor dos investimentos passados de capital 2006, sintetiza no título esse processo: “Sucata
na construção do ambiente e destruir esses vira polo turístico na Alemanha”. Puerto Madero
investimentos para abrir espaço novo para a também é um exemplo notório: no fim do século
U

acumulação. Em consequência, podemos es- XIX, um projeto portuário e ferroviário fracassa-


perar testemunhar uma luta contínua, em que do, já que o porto serviu ao propósito principal
o capitalismo, em um determinado momento, não mais do que por duas décadas (navios gran-
constrói uma paisagem física apropriada à des não conseguiam entrar nos canais), se tornou,
sua própria condição, apenas para ter de des- na entrada do século XXI, um gigantesco negó-
G

truí-la, geralmente durante uma crise, em um cio imobiliário. Uma empresa estatal foi criada
momento subsequente. para fazer a gestão do espaço, com conversão dos
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. galpões industriais em comércio, universidade,
São Paulo: Annablume, 2005. p. 53-54. cinema, entre outros estabelecimentos, e arrua-
mento de toda a área aterrada lindeira ao canal
Há muitos exemplos em todo o mundo de
do porto, o bairro Puerto Madero, onde foram
estruturas portuárias, ferroviárias e fabris que
desenvolvidos projetos imobiliários residenciais,
ficaram em desuso e, anos depois, foram desti-
corporativos e hoteleiros.
nadas a novas funções, de forma que voltaram a
Ainda que sua filiação acadêmica privilegie
integrar circuitos ágeis de circulação de capital.
uma dessas interpretações, ou ainda outra não
Em variadas cidades europeias, nos primeiros
contemplada nessa análise, o propósito dessa
galpões industriais, onde foi deflagrada a Revo-
proposta de reflexão é fazer emergir a riqueza de

9 8
DINHEIRO E RIQUEZA
D
FUNDACIÓN HISTARMAR

L
N
P
GOOGLE EARTH

IA
Puerto Madero, Buenos Aires, em dois momentos: vista da área de carga e descarga na rua
Belgrano, em 1920; o mesmo prédio em imagem atual. A linha ferroviária funcionou durante
longo tempo como uma cicatriz no tecido urbano, pois marcava o fim da área transitável do
microcentro da cidade. Para além da linha férrea, havia galpões subutilizados e o canal do porto
U

em desuso. Atualmente, essa área é um polo corporativo fundamental para a economia portenha.

se apresentar em sala de aula pontos de vista dis- abrangente, que insere essas intervenções em
tintos, que divergem entre si quanto ao que des- uma interpretação a respeito do funcionamento
tacam do fenômeno observado e de sua interpre- do modo de produção capitalista.
G

tação. Isso ocorreu na ação de acrescentar cenas É frequente observar que os alunos de ensi-
ao quadrinho, pois a narrativa, que era centrada no médio chegam a esse segmento operando em
no papel da arte e da chamada indústria criativa bases extremamente simplistas: certo/errado,
na valorização imobiliária, deslocou-se para os ci- positivo/negativo, bom/mau etc. Apresentar di-
clos de valorização e desvalorização que ocorrem ferentes interpretações de um fenômeno é uma
na cidade. Também se obtém um contraste de excelente estratégia para romper com essa lógica
pontos de vista ao apresentar os projetos urbanos ou pelo menos fazer balançar as possíveis cer-
ligados a investimentos em áreas que já se cons- tezas que os alunos trazem construídas de sua
tituíram centralidades econômicas e que estão trajetória escolar. Saber distinguir o fenômeno
à margem desses circuitos sob o ponto de vista de suas interpretações é um passo fundamental
dos projetos locais, pontuando suas estratégias para apreender a complexidade do mundo.
e seus resultados, assim como um quadro mais

99
D
O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE.

A PRODUÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS COMO


INDICADOR DE CONCENTRAÇÃO DE RENDA

L
N
Atualmente, indicadores e índices são parte O produto interno bruto (PIB), por exemplo, é
fundamental da vida social: propostas de parti- representado por um número. Mas o que efe-
dos políticos nas eleições estão recheadas deles; tivamente mede esse número? Riqueza como
as leituras panorâmicas realizadas por jorna- estoque ou fluxo? Inclui os serviços? Inclui

P
listas e comunicadores também. Seu uso mais a economia informal? Inclui o trabalho do-
consistente, no entanto, se dá na formulação de méstico? Inclui o custo para a aquisição de
políticas públicas: linhas telefônicas, que era astronômico no
Os indicadores sociais têm um papel funda- Brasil há alguns anos, e hoje é praticamente
mental no desenho, na implementação e na equivalente a zero? Dependendo dessas res-
IA
avaliação de políticas públicas. Os indicadores postas, o PIB adquire valores diferentes, e o
informarão ao gestor a respeito da quantidade número aponta para um significado distinto.
de alunos por escola/sala de aula, do número Portanto, quando alguém utiliza alguma cifra
de detentos por presídio/sela, do numerário macrossocial e pede que meditemos sobre o
de homicídios por estado/cidade/bairro, do dado, caracteriza-se desde o princípio algo de
montante de pessoas desempregadas etc. errado e falacioso: deveríamos, inicialmente,
ser convidados a meditar sobre a forma como
U

PARAHOS, Ranulfo et al. Construindo indicadores


sociais: uma revisão da bibliografia especializada. esse dado foi obtido, sobre o que foi incluído
Perspectivas, São Paulo, v. 44, p. 150, jul./dez. 2013.
e o que foi excluído para se chegar a esse va-
Na Geografia, os dados de recenseamentos lor, para daí, então, ser possível extrair algum
ocupam lugar destacado há bastante tempo; o significado do número.
G

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, MATTAR, João. Metodologia científica na era


digital. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 77.
responsável pelos censos demográficos, atual-
mente coleta dados sobre os mais diversos as- A escola e a imprensa são as principais res-
suntos: da busca por emprego aos padrões de ponsáveis pela naturalização de indicadores
alimentação. socioeconômicos: o produto interno bruto, por
Para além de seu papel mais nobre – o dese- exemplo, naturalizou-se como uma expressão
nho de políticas públicas –, os indicadores so- quantitativa da riqueza. A naturalização ocorre
cioeconômicos contribuem para mediar nossa mesmo quando uma definição do indicador é
percepção da situação de conjuntos numerosos fornecida ao leitor. “O PIB é a soma de todos os
de pessoas e de instituições. Quantos de nós, no bens e serviços finais produzidos” é uma afir-
entanto, somos capazes de explicar como se chega mação repetida em toda parte quando se trata
ao produto interno bruto?

10 0
DINHEIRO E RIQUEZA
de explicar o significado do dado. Propomos um CORRELAÇÃO ENTRE RESÍDUOS

D
exercício: assista a um vídeo da série “IBGE Expli- SÓLIDOS E PODER DE CONSUMO
ca” sobre a forma de cálculo do produto interno Um estudo do Banco Mundial denominado
bruto e compare as informações fornecidas com What a Waste 2.0, de 2018, traz um conjunto am-
essa definição do indicador. plo de dados sobre resíduos sólidos, com forte

L
IBGE. PIB: o que é, para que serve e como é calculado. destaque para os materiais que compõem os re-
IBGE Explica, 21 fev. 2017. Disponível em: <https://
síduos e para os valores por região do mundo. No
youtu.be/lVjPv33T0hk>. Acesso em: 22 dez. 2020.
estudo, esses valores não são confrontados com o
Ainda que os procedimentos de cálculo do número de habitantes, o que coloca o Leste Asiá-

N
indicador não sejam explicitados no vídeo, ele tico como campeão da geração de lixo. Observe
já possibilita um significativo avanço na com- o gráfico abaixo.
preensão de seu significado, não é? Esta propos- É fundamental indagar o que esse dado revela,
ta diz respeito a esse tipo de avanço: explicitar abrangendo na pergunta a representação gráfi-

P
as correlações entre o dado quantitativo e suas ca utilizada para apresentá-lo: um mapa-múndi
significações possibilita uma desnaturalização com essas regiões indicadas não informaria a
dos discursos que se valem dos indicadores como questão mais relevante – quantas pessoas gera-
parte significativa da argumentação. ram esse lixo –, mas serviria como um alerta de
Nossa proposta é construir um indicador que se trata de extensões territoriais bastante
IA
com os alunos usando dados sobre a geração de distintas. Pesquisamos os dados de população de
resíduos sólidos. O termo “construir” não diz cada região no banco de dados da instituição, no
respeito apenas à criação de uma estratégia de mesmo ano dos dados de resíduos, para chegar ao
obtenção de dados, mas também ao fato de que valor per capita de lixo gerado anualmente. Veja
um dado pronto, obtido por alguma instituição o resultado no gráfico da página seguinte. Uma
como o IBGE, não corresponde necessariamente mudança completa na leitura dos dados de resí-
a um indicador, pois o que faz de um dado um duos, quando consideramos a população!
U

indicador é a interpretação
que se faz dele. Vamos a um Geração anual de resíduos sólidos, por região (2016)
exemplo: em 2018, foram
500
gerados 2 bilhões de tone-
ladas de resíduos sólidos. 468
G

400 milhões
ton.
Esse é um dado, mas quais 392
seus significados? Estamos milhões
DANIELLA BARROSO

300 ton.
334
propondo que a quantida- milhões
ton. 289
milhões
de de resíduos sólidos seja 200 ton.
231
milhões
interpretada como um in- ton.
174
dicador do poder de consu- 100 milhões
129
ton.
milhões
mo da população responsá- ton.

0
vel por sua geração. Leste Asiático Europa e Sul da Ásia América América África Oriente Médio
e Pacífico Ásia Central do Norte Latina e Subsaariana e Norte da
Caribe África

WORLD BANK. What a Waste 2.0: a Global Snapshot of Solid Waste


Management to 2050. Disponível em: <www.worldbank.org/en/
news/infographic/2018/09/20/what-a-waste-20-a-global-snapshot-of-
solid-waste-management-to-2050>. Acesso em: 22 dez. 2020.

101
Geração anual de resíduos sólidos per capita, por região (2016) dispõem e os significados

D
que pensam em atribuir a
800
805 eles. Nossa sugestão é que
kg /
pessoa se faça uma correlação
700
com o poder de consumo,

L
então é fundamental que
600
eles possam reconhecer as
500
desigualdades entre socie-
dades urbano-industriais
DANIELLA BARROSO

N
400 430 e, se possível, entre essas
kg /
pessoa
368 sociedades e povos tradi-
300 kg /
cionais e indígenas.
pessoa
298
kg /
pessoa
Um caminho promissor
200

P
204 é obter dados ligados à pu-
kg / 189 170
pessoa kg / jança econômica do país,
100 pessoa kg /
pessoa
como a renda nacional bru-
0 ta per capita. O banco de
América Europa e América Oriente Leste Asiático Sul da Ásia África dados do Banco Mundial
do Norte Ásia Central Latina e Médio e Norte e Pacífico Subsaariana
IA
Caribe da África conta com esse dado para
Elaborado com base em: WORLD BANK. What a Waste 2.0: a Global Snapshot of Solid as regiões indicadas nos
Waste Management to 2050. Disponível em: <https://datatopics.worldbank.org/what-
a-waste/trends_in_solid_waste_management.html>; WORLD BANK. World Bank Open dados de resíduos sólidos.
Data. Disponível em: <https://datos.bancomundial.org/>. Acessos em: 22 dez. 2020. Também poderia ser
utilizado o PIB per capita,
No gráfico da página anterior, o Leste Asiático
a renda per capita ou qual-
gera pouco menos do que o dobro dos resíduos
quer outro indicador de rendimentos – no ban-
gerados na América do Norte, mas quando consi-
U

co de dados do Banco Mundial (disponível em:


deramos o volume de cada habitante (gráfico aci-
<https://datos.bancomundial.org/>), é possível
ma), os dados do Leste Asiático são quatro vezes
digitar o nome das regiões e, assim, encontrar os
mais baixos; em outras palavras, um estaduniden-
dados consolidados. Deixar que os alunos esco-
se gera quatro vezes mais lixo do que um asiático
lham os dados transfere a eles a responsabilidade
G

e duas vezes mais do que um latino-americano.


por pesquisar a definição do indicador e justificar
Esses dados são um indicativo consistente de
como ele serve como expressão de riqueza mate-
que sociedades urbano-industriais têm distintos
rial da população.
comportamentos em relação à geração de resí-
Observando o dado de renda nacional bru-
duos sólidos: um aprofundamento na investiga-
ta, na tabela a seguir, é possível observar que a
ção levantaria aspectos de distinção entre essas
ordem das regiões, do maior valor para o menor
sociedades, como os rendimentos da população,
valor, coincide com o ordenamento dos dados
o padrão de alimentação, a metropolização de
de geração de resíduos per capita, exceto o Leste
suas cidades, entre outros. Tem-se aqui um ponto
Asiático e Pacífico, que estava em 5o lugar quanto
de partida muito significativo para a construção
aos resíduos e, em relação à renda nacional bruta,
do indicador: os alunos precisam ser capazes
está em 3o lugar.
de explicar a correlação entre os dados de que

10 2
DINHEIRO E RIQUEZA
Renda nacional bruta per capita (2016) – Um croqui cartográfico pode ser utilizado

D
em dólares dos EUA pelos alunos para organizar os dados utilizados
e, também, para que conheçam a extensão das
América do Norte $ 55.856,478 regiões do banco de dados do Banco Mundial. O
Europa e Ásia Central $ 23.342,339 mapa abaixo traz essa regionalização.

L
Leste Asiático e Pacífico $ 9.903,209 No Brasil, o Atlas de saneamento 2011, do IBGE,
América Latina e Caribe $ 8.543,276 apesar de contar com dados antigos, grande parte
Oriente Médio e Norte da do ano de 2008, é uma referência fundamental
África $ 7.714,717 para os alunos construírem um indicador bra-

N
Sul da Ásia $1.614,447 sileiro; um dos capítulos diz respeito ao manejo
África Subsaariana $ 1.578,911 de resíduos sólidos e traz dados dos municípios
quanto a geração, coleta e destinação dos resí-
Elaborado com base em: WORLD BANK. World
Bank Open Data. Disponível em: <https://datos.
duos. Ele está disponível para download na biblio-

P
bancomundial.org/>. Acesso em: 22 dez. 2020. teca do IBGE (disponível em: <https://biblioteca.
ibge.gov.br/>; acesso em: 22 dez. 2020).
Há uma correlação direta entre renda nacio-
Outro caminho interessante é utilizar dados
nal bruta per capita e geração de resíduos sóli-
qualitativos. Diversos artistas têm utilizado a
dos per capita. A situação do Leste Asiático, que
fotografia para compor registros fotográficos
escapou levemente dessa correlação, pode servir
IA
de pessoas em todo o mundo com elementos
como estímulo para uma pesquisa: como esses
que expressam seu modo de vida. O fotógrafo
dados são médias estatísticas, é possível que as
estadunidense Gregg Segal obteve enorme des-
regiões dos países asiáticos ainda bastante ru-
taque nos últimos anos com projetos como Daily
rais impactem os dados de geração de resíduos
Bread, que mostra o consumo alimentar, e 7 Days
sólidos.
of Garbage, em que pessoas se deixam fotografar

Regionalização do Banco Mundial


U
G
DANIELLA BARROSO

América do Norte
América Latina e Caribe
Europa e Ásia Central
NM
Oriente Médio e Norte da África 0 2.160 km
África Subsaariana
Sul da Ásia
Leste Asiático e Pacífico WORLD BANK. The World by Region. Disponível em: <http://datatopics.
worldbank.org/sdgatlas/the-world-by-region.html>. Acesso em: 22 dez. 2020.

10 3
com seus resíduos sólidos (disponível em: <www. ƒƒ O QUE ELABORAR? Uma forma fácil de

D
greggsegal.com/Projects/thumbs>; acesso em: 22 os alunos levantarem tanto o lixo seco
dez. 2020). O fotógrafo britânico James Mollison como o lixo úmido de seus domicílios. Es-
realizou um belo projeto de registro de crianças crever instruções precisas do que e como
em seus quartos de dormir, o Where children sleep fazer para levantar o resíduo, indicando

L
(disponível em: <www.jamesmollison.com/where- também o período do levantamento. Ao
children-sleep>; acesso em: 22 dez. 2020). final, o volume levantado deve ser dividi-
do pelo número de pessoas que vivem no
ESTRATÉGIA DE COLETA DE DADOS domicílio.

N
Em escala maior, um aprofundamento do tra- Por fim, cada grupo apresenta sua proposta
balho em sala de aula pode abranger a coleta e a turma pode fundi-las para chegar a uma so-
de dados pelos alunos. Eles podem levantar o lução conjunta ou votar pela ideia que seja mais
volume de resíduos sólidos em seus domicílios e facilmente aplicável.

P
calcular o valor per capita. Ao elaborar os parâ- Com os dados em mãos, tem-se a possibili-
metros de mensuração dos resíduos, abre-se uma dade de usá-los para construir um indicador; os
possibilidade significativa de se discutir com os alunos não precisam necessariamente seguir a
alunos elementos centrais do fazer científico: mesma correlação proposta para os dados mun-
para que os valores levantados pelos alunos sejam diais e nacionais; eles podem encontrar outras
IA
comparáveis, é preciso exercer controle sobre a correlações já que obtiveram os dados de seus
mensuração. domicílios e podem estabelecer relação com di-
Uma estratégia para a sala de aula é propor ferentes aspectos da dinâmica em suas famílias.
aos alunos que trabalhem em grupos para elabo- Nossa sugestão é que o volume de resíduos sóli-
rar uma forma de levantar o volume de lixo seco dos seja correlacionado à alimentação da família,
e úmido de seus domicílios, considerando que buscando encontrar alguma correlação entre
cada aluno fará o levantamento em seu domicí- maior volume de lixo seco e o uso predominante
U

lio e o dado obtido precisará ser comparável ao de alimentos processados e ultraprocessados,


dos colegas, ou seja, todos precisam utilizar uma enquanto o maior volume de lixo úmido (orgâ-
mesma medida. O roteiro a seguir é uma sugestão nico, especialmente) poderia ser explicado pela
para guiar o trabalho em cada grupo: predominância de alimentos in natura no preparo
das refeições. Caso os alunos consigam estabe-
G

ƒƒ QUAL O PROBLEMA? Cada aluno precisa lecer essa correlação, os resíduos sólidos seriam,
coletar em seu domicílio o volume de resí- assim, um indicador do tipo de alimentação da
duos sólidos durante um mesmo período família. O Guia alimentar para a população brasilei-
e dividir pelo número de habitantes por ra, publicação do Ministério da Saúde (disponível
domicílio; se cada aluno estabelecer sua em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
própria maneira de mensurar o volume, guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf>),
ao final não será possível comparar os re- pode ser um documento importante para que os
sultados e saber, por exemplo, quem gerou alunos observem o tipo de alimento que predo-
mais lixo. mina em suas refeições diárias – os alimentos
industrializados costumam ser os que geram o
maior volume de resíduos sólidos, muitos dos
quais incluem embalagens duplas.

10 4
DINHEIRO E RIQUEZA
D
O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE.

A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL PELO


OLHAR DA GEOGRAFIA

L
N
A Revolução Industrial implicou ruptura nos zir nos alunos a impressão de que, em um tempo
processos sociais, criando novos fluxos de mate- e espaço definidos, surgiu a máquina a vapor;
riais, pessoas e capital, assim como modificando ela, porém, é uma engrenagem de um longo mo-
e/ou intensificando antigos fluxos constituídos vimento deflagrado por comerciantes europeus

P
pela expansão marítima europeia. O novo espaço em busca de maior controle sobre a confecção
industrial – a fábrica, a usina – conta com uma de objetos, nas mãos de artesãos organizados em
novidade, a máquina a vapor, que propiciou um associações, muitas vezes bastante poderosas.
enorme incremento de produtividade, criando
uma demanda de altos volumes de carvão e de A PASSAGEM DA PRODUÇÃO ARTESANAL PARA A FABRIL
IA
matéria-prima a ser transformada em objetos As manufaturas, organizadas por comercian-
industriais, assim como de operários – os fluxos tes, reuniam trabalhadores, em muitos casos,
de algodão para o Reino Unido bem como das artesãos pobres, que realizam os produtos de
fontes de carvão até as fábricas de Manchester acordo com as instruções do comerciante, que
são exemplos significativos dessas transforma- também é dono da matéria-prima. Nesses espa-
ções espaciais. ços, já não faz sentido seguir a lógica artesanal
Ocorre que a máquina a vapor, essa novida- de produção e intensifica-se a divisão do traba-
U

de histórica, decorre de transformações no fa- lho: se um trabalhador passa suas jornadas de


zer industrial que já estavam em curso antes de trabalho a realizar uma parte da tarefa, abre-se
sua adaptação para uso em ambientes internos, caminho para contar com a ajuda de ferramen-
pelo engenheiro britânico James Watt (1736-1819); tas mais sofisticadas e até uma máquina a vapor.
G

aliás, seria estranho pensar nesse processo de A relativa padronização de produtos feita pelo
criação da máquina a vapor, a tantas mãos, sem comerciante propicia a acumulação de estoques
considerar que havia uma demanda pelo aumento para o comércio.
da produtividade. Isso significa que a análise de Histórias em quadrinhos, mesmo as amado-
uma geografia da fábrica pede que se faça uma ras, podem ser excelente ponto de partida para
incursão no tempo para conhecer outros espaços abordar características de cada modo de produ-
de produção industrial de onde nasce a demanda ção: os personagens aproximam os alunos dos
pela máquina a vapor. Entra em cena, portanto, a dilemas e desafios vividos em cada um deles.
manufatura. Em realidade, abordar a Revolução Eles podem também ser instados a escolher per-
Industrial, em qualquer componente da área de sonagens e criar suas próprias histórias, com
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, sem con- base em pesquisa sobre o modo de produção
siderar o contexto em que ela ocorre, pode produ- correspondente.

10 5
operário desenrola o arame, o outro estica,

D
um terceiro o corta, um quarto faz as pontas,
um quinto o afia para fazer a cabeça, o que
requer duas ou três operações distintas. Co-
locar a cabeça já é uma atividade diferente e

L
alvejar os alfinetes é outra. Mesmo embalá-los
DANIELLA BARROSO/VETORES: FREEPIK

já constitui uma atividade independente, e o


importante negócio de fabricar um alfinete
é, dessa maneira, dividido em cerca de dezoi-

N
to distintas operações, as quais, em algumas
manufaturas, são todas desempenhadas por
mãos diferentes, embora em outras, o mesmo
homem desempenhará algumas duas ou três

P
delas. Eu vi uma pequena manufatura desse
tipo que somente empregava dez homens, e
onde alguns deles consequentemente desem-
penhavam duas ou três distintas funções. Mas
embora eles fossem muito pobres e portanto
IA
não estivessem particularmente treinados
para o uso das máquinas, podiam, quando se

Em um trecho do clássico texto do economis- esforçavam, fazer entre eles cerca de 12 libras

ta britânico Adam Smith (1723-1790), ele assim de alfinetes por dia. Há, numa libra, mais de

descreve uma manufatura de alfinete: quatro mil alfinetes de tamanho médio. Aque-

Para tomar um exemplo, portanto, de uma las dez pessoas, portanto, podiam fazer entre

pequena manufatura na qual a divisão do tra- elas mais de quarenta e oito mil alfinetes por
U

balho tem sido muito frequentemente notada, dia. Cada pessoa, portanto, fazendo uma déci-

citemos a fabricação de alfinetes. Um operá- ma parte de quarenta e oito mil alfinetes, podia

rio não treinado para essa atividade (a qual se considerar fazendo quatro mil e oitocentos

a divisão de trabalho transformou em uma alfinetes em um dia. [...]


Em qualquer outro ofício e manufatura, os
G

indústria específica), nem familiarizado com


o uso do maquinário nela empregado (cuja efeitos da divisão do trabalho são similares

invenção foi decorrente da mesma divisão aos que se verificam nessa fábrica insignifi-

do trabalho) poderia dificilmente fabricar cante, embora em muitas delas o trabalho não

um único alfinete em um dia, empenhando possa ser nem tão subdividido, nem reduzido

o máximo de trabalho e certamente não po- a uma simplicidade tão grande de operações.

deria fazer vinte. Mas da maneira pela qual Entretanto, a divisão do trabalho, tanto quan-

essa atividade é hoje executada, não somente to ela possa ser introduzida, ocasiona em cada

o trabalho todo é uma indústria específica, ofício um aumento proporcional das forças

como também é dividido em um número de produtivas.

setores dos quais a maior parte também cons- SMITH, Adam. A riqueza das nações: Livro
I. Curitiba: Juruá, 2015. p. 9-10.
titui provavelmente um ofício especial. Um

10 6
DINHEIRO E RIQUEZA
Essa é uma ideia que pode ser experimenta- valor a ser pago por minuto de trabalho e para

D
da pelos alunos em sala de aula ou até mesmo o custo do papel, de forma que eles possam cal-
em casa. Basta propor a eles realizar uma tarefa cular quanto custaria a produção dos envelopes
(construir um aviãozinho de papel, um origami, em cada modelo de produção. Um quadro pode
lavar copos etc.), primeiramente do início ao fim, ajudá-los a organizar os dados.

L
para completar uma única unidade, marcando
o tempo gasto para, em seguida, tentar realizar ................ ................ ................
mais rapidamente usando a divisão do trabalho: Tempo gasto
em lugar de ensaboar e enxaguar cada copo, po- Número de

N
demos ser mais ágeis se ensaboarmos todos os pessoas
copos e, em seguida, os enxaguarmos – esse é o Gastos com
princípio da divisão do trabalho, pois realizar papel
cada tarefa repetidas vezes reduz o tempo gasto Pagamento
pelo trabalho

P
na troca de tarefas; nas manufaturas, essas tare-
Custo final
fas foram atribuídas a trabalhadores diferentes; de um
nas fábricas, chegou-se à superfragmentação, envelope
como criticado no filme Tempos modernos (1936),
do artista inglês Charles Chaplin (1889-1977). E se um trabalhador que consegue recortar
IA
Caso o experimento seja realizado em sala duas folhas de envelope por minuto usasse uma
de aula, nossa sugestão é que os alunos confec- faca no molde do envelope e pudesse cortar uma
cionem envelopes: um molde é levado para a sala resma de 1 000 papéis por minuto, como ficaria o
de aula e eles precisam contornar o envelope em custo do envelope (deve-se considerar no cálculo
folha de papel, recortar, dobrar e colar. que, com o uso de uma faca que corta o envelope,
Primeiramente, registram o tempo gasto por a etapa de marcar o papel desaparece)? A mes-
uma pessoa confeccionando um envelope do iní- ma pergunta pode ser proposta para as outras
U

cio ao fim. Em seguida, a mesma pessoa confec- etapas: Como se poderia usar um equipamento
ciona 4 ou 5 envelopes usando a divisão do tra- para aumentar a produtividade nas etapas de
balho (marcar todos os envelopes, recortar todos, dobra e cola?
e assim por diante), comparando o tempo gasto Esses cálculos, mesmo inexatos, oferecem um
ao final (basta dividir o tempo registrado pelo exemplo de produção em escala. Quando um
G

número de envelopes). O passo seguinte é cada equipamento faz saltar a produtividade de 2 a


etapa ser assumida por uma pessoa diferente: 1 000 por minuto, isso modifica completamente
alguém só marca os envelopes, outra só recorta, a organização do negócio industrial. É nesse con-
e assim por diante; nessa situação, as tarefas texto que o historiador israelense Yuval Harari
serão realizadas em concomitância e, portanto, (1976-) assinala a conversão de energia como o
aumenta-se os gastos com o pagamento do traba- elemento central da Revolução Industrial:
lhador, por isso é fundamental discutir o quanto A nova tecnologia nasceu nas minas de carvão
seria preciso baixar o tempo para valer a pena da Grã-Bretanha. [...] Há muitos tipos de mo-
pagar tantas pessoas. É provável que os alunos tores a vapor, mas todos eles têm um mesmo
tenham muitas ideias sobre como baixar o tem- princípio. Queima-se algum tipo de combus-
po e reduzir custos, então você pode desafiá-los tível, como carvão, e usa-se o calor resultante
a encontrar uma boa fórmula estabelecendo um para ferver água, produzindo vapor. À medida

10 7
que o vapor se expande, empurra um pistão. Essa interpretação do Harari coloca no cen-

D
O pistão se move, e qualquer coisa que esteja tro das atenções as demandas do processo de
conectada ao pistão se move com ele. O calor industrialização: as perguntas postas ao longo
foi convertido em movimento! Nas minas de do texto vão assinalando as novas demandas,
carvão britânicas do século XVIII, o pistão era dando um ritmo para as transformações – isso

L
conectado a uma bomba que extraía água do é fundamental para que os alunos possam cons-
fundo dos poços de mineração. Os primeiros truir referências dessas relações de causa-efeito,
motores eram incrivelmente ineficazes. Era complexificando a ideia mágica de que uma má-
preciso queimar uma enorme quantidade de quina a vapor aparece de repente e muda tudo.

N
carvão para bombear um volume minúsculo Outro ponto de vista interessante é o do geó-
de água. Mas, nas minas, o carvão era abun- grafo anglo-estadunidense David Harvey (1935-),
dante e estava ao alcance da mão, e por isso que assinala como a circulação de capital foi se
ninguém se importava. tornando cada vez mais ágil (e, portanto, rentá-

P
Nas décadas que se seguiram, os empreende- vel) à medida que o avanço nos transportes e nas
dores britânicos melhoraram a eficácia do mo- comunicações reduziu o tempo de deslocamento.
tor a vapor, o tiraram dos poços de mineração
e o conectaram a teares e descaroçadoras de 1500-1840
algodão. Isso revolucionou a produção têxtil,
IA
tornando possível produzir quantidades cada
vez maiores de tecidos baratos. Em um piscar
de olhos, a Grã-Bretanha se tornou a oficina do
mundo. [...] Em 1825, um engenheiro britânico
conectou um motor a vapor a um trem com
vagões de minério cheios de carvão. O motor
arrastou os vagões por uma linha de ferro por A melhor média de velocidade das
carruagens e dos barcos a vela
U

cerca de 20 quilômetros, da mina até o porto era de 16 km/h


mais próximo. Essa foi a primeira locomotiva
1850-1930
DANIELLA BARROSO

a vapor da história. Claramente, se o vapor po-


dia ser usado para transportar carvão, por que
não outros produtos? E por que não até mesmo
G

pessoas? Em 15 de setembro de 1830, a primeira


As locomotivas a vapor alcançavam
ferrovia comercial foi inaugurada, conectando em média 100 km/h; os barcos
Liverpool a Manchester. Os trens se moviam a vapor, 57 km/h

com o mesmo motor a vapor antes usado para Anos 1950


bombear água e mover teares. Meros 20 anos
depois, a Grã-Bretanha tinha dezenas de mi- Aviões a propulsão: 480-640 km/h
lhares de quilômetros de ferrovia. [...]
Em seu cerne, a Revolução Industrial foi uma
revolução na conversão de energia. Anos 1960
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve Jatos de passageiros: 800-1.100 km/h
história da humanidade. 23. ed. Porto
Alegre: L&PM, 2017. p. 346-349. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 13. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 220.

10 8
DINHEIRO E RIQUEZA
Assim, de um lado, as inovações técnicas ex- O AVANÇO DA INDUSTRIALIZAÇÃO

D
perimentadas de forma acelerada desde a Revo- O mapa produzido pelos autores do atlas pu-
lução Industrial inglesa propiciam um aumento blicado pelo jornal francês Le Monde diplomatique
vertiginoso na produtividade – na conversão de indicam as áreas pioneiras da industrialização e
energia –, e, de outro, elas possibilitam a reali- como se desdobraram em novos polos industriais

L
zação de capital de forma cada vez mais dinâ- periféricos, ainda que esse termo já não seja mais
mica, o que propicia concentração de capital apropriado para caracterizar as economias asiá-
nas mãos de seus proprietários, o que repercute ticas, especialmente a chinesa, que se configura
em possibilidade de expansão industrial. Nesse como o principal player da economia industrial.

N
processo, capital e elementos naturais tornados Dentro do grupo dos países pioneiros, também
recursos (fonte de energia, matéria-prima) para a há desigualdades quanto à intensidade da indus-
indústria circulam pelo planeta compondo redes trialização dessas sociedades. Dados coletados e
econômicas densas nas áreas pioneiras da indus- organizados pelo historiador suíço Paul Bairoch

P
trialização e mais esparsas nas áreas periféricas. (1930-1999) podem nos ajudar nessa abordagem.

Níveis per capita de industrialização (Reino Unido em 1900 = 100)

1750 1800 1860 1913 1928 1953 1980


Países desenvolvidos 8 8 16 55 71 135 344
IA
Europa 8 8 17 45 52 90 267
Áustria-Hungria 7 7 11 32 32 104 342
Bélgica 9 10 28 88 116 117 316
França 9 9 20 59 78 90 265
Alemanha 8 8 15 85 101 138 393
Itália 8 8 10 26 39 61 231
Rússia 6 6 8 20 20 73 252
U

Espanha 7 7 11 22 28 31 159
Suécia 7 8 15 67 84 163 409
Suíça 7 10 26 87 90 167 354
Reino Unido 10 16 64 115 122 210 325
G

Fora da Europa              
Canadá - 5 7 46 82 185 379
Estados Unidos 4 9 21 126 182 354 629
Japão 7 7 7 20 30 40 353
Terceiro Mundo 7 6 4 2 3 5 17
China 8 6 4 3 4 5 24
Índia 7 6 3 2 3 5 16
Brasil - - 4 7 10 13 55
México - - 5 7 9 12 41
Mundo 7 6 7 21 28 48 103
BAIROCH, Paul. International Industrialization Levels from 1750 to 1980.
Journal of European Economic History, n. 11, 1982, p. 281.

10 9
A leitura dessa tabela não é simples: os valo- os alunos tenham realizado o experimento de

D
res são todos relativos ao Reino Unido no ano confecção do envelope em que cada etapa é reali-
de 1900. Bairoch reuniu dados sobre a produção zada por uma pessoa, pode-se retomar essa ideia
industrial nesses países (e regiões) para esses para abordar uma das características essenciais
períodos e atribuiu aos dados do Reino Unido do fordismo: o uso da esteira de produção.

L
em 1900 o valor “100”, assim o nível de industria- Evidentemente a atividade manual feita pelos
lização do Brasil em 1980 corresponde a 55% do alunos não demanda uma esteira de produção;
nível de industrialização no Reino Unido no ano isso ocorre dentro da fábrica, que é composta de
de 1900. Entendida essa lógica de organização da máquinas robustas. No entanto, explorar a ideia

N
tabela, uma boa estratégia é pedir aos alunos que a partir de um experimento feito pelos alunos
identifiquem comportamentos de países que cha- possibilita que a lógica da esteira possa ser mais
mam atenção e produzam gráficos. O exemplo a facilmente explorada por eles.
seguir coloca em comparação os dados de Brasil, Outra característica do fordismo diz respeito

P
Estados Unidos e Reino Unido. aos grandes estoques, posto que se trata de uma
economia de escala. Há diversos recursos visuais
Brasil, Estados Unidos e Reino Unido: e audiovisuais que revelam esses estoques, como
níveis per capita de industrialização os pátios de carros nas montadoras de automó-
(Reino Unido em 1900 = 100) veis. Sugerimos um vídeo do canal Manual do
IA
700
Mundo no YouTube, que mostra como é produzi-
do o vaso sanitário e, ao final, mostra um estoque
ESTADOS UNIDOS
600 de peças sanitárias empilhadas, compondo uma
imagem bastante representativa de uma produ-
500
ção fordista.
COMO é feita uma privada. Manual do Mundo,
400
24 set. 2016. Disponível em: <https://youtu.be/
X4SvstybSPk>. Acesso em: 22 dez. 2020.
U

REINO UNIDO
300

Observando o estoque da empresa de louças


200
sanitárias, pode-se fazer uma correlação com a
produção de resíduos sólidos, abordada na pri-
100 Reino Unido em 1900
meira proposta, pois fica mais evidente a necessi-
G

BRASIL

0 dade das embalagens para o modelo de produção


1750 1800 1860 1913 1953 1980
1928
industrial que desenvolvemos: cada peça é en-
Elaborado com base em: BAIROCH, Paul. International
Industrialization Levels from 1750 to 1980. Journal
volvida em material para sua proteção, as peças
of European Economic History, n. 11, 1982, p. 281. são embaladas conjuntamente, para formar uma
unidade e ser empilhável, e é preciso contar com
Em 1913, os Estados Unidos já haviam supe-
materiais entre esses conjuntos para otimizar a
rado o nível de industrialização britânico e sua
ocupação do espaço dos estoques.
economia industrial disparou ao longo do século
Outra correlação significativa diz respeito
XX. Essa constatação é uma porta de entrada para
à localização desses estoques, que podem estar
a abordagem do fordismo, o modo de produção
junto às unidades de produção, mas podem se
industrial predominante no século XX e ainda
localizar em outros locais, de forma a tornar a
relevante em diversos setores da indústria. Caso
distribuição do produto mais eficaz. Sugerimos

110
DINHEIRO E RIQUEZA
D
L
DANIELLA BARROSO/VETOR: FREEPIK

N
P
IA

Onde colocar a empresa de água em garrafa?

uma atividade muito frequente na abordagem dos separadas), informando as razões para cada uma
fatores de localização da indústria, em um con- das escolhas. O objetivo principal é colocá-los
U

texto levemente diferente. Você pode propor aos em contato com a necessidade de se ter meios
alunos que conheçam mais sobre a produção de de transporte para fazer funcionar esse modelo
água em garrafa plástica por meio de conteúdos de produção industrial; assim, é esperado que
disponível on-line – sugerimos os dois indicados os alunos considerem os eixos rodoviários como
G

a seguir e a figura da página 138. estruturantes para a decisão a respeito da loca-


THE LIFE cycle of a plastic water bottle. Angel lização dessas partes da empresa industrial – a
Water, Inc., 14 jun. 2017. Disponível em: <https:// cidade, por exemplo, cria tráfegos e congestiona-
angelwater.com/blog/life-cycle-plastic-
water-bottle/>. Acesso em: 22 dez. 2020. mentos, então deve ser evitada; o parque linear
lindeiro ao rio cria uma descontinuidade entre a
WHAT really happens to the plastc you throw away. refinaria e a usina de reciclagem, que fornecem
TED-Ed, 21 abr. 2015. Disponível em: <https://youtu.
be/_6xlNyWPpB8>. Acesso em: 22 dez. 2020. matéria-prima para a fabricação do plástico.
Será que algum aluno vai indagar a respeito
Em seguida, o desafio é os alunos indicarem da pertinência de se ter uma nova unidade de
uma localização para uma fábrica de embalagem produção de água em garrafa, um objeto indus-
plástica, uma envasadora de água e um centro de trial de tão forte impacto ambiental e tão pouca
distribuição (essas unidades podem ser juntas ou utilidade para nós?

111
D
ÁREA DE CONHECIMENTO EM FOCO.

CIRCULAR OU NÃO CIRCULAR:


UMA QUESTÃO DE TECNOLOGIA?

L
N
O tema “dinheiro e riqueza” mobiliza na área autores clássicos; em Geografia, as implicações
de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas dife- ambientais da produção industrial e a lógica fa-
rentes discussões, de acordo com o que preveem bril na produção do espaço urbano.
as seguintes competências específicas de nossa Um elemento que pode ser considerado in-

P
área. tersecção dos componentes é o trabalho. Em
Analisar e avaliar criticamente as relações de uma abordagem articulada entre os professores
diferentes grupos, povos e sociedades com a de diferentes componentes da área sobre traba-
natureza (produção, distribuição e consumo) e lho, pode ser interessante refletir sobre os fluxos
seus impactos econômicos e socioambientais, dentro da cidade impulsionados pela atividade
IA
com vistas à proposição de alternativas que laboral: em tempos de popularização do teletra-
respeitem e promovam a consciência, a ética balho, muitas reportagens celebram o que seriam
socioambiental e o consumo responsável em ganhos para o trabalhador, como a eliminação do
âmbito local, regional, nacional e global. tempo de deslocamento até o local de trabalho; no
Analisar as relações de produção, capital e entanto, os dados estatísticos sobre teletrabalho
trabalho em diferentes territórios, contextos revelam que ele atinge os profissionais mais qua-
e culturas, discutindo o papel dessas relações lificados e de maiores ganhos, justamente aqueles
U

na construção, consolidação e transformação que, em média, fazem os itinerários mais curtos


das sociedades. até o local de trabalho. Dentro de uma perspec-
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria tiva mais ampla, também podemos organizar o
da Educação Básica. Base Nacional Comum recorte geográfico de trabalho e cidade usan-
G

Curricular. Brasília: MEC; SEB, 2018. p. 574 e 576.


Disponível em: <http://basenacionalcomum. do os avanços tecnológicos: Como a navegação
mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020. oferecida em aplicativos de celular influencia a
forma como apreendemos paisagens e lugares da
Cada componente da área tem seus recortes cidade? De que forma os algoritmos interferem na
mais significativos: em Filosofia, o dinheiro como escolha do local de consumo e do itinerário até lá?
representação de riqueza, poder e, claro, de for- Como as inovações nas comunicações, que propi-
mas de controle social; em História, a gênese do ciaram a fragmentação entre gestão e produção,
dinheiro, os padrões de riqueza e mobilidade, podem modificar as centralidades corporativas
assim como a exploração do trabalho na origem nas metrópoles? São perguntas que demandam
da desigualdade e da pobreza; em Sociologia, os análise espacial, por isso podem ser pertinentes a
modos de produção industrial, a distribuição uma abordagem do trabalho articulada a outros
de riqueza e o trabalho sob a ótica de diferentes componentes da área.

112
DINHEIRO E RIQUEZA
OS DESLOCAMENTOS NA CIDADE E A anterior ao uso de satélites para a navegação:

D
NAVEGAÇÃO POR CELULAR Entre as dificuldades de funcionamento que
O trajeto casa-trabalho é comumente repetido conhecem as sociedades ditas “de consumo”,
diariamente pelos trabalhadores, a tal ponto que algumas, as mais espetaculares, estão estreita-
se tornaria desnecessário oferecer algum tipo de mente ligadas aos problemas de espacialidade

L
serviço de orientação: quem, afinal, precisaria de diferencial: por exemplo, a paralisia total da
ajuda para realizar um itinerário repetido dia- circulação, durante horas, ou até dias, sobre
riamente? Bom, certamente não haveria tantos centenas de quilômetros de estradas. Esta si-
serviços ligados à orientação espacial na cidade tuação dramática, que se repete cada vez com

N
se seus desenvolvedores pensassem assim. É certo maior frequência por ocasião das migrações
que a navegação por satélite, popularizada pelo de verão, nos grandes week-ends, adquire, com
serviço estadunidense chamado GPS, no início, evidência, as dimensões do absurdo, quando
com seus equipamentos caros, cresceu em meio se sabe que há centenas de quilômetros de

P
a outro público: motoristas frequentes, em espe- estradas livres, de um lado e de outro do eixo
cial caminhoneiros, que contavam com guias de paralisado pela interminável fila de carros.
estradas em papel para deslocar-se em itinerários Mas a maior parte dos motoristas não ousa
extensos. No início dos anos 2000, diversas cida- ir ali experimentar, ou às vezes nem imagina
des europeias já contavam com esses equipamen- poder utilizá-las, mesmo se eles possuem todas
IA
tos em táxis e em ônibus, com o objetivo de se as cartas necessárias para se orientar nessa
ter controle sobre seus itinerários: as paradas de rede. Elas não lhes são de nenhuma utilida-
ônibus receberam painéis eletrônicos que avisam de, pois, apesar do auxílio de múltiplas placas
em quanto tempo cada linha chega até o local. indicadoras, eles não sabem ler essas cartas
Os telefones “inteligentes” conectados à in- rodoviárias, que são bem simples e bem cô-
ternet modificaram completamente esse pano- modas. E são os policiais que vêm dizer ser
rama: se antes quem usava o navegador o fazia preciso ensinar pessoas a ler uma carta!
U

para tirar dúvidas de detalhes do trajeto e/ou LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve,
em primeiro lugar, para fazer a guerra. 13.
para informar sua posição a outros, com os apli-
ed. Campinas: Papirus, 1988. p. 54.
cativos de navegação, seus usuários depositam
completamente as decisões sobre os itinerários O geógrafo Yves Lacoste escreveu esse texto
ao programa. No início dessa mudança, esses na década de 1960, a partir de suas observações
G

navegadores passaram a influenciar as rotas dos de Paris e a ligação com outras cidades france-
motoristas de veículos. Aos poucos, ficaram mais sas. Esse trecho de sua obra célebre é frequen-
e mais sofisticados, a ponto de também influen- temente incluído nas leituras das disciplinas de
ciar os usuários de transporte coletivo, sugerindo cartografia na formação de geógrafos, pois ele
as escolhas entre os modais para compor o trajeto traz, em primeiro plano, uma crítica à escassa
e, recentemente, incluindo ofertas de carros de autonomia dos motoristas em função de não se
aplicativo (compondo, assim, o fenômeno da “ube- sentirem confortáveis em arriscar-se pelo espaço
rização”). Cada vez mais, os itinerários realizados para buscar outros trajetos, para além das vias de
nas metrópoles sofrem a atuação dos algoritmos trânsito rápido, engarrafadas pela concentração
de aplicativos; vamos analisar os efeitos sobre a de fluxos em suas vias. O problema: “não sabem
fragmentação da experiência espacial. Para isso, ler essas cartas rodoviárias”. Atualmente, equipa-
vamos dar “um passo atrás” para um momento do de um celular com um aplicativo de navegação,

113
as pessoas seguem as indicações dos algoritmos, De um modo geral, quanto mais longe é a mo-

D
adentrando, vez ou outra, em situações de risco radia, tanto mais tempo é gasto em transporte,
por seguir tão cegamente as escolhas de itinerá- contabilizados o percurso dentro do veículo e
rio do programa – uma pequena parte dos usuá- o que é feito a pé para alcançá-lo. A tendência,
rios utiliza esses navegadores para ter em mãos aliás, é ao aumento do tempo gasto em viagem.

L
o mapa da área, pautando suas escolhas de itine- [...] Quanto menor a renda, de um modo geral,
rários pelo que estão observando e/ou pelo que maior é o tempo gasto para se fazer transpor-
já conhecem. Pode-se observar que o problema tar do domicílio ao trabalho.
descrito por Lacoste não se alterou: grande parte SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada.

N
2. ed. São Paulo: Edusp, 2009. p. 94-95.
dos motoristas segue deslocando-se sem qualquer
autonomia de decisão; não leem o mapa incorpo-
Esse aspecto da segregação socioespacial nas
rado ao navegador, apenas o observam quando
cidades brasileiras salta aos olhos em um exame
alguma ordem dada pelo navegador não é com-
da espacialidade diferencial, ainda que se trate

P
preensível – são basicamente reféns das decisões
de abordagens distintas, e não deve ser negli-
tomadas pelo algoritmo do aplicativo quanto ao
genciado se aparecem nos relatos selecionados
trajeto inicial e, também, das mudanças que o
para uma abordagem em sala de aula. E como a
aplicativo implementa ao longo do itinerário.
população mais pobre é a que menos se desloca
Se avançamos um pouco mais na análise,
em uma metrópole, podemos afirmar que quem
IA
podemos retomar o conceito de espacialidade
vive em um lugar periférico vivencia o espaço da
diferencial abordado por Lacoste. Imagine um
metrópole de forma extremamente fragmentada
trabalhador pobre realizando o trajeto casa-tra-
(conhece pedaços sem conexão entre eles) e sob
balho em uma metrópole brasileira: essa pessoa
forte segregação.
faz um trajeto de 36 quilômetros, sendo o ôni-
Retomando a ideia de multiplicidade de re-
bus única opção até uma estação de metrô, que
presentações espaciais, vamos conhecer em exer-
possibilita realizar parte expressiva do trajeto
cício que pode nos ajudar a pensar essas questões.
U

em tempo relativamente curto. Essa pessoa vive


uma “multiplicidade de representações espaciais”,
nas palavras de Lacoste, pois, por um lado, cada
trecho desse deslocamento corresponde a uma
experiência temporal distinta – são 50 minutos
G

para cumprir 10 quilômetros em um ônibus e


40 minutos para completar o trajeto no siste-
ma ferro-metroviário –, mas também porque, de
DANIELLA BARROSO

outro lado, essa pessoa convive com “redes das


quais dependemos objetivamente”, como a rede
de ônibus, dos sistemas ferroviário e metroviário,
a abrangência do cartão de transporte de um mu-
nicípio e de outro, de um sistema de transporte
e de outro etc.

114
DINHEIRO E RIQUEZA
A foto mostra uma atividade realizada em cotidianas são vividas no bairro ou no centro,

D
sala de aula sobre espacialidade diferencial: cada ou seja, há uma fragmentação dessa experiência
aluno recebe um canudo e alguns conectores; o espaçotemporal, mas dentro de um arranjo ra-
canudo precisa ser cortado em partes que cor- zoavelmente simples.
respondam aos trechos de seu itinerário, já os A metropolização implica elevação crescente

L
conectores simbolizam mudanças no meio de do dinamismo econômico, com repercussões na
transporte, que pode ser mudança no modo, como atração populacional e, também, nas trocas que
deixar a bicicleta na estação e seguir de metrô, se realizam nesse espaço: a polarização de outras
ou dentro do sistema de transporte, como fazer cidades e aglomerações, que é parte do funcio-

N
uma baldeação para trocar de linha do metrô. namento das cidades, ganha alcance geográfico
Em seguida, é proposto que os alunos dobrem os muito maior; assim, uma metrópole pode influen-
canudos, de forma que o tamanho deles expresse ciar a vida de quem vive a muitos quilômetros de
o tempo gasto. No exemplo, houve um enorme en- onde ela se localiza.

P
curtamento das distâncias percorridas em metrô. Pode-se observar uma correlação bastante
O exercício revela experiências espaciais frag- consistente entre metropolização e a espacialida-
mentadas, que reverberam na mescla de represen- de diferencial. Como a metrópole articula fluxos
tações espaçotemporais de escalas distintas: dez de diversas naturezas, ela compõe redes distin-
minutos é o tempo que se leva a pé de casa até a tas, como aquelas impulsionadas pelo terciário
IA
estação de metrô e também o tempo que o trem de gestão, que, por sua vez, demanda serviços
leva para se deslocar por muitos quilômetros até organizados por regras cada vez mais mundia-
a estação de destino; o eixo estruturante do mapa lizadas, implicando, assim, um funcionamento
mental dessa pessoa corresponde a linhas retas, cada vez mais regulado pela busca de eficiência,
com fracas redes de relações topológicas entre de racionalidade nas atividades econômicas. A
elas: um túnel pode ser o único elemento espacial relativa desconcentração das unidades de produ-
de ligação entre duas estações de metrô. ção desde o pós-guerra foi acompanhada de uma
U

À medida que uma cidade abriga mais habi- concentração das funções das empresas ligadas à
tantes e tem sua extensão física ampliada, é espe- gestão do capital e da própria produção, como os
rado que porções do espaço citadino sejam menos setores financeiro, de comunicação e de criação
vivenciados por moradores de outras partes da de novos produtos, em áreas específicas de algu-
cidade: a cidade de bairros é um exemplo desse mas metrópoles. São exemplo dessas expressões
G

tipo de experiência espacial. Nessas situações, espaciais do terciário de gestão a City de Londres,
no entanto, os bairros são integrados aos mapas La Défense, em Paris, e o eixo Marginal-Berrini,
mentais dos moradores por sua posição relativa em São Paulo. Essas concentrações espaciais im-
ao centro e a outros bairros – assim, ainda que pulsionam a experiência fragmentada do espaço,
não se tenha elementos de grande escala presen- pois os trajetos casa-trabalho, predominantes na
tes no imaginário da população, encontra-se nele apreensão do espaço metropolitano, são dirigidos
um conjunto de relações topológicas estabele- a essas centralidades; os trabalhadores conhe-
cidas para as partes da cidade. Isso está imbri- cem “migalhas de espaço”, nos termos propostos
cado à forma como se experimenta o tempo e o pelo Yves Lacoste, que compõem seus itinerários
espaço em uma cidade de bairros: as atividades cotidianos.

115
A INFORMAÇÃO ESPACIAL MEDIADA POR ALGORITMOS em outros, o usuário cede ao aplicativo sua posi-

D
Quanto maior a fragmentação da experiência ção geográfica e pede informação sobre a pizzaria
espaçotemporal, mais vivemos numa espacialida- mais próxima ou um bar com determinada carac-
de diferencial. Outra repercussão desse processo terística e fica sob responsabilidade do algoritmo
é a repetição sistemática das escolhas quanto aos listar as opções. São, evidentemente, aplicações

L
trajetos cotidianos, com uma automatização de úteis do ponto de vista do usuário, contudo, as
tomadas de decisão, desde o modo de transpor- principais críticas a seu massivo dizem respeito
te e o itinerário até detalhes muito específicos, à coleta gratuita de dados (os usuários carregam
como a escada rolante que possibilita chegar mais bilhões de dados gratuitamente em todo o mun-

N
rapidamente a uma parte estratégica da platafor- do, compondo um banco de dados qualificados
ma do trem. Mesmo os trechos realizados a pé que a empresa pode comercializar) e ao fato de
passam a contar com estratégias de eficiência, que a lista oferecida ao usuário é mediada, em
como a escolha do lado da rua em que se pode muitos casos, por publicidade, ou seja, a empresa

P
ter menos travessias reguladas por semáforos. É lista por padrão em ordem de “relevância”, ofere-
nesse contexto que os aplicativos de celular liga- cendo ao usuário escolher eventualmente outro
dos à navegação e localização atuam. critério, o que significa que coloca nas primeiras
Já exploramos a transferência da decisão de colocações quem remunera a empresa. Em nave-
itinerário para o aplicativo pelos usuários des- gadores de aplicativo, é cada vez mais frequente a
IA
ses sistemas, mas há ainda outras repercussões indicação de posto de abastecimento, caixa ATM
desses programas na experiência urbana. Essa de banco e até lojas de consumo, como mostra a
racionalidade aplicada às atividades cotidianas reportagem a seguir.
também implica o uso dos aplicativos para con- A empresa de sorvetes Ben & Jerry’s investiu
centrar atividades ao longo do itinerário: se uma no digital para anunciar sua chegada ao Bra-
pessoa precisa necessariamente ir a um fórum no sil. A marca usou o aplicativo Waze como mí-
centro da cidade e também deve fazer algo em dia para se apresentar ao mercado nacional e
U

um cartório, é provável que faça buscas nos apli- atrair os consumidores para a nova loja. Para
cativos de navegação para encontrar o cartório divulgar o espaço, um Pin foi criado para mar-
mais próximo do endereço de destino; se precisa car a localização da loja no mapa do Waze e
trocar de modo de transporte em um terminal de um Rich Takeover que impulsionou os clientes
ônibus ou estação de trem e precisa de algo em a dirigir até a Rua Oscar Freire, onde foi aberta
G

uma farmácia, também pode fazer essa consulta. a sorveteria, com a rota oferecida pelo Waze.
Essas buscas são registradas pelo aplicativo de A ação aconteceu logo após a inauguração da
navegação e tornam-se dados valiosos. unidade, durante 21 dias de outubro. O resulta-
Também há aplicações que oferecem ranquea- do contribuiu para a forte repercussão da loja
mentos de locais de consumo, especialmente nos Jardins, em São Paulo, que durante vários
aqueles mobilizados por turistas, como hotéis, dias abriu com filas na porta. A campanha
restaurantes, passeios etc., pelos próprios usuá- foi comercializada pela IMS Internet Media
rios: alguns usam estratégias de gamificação para Services (IMS) ‒ parceira comercial do Waze
incentivar os usuários a registrar sua presença ‒, e direcionou mais de 8,6 mil pessoas à loja.
nos locais – os chamados check-ins – e a inserção O CTR de navegação ‒ cálculo que mensura o
de informações sobre o local, como uma avaliação número de pessoas que saíram de suas rotas
da experiência e até detalhes do funcionamento; e foram até o destino proposto ‒ foi de 3,65%.

116
DINHEIRO E RIQUEZA
O uso de geolocalização, ferramentas de busca De posse desses dados, essas empresas podem

D
e envio de mensagens disponíveis no Waze, exercer um enorme poder em políticas públicas
permitem interação entre consumidores e de planejamento urbano, sendo inclusive uma
marcas, que podem oferecer ofertas customi- área de atuação em ascensão em empresas cria-
zadas para os motoristas que estão passando das ou compradas por esses conglomerados para

L
perto de seus negócios. vender serviços de consultoria ao poder público.
MORAES, Roberta. Pin no Waze leva 8,6 mil pessoas Assim como o “pin” da sorveteria, essas empresas
a Ben & Jerry’s. Mundo do Marketing, 24 mar. 2015.
Disponível em: <www.mundodomarketing.com.br/
podem influenciar o fluxo de turistas para esse
ultimas-noticias/33161/pin-no-waze-leva-8-6-mil- ou aquele local, por meio de seus algoritmos, que,

N
pessoas-a-ben-jerry-s.html>. Acesso em: 22 dez. 2020.
como se sabe, funcionam de acordo com a lógica
“Criar um pin”, no jargão do marketing, signi- de faturamento das empresas.
fica fazer aparecer na tela do motorista que está
usando o aplicativo de navegação que a sorveteria TRABALHO REMOTO E AS CENTRALIDADES EMPRESARIAIS

P
em questão está na região e que, para chegar ao Enfim, chegamos a um desdobramento dessas
local, basta clicar na mensagem para mudar sua análises espaciais que incide mais diretamen-
rota; foi o que fizeram 3,65% dos motoristas que te sobre a discussão de trabalho: quais são os
receberam a mensagem publicitária, correspon- possíveis impactos do trabalho remoto sobre a
dendo a 8,6 mil pessoas. Um artigo do site fran- fragmentação da experiência espacial e também
IA
cês Visionscarto, especializado em cartografia, sobre as centralidades conformadas pelos cen-
alerta para as repercussões desse tipo de ação tros de negócios nas metrópoles?
publicitária. O chamado trabalho remoto ou teletrabalho
Geralmente, para além da simples busca de tem muitos formatos. Os dados do IBGE indicam
um itinerário, os aplicativos de navegação se que, antes da pandemia de covid-19, em 2020,
constituem em ferramentas estruturantes do pouco menos de 5% dos trabalhadores exerciam
nosso cotidiano e se transformam em verda- seu trabalho dentro de suas residências.
U

deiros motores de pesquisa multicritério acu- Em sua maioria, eram trabalhadores autô-
mulando as funções de mapa, lista telefônica nomos, sem vínculo formal e de baixa renda,
(encontrar o número de telefone de um equi- como vendedores, doceiras, costureiras e ma-
pamento cultural, da Prefeitura), guia (culi- nicures.
G

nário, turístico etc.), inventário de horários BALTHAZAR, Ricardo. Trabalho remoto na pandemia
acentua desigualdades, dizem pesquisadores. Folha
dos transportes, de serviços de mobilidade de S.Paulo, 19 jul. 2020. Disponível em: <https://
(ofertando diretamente no aplicativo de mapas www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/trabalho-
remoto-na-pandemia-acentua-desigualdades-dizem-
trajetos pela Uber, Lime e TC, Google se colo- pesquisadores.shtml>. Acesso em: 22 dez. 2020.
ca à frente como um provedor de serviços de
mobilidade) e ainda, atualmente, catálogo de A pandemia modificou esse quadro, pois foi
compra (os comerciantes têm sido convidados necessário garantir o isolamento das famílias
a compartilhar em tempo real suas prateleiras, em seus domicílios, impulsionando ajustes nas
estoques e promoções. empresas para que os trabalhadores pudessem
seguir exercendo suas atividades desde o domi-
VRAIMENT VRAIMENT. Espace public: Google a
les moyens de tout gâcher. Visionscarto, 23 nov. 2019. cílio, ou pelo menos distantes fisicamente. Ocor-
Disponível em: <https://visionscarto.net/espace-public-
vs-google>. Acesso em: 22 dez. 2020. Texto traduzido.
re que uma parte das empresas, mesmo após a
autorização para retomada parcial e/ou total,

117
decidiu manter o teletrabalho em tempo inte- “Vimos que podemos trabalhar com 50% das

D
gral ou em alguns dias da semana. Há situações pessoas em casa, vamos liberar vários prédios
em que empresas de advocacia, comunicação e que custam muito”, afirmou o executivo. Ele
outras formas de serviços profissionais simples- acrescentou que apenas um dos prédios em
mente desativaram seus escritórios físicos, em que funcionários da companhia trabalham

L
princípio como forma de conter custos em um custa 35 milhões de reais por ano só com ma-
período difícil economicamente, mas não reor- nutenção.
ganizaram o escritório próprio e fazem uso de ESTIGARRIBIA, Juliana. “Podemos trabalhar
com 50% dos funcionários em casa”, diz CEO
escritórios compartilhados (os coworkings) para da Petrobrás. Exame, 15 maio 2020. Disponível

N
reuniões e eventos presenciais. Algumas insti- em: <https://exame.com/negocios/podemos-
trabalhar-com-50-dos-funcionarios-em-casa-diz-
tuições já haviam começado a experimentar o ceo-da-petrobras/>. Acesso em: 22 dez. 2020.
trabalho remoto em um ou dois dias por semana
e ampliaram essa proporção entre presença físi- Esse desenho de organização interna das em-
presas já estava ocorrendo e a pandemia de 2020

P
ca e atendimento remoto – é o caso de diversas
instituições do judiciário. E há empresas que acelerou enormemente a tendência na área cor-
não tinham experimentado o trabalho remoto e porativa: essas empresas que adotam o trabalho
saíram do período de quarentena imposta pelos remoto em parte dos dias não têm espaço físico
governos estaduais com uma visão diferente do em seus escritórios para que 100% dos funcio-
IA
significado dessa forma de trabalho; é o caso da nários estejam ali ao mesmo tempo. E isso cor-
estatal Petrobras, que determinou o teletrabalho responde a uma enorme economia em aluguel,
aos empregados administrativos por até três dias impostos, taxas de energia, água, internet e, claro,
semanais. O trecho de duas reportagens sobre contratos de serviços de limpeza e manutenção.
essa decisão da Petrobras chamam atenção para Em Sociologia, é certo que se tem ferramentas
um ponto de vista das empresas sobre o teletra- analíticas para observar o modo como o trabalho
balho, a economia: remoto é apresentado aos funcionários, de forma
que aceitem ceder para a empresa gratuitamente
U

A estatal destacou, ainda, que o modelo per-


manente também pode ajudar na redução de um espaço físico e um volume considerável dos
custos por meio da otimização da ocupação dados contratados no serviço doméstico de in-
de prédios administrativos. ternet banda larga, considerando ser isso uma
vantagem e não um custo a mais para si. Em
G

PETROBRAS vai adotar teletrabalho permanente


para funcionários administrativos. G1, 31 ago. Geografia, nossa proposta é para que você recor-
2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/
economia/noticia/2020/08/31/petrobras-vai-adotar- te essa situação em um contexto estritamente
teletrabalho-permanente-para-funcionarios-
administrativos.ghtml>. Acesso em: 22 dez. 2020.
espacial: esse prédio desocupado pela Petrobras
vai facilmente ser ocupado por outra empresa se
O presidente da Petrobras, Roberto Castello essa tendência de teletrabalho total ou parcial se
Branco, afirmou nesta sexta-feira, 15, em te- confirmar?
leconferência com analistas que a pandemia Analisar significa reconhecer diferentes ele-
do novo coronavírus mostrou que é possível mentos que compõem a situação e interpretá-los
adotar permanentemente medidas de traba- em suas interações, de forma a produzir significa-
lho remoto, reduzindo custos expressivos nas dos. Uma lista desses elementos pode nos ajudar
operações da companhia. nessa análise:

118
DINHEIRO E RIQUEZA
ƒƒ As metrópoles contam com centralidades o poder público local no provimento de

D
criadas por edifícios de escritórios liga- modos de transporte coletivo, assim como
dos ao terciário de gestão – são partes de de sistema viário para o volume de veí-
empresas industriais que cuidam da ges- culos particulares que se dirigem à área
tão do capital da empresa e da produção, cotidianamente.

L
assim como empresas que atuam como Essa é uma análise que pode facilmente con-
fornecedoras de serviços para as empresas tar com apoio visual. Nossa primeira sugestão
industriais, nas áreas de gerenciamento é elaborar um croqui cartográfico coletivo que
da marca, advocacia, comunicação, mar- revele centralidades corporativas em São Paulo,

N
keting, notícias etc. Trata-se exatamente a maior metrópole brasileira. Para isso, nossa
do tipo de atividade econômica com a proposta é utilizar duas fontes de dados, o Global
maior adesão ao trabalho remoto. 500, uma publicação anual da revista estaduni-
dense Fortune, e Empresas Mais: as 1 500 maiores

P
ƒƒ De acordo com interpretação da sociólo- companhias do Brasil, uma publicação do jornal
ga holandesa Saskia Sassen, um conjunto O Estado de S.Paulo. A proposta é levar para a sala
de metrópoles atua como cidade global, de aula um mapa mudo das ruas da cidade de
concentrando o terciário de gestão. Em São Paulo e a lista de empresas com seus ende-
diversas dessas metrópoles, um pedaço reços; os alunos precisam usar um navegador de
IA
do tecido urbano abriga centralidades celular para digitar o endereço e encontrar no
corporativas, com modernas torres de es- mapa mudo a posição do escritório da empresa;
critórios de planta flexível que possibilita então ele desenha ali um símbolo para marcar a
uma enorme flexibilidade de organização localização da empresa e, ao final, esses símbo-
para as empresas, assim como oferta de los mostrarão a concentração de escritórios das
acesso exclusivo e potente à rede mundial empresas na cidade.
de computadores e, também, fácil ligação Nós recortamos os dados das fontes e os orga-
U

com equipamentos de transporte, como nizamos em quadros porque em nossa experiên-


aeroporto e estações de trem rápido. Essa cia de trabalho o uso da cartografia de grande
infraestrutura de transporte e comunica- escala implica muita conversa e até uma reto-
ção recebe investimentos públicos e pri- mada do alfabeto cartográfico, então propor aos
vados para que essas centralidades sigam alunos que abram as publicações e manipulem os
G

atrativas para essas empresas, posto que dados para montar os quadros causa uma dupla
representam conexões com fluxos e redes complicação para as aulas. Caso sua turma te-
mundiais dos setores mais dinâmicos da nha habilidades avançadas em cartografia, pode
economia. ser interessante abrir as publicações com eles e
propor que montem os quadros com pesquisa
ƒƒ Na escala metropolitana, essas centrali- das informações.
dades implicam deslocamentos diários E o que manipulamos nos dados?
do tipo casa-trabalho, mas também de A revista Fortune publica anualmente um
clientes dos serviços concentrados nessas ranking das empresas que tiveram os faturamen-
áreas (consulados, transporte interna- tos mais elevados; esses dados são, claro, comer-
cional, centros de comércio sofisticado cializados pela empresa, mas algumas informa-
etc.), o que cria demandas diversas para ções são colocadas à disposição do público, em

119
seu site e possibilitam muitas análises em sala de se acessar a publicação anterior). Separamos as

D
aula. Separamos as empresas brasileiras e veri- 200 empresas mais bem colocadas no ranking e
ficamos se contam com escritório em São Paulo pesquisamos se contam com sede administrati-
(as empresas são, em ordem do ranking, Petrobras, va na cidade de São Paulo; por fim, anotamos os
Itaú Unibanco Holding, Banco Bradesco, Banco endereços dos escritórios dessas sedes. Aqui tam-

L
do Brasil, JBS, Vale e Ultrapar Holdings; destas, bém há a possibilidade de se avançar no ranking,
duas empresas não têm sede administrativa na ci- propondo aos alunos incluir as 1 500 empresas
dade de São Paulo: o banco Bradesco, com sede na nessa busca por sede administrativa na cidade
cidade de Osasco, e a Vale, cuja sede mundial está de São Paulo.

N
na cidade do Rio de Janeiro). Outra possibilidade
seria os alunos, seguindo a ordem das empresas Empresas Mais (2018) – sede
mais bem colocadas no ranking, pesquisarem se administrativa em São Paulo entre as 200
elas têm escritório em São Paulo, até chegar a um empresas mais bem colocadas no ranking

P
bom conjunto de empresas – se dividido o traba-
lho entre todos os alunos, eles podem chegar a Endereço de sede
Empresa administrativa em São
um número de 50 ou mais empresas. Paulo
6 Cargill Rua Henri Dunant, 1383
Global 500 (2018) – empresas brasileiras
Telefonica
com sede administrativa em São Paulo 8 Avenida Berrini, 1376
IA
Brasil (Vivo)
Atacadão
Endereço de sede 10 Rua George Eastman, 213
(Carrefour)
Empresa administrativa em São
11 Claro Rua Henri Dunant, 780
Paulo
Avenida Marginal Direita
73 Petrobras Avenida Paulista, 901 13 JBS
do Tietê, 500
Itaú
Avenida Eng. Armando Pão de Avenida Brig. Luís
133 Unibanco 14
de Arruda Pereira, 1000 Açúcar Antônio, 3172
Holding
U

17 Ambev Avenida Guido Caloi, 1935


Banco do Avenida Dr. Altino
175 Latam
Brasil Arantes, 1297 Avenida Dr. Cardoso
22 Airlines
Avenida Marginal Melo, 1995
199 JBS Brasil
Direita do Tietê, 500
23 Sabesp Rua Costa Carvalho, 300
G

Ultrapar Avenida Brigadeiro Luís


470 Magazine
Holdings Antônio, 1343 24 Rua Amazonas Silva, 27
Luiza
Global 500. Disponível em: <https://fortune.com/
global500/2020/search/>. Acesso em: 22 dez. 2020. Eletropaulo Rua Lourenço Marques,
25
(Enel SP) 158
O jornal O Estado de S.Paulo, em parceria com Raia Avenida Corifeu de
26
instituições da área de economia, apresenta um Drogasil Azevedo Marques, 3097
ranking anual de empresas que atuam no Brasil, Avenida Pres. Juscelino
29 Embraer
Kubitschek, 1909
aquelas de capital nacional e as pertencentes a
CRBS Rua Dr. Renato Paes de
grupos estrangeiros (o ranking de 2019 está dis- 32
(AMBEV) Barros, 302
ponível em <https://publicacoes.estadao.com.br/ Avenida Brigadeiro Faria
empresasmais2019/>; acesso em: 22 dez. 2020). 33 CSN
Lima, 3400
Trocando a data nesse endereço para 2018, pode- 37 Fibria Rua Fidêncio Ramos, 302

12 0
DINHEIRO E RIQUEZA
Copersucar EDP São Rua Gomes de Carvalho,

D
38 Avenida Paulista, 287 127
Coop Paulo 1996
Coca-Cola Avenida Eng. Alberto Rua Gomes Carvalho,
41 136 EDP
Femsa Brasil Zagattis, 352 1996
Gavilon do Avenida Vicente Pinzon, CPFL
42 139 Rua Gomes Carvalho, 1510
Brasil 51 Piratininga

L
Avenida Brig. Faria Lima, Avenida Eng. Billings,
45 Klabin 146 Roche
3600 1729
CPFL Rua Gomes de Carvalho, 147 Duratex Avenida Paulista, 1938
47
Paulista 1510 152 Fast Shop Avenida Zaki Narchi, 1650

N
Avenida das Nações Accenture Rua Alexandre Dumas,
49 BASF 158
Unidas, 14171 BR 2051
Avenida Queiroz Filho, Nova
51 Marfrig 166 Rua Funchal, 418
1560 Energia
55 Copersucar Avenida Paulista, 287

P
Casas
Minerva Rua Leopoldo Couto 170 Pernam- Rua da Consolação, 2403
58
Foods Magalhães, 758 bucanas
59 Bayer Rua Domingos Jorge, 1100 São Rua Geraldo Flausino
171
Rede D’Or Martinho Gomes, 61
64 Rua Dr. Sodré, 125
São Luiz AF Avenida Brig. Faria Lima,
172 Biosev S/A
IA
Raízen Avenida Juscelino 1355
69
Energia Kubitschek, 1327 Rua Fortunato Ferraz,
174 Camil
Rua Cap. Faustino de 1001
71 Comgás
Lima, 134 Avenida Prof. Vicente Rao,
177 Novartis
Drogaria São Avenida Manuel Bandeira, 90
75
Paulo 292 Rua Dr. Renato Paes de
183 JSL
Avenida Alexandre Barros, 1017
77 Natura
Colares, 1188 Avenida Ver. José Diniz,
184 Eurofarma
U

Avenida Eng. Luís Carlos 3465


95 CBA
Berrini, 105 Santo
Avenida das Nações
Avenida Brig. Luís 186 Antonio
98 Ultragaz Unidas, 4777
Antônio, 1343 Energia
Avenida das Nações Avenida das Nações
189 Atento
G

99 Whirlpool Unidas, 14171


Unidas, 12995
Lojas 190 Sonda Avenida Paulista, 2073
101 Rua Leão XIII, 500
Riachuelo Alcoa World
198 Avenida Guido Caloi, 1000
Avenida Brig. Faria Lima, Alumina
103 BTG Pactual
3477
Essa publicação do Estadão conta com um
109 Liguigás Avenida Paulista, 1842
ranking de 1 500 empresas; portanto, pode ser
Avenida Washington Luís,
114 Avianca interessante propor aos alunos que encontrem
7059
118 Votoran Avenida Paulista, 1274 empresas com sede em seu estado e pesquisem
o endereço da sede administrativa, de forma que
Avenida das Nações
120 Votener possam encontrar centralidades em cidades do
Unidas, 8501
Eldorado Avenida Marginal Direita estado – também pode ser mais factível aumentar
121
Brasil do Tietê, 500 a abrangência para a região, nos casos em que há

121
poucos dados para compor uma centralidade cor- Com o croqui preenchido, proponha aos alu-

D
porativa. A proposta de realizar a análise em São nos que circulem as concentrações que eles re-
Paulo diz respeito ao fato de que se trata da gran- conhecem na representação e aprofundem sua
de metrópole sul-americana, que conta com dois pesquisa: São centros da cidade de São Paulo?
grandes centros de negócios, a avenida Paulista e Formaram-se em que contexto sócio-histórico?

L
o Polo Marginal, que inclui as avenidas Berrini e O sociólogo Heitor Frúgoli Jr. analisou as centra-
Brigadeiro Luís Antônio; no entanto, o raciocínio lidades em São Paulo, destacando os desdobra-
se aplica igualmente a encontrar centralidades mentos entre elas: centro, a Paulista e a Berrini
corporativas em outras metrópoles brasileiras. A e Marginal Pinheiros.

N
publicação Regiões de influência das cidades 2018, Centro: polo a partir do qual se irradiou a
do IBGE (disponível em: <https://www.ibge.gov. metrópole e ponto nodal de seu sistema viário
br/geociencias/cartas-e-mapas/redes-geograficas/ desde o “Plano de Avenidas” (gestão Prestes
15798-regioes-de-influencia-das-cidades.html>; Maia, 1938-45). Em processo de deterioração

P
acesso em: 22 dez. 2020), pode ajudar a colocar em há algumas décadas, vem sendo palco de um
contexto a polarização exercida por São Paulo e movimento encabeçado pela Associação Viva o
pelas demais metrópoles do país, pois conta com Centro, que pretende sua requalificação como
a análise dos dados utilizados pelo IBGE para espaço estratégico da vida metropolitana, in-
traçar o desenho de nossa hierarquia urbana. corporando os bairros contíguos e integrando-
IA
Não estamos explorando a metodologia utili- se a áreas ao norte.
zada por essas empresas jornalísticas para pro- Paulista: espaço de grande prestígio, utilizado
duzir seus rankings, pois o interesse em foco é en- de várias formas por elites e grupos de alto po-
contrar concentrações de sedes de empresas nas der aquisitivo, a partir dos anos 1970 tornou-
cidades, mas pode ser interessante buscar uma se um importante subcentro da metrópole,
parceria com o professor de Matemática para “eleito” o “símbolo da cidade” às vésperas de
investigar como esses dados foram levantados seu centenário (1991). Durante os anos 1990,
U

e quais são os critérios para agrupar empresas. traços de uma degradação urbana levaram à
Com os quadros de empresas em mãos, os alu- articulação da Associação Paulista Viva, que
nos precisam de mapa mudo de São Paulo ou de busca a revalorização da região.
acesso a um aplicativo de navegação no celular ou Berrini e Marginal Pinheiros: área situada na
no navegador do computador. É evidente que os parte mais extrema do “quadrante sudoeste”,
G

alunos que fazem uso de sistemas de informações que se autodenomina o “novo centro de São
geográficas (SIG), como QGIS e Terraview, podem Paulo”, região mais periférica e carente de in-
utilizar esses programas para montar o mapa, fraestrutura, atualmente em franca expansão,
mas eles perdem o exercício da leitura do mapa com a grande presença de multinacionais. A
de grande escala: quando encontrarem uma rua competição imobiliária vem fazendo os pré-
na tela do celular ou do computador, precisam dios da Av. Berrini [...] serem hoje considerados
achar a mesma localização no mapa mudo apenas “obsoletos” por grupos como a Richard Ellis, a
pela comparação das formas da malha urbana, principal responsável pelo crescimento do se-
pois o mapa mudo não conta com topônimos (se tor terciário moderno na Marginal Pinheiros.
considerar conveniente, identifique os rios Tietê FRÚGOLI JR., Heitor. Centralidade em São Paulo:
trajetórias, conflitos e negociações na metrópole.
e Pinheiros, mas mesmo isso pode facilitar algo
São Paulo: Cortez/Edusp, 2000. p. 258-259.
que serve para desafiá-los).

12 2
DINHEIRO E RIQUEZA
A segunda sugestão de abordagem das centra- 5. Proprietário de casa no bairro rico aluga-

D
lidades corporativas é construir uma simulação: da para dirigente de empresa com escri-
com cartolina, pode-se confeccionar as torres tório na área corporativa.
de edifícios e as ligações de transporte com a 6. Programador de uma empresa fornecedora
malha da cidade; pecinhas de jogo de tabuleiro de serviços com escritório na área corpo-

L
podem representar as pessoas saindo de suas rativa; entre muitas outras possibilidades
residências para chegar ao local de trabalho em a serem identificadas pelos alunos.
uma situação em que 100% dos empregados das A proposta é que eles pensem nas repercus-
empresas trabalham presencialmente. Montamos sões de se ter 60% menos movimento de trabalha-

N
uma referência utilizando as peças de jogo de dores das empresas na área corporativa todos os
futebol de botão: dias. E as repercussões nos bairros onde vivem es-
sas pessoas: se a empresa fechar completamente
o escritório, não faz mais diferença qual é o local

P
de moradia do funcionário, desde que ele esteja
conectado à rede de internet. Assim, os impactos
também serão sentidos nos bairros residenciais,
DANIELLABARROSO

que passam a demandar acesso rápido à inter-


net, assim como são visíveis em locais com forte
IA
cultura rentista, pelo aluguel de moradia para
dirigentes das empresas. Até mesmo no caso de
ser uma moradia própria há impacto, pois as fa-
mílias podem se transferir definitivamente para
a casa de praia ou em um condomínio em espaço
periurbano, o que provocaria demanda por equi-
Simulação de uma centralidade corporativa.
pamentos como escola, consultórios médicos etc.
U

Uma vez montada a simulação, pode-se pro- É o tipo de proposta que funciona melhor com
por uma nova situação: 60% dos funcionários das uma grande diversidade de ideias e pontos de
empresas situadas nesses edifícios vão trabalhar vista. Algumas pessoas podem se inquietar pela
de casa. Os alunos precisam pensar as mudanças demissão de uma parte dos trabalhadores, cujas
que vão ocorrer; para isso, eles podem assumir a funções existem porque há escritórios ocupados
G

posição de alguns sujeitos envolvidos nesse novo por empregados. Outras pessoas podem destacar
contexto: a redução da pressão sobre os gestores do trans-
1. Proprietário de um dos prédios na área porte público por melhor qualidade no serviço,
corporativa. uma vez que, em uma situação de teletrabalho, se
2. Família proprietária de uma lanchonete reduz a demanda pelo transporte. Quanto mais
no térreo de um dos prédios na área cor- pontos de vista distintos, mais repercussões eles
porativa. podem enxergar e representar em suas simula-
3. Funcionário de empresa terceirizada de ções. É provável que surjam questões não apenas
limpeza e manutenção, com contratos nos de repercussões na organização do espaço, mas
prédios na área corporativa. também precarização do trabalho e criação de
4. Gerente de empresa com escritório em um novos postos de trabalho, o que contribui para
prédio na área corporativa. o diálogo com os demais componentes da área.

12 3
D
REPENSANDO A AVALIAÇÃO.

“TEMPO É O TECIDO DA NOSSA VIDA”


– A RACIONALIDADE INDUSTRIAL

L
IMBRICADA NA VIDA SOCIAL

N
Dentro da concepção de avaliação nesta obra, cor diferente dos demais para sinalizar sua ina-
o que se propõe aos alunos como atividade avalia- dequação; ele chega ao bloqueio e só então busca
tiva é aquilo que se tem como o objetivo de apren- o bilhete em seu bolso, causando uma ruptura
dizagem da sequência didática desenvolvida em no ritmo da fila. Nesse momento, aparece um

P
aula. Para o tema “Dinheiro e riqueza”, foram texto verbal prescrevendo que todos os passagei-
desenvolvidas propostas de reflexão e abordagem ros ajam em prol da coletividade e cheguem ao
em aula que mobilizam saberes e análises geográ- bloqueio com seus bilhetes em mãos para evitar
ficos sobre as repercussões do modo de produção atrasos aos demais passageiros. Não apenas o
industrial, destacando a geração de resíduos sóli- ritmo industrial é usado pela instituição para
IA
dos; a expansão contínua da produção industrial organizar os fluxos em seu sistema de transporte
e sua implicação na obsolescência de estruturas como a quebra desse ritmo é punida com olhares
espaciais; e repercussões espaciais na passagem de desaprovação dos demais passageiros e com
do artesanato para a fábrica. Seria interessante, uma animação veiculada em toda parte que des-
assim, propor aos alunos um exercício de grande qualifica quem age assim, associando esse com-
escala: quais são as lógicas industriais que eles portamento ao egoísmo e à falta de engajamento
percebem em seu cotidiano? Como o ritmo fabril coletivo.
U

repercute na organização do espaço urbano? Em Esse exemplo pode se somar a diversas pro-
conjunto com professores dos demais compo- duções audiovisuais ficcionais para compor uma
nentes curriculares da área, essas questões se abordagem em sala de aula sobre as repercussões
juntariam a outras propostas que desvendam do ritmo fabril na vida social: estaríamos repro-
G

a racionalidade industrial que está imbricada duzindo o ritmo das máquinas industriais fora
à vida em sociedades urbano-industriais, assim da fábrica? Indicamos os vídeos a seguir, que se
como em outras sociedades. complementam nessa discussão.

VIVER NA CIDADE DE ACORDO COM 1. O brilho dos meus olhos (direção de Allan Ri-
O RITMO DAS MÁQUINAS beiro, 2007, 11 min; disponível em: <http://
A Companhia do Metropolitano de São Paulo portacurtas.org.br/filme/?name=o_bri-
veicula em suas plataformas e trens um conjun- lho_dos_meus_olhos>; acesso em: 22 dez.
to de animações sobre o comportamento espe- 2020) aborda o cotidiano repetitivo de um
rado de seus passageiros. Em um deles, há filas pedreiro, que se desloca todos os dias de
em cada bloqueio e as pessoas estão com seus trem até o local de trabalho, e sonha em
bilhetes em mãos, exceto um personagem, com ser cantor. Um dia, retornando para sua

124
DINHEIRO E RIQUEZA
casa, ele passa em frente a um karaokê e agrada os patrões. O problema, portan-

D
em um bar e decide cantar uma canção, to, apresentado na animação, é apenas
dando asas a seu sonho de um cotidiano colocar um pouco mais de criatividade
diferente daquele em que vive. no que se faz, mas, em sala de aula, é per-
tinente analisar o curta-metragem pela

L
2. Alike (direção de Daniel Martínez Lara e lógica que organiza o trabalho no modelo
Rafa Cano Méndez, 2015, 8 min; disponí- fordista ou em um formato de acumula-
vel em: <https://vimeo.com/194276412>; ção flexível, indagando se a mudança no
acesso em: 22 dez. 2020) conta a história modo de produção é suficiente para con-

N
de pai e filho que se desconectam quan- tornar as desigualdades, as angústias e
do o pai apoia a escola na repressão da as desfuncionalidades apresentadas por
criatividade do filho, que se entristece ao parte expressiva dos trabalhadores.
tentar se enquadrar em regras que tolhem
Em todas essas produções cinematográficas,

P
sua maneira singular de ver e reagir ao
o espaço e as personagens revelam elementos
mundo. É uma profunda crítica às insti-
próprios da produção fabril:
tuições escola e trabalho, que funcionam
sob a lógica da padronização e da sincro-
ƒƒ o ritmo é dado pela regularidade dos acon-
nização do ritmo das pessoas, cujas sin-
tecimentos e pela repetição (em perso-
IA
gularidades são não apenas desconside-
nagens: acordar, deslocar-se até local de
radas como também indesejáveis. O uso
trabalho ou estudo, realizar atividade,
da cor marca também a padronização do
retornar para o domicílio; nas paisagens:
espaço da cidade, que espelha a situação
movimento contínuo de meios de trans-
dos personagens.
porte, fluxos regulares de deslocamento);

3. Cabeça ou coração (no original Inner Workin-


ƒƒ os elementos dos espaços remetem à ci-
U

gs, direção de Leo Matsuda, 2016, 7 min)


dade industrial, com infraestrutura de
é um curta-metragem da Disney exibido
circulação predominando na paisagem,
nos cinemas como abertura do longa-me-
construções de formas semelhantes, sepa-
tragem Moana. Apresenta-se como uma
ração evidente entre espaço dos veículos
crítica ao predomínio de decisões racio-
G

e espaço dos pedestres;


nais no dia a dia e um convite a consi-
derar as emoções nessas situações. No
ƒƒ o tempo da vida é pautado por compro-
entanto, é um produto audiovisual mais
missos que se sucedem ao longo do dia
apropriado para se discutir ideologia do
e que têm um horário determinado para
trabalho: o personagem acorda todos os
iniciar e para terminar: o relógio comanda
dias e segue uma sucessão rígida de ati-
o cotidiano dos personagens;
vidades regido pelo medo; um dia, rompe
com essa rigidez e retorna ao trabalho
ƒƒ as atividades laborais e escolares são pa-
com disposição para modificar o jeito
dronizadas e as pessoas devem realizar
como as coisas são feitas por ali, então
esforços para adequar-se a elas: trata-se
experimenta um jeito mais divertido de
de sociedades de massa.
realizar o trabalho, entusiasma os colegas

12 5
Como as perguntas iniciais dizem respeito A metrópole e a vida mental

D
à presença da organização fabril em nosso coti-
Georg Simmel
diano, é pertinente indagar os alunos a respeito
(In: GUILHERME VELHO, Otávio (org.). O
do que eles veem de semelhante nos vídeos em
fenômeno urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
relação à fábrica, de forma que se possa avaliar
1973. p. 11-16.)

L
se eles são capazes de reconhecer, nos curtas-me-
[...] Com cada atravessar de rua, como o ritmo
tragens, elementos da organização fabril, que são
e a multiplicidade da vida econômica, ocu-
o fundamento da lógica industrial: produção em
pacional e social, a cidade faz um contraste
larga escala em ritmo cada vez mais acelerado.
profundo com a vida de cidade pequena e a

N
Caso a espacialidade diferencial tenha nor-
vida rural no que se refere aos fundamentos
teado alguma situação de ensino e aprendiza-
sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai
gem com a turma, é apropriado retomar o que
do homem, enquanto criatura que procede
eles aprenderam a respeito dos efeitos de viver
a discriminações, uma quantidade de cons-

P
o espaço da cidade de forma fragmentada. Em
ciência diferente da que a vida rural extrai.
diálogo com o componente de Sociologia, seria
Nesta, o ritmo da vida e do conjunto senso-
interessante propor uma discussão sobre um
rial de imagens mentais flui mais lentamente,
efeito da vida na metrópole, de acordo com in-
de modo mais habitual e mais uniforme. [...]
terpretação do sociólogo alemão Georg Simmel
Assim, o tipo metropolitano de homem – que,
IA
(1858-1918), no célebre texto “A metrópole e a vida
naturalmente, existe em mil variantes indivi-
mental”. Os trechos que selecionamos podem
duais – desenvolve um órgão que o protege das
ser levados juntos para a sala de aula e fomentar
correntes e discrepâncias ameaçadoras de sua
uma roda de conversa sobre as experiências dos
ambientação externa, as quais, do contrário, o
alunos relacionadas à espacialidade diferencial
desenraizariam. Ele reage com a cabeça, ao in-
e à atitude blasé.
vés de com o coração. Nisto, uma conscientiza-
A interpretação dos textos poderia contar
ção crescente vai assumindo a prerrogativa do
U

com um fio condutor, como a distinção entre


psíquico. A vida metropolitana, assim, implica
cidade e vida urbana; vai ficando evidente, à me-
uma consciência elevada e uma predominân-
dida que se aprofunda a análise, que a cidade
cia da inteligência no homem metropolitano.
se refere ao assentamento, à materialidade, en-
[...] Não há talvez fenômeno psíquico que te-
quanto a vida urbana comporta as relações que
G

nha sido tão incondicionalmente reservado


se desenvolvem ali. O urbano, como um conjunto
à metrópole quanto a atitude blasé. A atitude
complexo de relações sociais que implicam frag-
blasé resulta em primeiro lugar dos estímulos
mentação nas experiências de tempo e de espaço,
contrastantes que, em rápidas mudanças e
tem se expandido enormemente e se apresenta
compressão concentrada, são impostos aos
em espaços agrícolas organizados sob a lógica
nervos. [...] A essência da atitude blasé consiste
industrial, como a produção de commodities agrí-
no embotamento do poder de discriminar. Isto
colas. Esse é um bom norte para a condução das
não significa que os objetos não sejam perce-
discussões em sala de aula.
bidos [...], mas antes que o significado e valo-
res diferenciais das coisas, e daí as próprias
coisas, são experimentados como destituídos
de substância.

12 6
DINHEIRO E RIQUEZA
A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra

D
Yves Lacoste
(Campinas: Papirus, 1988. p. 43-49.)

Outrora, na época em que a maioria dos ho- hoje, que tudo aquilo que está longe sobre a

L
mens vivia ainda para o essencial, no quadro carta é bem perto com determinado meio de
da autossubsistência aldeã, a quase totalidade circulação. A proporcionalidade do tempo
de suas práticas se inscrevia, para cada um e do espaço percorrido, durante séculos, ao
deles, no quadro de um único espaço, relati- ritmo do pedestre (ou a passo de cavalo, para

N
vamente limitado: o “terroir” da aldeia e, na pe- os poderosos) começou a se romper no século
riferia, os territórios que relevam das aldeias XIX, em certos eixos, onde a estrada de ferro
vizinhas. Além, começavam os espaços pouco diminuiu dez vezes as distâncias. Hoje, nós
conhecidos, desconhecidos, míticos. nos defrontamos com espaços completamente

P
[...] diferentes, caso sejamos pedestres ou automo-
Antigamente, cada homem, cada mulher per- bilistas (ou, com mais razão ainda, se somar-
corria a pé o seu próprio território (aquele mos o avião). Na vida cotidiana, cada qual se
no qual se inscreviam todas as atividades do refere, mais ou menos confusamente, a repre-
grupo ao qual pertencia); ele encontrava seus sentações do espaço de tamanhos extrema-
IA
pontos de referência, sem dificuldade, nesse mente não semelhantes (desde um “cantinho”
espaço contínuo, no qual nenhum elemento lhe de algumas centenas de metros, até grandes
era desconhecido. porções do planeta) ou, antes, a pedações de
Hoje, é sobre distâncias bem mais considerá- representação espacial superpostos, em que
veis que, a cada dia, as pessoas se deslocam; as configurações são muito diferentes umas
seria melhor dizer que elas são deslocadas das outras. As práticas sociais se tornaram
passivamente, seja por transportes comunitá- mais ou menos confusamente multiescalares.
U

rios, seja por meios individuais de circulação, No passado vivia-se totalmente num mesmo
mas sobre eixos canalizados, assinalados por lugar, num espaço limitado, mas bem conhe-
flechas, que atravessam espaços ignorados. cido e contínuo. Hoje, nossos diferentes “pa-
Nesses deslocamentos quotidianos de massa, péis” se inscrevem cada um em migalhas de
G

cada qual vai, mais ou menos solitariamente, espaço, entre os quais nós olhamos sobretudo
em direção ao seu destino particular; só se co- nossos relógios, quando nos fazem passar, a
nhecem bem dois lugares, dois bairros (aquele cada dia, de um a outro papel. Se os sonâm-
onde se dorme e aquele onde se trabalha); en- bulos se deslocam sem saber por que num lu-
tre os dois existe, para as pessoas, não exata- gar que eles conhecem, nós não sabemos onde
mente todo um espaço (ele permanece desco- estamos nos diversos locais onde temos algo
nhecido, sobretudo se é atravessado dentro de a fazer. Vivemos, a partir do momento atual,
um túnel de metrô), mas, melhor dizendo, um numa espacialidade diferencial feita de uma
tempo, o tempo de percurso, pontuado pela multiplicidade de representações espaciais, de
enumeração dos nomes de estações. dimensões muito diversas, que correspondem
[...] a toda uma série de práticas e de ideias, mais
É uma perfeita banalidade dizer, nos dias de ou menos dissociadas [...].

12 7
O passo seguinte é propor a eles que observem fabril nas situações que vivem dia a dia. É apro-

D
em suas atividades e em seus itinerários cotidia- priado até mesmo propor uma ida a campo para
nos situações em que opera essa lógica industrial, observar situações em espaços que se organizam
de forma a compor um conjunto articulado de sob uma lógica de fluxos de massa, como avenidas
situações. A proposta é contar uma história em movimentadas e estações de transporte coletivo.

L
que essas situações ocorrem e colocam as pessoas Ao observar as imagens registradas por eles,
sob um ritmo industrial; a sugestão é usar apenas é possível avaliar se atingem o primeiro objetivo
fotografias para contar essa história, pois o uso da atividade – reconhecer a lógica industrial em
de texto não verbal, nesse caso, favorece a obser- diferentes âmbitos da vida social –, por isso pode

N
vação das situações e das paisagens. ser uma etapa significativa propor aos alunos que
Como produto final, pode-se propor aos alu- imprimam tudo que fotografaram e levem para
nos que organizem uma narrativa com as fotogra- a sala de aula (pode ser uma versão feita em im-
fias feitas na forma de um fotolivro – os adoles- pressora doméstica, sem qualidade fotográfica);

P
centes costumam utilizar a linguagem fotográfica em sala, eles misturam suas fotografias umas
em seu dia a dia para se expressarem em relação com as outras em uma mesa e, em seguida, você
a diferentes aspectos de suas vidas, no entanto, propõe temas para que eles busquem fotografias
contar uma história com imagens propicia um trazidas por alunos diferentes e contem uma his-
contato diferente com a fotografia, pois a boa tória com, no máximo, três imagens. Os temas
IA
história é contada com base em uma observação podem ser bastante abstratos, como dentro/fora,
atenta das situações e das paisagens nas quais o perto/longe, claro/escuro etc.
ritmo fabril pode ser reconhecido. A atividade ganha robustez à medida que eles
De acordo com a história elaborada pelos observam que a combinação das fotografias é
alunos, eles podem decidir o suporte do fotolivro. capaz de produzir um significado que não se
Sugerimos a seguir formas muito simples de se notava na imagem vista isoladamente. Ao final,
construir uma base para as fotos, inclusive com você pode recolher as combinações feitas por
U

modelos que dependem apenas de dobra e corte. cada aluno e avaliar os sentidos que eles criaram,
Os alunos podem imprimir diretamente no papel de forma a notar se o objetivo de aprendizagem
que vai compor o fotolivro ou podem imprimir as foi atingido. Outra possibilidade é compor um
fotografias e colá-las na base. Como se trata de painel na parede da sala de aula com todas as
um fotolivro, pode ser interessante atribuir um combinações e propor que os alunos avaliem se
G

título a ele, o que contribui para guiar o olhar do já são capazes de reconhecer a lógica industrial
leitor sobre as imagens, auxiliando-o para sua nos âmbitos da vida social representados naquele
interpretação. conjunto de fotografias.
Em ambas as situações, pode-se aferir suces-
ESTRATÉGIAS DE AVALIAÇÃO sos e fracassos no desenvolvimento do objetivo e
A proposição dessa atividade avaliativa tem retomar a caracterização da atividade industrial,
caráter formativo, pois os alunos não partem para estimulando os alunos a apontar, nas fotografias,
a observação já prontos para o reconhecimento similaridades com os elementos da produção
da lógica industrial, ainda que ela tenha sido des- industrial.
crita e discutida em sala: quanto mais eles obser- Expressar a racionalidade industrial observa-
vam o cotidiano, mais possibilidades encontram da no cotidiano é o segundo objetivo da proposta
de identificar elementos que compõem o ritmo e está bastante ligado às escolhas feitas pelos

12 8
DINHEIRO E RIQUEZA
alunos na composição do fotolivro: as fotografias da proposta foram discutidos com os alunos, é

D
e também o suporte. Evidentemente a atividade mais provável que a avaliação transcorra cuida-
ganha mais força com a participação do professor dosamente e que eles participem dela, apontan-
de Arte, que pode colocar os alunos em contato do contextos em suas fotografias e nas escolhas
com fotolivros célebres, explorando elementos da do suporte que contribuem para observar di-

L
linguagem fotográfica que escapam a quem não retamente como os alunos amadureceram (ou
tem contato aprofundado com essa expressão não) seu olhar sobre a lógica industrial na vida
artística. Ainda assim, mesmo sem contar com urbana. Também contribui com sua avaliação
essa participação, pode-se incentivar os alunos a propor aos alunos que se autoavaliem quanto ao

N
cuidar da confecção do fotolivro de forma que o que era esperado que desenvolvessem e quanto a
suporte escolhido (o tipo de encadernação, as co- critérios que eles próprios julgarem pertinentes.
res do papel, a forma como as fotografias entram Os formulários eletrônicos são uma ferramenta
na página, com ou sem moldura) ajude a contar eficiente para a autoavaliação: em uma roda de

P
a história. Um exemplo: a racionalidade indus- conversa, pode-se chegar a uma lista de afirma-
trial pode ser expressa no uso de equipamentos ções, como as sugeridas a seguir, para as quais
para fazer a dobra do papel, pois é próprio do os alunos respondem se concordam ou não, com
fazer industrial a ausência de marcas da singu- intensidades distintas (chamadas nos formulá-
laridade humana, como ocorre no artesanato. É rios eletrônicos de “escala linear”).
IA
fundamental explicitar aos alunos o que deve ser
considerado na avaliação dos fotolivros, de forma
Reconheço em meu cotidiano a
que eles possam se ocupar, ao longo do processo,
influência da lógica industrial no
dos aspectos valorizados, mas também para que ritmo e na organização do espaço.
questionem e compreendam o significado dos
concordo completamente discordo completamente
objetivos de aprendizagem, uma vez que dizem 1 2 3 4 5

respeito a seus direitos de aprendizagem – a par-


Elaborei uma história fotográfica que
U

ticipação dos alunos na composição do currículo

DANIELLA BARROSO
passa pela apreensão das etapas de organização expressa a presença da racionalidade
das atividades em sala de aula.
industrial na vida urbana.
Avaliar os fotolivros prontos pode se mostrar concordo completamente discordo completamente
1 2 3 4 5
uma tarefa mais complicada do que as avaliações
G

realizadas ao longo do processo de sua confec- Consegui estabelecer relação entre o


ção, pois se trata de uma expressão artística dos que estudei na escola e o que observo
alunos, que demanda cuidado em nossa postura, nas experiências cotidianas.
como evitar expressar juízo de valor (bonito/feio, concordo completamente discordo completamente
1 2 3 4 5
certo/errado). Se os objetivos de aprendizagem

12 9
Capítulo 4

D
Cultura, imaginário e

L
representações

N
P
IA
U
G
D
L
A produção do espaço geográfico transforma o imaginário humano e, ao
mesmo tempo, cria memórias e novos símbolos no imaginário coletivo. Sobre
isso, a geógrafa Iná Elias de Castro aponta que:
[...] todo imaginário social é também um imaginário geográfico, porque, embora fruto

N
de um atributo humano – a imaginação – é alimentado pelos atributos espaciais, não
havendo como dissociá-los.
CASTRO, Iná Elias de. Imaginário político e território. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César
da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato. Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 178.

P
Na prática docente, é fundamental que se possa estabelecer relações entre o
simbólico, o imaginário e a representação sem perder de vista os referenciais
teóricos e as categorias específicas de compreensão do espaço geográfico.
Os temas desenvolvidos neste capítulo foram norteados pela competência
específica 3 da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da BNCC:
IA
Analisar e avaliar criticamente as relações de diferentes grupos, povos e sociedades
com a natureza (produção, distribuição e consumo) e seus impactos econômicos e so-
cioambientais, com vistas à proposição de alternativas que respeitem e promovam a
consciência, a ética socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional,
nacional e global.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC; SEB, 2018. p. 570. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.
gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2020.
U

Neste capítulo, você encontrará propostas de reflexão e de ação didática


concebidas dentro de uma perspectiva de diálogo com os demais componen-
tes da área, tendo como base os elementos fundamentais da relação sociedade
G

e natureza, fundante do conhecimento geográfico, e também as categorias de


análise paisagem, lugar e região.
A primeira proposta aborda as concepções de natureza com um convite para
que você revisite o olhar que opõe natureza e cultura. A proposta seguinte visa
instigar os alunos a tornar visíveis os elementos naturais apropriados pela ação
humana como recursos para a produção de objetos industriais. Na terceira pro-
posta, a natureza é analisada sob o contexto de sua apropriação pelas classes
ricas nas cidades e, consequentemente, seu papel na valorização imobiliária.
Por fim, como proposta de avaliação, sugerimos reconstituir o imaginário so-
cial a respeito das regiões brasileiras e superar a noção de região prevalente na
Geografia escolar por meio de um raciocínio geográfico assentado na análise
de dados e no uso da modelização cartográfica.
D
CONHECIMENTO DE SI, DO OUTRO E DO NÓS.

COMO VOCÊ VÊ A NATUREZA

L
N
A relação sociedade-natureza sempre per- e corresponde a um imaginário coletivo; conse-
meou os debates na Geografia, sobretudo em quentemente, a um conjunto de formas de ação.
âmbito acadêmico, seja no momento em que você Nossa sociedade tem em suas bases o pensa-
se aproxima de uma ou outra linha de análise mento antropocêntrico, de origem iluminista e

P
do espaço geográfico, seja quando procura uma ligado a uma religiosidade cristã, que se mantém
perspectiva de inter-relação ou síntese. no imaginário coletivo, sustentando um sistema
O geógrafo Wendel Henrique propõe uma econômico baseado na exploração de recursos e
periodização a respeito da ideia de natureza ao um conceito de natureza cada vez mais deslocado
longo da história humana. Cada momento é ca- de sua relação com o ser humano.
IA
racterizado de acordo com as ideias prevalentes

Caracterização e evolução das ideias e conceitos de natureza para o mundo ocidental

O homem e o
Momento A natureza e o homem O homem e a natureza
território
História Idade Antiga Idade Média Idade Moderna Idade Contemporânea
U

Período Clássico Teológico Descobrimentos Incorporação Produção


Vida em
Contemplação Descobertas Desenvolvimento
função do Desenvolvimento
da natureza de novos industrial;
Origem das cristianismo; da técnica e
e início da territórios; mecanização
ideias construção da ciência;
atividade descobertas das forças da
de grandes urbanização.
G

agrícola. científicas. natureza.


catedrais.
Concepção
Mecânica;
de Mito Divina Físico-teológica Artifício
recurso
natureza
O homem
O homem
deve A ciência é a
com sua mão
conhecer forma racional A natureza passa
transforma A Terra é o
Principais a natureza de dominação a se inserir nos
a primeira território do
ideias para da natureza interstícios da
natureza em homem.
comprovar a para os seus vida social.
uma natureza
existência de interesses.
segunda.
Deus.

Fonte: HENRIQUE, Wendel. O direito à natureza na cidade. Salvador: EDUFBA, 2009. p.


32 e 34. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/3dz>. Acesso em: 2 jan. 2021.

13 2
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
A natureza é vista como algo a ser dominado, ƒƒ O que é natureza pra você? Essa resposta

D
exclusivamente como possibilidade de transfor- deve ser dada em duas linguagens: um
mação e apropriação econômica (valor de troca); pequeno texto de opinião com declaração
atribui-se a ela a imagem do selvagem, obscuro, direta e uma imagem que comunique essa
perigoso e, às vezes, indesejado. Nessa perspecti- concepção.

L
va, natureza se opõe a cultura: assim, onde con-
centra-se a ação humana, como no assentamento ƒƒ Para escolha da imagens, sugerimos a pes-
da cidade, não há natureza. quisa e seleção em um banco de imagens
Ao mesmo tempo, esse deslocamento traz uma gratuitas, como Wikimedia Commons,

N
falsa ideia de que a natureza é uma fonte infinita Freepik ou Pixabay. Essa pode ser uma
de recursos. O crescente desmatamento, a redu- oportunidade para explorar esse tipo de
ção da biodiversidade, chegando à extinção de ferramenta, muito rica para os estudos
espécies, e os constantes episódios de catástro- geográficos. As imagens são ferramentas

P
fes causadas por crimes ambientais – causando, importantes de comunicação, inclusive
inclusive, a morte de muitas pessoas, como nos para expressar algo que temos dificuldade
casos recentes ocorridos em Mariana e Bruma- em escrever; todos os dias aprendemos
dinho (MG) – apontam para a discussão sobre os ideias, conceitos, comportamentos etc.,
limites do modo de produção e a exploração dos mesmo que inconscientemente, por meio
IA
elementos naturais como recursos. de todas as imagens que vemos, como os
Ao consumir uma mercadoria, o indivíduo logos de produtos, por exemplo.
não tem consciência de todo o processo de pro-
dução envolvido (alienação): há uma separação ƒƒ Finalizada essa etapa, vem o momento de
entre os dois atos, tanto no tempo quanto no compartilhamento das respostas. Caso os
espaço. Desse modo, pensar na origem dos re- professores não consigam se encontrar no
cursos naturais que foram transformados para mesmo horário de trabalho coletivo, vale a
U

gerar uma mercadoria, bem como na quantidade pena utilizar uma ferramenta on-line que
de matéria a ser descartada, é algo tão distante permite a criação de um mural ou quadro
quanto pensar em seus limites de extração e sua virtual dinâmico e interativo. Sugerimos
possível finitude. A natureza é, então, reconheci- a utilização das seguintes ferramentas:
da como imagem, como ideia, às vezes mitificada, Padlet e Jamboard.
G

outras, romanceada, e muitas vezes até negligen-


ciada ou esquecida. ƒƒ O último passo é tentar agrupar as respos-
Como nossa conversa parte de várias concep- tas de acordo com a concepção de natu-
ções de natureza, convidamos você e seus colegas reza que elas expressam. A ideia é que o
da área de Ciências Humanas e Sociais Aplica- grupo consiga identificar termos, enten-
das a expressar suas visões sobre ela. O roteiro dimentos, filiações etc. Observar e iden-
a seguir é uma sugestão para o encontro coletivo tificar diferentes concepções de natureza
docente de sua escola. é importante para prática docente e pode
contribuir com a ampliação de aborda-
gens em sala de aula.

13 3
O historiador Irineu Tamaio argumenta que: Os exemplos do quadro foram extraídos de

D
[...] a natureza é um conceito categorizado por pesquisas desenvolvidas por biólogos em 2011,
seres humanos, portanto, fundamentalmente que identificaram entre os professores a predo-
político, as suas concepções são variadas e es- minância de uma leitura dualista (homem vs.
tão intimamente relacionadas com o período natureza) e uma concepção utilitarista, que não

L
histórico e a correlação de forças políticas das inclui o ser humano como parte integrante da
classes sociais determinadas historicamente. natureza. Também foi identificada a concepção
TAMAIO, Irineu. O professor na construção do romântica, idealizada, de natureza, que não con-
conceito de natureza: uma experiência de Educação sidera toda a complexidade que envolve a produ-
Ambiental. São Paulo: Annablume; WWF, 2002. p. 37.

N
ção do espaço geográfico.
Com base nas categorias propostas por ele, Essas concepções revelam primordialmente
destacam-se três tendências da concepção de na- as “lentes” que os professores usam para ler o
tureza: naturalista, romântica e utilitarista (elas espaço geográfico. Para compreendermos melhor

P
podem apoiar a atividade de análise de discurso esse mecanismo, vamos realizar um exercício de
sobre a natureza a ser realizada mais adiante). leitura espacial? As duas imagens a seguir mos-
Observe o quadro na página ao lado. tram uma paisagem com vegetação de ocorrência
natural e outra de um espaço urbano. A pergunta
é: Qual o assentamento mais adequado à espécie
IA
humana?

Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ), 2011. Avenida Beira Mar, em Florianópolis (SC), 2005.

1 2
U

MARIO ROBERTO DUR AN ORTIZ/WIKIMEDIA COMMONS


CARLOS PEREZ COUTO/WIKIMEDIA COMMONS
G

13 4
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
D
Categorias de natureza Exemplos*
Naturalista “A natureza é uma coisa que cresceu ali e se formou [...]

Tudo o que não sofreu ação de de primeira a gente falava em mato e hoje é reserva.”
transformação pelo ser humano, como “A natureza é tudo o que se refere à floresta.”
as matas, os animais e os alimentos.

L
“É tudo de natural que já existia antes de nós.”
“O espaço natural do globo terrestre, caracterizado pelo
verde das matas e pelas águas do rio [...] é o ecossistema
formado por seres vivos, plantas, rios, mares, animais,
etc.”

N
“São os elementos naturais que compõem a vida e são
essenciais para a sobrevivência.”

Romântica “A natureza o que a gente vê, né, uma árvore, um pé de


planta, né, assim... uma mata fechada, assim... ali pra

P
Elabora uma visão de Mãe Natureza:
grandiosa, harmônica, bondosa, bela mim é uma natureza, né, nasceu ali e cresceu e se for-
e ética. Muitas vezes é associada mou.”
ao plano espiritual e divino. O ser
humano não está inserido nesse “Natureza é a fauna e a flora. Tem as plantas, né, os ani-
processo. mais [...], a floresta.
IA
Ela é dádiva que Deus nos presenteou, um espaço sa-
grado e abençoado.”
Utilitarista “Eu acredito que é muito importante preservar o meio

Interpreta a natureza como fonte ambiente porque ele é a nossa fonte de renda, sem ele
de recurso para o ser humano (visão não tem como a gente viver, sem a gente ele vai existir,
antropocêntrica) e fornecedora da mas sem ele não existiremos.”
vida. Ambos são dicotômicos.
“É de onde vem o alimento? Precisamos disso, daquilo.
U

Precisamos de arroz, feijão, milho, né? O extrato de to-


mate, a carne. Tudo isso é natureza.”
“Dela dependemos e temos obrigação de preservá-la o
que ainda temos.”
Socioambiental (sistêmica) “É o conjunto das relações entre fauna, flora e homem
G

Concebe uma Interação entre os (ser social) correlacionando com os fatores abióticos
homens e dimensão ecológica; o ser ou não.”
humano e a paisagem são vistos como “É tudo aquilo que tem como característica ser natural
elementos constitutivos da natureza.
Reintegra o ser humano à natureza. (ambiente natural), inserindo o ser humano (social) com
pouca interferência.”
Generalista “Tudo o que nos cerca.”

Define a natureza de uma forma “Tudo ao nosso redor e que está presente no meio am-
muito ampla, vaga e abstrata: “tudo” é biente.”
natureza.
Fonte: TAMAIO, Irineu. O professor na construção do conceito de natureza: uma experiência de Educação Ambiental. São
Paulo: Annablume; WWF, 2002. * Os exemplos foram extraídos de: LIMA, Aguinel Messias; OLIVEIRA, Haydée Torres. A
(re)construção dos conceitos de natureza, meio ambiente e educação ambiental por professores de duas escolas públicas.
Ciência & Educação, Bauru, v. 17, 2011. VERGARA, Leonardo da Costa et al. Educação ambiental na Educação de Jovens e
Adultos: concepções de natureza dos educandos da EJA. Anais da 8ª Semana de Licenciatura do IFG-Jataí. Jataí: IFG, 2011.

13 5
Esse é um exercício de imaginação: a paisa- A urbanização e a modernidade capitalista

D
gem da imagem 1 corresponde à morada original promovem a falsa ideia de que estamos disso-
do ser humano, aquela que permite o acesso dire- ciados da natureza e que não há consequências
to aos recursos naturais por meio de seu próprio reais a esse modelo econômico. Por quanto tem-
trabalho. Para uma população de mais de 7 bi- po os países periféricos seguirão suprindo com

L
lhões de indivíduos, os Homo sapiens dependem seus recursos naturais as demandas de consumo
de aglomerações populosas para levar adiante das populações dos países mais ricos? Ainda há
seu modo de vida majoritário, o urbano-indus- recursos suficientes para sustentar o modelo dos
trial, em concentrações cada vez mais compactas, países mais ricos? Essas são algumas questões

N
como a da paisagem da imagem 2. que demandam aprofundamento a respeito das
Historicamente, o ser humano se relaciona concepções de natureza que circulam socialmen-
com a natureza para a produção de seus meios te, pois a ideia de “proteção da natureza e do pla-
de subsistência. Com a acumulação capitalista, o neta” não tem potência para expor a fragilidade

P
que ocorreu foi a alienação do trabalho e a abo- do modo de vida urbano-industrial, posto que é
lição do direito coletivo do uso da terra, ou seja, ele que se apresenta insustentável e é o que está
houve a apropriação privada de um bem comum de fato sendo protegido por uma parcela dos ati-
necessário à sobrevivência, retirando de parte dos vismos ambientais.
seres humanos esse direito.
IA
U
G

13 6
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
D
O SABER DISCIPLINAR EM XEQUE.

A NATUREZA INVISÍVEL NO DIA A DIA

L
N
A proposta é inventariar o processo de trans- Dois exemplos ilustrativos podem nos ajudar
formação natureza-produto. É comum obser- a iniciar essa discussão. O primeiro exemplo cor-
varmos nos alunos do ensino médio uma frag- responde ao processo de produção de uma emba-
mentação do entendimento desse processo, em lagem de papel, como mostrado na ilustração ao

P
decorrência da própria escolarização, mas tam- lado. Ela não mostra todas as etapas de produção
bém da circulação social de conhecimento sobre do creme dental, apenas daquela embalagem ex-
a produção industrial. Muitos adolescentes (e terna, completamente dispensável, que é a caixa
adultos também) não estabelecem relação entre de papel dentro da qual o tubo de creme dental
atividades extrativas e a enorme produção de re- chega a nossas casas. Toda essa cadeia produtiva
IA
síduos sólidos. De fato, essa ligação não é óbvia, poderia deixar de existir se comprássemos o tubo
e a abordagem ambiental na sala de aula ganha de creme dental sem a caixa de papel. A quem ela
muito ao explicitá-la. serve? Certamente não ao consumidor, que deve
descartá-la assim que inicia o uso do tubo. Tam-
impressão, corte
produção e vinco
pouco essa representação está completa porque
silvicultura do papel da embalagem ela ignora os elementos naturais consumidos na
produção do papel e na etapa de impressão, corte
U

e vinco da embalagem.
O segundo exemplo (na página seguinte) es-
clarece esse entendimento: Nessa ilustração, a
produção de água em garrafa também coloca
G

em destaque uma embalagem dispensável (basta


que a água esteja disponível e as pessoas contem
com uma embalagem durável para que a garrafa
E

dental

descartável deixe de ter uma grande demanda) e


M
GABRIEL CALOU

explicita melhor alguns recursos necessários para


R
C

sua produção: a água, por exemplo, não é apenas


o conteúdo envasado, mas um recurso consumido
E

dental
M
E

na produção da embalagem plástica; o petróleo


R
C

é parte da matéria-prima da garrafa plástica e


também o combustível dos meios de transporte
Fonte: MODANEZE, Carolina et al. Você é o que responsáveis por interligar os espaços de produ-
você “joga fora”. São Paulo: Boreal, 2020. p. 6.
ção, consumo e descarte do material.
(Coleção Experimentar, refletir e comunicar).

13 7
ALGUNS MINUTOS DE USO
Uma garrafa con-
E MUITO RECURSO petróleo bruto
some três garrafas

NATURAL
de água em sua
produção.

D
=

CONSUMIDO 25%
de garrafa de
petróleo bruto
esterilização preenchimento/nivelamento empacotamento

ico estocagem
plást é usado para abastecimento

L
produzir transporte
O petróleo é cada garrafa.
transformado
em grãos de
plástico.
consumo/uso

GABRIEL CALOU
Os grãos são aquecidos

N
até que se expandem e
podem ser modelados
em forma de garrafa.

As garrafas são picotadas


em grãos de plástico, que
retornam à produção. Lixo

P
Reciclagem
IA
Fonte: MODANEZE, Carolina et al. Você é o que
você “joga fora”. São Paulo: Boreal, 2020. p. 12-13.
(Coleção Experimentar, refletir e comunicar).

Nossa proposta é levar essa discussão para Uma primeira aproximação pode ser feita
a sala de aula, de forma a provocar os alunos ainda em sala de aula. Proponha que os alunos
na tarefa de colocar em destaque elementos da disponham os objetos sobre uma mesa, à vista de
U

natureza que são invisibilizados na produção de todos. Nossa sugestão é que eles analisem cada
objetos industriais. Vale o uso de uma questão objeto seguindo o roteiro de questões a seguir:
provocadora: Quanta natureza está contida em
1. De onde veio?
seu tocador de música ou em seu tênis? Onde está
2. Qual(is) matéria(s)-prima(s) está(ão) pre-
a natureza nesse objeto?
G

sente(s) no objeto?
Os alunos, organizados em grupos, devem
3. Quais técnicas estão envolvidas?
selecionar um objeto de uso cotidiano para o de-
4. Qual é sua função?
senvolvimento da atividade em grupo. Pode ser
5. É usado todos os dias? Para quê?
uma caneca, um copo, uma caneta, um caderno,
6. Como o objeto chega até nós? Quais em-
um brinquedo, um fone de ouvido, enfim, há uma
balagens são usadas no processo de pro-
infinidade de objetos que podem ser utilizados
dução até o consumo?
na atividade. Procure trabalhar com objetos ra-
7. Qual é sua história? E a sua origem?
zoavelmente complexos, pois que uma carteira
de madeira, por exemplo, não exige grande es- No momento de problematização, promova
forço intelectual para se chegar a uma lista de uma discussão coletiva sobre os objetos e a invi-
elementos naturais envolvidos em sua produção sibilidade dos recursos naturais (matéria-prima
e descarte. e elementos necessários à produção, como água e

13 8
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
fontes de energia) empregados ao longo da cadeia na exploração de recursos naturais. Ainda que

D
de produção, consumo e descarte. alguns setores tenham dado passos significativos
Como continuidade da atividade, sugerimos na racionalização desses recursos (com inovação
que os alunos formulem um episódio de podcast técnica e tecnológica), trata-se de um sistema em
sobre o objeto que levaram à sala de aula para que, fundamentalmente, o aumento da produção

L
análise. Eles devem pesquisar a fundo todo o pro- de objetos industriais implica um aumento na
cesso de produção, desde a extração dos recursos exploração de recursos naturais.
naturais até a transformação, a distribuição, e Para Karl Marx (1818-1883), os seres humanos
também em que circunstâncias ocorre o descarte e a natureza se encontram numa relação de re-

N
(quanto tempo o objeto fica com o consumidor, ciprocidade:
qual é o indicativo de que necessita ser descar- Dizer que o ser humano vive da natureza sig-
tado, para onde é destinado, como ocorre sua nifica dizer que a natureza é seu corpo, com
decomposição). O aplicativo de celular Anchor o qual ele precisa estar em processo contínuo

P
pode ser usado pelos alunos na montagem do epi- para não morrer. Que a vida física e espiritual
sódio de podcast e também na formação da série do ser humano está associada à natureza não
completa (os episódios de toda a turma podem tem outro sentido do que afirmar que a na-
compor uma série), pois nele é possível adicionar tureza está associada a si mesma, pois o ser
músicas e áudios pré-gravados, inserir vinhetas humano é parte da natureza.
IA
de transição de blocos e gravar diretamente a voz. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Boitempo, 2004. p. 84.

UMA ANÁLISE CRÍTICA DO MODO DE PRODUÇÃO


A mercadoria precisa ser comercializada o
Após a formulação do podcast, reúna elemen-
mais rapidamente possível e em grande quanti-
tos das análises produzidas pelos alunos para
dade, do que se pode depreender que o objetivo
propor uma conversa sobre o objeto industrial
da produção não são as necessidades humanas,
e seu significado na produção de riqueza. Em
mas a geração de capital.
U

uma interpretação da Sociologia de uma pers-


A observação das técnicas envolvidas na pro-
pectiva marxista, entende-se como fundamento
dução dos objetos e toda a historicidade envol-
do modo de produção capitalista a maximização
vida em seu processo são parte da interpretação
dos lucros, ou seja, dependente de um aumento
da vivência proposta na atividade, que permite
na produção para reproduzir cada vez mais ca-
G

estabelecer correlações entre a lógica da produ-


pital. Os mecanismos de produção industrial,
ção de objetos industriais e a situação ambiental
desde a Revolução Industrial, que atendem a es-
do planeta.
sas demandas de aumento no lucro se assentam

13 9
D
ÁREA DE CONHECIMENTO EM FOCO.

ESSE VERDE É MEU!

L
N
Os elementos naturais presentes nas cidades, Atlântica (matas tropicais, subtropicais, restin-
ao longo dos anos, foram perdendo seu valor gas, mangues e outros complexos vegetacionais
ecológico e até mesmo de patrimônio paisagísti- foram agrupadas sob essa denominação em di-
co-cultural; foi o que ocorreu, por exemplo, com versas legislações de proteção ambiental). Doada

P
os vales dos rios e os conjuntos de vegetação ar- ao município de Santana de Parnaíba, sua gestão
bórea. Entretanto, nos últimos tempos, esses ele- conta com a participação de uma instituição cria-
mentos, exatamente por sua escassez, passaram a da pela incorporadora imobiliária para cumprir
agregar valor de troca aos projetos imobiliários, o compromisso de manutenção e cogestão públi-
participando, portanto, da especulação imobiliá- co-privada. Essa unidade de conservação é uma
IA
ria nas cidades. das maiores de proteção integral do país inserida
Vamos analisar como isso ocorreu em um tre- em perímetro urbano. Vejamos algumas imagens
cho da metrópole paulista chamada Tamboré, no aéreas da região na página ao lado.
município de Santana de Parnaíba. Tamboré foi Na primeira imagem de satélite, vemos a man-
um projeto imobiliário idealizado na década de cha expressiva de vegetação de mata nativa nas
1980 pelos proprietários de uma extensa faixa de proximidades da mancha urbana. Podemos ob-
terras. Usando uma estratégia de vendas de lo- servar diferentes texturas, que indicam usos di-
U

tes do terreno em porções menores, nas décadas versos do solo na região: o padrão dos lotes e dos
seguintes o empreendimento se tornou uma das arruamentos possibilita inferir o nível de rendi-
áreas mais valorizadas do entorno da cidade de mento de seus moradores. Na segunda imagem
São Paulo: diversos loteamentos das terras deram de satélite, vemos em detalhes os loteamentos que
G

origem a condomínios residenciais e comerciais, compõem o empreendimento Tamboré. O inte-


shoppings, escolas, centros empresariais e até cen- ressante é explorar as informações disponíveis,
tros industriais. por isso pode ser conveniente encontrar a área
Uma parte da propriedade original resultou em uma plataforma de imagens de satélite, como
na Reserva Biológica do Tamboré, uma área de o Google Earth, e utilizar a ferramenta de escala
proteção ambiental criada mediante um acordo para observar detalhes do padrão de arruamento
entre os proprietários e o Ministério Público em e lotes, bem como a identificação dos loteamentos
1997. Essa área de vegetação de mata tropical, que e condomínios.
compunha a antiga reserva florestal obrigatória Destacam-se na área topônimos com termos
do sítio original, tem mais 3,6 milhões de metros como “jardim”, “quinta”, “resort”, “terraço”, “green”,
quadrados e é protegida pela legislação que inci- “bosque”, “boulevard” e, claro, “Tamboré”, em uma
de sobre o que se convencionou chamar de Mata clara associação com a área natural. A principal

14 0
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
D
Reserva
Biológica do
Tamboré

Área correspondente à imagem abaixo.

L
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Rio

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P
ane
o
R od

Rodovia C
astelo B
ranco
IA
Reserva
IMAGENS: GOOGLE EARTH

Heliponto
Biológica do
Tamboré

Alphaville Alphaville
Residencial 9 Residencial 8
U

Quintas de
Resid. Parque
Tamboré
Tamboré
Cond. Paisagem
Tamboré The Penthouses
G

Tamboré
Cond.
Alphaville Cond. Jardins Resort
Residencial 5 de Tamboré Tamboré
Tamboré 4
Villagio
Cond.
Terraços
Tamboré 3 Tamboré 5 Tamboré
Villagio Villagio
Rio Tie

Alphaville
Residencial 4

Cond. Green
Alphaville Tamboré
Residencial 3

141
estratégia de marketing adotada na comerciali- pesquisas. Esse tipo de “estratégia de venda” que

D
zação desse tipo de empreendimento é vincular ressignifica e confere valor econômico à natureza,
a ideia de qualidade de vida, ainda que sejam aumentando os preços dos apartamentos, casas
projetos imobiliários com intensa ocupação do e edifícios, é observada em outros centros urba-
solo e, consequentemente, retirada de vegetação e nos, como Florianópolis, Salvador, Rio de Janeiro

L
impermeabilização. O “verde” é associado ao ima- etc. Entretanto, o “verde” não é o único atrativo
ginário coletivo como um dos atributos naturais da peça publicitária para mobilizar potenciais
escassos na cidade, além do ar puro, clima agra- clientes. Conforme Wenzel Henrique:
dável, proximidade com a fauna (especialmente Ao lado da propaganda contendo a proximi-

N
pássaros), beleza cênica etc. dade do “verde”, destaca-se, sempre, a presen-
Essas associações podem ser depreendidas ça de shopping centers nas redondezas. Afinal,
pela leitura das peças publicitárias dos empreen- apesar da ideia romântica da proximidade do
dimentos, como a mostrada na figura a seguir. Os verde, a sociedade moderna, ou melhor, as clas-

P
croquis presentes nos panfletos de venda tendem ses média e alta, não admitem a possibilidade
a aumentar, exageradamente, a quantidade de de retorno ao estado primitivo da cidade ainda
área verde do entorno para trazer a ideia de pro- no meio da natureza. Ter árvores no entorno
ximidade com a natureza. A comparação entre a é importante, mas as infraestruturas básicas
imagem de satélite, representação cartográfica (água, luz, esgoto, telefone, antena de celular,
IA
mais próxima da realidade, e o croqui de marke- TV a cabo, fibra ótica, hipermercado, delica-
ting imobiliário confirma a “ampliação” das áreas tessen, pet shop, locadora de DVD, academia de
verdes. ginástica, enfim, uma gama de serviços essen-
Nesses anúncios publicitários ocorre uma ciais, 24 horas por dia) não podem estar longe
explosão de tons de verde, além de outras refe- do residencial (condomínio) natural.
rências a vegetação e cursos-d’água, como de- HENRIQUE, Wendel. A cidade e a natureza: a
apropriação, a valorização e a sofisticação da natureza
monstrou o geógrafo Wenzel Henrique em suas
nos empreendimentos imobiliários de alto padrão
U

em São Paulo. Geousp – Espaço


e Tempo, São Paulo, n. 20, 2006.
p. 73. Disponível em: <https://
doi.org/10.11606/issn.2179-
0892.geousp.2006.74008>.
Acesso em: 2 jan. 2021.
G

Em outra pesquisa sobre lo-


teamentos de alto padrão em
FERNANDEZ MER A/REPRODUÇÃO

antigas áreas de vegetação ar-


bórea, também em São Paulo,
verificou-se que a maior parte
dos compradores dos empreen-
dimentos não utiliza no dia a
dia as áreas de proteção am-
biental que compõem a área.

14 2
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
Compram porque está posto como prioritá- O fenômeno descrito é parte do movimento

D
rio viver em ambiente menos poluído, menos de produção de espaços fortemente segregados
barulhento, mais permeável à água da chuva, nas cidades, tornando-os mais caros e excluden-
onde se possa realizar uma corrida, proporcio- tes. Em contrapartida, nas áreas da cidade mais
nar aos filhos a identificação de flora e fauna, desvalorizadas do ponto de vista do mercado

L
ouvir o canto dos pássaros. Entretanto, tais imobiliário, o imaginário sobre a natureza está
atividades não têm espaço na organização do associado a impactos ambientais urbanos, como
seu dia, pois tanto na agenda dos pais (jornada enchentes, movimentos de solo e doenças. Os
de trabalho, compromissos sociais, cursos de livros didáticos são um exemplo de como essa

N
aperfeiçoamento, além do consumo, social- associação circula socialmente, pois eles difi-
mente cobrado, de manifestações culturais, cilmente apresentam conteúdos do urbano sem
como teatro, cinema e concertos), quanto na estabelecer uma ligação com a problemática
dos filhos (jornada escolar, cursos de línguas, ambiental urbana; no entanto, os loteamentos

P
prática de esportes) não cabem caminhadas fortificados de alto padrão em antigas áreas de
diárias pela trilha do parque, nem tampouco vegetação arbórea expressiva ficam de fora das
a observação paciente e demorada de espécies listas de impactos ambientais. A apropriação e
vegetais. reinvenção da natureza na cidade segue uma
BARROSO, Daniella. O verde como estratégia lógica historicamente construída de natureza
IA
de valorização imobiliária: a formação de um
projeto urbanístico em São Paulo. Cadernos
dominada e romântica, que remete às concep-
Metrópole, São Paulo, n. 18, 2007. p. 168. Disponível ções antropocêntricas abordadas anteriormente.
em: <https://revistas.pucsp.br/metropole/article/
viewFile/8734/6481>. Acesso em: 30 nov. 2020. Em sala de aula, nossa proposta é levar para
os alunos imagens de satélite do município e rea-
Dessa forma, as áreas de vegetação arbórea lizar esse exercício analítico que fizemos: reco-
expressiva (remanescentes ou não), cada dia nhecer áreas de vegetação arbórea expressiva, ob-
mais raras, localizadas, muitas vezes, em setores servar o padrão de arruamento dos loteamentos
desvalorizados pelo mercado imobiliário, são
U

lindeiros às áreas para identificar o nível de renda


disputadas por empresas incorporadoras, que, dos moradores, levantar a toponímia desses lotea-
ao estimular a transformação dos espaços com mentos como forma de verificar o uso do “verde”
loteamentos, promovem a redução dessa natu- como atrativo para potenciais moradores e, por
reza (ou dessa representação de natureza, já que fim, interpretar a maneira pela qual a presença
G

muitas vezes trata-se de elementos postos ali pela da natureza (ou de sua representação) integra a
ação humana) à medida que a construção de edi- dinâmica urbana. Com alguns ajustes, também
ficações e arruamentos avança. Assim, exige-se a é possível estender o exercício a áreas rurais do
retirada de vegetação e urbanização da área para município, especialmente se há um movimento
atrair compradores ricos, que pagam caro para de população urbana ocupando propriedades
estar mais próximo da natureza, que em muitos rurais (para transformar em chácara ou sítio de
casos é apenas uma referência no nome do em- lazer, por exemplo, cuja ocupação ocorre apenas
preendimento. em finais de semana e férias).

14 3
REPENSANDO A AVALIAÇÃO.

D
REVISITAR A DIVISÃO REGIONAL BRASILEIRA
SOB UM NOVO PONTO DE VISTA

L
N
Ao longo deste capítulo, abordamos as con- O que explica a dinâmica da Região Norte? A
cepções de natureza e como elas permeiam nossa Amazônia. E o Nordeste? A seca. O Centro-Oes-
relação com o consumo de objetos industriais e te? A “modernização” agrícola (a monocultura de
também as estratégias de valorização imobiliária commodities conta com esse título pomposo em

P
nas cidades. Nossa proposta nessa dimensão que grande parte dos livros didáticos). E o Sudeste? O
discute a avaliação é uma abordagem sobre como pioneirismo industrial. O Sul? A (suposta) preva-
as concepções de natureza integram nosso ima- lência de imigrantes alemães e italianos.
ginário político; para isso, sugerimos trabalhar Contudo, quando a abordagem é feita pelas
com as regiões brasileiras e suas relações com relações entre as regiões, elas se tornam uma
IA
os discursos ambientais que circulam no país. ferramenta poderosa de raciocínio espacial e
Podemos começar a conversa com a pergun- de reconhecimento de desigualdades espaciais.
ta mais simples: Em que regiões brasileiras nós Nossa proposta de situação de ensino e aprendi-
temos as maiores concentrações de vegetação zagem é lidar com as regionalizações existentes,
original? É provável que seus alunos apontem a e também propor outra, por meio de um critério
Região Norte ou a Amazônia. E se fosse acres- ambiental indicado pelos alunos – destinação do
centada à pergunta uma referência de tempo: Há lixo, retração da vegetação original, criação de
U

100 anos, em que regiões brasileiras nós tínhamos áreas de proteção ambiental, tipo de pecuária,
as maiores concentrações de vegetação original? entre outros.
Talvez a resposta ficasse um pouco menos con-
victa. Os mapas da página ao lado podem ajudar O QUE É REGIÃO E COMO ELA APARECE NA ESCOLA
G

a formulá-la. A região é uma das categorias fundamentais


Mesmo se a marca temporal fosse mais re- da Geografia e tem forte presença na prática es-
cente, como cinco décadas atrás, é provável que colar e nos livros e materiais didáticos. Também
os alunos tivessem dificuldade em apontar as é uma palavra de uso cotidiano, que faz parte da
regiões ou que repetissem a mesma resposta, a vivência do aluno, como referência de localização
Amazônia, por desconhecimento a respeito das e de extensão. Em vez de formular uma definição
concentrações de vegetação original em porções de região ajustada ao conhecimento geográfico
do Brasil ao longo do tempo. O ensino das regiões atual, o geógrafo Paulo Cesar da Costa Gomes
no Brasil segue, ainda, a lógica da monografia re- destaca que a noção de região, assim como o con-
gional que marcou a Geografia hoje chamada de ceito na Geografia, tem uma dimensão política.
tradicional: cada parte é descrita sob a premissa
de que ela se explica por suas características.

14 4
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
Retração da vegetação nativa

D
L
N
Fonte: IBGE. Atlas
geográfico escolar. 8. ed.
Rio de Janeiro: IBGE,
2018. p. 102. Disponível P
IA
em: <https://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/ 0 445 km
livros/liv101627.pdf>.
Acesso em: 2 jan. 2021.
U
G

Fonte: IBGE. Atlas


geográfico escolar. 8. ed.
Rio de Janeiro: IBGE,
2018. p. 102. Disponível
em: <https://biblioteca. 0 445 km
ibge.gov.br/visualizacao/
livros/liv101627.pdf>.
Acesso em: 2 jan. 2021.

14 5
[...] se a região é um conceito que funda uma Já a Geografia cultural, de bases não marxistas,

D
reflexão política de base territorial, se ela co- agrega à categoria mais uma dimensão:
loca em jogo comunidades de interesse iden-
A região, como espaço vivido, ultrapassa a
tificadas a uma certa área e, finalmente, se ela
ideia de espaço material, pois incorpora valo-
é sempre uma discussão entre os limites da
res psicológicos que as pessoas têm em rela-

L
autonomia face a um poder central, parece que
ção à região, não tendo por isso limites fixos.
estes elementos devem fazer parte desta nova
Mas não se confunde com os espaços sociais
definição em lugar de assumirmos de imediato
cotidianos, com os lugares pontuais nem os
uma solidariedade total com o senso comum
grandes espaços, situando-se numa escala

N
que, neste caso da região, pode obscurecer
intermediária, definida segundo a rede de
um dado essencial: o fundamento político, de
relações que os indivíduos tecem de acordo
controle e gestão de um território.
com os lugares mais frequentados por um
GOMES, Paulo Cesar da Costa. O conceito de
determinado grupo social.
região e sua discussão. In: CASTRO, Iná Elias

P
de et al. (org.) Geografia: conceitos e temas. 4. ed. LENCIONI, Sandra. Região e Geografia.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 73. São Paulo: Edusp, 2014.

O termo tem origem no verbo latino regere Há, claro, muito mais a ser considerado quan-
(“governar”); durante o Império Romano, e na An- do se trata do itinerário da categoria “região” na
tiguidade em geral, as regiões foram definidas a história do pensamento geográfico. Essa breve
IA
partir da ação do Estado. Na Geografia do início abordagem pretende estabelecer uma relação
do século XX, o conceito de região foi adotado por entre essas diferentes vertentes geográficas e
Richard Hartshorne (1899-1992) na tentativa de as práticas escolares na abordagem da região.
se estabelecer um método de análise (e não um A geógrafa Noemia Ramos Vieira, em sua pes-
objeto). Já Vidal de la Blache (1845-1918) identifica quisa sobre saber geográfico e saber acadêmico,
a região como uma realidade concreta, um dado a procurou compreender o significado de região
priori, entendendo-a como uma porção do espaço para professores do município de Marília (SP),
U

terrestre passível de ser individualizada. Essa vi- no contexto de suas práticas de ensino.
são ainda é muito presente entre os professores. Do total de professores entrevistados 13% não
A Geografia quantitativa dos anos 1950 tam- souberam dar o significado de região.
bém apresenta o pragmatismo do conceito, cujo A análise das demais respostas apontou que a
G

objetivo é a organização do território e o plane- concepção que 30% dos professores entrevis-
jamento estatal, baseados em levantamento e tados possuem de região foi, em sua maioria,
análise estatística. Essa perspectiva está expressa construída no domínio do senso comum.
na divisão regional do IBGE. [...]
Nos anos 1970, a partir de conceitos como de- Nas respostas de 20% dos professores consta-
senvolvimento desigual e combinado, modos de tou-se que a concepção de região construída
produção e divisão social do trabalho, a Geografia pelos professores se fez com base no sentido
crítica tomou a ideia de região como uma parti- de delimitação de limites e hierarquias admi-
cularidade dentro da totalidade espaço-social e nistrativas [...].
negou a região como uma síntese harmoniosa e Um fato relevante é que somente 3% dos en-
definitiva entre elementos naturais e humanos. trevistados consideraram importante levar em

14 6
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
conta a dinâmica histórico-social que origi- A pesquisa aponta dois contextos que contri-

D
nou a formação da região. De um modo geral, buem para explicar os resultados:
a região é concebida pelos professores como
uma unidade objetiva, a qual foi criada e de- ƒƒ o livro didático tem sido utilizado, pela
limitada unicamente por critérios alheios ao maior parte dos professores, como uma

L
seu desenvolvimento histórico-social. Do total única fonte de atualização quanto aos
de professores 34% consideraram que o que conceitos geográficos e o principal ins-
caracteriza a região é sua extensão. Para esses trumento de mediação entre o aluno e o
professores a região é um espaço mensurável conhecimento;

N
e absoluto, caracterizado como um espaço de
localização e extensão intermediária entre ƒƒ parte dos professores desconhece propos-
o local de moradia e o limite do território tas de regionalização mais recentes, que
nacional. buscam ser ferramenta de compreensão

P
[...] Do total, 73% dos professores mostraram da produção do espaço geográfico e reve-
que ainda continuam ensinando regionaliza- lam desigualdades espaciais na reprodu-
ção com base unicamente na divisão do terri- ção do modo de produção.
tório brasileiro realizada pelo IBGE. [...] Outro
fato que chama a atenção é que os estudos ESTUDOS REGIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
IA
realizados com os alunos não ultrapassam a
Aprendi, na década de [19]60, que o estado de
descrição e a constatação das características
São Paulo fazia parte da Região Sul. Minas
individuais de cada região.
Gerais estava na Região Leste, assim como a
Os demais professores até mencionaram o es-
Bahia, o Rio, o Espírito Santo e Sergipe. Certo
forço de não ficarem presos à divisão regional
dia, um professor, já na década de [19]70, disse
do IBGE, mas demonstraram possuir a mesma
que São Paulo estava no Sudeste, bem como o
concepção de região daqueles que ficaram
Espírito Santo, o Rio de Janeiro e Minas Ge-
U

presos à divisão regional do IBGE.


rais. Fiquei chocado. Os estados mudaram de
VIEIRA, Noemia Ramos. O conceito de região
e o ensino de Geografia: desencontros entre
posição e eu nem havia percebido.
o saber escolar e o saber acadêmico. Revista MELGAR, Eder. O IBGE e os estados do Brasil.
Formação, Presidente Prudente, v. 1, n. 20, Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 maio 2003. Disponível
2013. p. 27-28. Disponível em: <https://revista. em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fovest/
G

fct.unesp.br/index.php/formacao/article/ fo0805200319.htm>. Acesso em: 10 dez. 2020.


viewArticle/2301>. Acesso em: 2 jan. 2021.

Como o texto apresenta, de forma bem hu-


Na Geografia escolar, os critérios naturais ain-
morada, o ato de regionalizar é uma construção
da são supervalorizados e os critérios históricos
social. O IBGE, responsável pela divisão regional
e econômicos, negligenciados. Em consequência,
utilizada pelo Estado brasileiro, assim explica os
a prática escolar não ultrapassa os aspectos des-
critérios de sua regionalização atual:
critivos e das características individuais de cada
região. Interessante é que mesmo professores que A divisão regional constitui uma tarefa de ca-
em suas práticas buscam outras maneiras de re- ráter científico e, desse modo, está sujeita às
gionalização do território brasileiro apresentam mudanças ocorridas no campo teórico-meto-
as mesmas concepções de região dos demais. dológico da Geografia, que afetam o próprio

147
conceito de região. Assim, as revisões periódi- dustrialização, urbanização e de aumento da

D
cas dos diversos modelos de divisão regional capacidade de “autodeterminação” de projetos
adotados pelo IBGE foram estabelecidas com futuros.
base em diferentes abordagens conceituais, CONTEL, Fabio Betioli. As divisões regionais do IBGE
no século XX (1942, 1970 e 1990). Terra Brasilis – Revista
visando traduzir, ainda que de maneira sinté-
da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia

L
tica, a diversidade natural, cultural, econômi- Histórica, São Paulo, n. 3, 2014. Disponível em: <http://
terrabrasilis.revues.org/990>. Acesso em: 10 dez. 2020.
ca, social e política coexistente no Território
Nacional.
Outros estudos do IBGE, mais recentes e mais
IBGE. Divisão regional do Brasil. In: IBGE. Rio bem circunscritos metodologicamente, podem

N
de Janeiro, c2020. Disponível em: <www.ibge.gov.
br/geociencias/organizacao-do-territorio/divisao- ser utilizados para se confrontar essa concepção
regional/15778-divisoes-regionais-do-brasil.
html?edicao=16163&t=o-que-e>. Acesso em: 2 jan. 2021.
de região como uma unidade autônoma, que não
se explica pela relação com as demais regiões. O
Podemos analisar cada uma das divisões já estudo Regiões de influência das cidades é uma das

P
produzidas pelo IBGE e reconstituir as “aborda- publicações do IBGE que possibilitam romper
gens conceituais” que explicam os agrupamentos com essa visão: nela, é proposta uma hierarquia
de estados e também as mudanças ao longo do dos centros urbanos brasileiros (há essa enorme
tempo. Aqui, entretanto, nos interessa mais o limitação de usar a escala nacional mesmo para
fato de que essa divisão regional, de acordo com as metrópoles do país, que integram redes mun-
IA
a pesquisa relatada, é naturalizada nas escolas, dializadas) por meio do uso de dados coletados
de forma que causa estranhamento afirmar que pelo instituto. Ao delimitar a região de influência
o Nordeste é uma invenção recente, de cerca de a eles associada, é possível observar espacialmen-
cinco décadas. A regionalização em cinco re- te os lugares de decisão que afetam a produção
giões homogêneas, Norte, Sul, Sudeste, Nordeste do espaço geográfico.
e Centro-Oeste, está consagrada no ensino de
Geografia. Ela é parte estruturante dos currícu- PROPOSTA DE ATIVIDADE
U

los, inclusive na organização dos livros didáticos. O convite é propor aos alunos revisitar suas
Os motivos dessa apropriação coletiva podem representações e seu imaginário a respeito das
ser a simplicidade da comunicação – ou mesmo regiões brasileiras tendo algum assunto ou tema
da espacialização dos fenômenos – e o fato de as como um guia para reconhecer desigualdades no
G

transposições didáticas estarem estabelecidas território do país. Seria interessante se esse as-
e cristalizadas, uma vez que desde a década de sunto fosse ligado à relação sociedade e natureza
1970 somos ensinados sob essa regionalização. e/ou a questões ambientais propriamente ditas,
A evolução do IBGE como instituição pública, temas discutidos neste capítulo.
voltada tanto para a produção de estatísticas Em lugar de apresentar uma proposta fecha-
quanto para o conhecimento mais aprofunda- da, sugerimos discutir a divisão regional do Brasil
do do território brasileiro, pode ser conside- nos termos que propusemos até aqui e pergun-
rada como um elemento da “autoconsciência tar aos alunos qual assunto ou tema poderia ser
coletiva” do país, como qualificou Guerreiro usado para analisar essa regionalização do IBGE.
Ramos, as mudanças estruturais pelas quais Pergunte o que eles imaginam ao pensar em
passou a nação em seu período de maior in- cada uma das regiões para, em seguida, indagar

14 8
C U LT U R A , I M A G I N Á R I O E R E P R E S E N TA Ç Õ E S
a respeito do que nunca aparece sobre elas. Por exemplo: diversas per-

D
sonalidades negras do Rio Grande do Sul convivem cotidianamente
com a surpresa da população de outras regiões quanto à forte presença
negra no Sul, o que, claro, está relacionado ao estereótipo difundido do
sulista branco de origem alemã e/ou italiana.

L
É fundamental nesta proposta que os alunos descubram por eles
mesmos o caminho a percorrer para realizar as descobertas sobre o
assunto/tema que elegeram em cada região, de forma a reconhecer de-
sigualdades nesse ou aquele espaço; por isso, recomendamos que tam-

N
bém possa ser aberta a possibilidade de os alunos criarem sua própria

REPRODUÇÃO
regionalização ou usarem alguma divisão regional, como a do IBGE.
O produto final que sugerimos é o modelo cartográfico, que é um
tipo específico de croqui no qual as formas do território são simpli-

P
ficadas. Ainda que a modelização gráfica no meio acadêmico seja um
campo de conhecimento diverso, com métodos distintos, a proposta
aqui é que os alunos se apropriem da ideia de expressão de uma in-
terpretação sobre o território em um desenho sem preocupação com
a fidedignidade em relação ao espaço representado. Oferecemos um
IA
exemplo ao lado, feito pelo geógrafo Hervé Théry.
Após as apresentações das produções, cabe incluir nas atividades de
avaliação do processo uma roda de conversa sobre possíveis mudanças
na visão dos alunos quanto à divisão regional brasileira. Nesse sentido,
é bastante adequado o uso da autoavaliação, posto que se trata de uma
oportunidade de os alunos atribuírem novos significados aos conhe- Fonte: THÉRY, Hervé.
Chaves para a leitura
cimentos geográficos com os quais tiveram contato na escolarização; do território paulista.
U

essas são situações em que os ganhos subjetivos, muitas vezes intangí- Confins – Revue franco-
brésilien de Géographie,
veis aos instrumentos de avaliação, são abundantes. n. 1, 2007. Disponível
em: <https://doi.
org/10.4000/confins.25>.
Acesso em: 2 jan. 2021.
G

14 9
BIBLIOGRAFIA COMENTADA E OUTROS

D
MATERIAIS DIDÁTICOS

L
O CORPO É POLÍTICO a todos era visível, mas que impunha ao rei um
grande desgaste político e financeiro. Dessa ma-

N
ƒƒ Chega de fiu fiu. Direção de Amanda neira, essa relação de poder vai dando lugar ao
Kamanchek e Fernanda Frazão, 2018, 73 poder disciplinar: a partir da ideia de panop-
min. Disponível em: <https://thinkolga. tismo, Foucault aponta que a relação de força
com/projetos/chega-de-fiu-fiu/>. Acesso (poder) sobre o indivíduo deixa de ser externa e

P
em: 1º jan. 2021. passa a ser interna.
O documentário busca problematizar a pre-
sença da mulher no espaço público por meio da ƒƒ GUIA metodológico para mapas críticos
pergunta “As cidades foram feitas para as mulhe- e participativos. Quebrada Maps, 2018.
res?”. É um esforço para desnaturalizar a atuação Disponível em: <https://quebradamaps.
IA
masculina sobre os corpos das mulheres, como a wordpress.com/2018/01/31/guia-
ideia de que um corpo feminino no espaço públi- metodologico/>. Acesso em: 1º jan. 2021.
co está sujeito ao assédio dos homens e, portanto, O Quebrada Maps é uma metodologia experi-
cabe às mulheres censurarem essa presença. mental de diálogo com os territórios de periferia
a partir de mapas críticos e participativos. Ela
ƒƒ FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: tem sido desenvolvida dentro e fora de escolas da
nascimento da prisão. 21. ed. Petrópolis: periferia da cidade de São Paulo por um coletivo
U

Vozes, 1999. de pesquisadores e alunos da educação básica.


No século XX, Michel Foucault, resgata a ideia Um resumo das técnicas de mapeamento parti-
do panóptico (um modelo ideal para uma peni- cipativo que o grupo utiliza está sistematizado
tenciária, no qual o vigilante poderia observar nesse guia metodológico.
todos os prisioneiros sem ser visto por eles) para
G

discutir as transformações das relações de poder ƒƒ MBEMBE, Achille. Políticas da


e controle social com base na disciplina. O autor inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
argumenta no livro que a relação de justiça, a par- O termo “necropolítica” foi criado pelo filó-
tir do século XVIII, deixa de acontecer por meio sofo camaronês Achille Mbembe e consiste no
da tortura (os suplícios) e passa a ocorrer pela poder do Estado em ditar quem vive e quem mor-
prisão. O princípio era deixar de punir o corpo re em um território. O Estado é tomado como a
para, então, por meio da privação de liberdade instituição que gerencia a morte de seus habitan-
e promoção da solidão, passar a punir a “alma”. tes. Um exemplo de necropolítica encontrado em
A punição física dos corpos era uma mani- trabalhos de geógrafos e sociólogos são as forças
festação do que o autor chama de “poder real”, de segurança pública e suas intervenções em re-
manifestação material e física de um poder que giões periféricas do país, nas quais acontecem o
extermínio de pretos, pardos, indígenas e pobres.

15 0
ƒƒ Ôrí. Direção de Raquel Gerber, 1989, 93 zida para a vida: os espaços na cidade propícios

D
min. para a troca e convívio de seus habitantes são
O documentário traz a trajetória dos movi- cada vez mais raros.
mentos negros na história no Brasil e, para isso,
resgata Beatriz Nascimento, grande intelectual ƒƒ Sociedade dos poetas mortos. Direção

L
que nos convida a rever a historiografia brasileira de Peter Weir, 1989, 140 min.
se contrapondo ao “eterno estudo do escravo”. A No célebre filme, a ortodoxa escola de ensino
memória coletiva e a ancestralidade negra anco- médio (Academia Welton) tem sua ordem per-
rada no corpo seriam os guardiões de uma me- turbada com a chegada do professor de Inglês

N
mória apagada ou escrita por mãos brancas; nesse John Keating. Interpretado por Robin Williams,
sentido, ela pensa o corpo com um território o novo educador era um ex-aluno do colégio que
negro e, para isso, retoma a essência da palavra teria feito parte de um clube secreto de literatu-
kilombo, nome africano para “união”. . ra. Nas aulas, o professor Keating promove tan-

P
to a literatura como sugere aos estudantes que
ƒƒ Os trabalhadores que passam até um reflitam sobre o que desejam para sua vida. Esse
terço do dia no transporte público. processo é marcado pelo romper de condições e
Direção de Felipe Souza e Felix arranjos espaciais dentro da escola, sobretudo
Lima, BBC News Brasil, 2019, 7 min. em cenas que o professor convida os estudantes
IA
Disponível em: <https://youtu.be/hx- a experimentar novos pontos de vista subindo na
sLtfsM0o>. Acesso em: 31 dez. 2020. mesa outrora “território” do professor.
O documentário acompanha o cotidiano de
três protagonistas: Marlene, Sidinéia e Ludovico. ƒƒ Território do brincar, de Renata
A proposta principal é problematizar a questão Meirelles e David Reeks (disponível em:
do tempo gasto nos meios de transporte por meio <https://youtu.be/ng5ESS9dia4>; acesso
de relatos dos personagens e também de infor- em: 1º jan. 2021).
U

mações detalhadas sobre como ocorrem esses Você conhece os vídeos que compõem o pro-
deslocamentos: ao longo de uma semana, eles jeto? Seus elaboradores visitaram muitos lugares
são acompanhados pela câmera e a gente pode no Brasil para inventariar as brincadeiras das
conhecer o que veem e o que enfrentam para crianças em grupos sociais diversos. O episódio
chegar ao trabalho. “Diálogo com escolas” discute como o brincar
G

precisa estar presente em sala de aula.


ƒƒ Sociedade do automóvel. Direção de
Branca Nunes e Thiago Benicchio, 2005, ƒƒ UniGraja (disponível em: <www.
40 min. Disponível em: <https://youtu. instagram.com/unigrajasp/>; acesso em:
be/4eWvSwzkidE>. Acesso em: 31 dez. 1º jan. 2021).
2020). “UniGraja – A quebrada é nossa sala de aula
O documentário entrevista motoristas de | O que a quebrada te ensina para a vida?” Com
veículos e ciclistas em São Paulo para discutir essa ideia potente de aprendizagem, a UniGraja
essa cidade produzida para o automóvel, racio- reúne saberes, metodologias e experiências de
nalizada para ser o ambiente do trabalho e da coletivos do Grajaú, Zona Sul de São Paulo (SP),
reprodução do capital; ao longo da narrativa, ela e coloca no centro do aprendizado o território,
é comparada com a ideia de uma cidade produ- pensando educação fora de grades.

151
ESTADO, TERRITÓRIO E PODER entrevista alguns manifestantes sete anos depois

D
do protesto para discutir o que ele significou.
ƒƒ HARPER, Babette et al. Cuidado, escola!:
desigualdade, domesticação e algumas ƒƒ RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia
saídas. 26. ed. São Paulo: Brasiliense, do poder. São Paulo: Ática, 1993. (Série

L
1989. Temas, v. 29.)
Em 1978, um grupo de educadores lançou na Esse é um livro clássico, no qual o geógrafo
Europa essa publicação, na qual expõem as en- suíço apresenta um amplo balanço da Geografia
grenagens da escola, mostrando essas e outras política, oferecendo aos leitores discussões sobre

N
relações de poder que constituem a instituição diversos conceitos envolvidos nas pesquisas do
escolar. O material, publicado no Brasil em 1980, campo político na Geografia. No capítulo, re-
contribui para explicitar os impasses a que nós produzimos um pequeno trecho em que o autor
professores estamos submetidos nas relações de discute os conceitos de poder e território.

P
poder na escola.
ƒƒ SANTOS, Milton; SILVEIRA, María
ƒƒ HEIDELBERG INSTITUTE FOR Laura. O Brasil: território e sociedade
INTERNATIONAL CONFLICT no início do século XXI. 16. ed. Rio de
RESEARCH. Conflict Barometer 2019, Janeiro: Record, 2012.
IA
Heildelberg, n. 28, 2020. Disponível em: Nesta obra, o geógrafo Milton Santos apre-
<https://hiik.de/>. Acesso em: 14 dez. senta sua longa investigação sobre a inserção de
2020. parte do território brasileiro no meio técnico-
O Conflict Barometer (em tradução livre, “Ba- científico-informacional, oferecendo como sín-
rômetro de conflitos”), publicação alemã do Ins- tese uma regionalização que destaca a Região
tituto Heidelberg para Pesquisa de Conflito In- Concentrada, porção do país que recebe as ati-
ternacional, possibilita acompanhar os conflitos vidades “ligadas à globalização”.
U

entre Estados: a cada ano, esse grupo publica um


relatório apontando os conflitos ocorridos no ano ƒƒ SASSEN, Saskia. Ciudad global
anterior dentro de uma hierarquização elaborada y la lógica de expulsión del
por eles e composta de cinco níveis de intensi- neoliberalismo. CCCB, 19 jan. 2011.
dade: disputa, crise não violenta, crise violenta, Disponível em: <https://youtu.be/7Dc-
G

guerra restrita e guerra. 2v_YjJ4>. Acesso em: 4 jan. 2021. (Em


espanhol.)
ƒƒ Hiato:. Direção de Vladimir Seixas, 2008, Essa é uma das muitas entrevistas da sociólo-
20 min. Disponível em: <https://youtu. ga Saskia Sassen que se pode encontrar nas plata-
be/UHJmUPeDYdg>. Acesso em: 4 jan. formas de vídeo on-line; sua indicação se deve ao
2021. fato de que nesse vídeo a pesquisadora explica o
Em agosto de 2000, integrantes de movimen- termo que cunhou, “cidade global”. Mais do que
tos por moradia da cidade do Rio de Janeiro orga- publicizar o funcionamento da rede de cidades
nizaram uma manifestação que pegou de surpre- globais, possibilita compreender como ela cerca
sa muitas pessoas: eles decidiram alugar ônibus e a questão e os sentidos que atribui ao termo.
visitar o shopping Rio Sul, no bairro de Botafogo.
O documentário recupera imagens de acervo e

15 2
ƒƒ THE FUND FOR PEACE. Fragile ideologia do trabalho: o personagem acorda todos

D
States Index. Washigton D.C., os dias e segue uma sucessão rígida de atividades
c2018. Disponível em: <https:// dominado pelo medo. Um dia, rompe com essa
fragilestatesindex.org/>. Acesso em: 16 rigidez e retorna ao trabalho com disposição para
dez. 2020. modificar a maneira como as coisas são feitas;

L
The Fund for Peace produz um relatório anual então, experimenta um jeito mais divertido de
que apresenta uma mensuração objetiva do que realizar o trabalho, entusiasma os colegas e agra-
seria a fragilidade dos Estados. Para isso, uti- da os patrões. O problema, portanto, apresentado
liza como indicadores dados quantitativos en- na animação, é apenas colocar um pouco mais de

N
tendidos pela instituição como definidores da criatividade no que se faz, mas, em sala de aula, é
fragilidade estatal. Eles coletam, assim, dados pertinente analisar o curta-metragem pela lógica
sobre o deslocamento de pessoas em função de que organiza o trabalho no modelo fordista ou em
perseguição, tensão ou conflito; a chamada “fuga um formato de acumulação flexível, indagando

P
de cérebros”; o desempenho econômico (geração se a mudança no modo de produção é suficiente
de riqueza); a qualidade dos serviços públicos; para contornar as desigualdades, as angústias e
condições de funcionamento das forças armadas; as desfuncionalidades apresentadas por parte
entre outros. expressiva dos trabalhadores.
IA
DINHEIRO E RIQUEZA ƒƒ Empresas Mais 2019. São Paulo: O
Estado de São Paulo, 2019. Disponível
ƒƒ Alike. Direção de Daniel Martínez em: <https://publicacoes.estadao.com.br/
Lara e Rafa Cano Méndez, 2015, 8 empresasmais2019>. Acesso em: 22 dez.
min. Disponível em: <https://vimeo. 2020.
com/194276412>. Acesso em: 22 dez. O jornal O Estado de S.Paulo, em parceria com
2020. instituições da área de economia, apresenta um
U

O curta conta a história de pai e filho que se ranking anual de empresas que atuam no Brasil,
desconectam quando o pai apoia a escola na re- aquelas de capital nacional e as pertencentes a
pressão da criatividade do filho, que se entristece grupos estrangeiros. Trocando a data no link de
ao tentar se enquadrar em regras que tolhem sua acesso para 2018, pode-se acessar a publicação
maneira singular de ver e reagir ao mundo. É uma anterior).
G

profunda crítica às instituições escola e trabalho,


que funcionam sob a lógica da padronização e ƒƒ Fortune Global 500. Estados Unidos:
da sincronização do ritmo das pessoas, cujas Fortune, 2020. Disponível em: <https://
singularidades são não apenas desconsideradas fortune.com/global500/2020/search/>.
como também indesejáveis. O uso da cor marca Acesso em: 22 dez. 2020.
também a padronização do espaço da cidade, que A revista Fortune publica anualmente um
espelha a situação dos personagens. ranking das empresas que tiveram os faturamen-
tos mais elevados; esses dados são, claro, comer-
ƒƒ Cabeça ou coração (Inner Workings). cializados pela empresa, mas algumas informa-
Direção de Leo Matsuda, 2016, 7 min. ções são colocadas à disposição do público e
Curta-metragem da Disney, trata-se de um possibilitam muitas análises em sala de aula.
produto audiovisual apropriado para se discutir

15 3
ƒƒ HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma rias”. Atualmente, equipado de um celular com

D
breve história da humanidade. 23. ed. um aplicativo de navegação, as pessoas seguem
Porto Alegre: L&PM, 2017. as indicações dos algoritmos, adentrando, vez
No capítulo dedicado à revolução industrial, o ou outra, em situações de risco por seguir tão
historiador assinala a conversão de energia como cegamente as escolhas de itinerário do programa

L
o elemento central da ruptura que se deu naquele – apenas uma pequena parte dos usuários utili-
período. Para isso, ele apresenta o desenvolvimen- za esses navegadores para ter em mãos o mapa
to da máquina a vapor, desde seus primórdios, o da área, pautando suas escolhas pelo que estão
que possibilita reconhecer um longo processo de observando e/ou pelo que já conhecem. Pode-se

N
aquisição de habilidades necessárias para colocar observar que o problema descrito por Lacoste
esse equipamento ligado a máquinas e locomoti- não se alterou: grande parte dos motoristas segue
vas, de forma a fazer saltar extraordinariamente deslocando-se sem qualquer autonomia de deci-
a produtividade humana. são; não leem o mapa incorporado ao navegador,

P
apenas o observam quando alguma ordem dada
ƒƒ HARVEY, David. A produção capitalista pelo navegador não é compreensível.
do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
No segundo capítulo da obra, “A geografia ƒƒ Maquinando. Fagulha Jogos, 2019.
da acumulação capitalista”, o geógrafo britânico Disponível em: <https://tabletopia.com/
IA
aponta uma contradição do modo de produção games/maquinando>. Acesso em: 5 jan.
capitalista: a necessidade constante de inovação 2021.
para acelerar a circulação de capital (que é vital O jogo aborda a passagem do artesanato para
para reproduzir o capital nas formas mais ágeis e, a manufatura e, enfim, a fábrica: cinco perso-
portanto, mais rentáveis) acaba por tornar obso- nagens (dono de minas, dona de fábrica, artesã,
letas estruturas antes eficientes; essas estruturas, dono de manufatura e operário) disputam recur-
entretanto, são capital imobilizado. Trata-se de sos no mercado para atingir, cada um, seu obje-
U

uma chave interpretativa bastante adequada para tivo. Com base nos objetivos dos personagens,
abordar em sala de aula as porções das cidades cada aluno pode criar sua própria carta com um
que se reinserem em circuitos dinâmicos de ca- personagem célebre da revolução industrial in-
pital depois de um longo período de ausência de glesa e jogar no mesmo tabuleiro.
reprodução do capital.
G

ƒƒ O brilho dos meus olhos. Direção de


ƒƒ LACOSTE, Yves. A geografia: isso serve, Allan Ribeiro, 2007, 11 min. Disponível
em primeiro lugar, para fazer a guerra. em: <http://portacurtas.org.br/
13. ed. Campinas: Papirus, 1988. filme/?name=o_brilho_dos_meus_olhos>.
Uma das partes do clássico, “Miopia e sonam- Acesso em: 22 dez. 2020.
bulismo no seio de uma espacialidade tornada O curta-metragem aborda o cotidiano repeti-
diferencial”, o geógrafo francês traz, em primeiro tivo de um pedreiro, que se desloca todos os dias
plano, uma crítica à escassa autonomia dos moto- de trem até o local de trabalho, e sonha em ser
ristas em função de não se sentirem confortáveis cantor. Um dia, retornando para sua casa, ele pas-
em arriscar-se pelo espaço para buscar outros sa em frente a um karaokê e decide cantar uma
trajetos para além das vias de trânsito rápido. O canção, dando asas a seu sonho de um cotidiano
problema: “Não sabem ler essas cartas rodoviá- diferente daquele em que vive.

15 4
ƒƒ PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. sua personagem realizaria aquela ação de forma

D
Os (des)caminhos do meio ambiente. muito melhor do que o outro personagem. Quem
15. ed. São Paulo: Contexto, 2018. for apontado pelos demais jogadores como aquele
Nessa obra, o geógrafo aponta situações de que teve o melhor desempenho fica com a carta
enorme complexidade da ação política dos movi- de ação; quem reúne primeiramente 6 cartas ga-

L
mentos ambientais, quando, por exemplo, lutam nha o jogo. É um excelente recurso didático para
pelo fim de uma prática nociva a um ambiente discussões sobre imaginário coletivo e formação
e o êxito repercute em favorecimento a grandes histórica. Os alunos podem, inclusive, criar seus
empresas que podem realizar aquelas ações em próprios baralhos utilizando a mecânica do jogo.

N
bases aceitáveis do ponto de vista ambiental.
ƒƒ HENRIQUE, Wendel. O direito à
ƒƒ Sprawlopolis, de Steven Aramini, Danny natureza na cidade. Salvador: EDUFBA,
Devine e Paul Kluka (Funbox Editora, 2009. Disponível em: <http://books.

P
2020). scielo.org/id/3dz>. Acesso em: 2 jan. 2021.
O jogo conta com diversas cartas divididas Como caminho para investigar a presença/au-
em quadras residencial, comercial, industrial e sência de natureza na cidade, o geógrafo sistema-
parque, que precisam ser combinadas de forma tiza as concepções de natureza que permeiam sua
a ter o mínimo de estradas. A pontuação sofre relação com a sociedade e propõe uma periodi-
IA
a influência das cartas sorteadas no início da zação a respeito da ideia de natureza ao longo da
partida; por exemplo, pode valer mais ponto ter história humana: cada momento é caracterizado
estradas ligando dois parques, fazer “cotovelos” de acordo com as ideias prevalentes e correspon-
nas estradas para deixá-las mais longas e deixar de a um imaginário coletivo e, em consequência,
as quadras nos limites da cidade. É uma forma a um conjunto de formas de ação. É uma leitura
de exercitar o tipo de análise espacial que nossa que, combinada com o livro do geógrafo Carlos
proposta está mobilizando na questão do impac- Walter Porto-Gonçalves, indicado no tema ante-
U

to do teletrabalho. rior, pode alavancar debates mais bem embasados


sobre ambientalismo.
CULTURA, IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES
ƒƒ THÉRY, Hervé. Chaves para a leitura
ƒƒ Duelo: um jogo de argumentação. do território paulista. Confins: Revue
G

Universo uia, 2020. franco-brésilien de Géographie, n.


Esse jogo de cartas conta com dois baralhos: 1, 2007. Disponível em: <https://doi.
um de personagens (com 100 personagens reais org/10.4000/confins.25>. Acesso em: 2
e fictícios) e outro de ação, que prescreve ações jan. 2021.
as mais diversas, como comandar um exército e O geógrafo francês oferece nesse artigo um
cortar a grama. A cada rodada, dois jogadores se conjunto sistematizado de referências para a
desafiam: eles pegam no baralho uma carta de modelização cartográfica, usando como exemplo
personagem para cada um e também uma carta o estado de São Paulo. Ele aborda a cartografia
de ação válida para os dois. Aí, eles têm 20 se- de síntese e suas possibilidades na expressão e
gundos para convencer os demais jogadores que investigação da formação territorial do país.

15 5
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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