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Introdução e Formulação
Depois de examinar textos do Antigo e Novo Testamentos que mostram a ideia bíblica
do que chamamos de Revelação e Inspiração, é preciso agora formular, de modo
sistemático, o conceito de Inspiração das Escrituras. É como ficaremos conhecendo a
“natureza da Inspiração”. Para isto, vamos adotar a conceituação que nos é dada por
Clark H. Pinnock, assim como grande parte de sua discussão do assunto:[i] Ele diz:
Esta é a base de toda a formulação. É por ser de origem divina (theopneustos = soprada
por Deus[iii]), conforme 2 Tm 3.16, é que ela possui todas as demais qualidades ou
propriedades mencionadas. Como vimos, o conceito chave de inspiração não é o aspecto
subjetivo, ou o modo como os autores receberam a revelação, mas o aspecto objetivo, o
fato de que o que eles produziram veio diretamente de Deus. O processo como a
Escritura veio à existência não é claro, na maioria dos casos, nem uniforme. Alguns de
seus autores estavam em êxtase quando escreveram (Ap 1.10), mas a maioria
certamente não (Lc 1.1-4). O modo como os autores foram levados (movidos) pelo
Espírito a produzir o escrito inspirado não nos é revelado, na maioria dos casos, pois
não é da essência da natureza da inspiração. A origem das Escrituras, não o modo como
foram produzidas, é essencial. Em outras palavras, o autor das Escrituras é Deus (Hb
3.7). Isto possibilita as seguintes conclusões:
1.1. Os autores não precisavam estar em êxtase ou num determinado estado mental ou
psicológico para escrever algo inspirado.
1.2. As Escrituras (o registro) e não as pessoas que as escreveram é que são chamadas
de inspiradas. Isto não quer dizer que tais pessoas não estivessem sob a ação ou
influência do Espírito, quando escreviam o registro inspirado, mas significa que a
inspiração não se estende necessariamente a todas as suas ideias ou opiniões pessoais.
1.3. Não há graus de inspiração, como os há de revelação. Toda a Escritura é dada por
Deus. Não há passagens mais inspirados do que outras. Os dez mandamentos
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representam um grau mais alto de revelação (dados diretamente por Deus), não de
inspiração.
2.1. Ela é mais do que um “testemunho humano da revelação”, como quer Karl Barth.
Não é possível fazer uma distinção entre Palavra de Deus e a Escritura, sem negar o que
ela diz de si mesma. Esta é a distinção que fazem os liberais e os neo-ortodoxos,
acusando os ortodoxos de “bibliolatria”, por transformarem a Bíblia, segundo dizem,
num “papa de papel”.
2.3. O fato de ser a Palavra de Deus escrita não elimina a possibilidade de ser mal
entendida ou distorcida, como acontecia com os escribas e fariseus: Mc 7.6-13. Ela pode
ser até invalidada por acréscimos ou interpretação errônea. Há um sentido em que
continua sendo apenas “letra” ( 2 Co 3.6), por isso pode ser mal entendida e mal usada.
2.4. O fato de ser a Palavra de Deus escrita não dispensa a iluminação do Espírito para o
seu entendimento espiritual. Não é por ser a Palavra de Deus que infalivelmente
comunica a persuasão da verdade espiritual a todo que a lê (2 Co 3.15-16) O Espírito
precisa agir na mente e coração do leitor para que a verdade objetiva seja apreendida
subjetivamente.[iv]
3.1. Por “infalibilidade” da Escritura quer-se dizer que ela é incapaz de enganar, de
cometer erros, de falhar no seu ensino e julgamento dos fatos. É a expressão da verdade.
É o que afirma a Confissão de Fé de Westminster quando declara que “a regra infalível
de interpretação da Escritura é a mesma Escritura” (I,9).
3.2. Segundo E. J. Young, "pelo termo infalível, na forma como é aplicado à Bíblia,
queremos dizer simplesmente que a Escritura possui uma autoridade indefectível. Como
disse nosso Senhor ‘ela não pode falhar’ (João 10.31). Ela nunca falha em seus
julgamentos e declarações. Tudo que ela ensina é de autoridade irrefutável e absoluta,
e não pode ser questionado, contraditado ou impugnado. A Escritura não falha, é
incapaz de demonstrar-se falsa, errônea ou equivocada. Ainda que os céus e a terra
passem, suas palavras de verdade permanecerão para sempre. Ela não pode ser
mudada nem destruída".
4.3. Figuras de linguagem não podem ser tomadas literalmente, exigindo-se exatidão
científica. Cada passagem precisa ser interpretada à luz do seu gênero literário e do seu
propósito (ideia). Assim, quando Jesus afirma que o grão de mostarda é “a menor de
todas as sementes” não devemos entender que Jesus estivesse ensinando botânica.
Usava um conceito dos hebreus (que a consideravam a menor) ou podia estar
recorrendo a uma hipérbole. O contexto de cada passagem é que deve determinar o grau
de exatidão que ela requer.
4.4. A alegação de que se pode crer na inspiração e até na infalibilidade sem se crer na
inerrância é hoje característica dos neo-evangélicos. Estes acreditam que a Bíblia pode
conter erros de história, de geografia, de cronologia, de cosmogonia, etc., sem que a sua
mensagem seja comprometida na sua autoridade e veracidade, pois só o que é matéria
de revelação ou de fé e prática, isto é, aquilo que o homem não poderia conhecer de
outra forma, é que é inerrante, pois é essa parte que é preservada de erros (veja leitura
obrigatória dessa lição). A questão que se levanta naturalmente é esta: se a Bíblia
contém erros em matéria que pode ser verificada, como se pode estar seguro de que ela
não contém erros em matéria que não pode ser verificada? Qual a garantia de que aquilo
que está registrado como matéria de revelação também não contém erros? O alicerce da
autoridade bíblica fica minado, se se negar a inerrância.
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4.5. Os aparentes erros ou dificuldades da Bíblia podem ser atribuídos à nossa falta de
conhecimento de todos os dados ou podem ser resolvidos através de uma ou mais
explicações possíveis. Podem também, em alguns casos, ser atribuídos à própria
transmissão do texto (cópias), mas nunca aos autógrafos. Não se pode fazer essa
concessão sem se destruir a veracidade e a confiabilidade das Escrituras. Não há
inerrância parcial. Ou a Bíblia é inerrante ou não é digna de confiança. Falsus in uno,
falsus in omnibus.
5.1. Temos que fazer distinção entre os originais (autógrafos) e as cópias (apógrafos)
que evidentemente não podem ser inspiradas, visto que há muitas e ocasionalmente
divergem, em alguns pontos, entre si. O mesmo pode ser dito das versões ou traduções.
Os originais se perderam e tudo o que temos hoje são cópias. Por causa disto, a doutrina
da inspiração tem sido, muitas vezes, ridicularizada por alguns com a alegação de que
de nada adianta uma doutrina sobre a inspiração dos autógrafos quando não os temos.
“Como saber se eram infalíveis e inerrantes, se eles se perderam?”, questionam.
O fato é que a distinção não é apenas possível, mas necessária. Como diz Pinnock, “se
houver boa evidência da confiabilidade da Bíblia na forma como veio da mão de Deus,
e há (todo o testemunho de Cristo e dos apóstolos, já referidos); e se não houver
evidência da inspiração dos copistas e tradutores, e não há; então, segue-se mui
logicamente que tal distinção deve ser feita”.[vii]
5.2. A doutrina da inspiração não exige, ipso facto, que as cópias ou traduções do texto
original sejam igualmente inspiradas. Dessa forma, não somente os autores originais,
mas também os copistas e tradutores teriam que ser “movidos pelo Espírito Santo” no
mesmo sentido em que Pedro se refere àqueles que falaram da parte de Deus (2 Pe
1.21).
5.3. O fato de termos apenas cópias e não os autógrafos não diminui o valor e a
importância da doutrina da inspiração. Cópias fiéis do texto inspirado preservam o
conteúdo e, portanto, o sentido do texto inspirado. O trabalho da crítica textual se
justifica no sentido de fornecer, o mais próximo possível, aquilo que teria sido a leitura
do texto original. E este serve, na medida em que é conhecido, como o referencial a ser
usado como padrão da verdade.
5.4. Cremos não apenas na inspiração do texto inspirado mas também na preservação
desse texto, pela providência divina, o mais fielmente possível, dentro das limitações e
falibilidade humanas, para que o propósito da inspiração não fosse invalidado. É o que
diz a Confissão de Fé de Westminster: “O Antigo Testamento em hebraico... e o Novo
testamento em grego..., sendo inspirados imediatamente por Deus, e pelo seu singular
cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são, por isso, autênticos,
e assim, em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para
um supremo tribunal...”[viii]
teológica que, bem usada, pode muito contribuir para se determinar o conteúdo dos
autógrafos e nos levara compreender melhor a revelação divina.
5.6. A história demonstra que Deus tem usado as cópias e traduções para revelar a sua
Palavra, ao longo dos anos, a diferentes povos e em diferentes lugares. Mesmo não
sendo inspiradas (tecnicamente falando) preservam e transmitem o conteúdo do texto
original inspirado e têm servido para salvar e edificar vidas. Pinnock observa:
Evidentemente Deus usa uma cópia imperfeita ou uma tradução da Escritura na obra
de salvação de pecadores. A Versão King James, embora seja baseada em um texto
grego inferior e contenha algumas leituras errôneas, tem contribuído para a salvação e
edificação de milhões. A verdade e o poder da Escritura não são anulados pela
presença de um certo grau de corrupção textual. Este fato, todavia, não dá base para a
complacência. Um texto imperfeito deve ser substituído por um superior, quando estiver
disponível, e uma tradução inferior por uma melhor. Os eruditos cristãos são chamados
para remover a corrupção textual onde for possível e melhorar o nível da tradução por
meio de técnicas linguisticas mais refinadas. Por trás de cada tradução humana brilha
a luz da própria Palavra de Deus. Mas é parte de nossa mordomia recobrar o melhor
texto possível e providenciar a mais clara tradução que estiver ao nosso alcance.[x]
Acreditamos que o mesmo pode ser dito das nossas traduções em português. Esse
mesmo autor resume da seguinte forma a questão: “Nossas Bíblias são a Palavra de
Deus na medida em que refletem a Escritura na forma como foi originalmente dada; e
porque está claro que elas são virtualmente idênticas a essa forma, é também correto
considerá-las, de igual modo, como virtualmente infalíveis”.[xi]
6.1. Não apenas algumas partes da Escritura são inspiradas, mas todas as partes que
formam o todo. A Escritura tem que ser vista como um organismo, um corpo de
revelação formado de partes, mas indivisível. Não se pode atribuir inspiração apenas à
parte doutrinária ou soteriológica. Ela é inspirada em todas as suas partes. Já vimos que
Jesus e os autores do NT consideravam todo o AT como Escritura e toda a sua história
como fatual e verdadeira.
6.2. Embora, do nosso ponto de vista, possamos considerar certas partes mais
importantes do que outras, quanto ao propósito soteriológico, ou mesmo algumas
essenciais e outras não, quanto a esse propósito, não somos nós que temos o direito ou
mesmo a capacidade de julgar o que é e o que não é mais importante ou essencial na
revelação divina, para fins de diferenciar entre o que exige inspiração como mateira
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revelacional e o que não exige. Romanos 15.4 diz que “tudo quanto, outrora, foi escrito
para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das
Escrituras, tenhamos esperança”. Escolher o que é e o que não é inspirado é determinar
o que deve e o que não deve pertencer à Escritura, e isso seria insultar a sabedoria
divina e requereria igual sabedoria para tanto.
Implicações Práticas
Nestas qualidades, assim como em outras que ainda veremos, é que se baseia o conceito
de valor que damos à Escritura. Ela não é um livro comum. Em seu aspecto formal e
material, é um livro como qualquer outro, mas tem qualidades que nenhum outro tem. É
um livro de origem divina. Claro que outros livros religiosos como o Alcorão e o livro
de Mórmon, por exemplo, também são reputados como divinos pelos muçulmanos e
mórmons, respectivamente. Mas é o valor intrínseco da Escritura, associado a outras
evidências, como cumprimento de profecias, unidade e sequência de conteúdo (ainda
que escrito por diferentes pessoas em diferentes épocas), por exemplo, que faz com que
a Bíblia se imponha como livro divino. Acima de tudo, está o testemunho interno do
Espírito Santo, que confirma ao nosso espírito que estamos lendo a própria Palavra de
Deus. Aquele que tem o Espírito (o verdadeiro homem espiritual, conforme o contexto
de 1 Coríntios) é capaz de reconhecer o “mandamento do Senhor” (1Co 14.37).
Notas bibliográficas.
[i] Infelizmente, Pinnock não pode hoje ser considerado um ortodoxo, ou “evangelical”. Ele atualmente
nega o pecado original, a doutrina da expiação substitucionária, a justificação somente pela fé, a doutrina
da predestinação, etc., por ter aderido ao que chamam de “Grande Mudança” do pensamento evangélico,
que equivale ao abandono das doutrinas reformadas para uma acomodação à cultura da modernidade; cf.
artigo de Michael Horton, Leading the Church into the 21st Century, até há algum tempo disponível da
Web. É também um dos defensores do chamado Teísmo Aberto ou Teologia Relacional, que propõe um
novo conceito a respeito da soberania de Deus. Ver sobre esse assunto o artigo: Teologia Relacional: um
Novo Deus no Mercado, de Augustus Nicodemus Lopes.
[ii] Clark H. Pinnock, Biblical Revelation (Chicago. Moody Press, 1972), pp. 66-104.
[v] E. J. Young, Thy Word is Truth (Grand Rapids. Wm. B. Eerdmns Publishing Co., 1972), p. 113.
[viii] I,8.
[ix] Citado por C. Pinnock, op. cit., p. 85 e por N.L. Geisler & W.E. Nix, A General Introduction to the
Bible (Chicago. Moody Press, 1970), p. 366. Ver outras estatísticas de autores como Westcott & Hort,
Ezra Abbot e Philip Schaff nessa mesma obra e página, ou um resumo delas em N.L. Geisler & W.E. Nix,
Introdução Bíblica, p. 175.
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Leitura obrigatória:
Leitura opcional:
Chart listing some of the scientific evidences of the Bible's divine inspiration (autor
desconhecido).