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A democracia e a sua relação com a função social da empresa e do contrato

Alexis Sales de Paula e Souza

Resumo: A Constituição de 1988 estabeleceu a função social da propriedade como


gênero e como espécies a função social da propriedade rural, da propriedade urbana e a
função social da empresa e do contrato. A função social da empresa e do contrato é direito
fundamental regido por normas de direito público. A forma como a Constituição e as
normas infraconstitucionais disciplinam a aquisição, a fruição e o gozo da propriedade
empresarial e do contrato é um elemento essencial para a implantação e consolidação de
um Estado Democrático de Direito.

Abstract: The 1988 Constitution established the social function of property as a genus
and as species the social function of rural property, urban property and the social
function of the enterprise and the contract. The social function of the enterprise and the
contract is a fundamental right governed by rules of public law. The manner in which the
Constitution and the infra-constitutional rules the acquisition, fruition, and enjoyment of
enterprise property and of the contract is an essential element for the implementation and
consolidation of a Democratic State of Law.

Sumário: Introdução. 2 - A Ordem Econômica e a Constituição de 1988. 3 - A função


social da propriedade. 4 - A função social da propriedade como direito fundamental. 5 -
A função social condiciona o exercício da propriedade ao direito público. 6 - A função
social da empresa e do contrato. 7 - A função social da empresa no Código Civil. 8 - A
posição da jurisprudência sobre a função social da empresa. 9 - A relação da democracia
com a função social da empresa. Conclusão.

Introdução
Na disciplina da Constituição de 1988 a propriedade tem como encargo o
atendimento a uma função social que vai regular a aquisição, o exercício e a fruição da
propriedade. Essa função social não se confunde com os sistemas administrativos de
limitação da propriedade. Isso porque a desapropriação, a servidão administrativa e a
requisição dizem respeito somente ao exercício do direito pelo proprietário, enquanto a
função social refere-se à estrutura do direito à propriedade. A função social da
propriedade é elemento integrador do conceito de propriedade como seu objeto
constitutivo (FERNANDES, 2020).1
Isso possibilita ao legislador regular os modos de aquisição da propriedade em geral
ou de certos tipos, seu uso, gozo e disposição. Constitui o fundamento do regime jurídico
da propriedade, não de limitações, obrigações e ônus que podem apoiar-se – e sempre se
apoiaram – em outros títulos de intervenção, como a ordem pública ou a atividade de
polícia (SILVA, 2014).2
No caso da propriedade rural e da propriedade urbana a própria Constituição
densificou o princípio da função social e estabeleceu de forma clara os requisitos para o
seu atendimento. A função social da propriedade rural, conforme o art. 186 da Carta, é
cumprida quando esta atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos requisitos de: I - aproveitamento racional e adequado; II -
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV - exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.3
Já a função social da propriedade urbana, na dicção do art. 182 da Constituição c/c
a Lei nº 10.257, de 2001 (Estatuto das Cidades), é atendida quando cumpridas as
exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor, instrumento
básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.4
Também a empresa e o contrato possuem uma função social. Conforme o art. 170
da Carta empresa tem responsabilidades/obrigações que vão além da produção e
circulação de bens e serviços e geração de lucros. A empresa e o contrato possuem uma
função social a qual exige que as decisões empresariais respeitem a soberania nacional, a
propriedade privada, a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a
redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego.

1
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed., Salvador: JusPodivm, 2020, pág. 567.
2
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª ed., rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 76, de
28.11.2013, São Paulo: Malheiros, 2014, pág. 284/285.
3
Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 8.629, de 1993, a qual prevê que a propriedade rural que não cumprir
a função social é passível de desapropriação (art. 2º, caput). Segundo a norma, a função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos, os seguintes requisitos (art. 9º): I - aproveitamento racional e
adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições
que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
4
O Estatuto das Cidades define como regular a propriedade urbana que não constitua obstáculo ao direito à moradia – direito social
previsto na Constituição de 1988, art. 6º, caput – e as iniciativas de políticas públicas de racionalização urbana, implantação de
equipamentos públicos (escolas, hospitais, creches, parques, praças etc.) e a aperfeiçoamento do sistema viário. Em seu art. 4º o
Estatuto das Cidades confere aos Municípios um conjunto de instrumentos para o estabelecimento de uma política urbana que
concretize a função social da propriedade urbana e confira o direito de todos os munícipes à cidade. O Estatuto detalha que o
planejamento municipal deve envolver o planejamento urbano, ambiental, orçamentário, setorial e o planejamento do desenvolvimento
econômico e social, especificando que a gestão orçamentária deve ser feita de forma participativa, aberta a todos os cidadãos. Além
disso, o Estatuto das Cidades prevê instrumentos tributários (impostos, contribuições, incentivos e benefícios fiscais e financeiros)
destinados a induzir os usos e atividades consideradas importantes para a política urbana.
A Constituição não definiu objetivamente os critérios de atendimento da função
social da empresa, tornando-a um conceito jurídico indeterminado e de sentido fluido.
Nesse ponto, a Teoria das Partes Interessadas traz uma importante contribuição ao
detalhar a necessidade de o ambiente empresarial considerar em suas decisões o
ecossistema de grupos relacionados.
Esse artigo propõe-se a discutir e a detalhar a social da empresa e do contrato e sua
relação com a democracia. Para tanto, vamos discutir como a Constituição de 1988
disciplina os princípios da Ordem Econômica. A partir desse entendimento, pretende-se
esmiuçar a função social da propriedade, em todas as suas modalidades. Depois, vai-se
defender que a observância pelos proprietários da função social de suas propriedades é
um direito fundamental da sociedade. Em razão dessa característica de direito
fundamental, vai-se discutir que o exercício do direito de propriedade (aquisição, gozo e
fruição) é regido tanto pelo direito privado, quanto pelo direito público. A seguir, o artigo
discute a função social da empresa e do contrato a partir da Constituição e do Código
Civil e na visão dos Tribunais. Por fim, procura-se traçar a importância da relação entre
a disciplina de aquisição, fruição e gozo da propriedade para a implantação e consolidação
de um Estado Democrático de Direito.

A Ordem Econômica e a Constituição de 1988


A ordem econômica é o conjunto de normas que define, institucionalmente, um
determinado modo de produção econômica (GRAU, 2010).5 A Constituição brasileira, ao
definir a ordem econômica nacional, optou pelo sistema econômico capitalista, ou seja,
regido pelas forças de mercado (economia de mercado), modelo no qual predominam a
livre iniciativa e a propriedade privada dos fatores de produção (recursos naturais,
trabalho, capacidade empresarial, tecnologia e capital).6 Assim, pode-se afirmar que a
Constituição definiu na ordem econômica a forma como o capitalismo de mercado será
exercido no Brasil.
O capitalismo é uma racionalização do homem e das instituições, ou seja, a essência
do sistema capitalista é a racionalização das regras de troca, incluindo, neste sentido, a

5
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 14ª ed., rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2010, pág. 70.
6
Há uma outra espécie de capitalismo ao qual a doutrina econômica denomina de Capitalismo de Estado. Trata-se do envolvimento
direto do Estado no setor produtivo e de serviços concorrendo com a iniciativa privada ou substituindo-a. É uma tendência que pode
ser verificada tanto em países capitalistas, quanto em socialistas. O Estado atua por questões estratégicas, onde faltam recursos para
o investimento privado ou nos setores em que a taxa de lucro não é compensadora para as empresas privadas locais ou multinacionais.
troca da força de trabalho por salários (WEBER, 2004)7. Caracteriza-se pela exigência de
acumulação ilimitada do capital por meios formalmente pacíficos. Trata-se de repor
perpetuamente em jogo o capital no circuito econômico, com o objetivo de extrair lucro.
Em outras palavras, aumentar o capital para ser novamente reinvestido. Essa, é a principal
marca do capitalismo, “aquilo que lhe confere a dinâmica e a força de transformação
que fascinaram seus observadores, mesmo os mais hostis” (BOLTANSKI, 2009).8
Contudo, alertam os pensadores, a ideia de acúmulo do capital não consiste apenas
num amontoamento de riquezas, ou seja, de objetos desejados por seu valor de uso, por
sua função ostentatória ou como signos de poder. As formas concretas da riqueza
(imobiliária, bens de capital, mercadorias, moeda etc.) não têm interesse em si e, por sua
falta de liquidez, podem até constituir obstáculo ao único objetivo que importa realmente:
a transformação permanente do capital, de equipamentos e aquisições diversas (matérias-
primas, componentes, serviços etc.) em produção, de produção em moeda e de moeda em
novos investimentos (BOLTANSKI, 2009).9
Em relação à propriedade privada, traço marcante do capitalismo, a Constituição
estatui de forma genérica que é garantida a propriedade como direito fundamental. A
Carta, todavia, ressalva que esta (propriedade) atenderá sua função social (art. 5º, XXII e
XXIII). Assim, o exercício dos direitos da propriedade privada na Constituição está
vinculado ao atendimento de uma função social. Daí vem a expressão função social da
propriedade.
No Capítulo que trata dos princípios gerais da atividade econômica, a Constituição
afirma que a ordem econômica também é fundada, dentre outros, no princípio da função
social da propriedade (art. 170, III). Observa-se, portanto, que a Lei Maior estabeleceu
como gênero a função social de toda e qualquer propriedade e, como espécies, a função
social da propriedade urbana, a função social da propriedade rural e a função social da
propriedade na ordem econômica.
Essa vinculação da propriedade a sua função social é designada por alguns
doutrinadores de republicanismo post-New Deal. Representa uma república que respeita
os pressupostos liberais do direito de propriedade privada e da liberdade de iniciativa
econômica, mas que também assume a tarefa da regulação econômica orientada para a

7
WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito do Capitalismo”. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pág. 135.
8
BOLTANSKI, Lue; CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo, trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009,
pág. 35
9
BOLTANSKI, Lue; CHIAPELLO, Eve. Ibidem.
prossecução do bem comum e para a solução de assimetrias sociais, em especial no
trabalho (CANOTILHO).10 A Constituição estabeleceu, segundo Canotilho, a teoria das
limitações horizontais como fonte da vinculação propriedade + função social. Assim, o
exercício do direito de propriedade pressupõe uma reserva de amizade e de não
prejudicialidade, não como restrição do exercício deste direito, mas como limite dos
pressupostos jurídicos e fáticos do direito em si (CANOTILHO).11

A função social da propriedade


Com fundamento no princípio da solidariedade, vários sistemas jurídicos
contemporâneos consagram o dever fundamental de se dar à propriedade privada uma
função social (COMPARATO, 2015). Já o princípio da solidariedade se prende à ideia de
responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou
grupo social. O fundamento ético desse princípio encontra-se na ideia de justiça
distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as
classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana
(COMPARATO, 2015).12
Para vários doutrinadores a origem constitucional da função social da propriedade
encontra-se na Constituição Weimar13 que teria organizado as bases da democracia social
ao dispor sobre a educação pública, o direito trabalhista e a propriedade. Na seção sobre
a vida econômica, a Constituição Weimar tratou da função social da propriedade com
uma fórmula que a tornou célebre: a propriedade obriga (COMPARATO, 2015).14
Assim, a partir da Constituição Weimar, há o progressivo reconhecimento de uma
ordem econômica e social com implicações para a questão da propriedade. O que
construiu uma nova etapa frente ao “laisser faire, laisser passer”15.
O que se depreende é que há uma alteração conceitual da utilização da propriedade.
Por isso, a função social altera alguns aspectos pertinentes ao seu exercício,

10
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, e teoria da constituição, 7ª ed., 11ª reimp., Coimbra: Almedina, pág. 227.
11
CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., pág. 1281.
12
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, pág. 79.
13
De maneira inovadora, a Constituição alemã de 1919 (Constituição de Weimar) veio na “tentativa de estabelecer uma democracia
social, abrangendo dispositivos sobre a ordem econômica e social, família, educação e cultura, bem como instituindo a função social
da propriedade. As concepções sociais ou socializantes, assim como a determinação de princípios constitucionais para a intervenção
estatal nos domínios sociais e econômicos, são, então, consideradas fundamentos do ‘novo constitucionalismo social’” que veio a
influenciar nossas constituições a partir da de 1934 e, inclusive, a de 1988, e também vários Estados europeus e alguns americanos.
(STEFANO, Isa Gabriela de Almeida et al. Estudos de Direito Constitucional Comparado, Coord. Maria Garcia e José Roberto
Neves Amorim, Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, pág. 443)
14
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., pág. 207.
15
A expressão significa "deixai fazer, deixai passar" simboliza a ideia do liberalismo econômico puro. Implica na ideia de que o
mercado deve funcionar livremente, limitando-se o Estado a proteger os direitos de propriedade.
especificamente a relação externa do uso da propriedade. Em outras palavras, o modo
como são exercitadas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito da propriedade. O
pressuposto de confiança recíproca e boa-fé, que se integra no moderno conceito de
obrigação, encontra correspondência na função social do direito de propriedade, no
sentido de consideração à solidariedade social, compreendendo os direitos proprietário e
os deveres que são legalmente impostos ao proprietário (FACHIN, 1988).16
Assim, o conceito de propriedade sofreu profunda alteração no século passado. A
propriedade privada tradicional perdeu muito do seu significado como elemento
fundamental destinado a assegurar a subsistência individual e o poder de
autodeterminação como fator básico da ordem social. A base da subsistência e do poder
de autodeterminação do homem moderno não é mais a propriedade privada em sentido
tradicional, mas o próprio trabalho e o sistema previdenciário e assistencial instituído e
gerido pelo Estado.
Essa evolução fez com que o conceito constitucional de direito de propriedade se
desvinculasse, pouco a pouco, do conteúdo eminentemente civilístico de que era dotado.
A garantia do direito de propriedade passou a abranger não só a propriedade sobre bens
móveis ou imóveis, mas também os demais valores patrimoniais, incluídas aqui as
diversas situações de índole patrimonial, decorrentes de relações de direito privado ou
não (MENDES, 2012).17
Essa mudança da função da propriedade foi fundamental para o abandono da ideia
da necessária identificação entre o conceito civilístico e o conceito constitucional de
propriedade. O essencial para a definição e qualificação da propriedade passa a ser a
"utilidade privada" do direito patrimonial para o indivíduo, isto é, a relação deste direito
patrimonial com o titular. Vê-se, assim, que o conceito constitucional de proteção ao
direito de propriedade transcende à concepção privatística estrita, abarcando outros
valores de índole patrimonial, como as pretensões salariais e as participações societárias.
Essa orientação permite que se confira proteção constitucional não só à propriedade
privada em sentido estrito, mas, fundamentalmente, às demais relações de índole
patrimonial (hipotecas, penhores, depósitos bancários, pretensões salariais, ações,
participações societárias, direitos de patente e de marcas etc) (MENDES, 2012).18

16
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária
rural), Porto Alegre: Fabris, 1988, pág. 17/18.
17
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4ª ed.,
rev. e amp., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 141/142.
18
MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., 2012, ibidem.
O que se observa é que a Constituição de 1988 adotou esse conceito de propriedade
mais amplo. A Carta estendeu a mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação
do homem com as coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações artísticas de
obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são à medida que haja uma
devida indenização de sua expressão econômica (BASTOS, 1989).19
Interessante observar que inexiste um conceito constitucional ou infralegal fixo,
estático, que conceitue propriedade. Isso mostrou-se importante porque o conteúdo deste
direito vem sendo alterado hodiernamente pela evolução tecnológica. Hoje, por exemplo,
discute-se a propriedade em espaços como o metaverso20. O essencial é entender que o
conceito de propriedade é dinâmico, o que torna necessário reconhecer que a garantia
constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização
(MENDES, 2012).21
A evolução do Estado Liberal para o Estado Social de Direito foi marcada pela
efetivação da responsabilidade da sociedade pela existência social, econômica e moral
dos seus membros, sem prejuízo da autonomia do direito e o respeito pelos direitos dos
particulares. Na limitação do conteúdo dos direitos subjetivos dos indivíduos manifesta-
se o núcleo do princípio do Estado social: a responsabilização não apenas da sociedade,
mas também do próprio indivíduo pela existência social e pelo bem-estar dos outros. São
três características essenciais dessa mudança: 1) a relativização dos direitos privados pela
sua função social; 2) a vinculação ético-social destes direitos; e 3) o recuo perante o
formalismo do sistema do direito privado clássico do século XIX (WIEACKER).22
A função social da propriedade na Constituição de 1988 condiciona-a como um
todo, não apenas seu exercício. Transforma a propriedade privada, sem socializá-la.

A função social da propriedade como direito fundamental


Ao inscrevê-lo no art. 5°, XXII, a Constituição de 1988 conferiu ao direito de
propriedade, legalmente constituído e exercido, o status de direito fundamental. Em
outras palavras, a Carta prevê que o direito de propriedade não é absoluto e que o
atendimento à sua função social lhe é inerente e integra o próprio direito em si. Logo, a

19
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1989, pág.
118/119.
20
Metaverso é a terminologia utilizada para indicar um tipo de mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos
digitais. É um espaço coletivo e virtual compartilhado, constituído pela soma de "realidade virtual", "realidade aumentada" e
"Internet".
21
MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., 2012, pág. 157/158.
22
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno, trad. A. M. Hespanha, 2ª. ed., rev., Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 1993, pág. 623-624.
função social incide sobre a estrutura e o conteúdo da propriedade, sobre a própria
configuração do direito e constitui o elemento que qualifica sua situação jurídica.
A previsão constitucional moldou o direito privado nacional, alcançando não
apenas o proprietário, mas também quem detém apenas a posse da coisa. Conforme o
Código Civil (art. 1.228), o proprietário tem a faculdade de gozar ou fruir da coisa;
reaver ou buscar a coisa de quem o injustamente possua ou detenha; usar ou utilizar a
coisa; e dispor ou alienar a coisa. Também de acordo com o Código Civil (art. 1.196),
possui a propriedade plena a pessoa que detém os quatro atributos. Se não possui todos
os atributos é considerada apenas possuidora, ou seja, detém apenas a posse da coisa.
Logo, todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário. Justamente
por incidir apenas sobre o atributo de usar ou utilizar a coisa, a função social da
propriedade é exigível tanto do proprietário (função social da propriedade) como do
mero possuidor da coisa (função social da posse).
Destaque-se que o conceito de propriedade e de patrimônio não se confundem.
Patrimônio é a soma dos valores patrimoniais ou dinheiro reunido por uma pessoa. Muito
embora tenha havido uma ampliação do conceito de propriedade para os fins de proteção
constitucional, este não se confunde com o próprio patrimônio da pessoa. O que a
constituição considera direito fundamental constitucionalmente protegido é a propriedade
e não a inteireza do patrimônio havido pela pessoa. O patrimônio, enquanto tal, não está
submetido à proteção do direito de propriedade, a doutrina e a jurisprudência reconhecem
que as leis tributárias não podem ser dotadas de efeito confiscatório, atribuindo-se à
proteção do direito de propriedade qualidade de parâmetro de controle em relação às
exações tributárias (MENDES, 2012).23
Por se tratar de norma de direito fundamental, na dicção do art. 5º, §1º, da
Constituição, a função social da propriedade tem aplicação imediata, preferencial e
condiciona a validade e o sentido de todos os atos normativos infraconstitucionais
decorrentes. Além disso, o fato de ser um direito fundamental retira da propriedade sua
característica de ser regida unicamente por normas de direito privado. Assim, a
propriedade passa a ser dirigida por normas de direito público, vez tratar-se de uma
instituição submetida ao conjunto de normas jurídicas que disciplinam o desempenho de
atividades e de instituições de interesse coletivo. Vinculadas, direta ou indiretamente, à
realização dos direitos fundamentais e à satisfação de determinados fins.

23
MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., 2012, pág. 144.
Consequentemente, a disciplina constitucional interfere na estrutura e no conceito
da propriedade e a transforma numa instituição de direito público (SILVA, 2014)24
(NOVELINO, 2013)25.
Em razão do mandamento constitucional, o proprietário está obrigado a dar ao bem
uma destinação compatível e harmoniosa com o interesse público, sob pena de vulnerar
seu direito de propriedade. Logo, trata-se de mais do que o estabelecimento de limitação
ao exercício do bem. Fixam-se condutas que podem, até mesmo, colidir com os interesses
do proprietário, mas que, se não atendidas, podem tornar injurídica a sua própria
condição.
Isso ocorre porque a Constituição retira a noção individualista de propriedade típica
do século XVIII. A função social da propriedade não significa a negação ou abolição do
direito de propriedade em si, antes afirma-a como algo maior que a esfera privada do seu
sujeito titular, pois a propriedade deve oferecer uma maior utilidade à coletividade.
O reconhecimento do direito de propriedade – e da necessidade de atendimento à
sua função social – como direito fundamental garante que este instituto não possa ser
objeto de emenda constitucional tendente a aboli-lo (art. 60, §4º). Além disso, exige que
toda e qualquer intervenção ao direito de propriedade deve ser processada nos termos do
devido processo legal e obedecer ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. A
aplicação desse princípio fundamental deve impor direitos e responsabilidades ao
proprietário, de forma justa e legal. Assim, com base na função social da propriedade,
não se pode causar ao proprietário qualquer espécie de dano injustificado e ilegal. O
princípio da função social da propriedade precisa ser empregado de forma cuidadosa,
equilibrada, evoluída e moderna (FERREIRA, 2018).26
Por ser um direito fundamental, a função social da propriedade é inalienável e
intransferível. Logo, seu titular não pode se despojar dela (função social) por não
corresponder a um bem disponível. Isso significa que o proprietário não pode adotar ações
que torne o exercício da função social de sua propriedade impossível, física ou
juridicamente, de ser exercitada (NUNES JÚNIOR, 2019).27
Ao examinar a ADI 2.213, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que o
direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave

24
SILVA, José Afonso da. Op. cit., pág. 285.
25
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2013, pág. 463.
26
FERREIRA, Roberto. Constituição Federal interpretada: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, Costa Machado,
Organizador; Alma Cândida da Cunha Ferraz, Coordenadora. 9ª. ed., Barueri - SP: Manole, 2018, pág. 920/921.
27
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 880.
hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art.
5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados,
contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria
Constituição da República.28

A função social condiciona o exercício da propriedade ao direito público


Reforçando o caráter de direito público do regime da propriedade, o direito
contemporâneo alterou a experiência do direito privado em matéria de direito de
propriedade. Antes, o proprietário não tinha deveres positivos, tais como contratar ou
cumprir prestações em favor de outrem, como sucede com os devedores numa relação
obrigacional. Já a partir do instituto da função social, a posição passiva do direito de
propriedade, exercitável erga omnes (perante todos), concretizável quando há um dano
provocado à coisa, por um ato comissivo de outrem, deu lugar a deveres positivos do
proprietário de certos bens, em relação a outros sujeitos determinados, ou perante a
comunidade como um todo (COMPARATO, 2015).29
Logo, a expressão “função social” significa um poder-dever, ou um dever-poder,
que traz ao direito privado o condicionamento do exercício do poder de proprietário a
uma finalidade, algo que até então era tido como exclusivo do direito público (GRAU,
2010).30
A característica de direito público da função social se manifesta na própria
configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como
elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos
bens. Em face disso, o proprietário é obrigado legalmente a observar o papel produtivo
de sua propriedade. Por se tratar de direito público, a imposição do cumprimento da
função social introduziu uma nota na propriedade que pode não coincidir com o interesse
de seu proprietário (TAVARES, 2020)31.
Esse interesse, que pode ser estranho ao proprietário, constitui um princípio
ordenador da propriedade privada e fundamenta a atribuição deste direito, seu
reconhecimento e sua garantia, incidindo sobre seu próprio conteúdo (SILVA, 2014)32.

28
ADI 2.213 MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 4/4/2002, DJ de 23/4/2004. No mesmo sentido: MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio,
j. 17/6/2010, DJE de 13/8/2010.
29
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., pág. 368/369
30
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., pág. 245
31
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 18ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 717.
32
SILVA, José Afonso da. Op. cit., pág. 286.
Trata-se de fundamento para o reconhecimento e garantia do direito de propriedade em
sua plenitude.
Como direito público, são exigíveis, dentro do conceito de função social, todas as
condições que decorram de um interesse social (TAVARES, 2020)33. Em decorrência, a
função social da propriedade, como instituição de direito público, é um elemento
qualificante da situação jurídica, que se manifesta, conforme as hipóteses, seja como
condição de exercício de faculdades atribuídas, seja como obrigação de exercitar
determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas (SILVA, 2014)34.

A função social da empresa e do contrato


Conforme observou-se anteriormente, a Constituição de 1988 garante o direito de
propriedade (característica marcante do capitalismo), desde que atendida sua função
social. Em outras palavras, estabeleceu-se, constitucionalmente, a funcionalização do
instituto da propriedade.
É de se observar que a funcionalização dos institutos de direito civil à realização de
valores sociais tem origem na segunda metade do século XIX. Naquela época, a doutrina
já pregava o reconhecimento de uma “função social” como modo de substituir ou
temperar os contornos individualistas do direito subjetivo, em especial o da propriedade.
A partir daí, a doutrina civilista passou a distinguir a estrutura (como funciona) e a função
(para que serve) dos institutos jurídicos, reconhecendo neste último aspecto (função) a
verdadeira justificativa da proteção pelo ordenamento (SCHREIBER, 2016).35
A Constituição de 1988 estabeleceu a função social da propriedade dos meios de
produção como instituição da ordem econômica e das consequentes relações econômicas
dela oriunda (art. 170, II e III). Isso, modificou a sua natureza e relativizou seu conceito
e significado, pois os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da
realização de seu fim, qual seja: assegurar a todos uma existência digna, conforme os
ditames da justiça social (SILVA, 2014).36
Diferentemente do que ocorreu com a propriedade urbana e a rural, a Constituição
de 1988 não definiu objetivamente os critérios de atendimento da função social da
propriedade na ordem econômica. Em razão desse fato, a função social da propriedade

33
TAVARES, André Ramos. Op. cit., pág. 717.
34
SILVA, José Afonso da. Op. cit., pág. 286.
35
SCHREIBER, Anderson. Direito civil constitucional, Aline de Miranda Valverde Terra et al, coord. Anderson Schreiber e Carlos
Nelson Konder. 1ª ed., São Paulo: Atlas, 2016, pág. 19.
36
SILVA, José Afonso da. Op. cit., pág. 824.
tornou-se para a ordem econômica um conceito jurídico indeterminado, de sentido fluido,
destinado a lidar com situações nas quais o legislador não pôde ou não quis, no relato
abstrato do enunciado normativo, especificar de forma detalhada suas hipóteses de
incidência ou exaurir o comando a ser dele extraído (BARROSO, 2013).37 Isso abre para
o legislador e para o intérprete um espaço considerável, mas não ilimitado ou arbitrário,
de valoração subjetiva, que permite adaptar o comando constitucional a cada situação
específica.
A função social da empresa, da mesma forma que ocorre com a do contrato, não é
expressamente regulamentada no texto constitucional. Contudo, por estar a empresa e o
contrato inseridos no princípio maior da livre iniciativa, este previsto no art. 170 da
Constituição, a sua função social ganha status constitucional e encontra sua expressão e
contornos neste preceito (SANTOS, 2016).38
Portanto, o princípio da função social da empresa e do contrato são decorrências
necessárias do princípio da função social da propriedade e ambos têm a mesma hierarquia
constitucional. Deste modo, a lei não pode suprimir ou limitar a função social da empresa
e do contrato.
Alguns doutrinadores entendem que a lei deveria prescrever, de modo expresso,
que a empresa cumpre sua função social quando contribui para o desenvolvimento
econômico, local, regional, nacional ou global, mediante exploração de sua atividade,
feita com rigorosa observância dos direitos dos trabalhadores e consumidores, bem como
das normas de direito ambiental e tributário (COELHO, 2020)39.
Na ordem econômica o princípio da função social da propriedade se realiza sobre a
propriedade dos bens de produção, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens,
implementada sob compromisso com a sua destinação. Isso porque, no capitalismo, os
bens de produção (capital) são postos em dinamismo, em regime de empresa, como
função social da empresa. Assim, essa função social da empresa é um poder-dever não só
do proprietário, mas, também, do controlador, porque numa empresa estas figuras nem
sempre se confundem (GRAU, 2010).40 É o caso, por exemplo, do controlador de uma
empresa que aluga os bens de produção pertencentes a outra pessoa natural ou jurídica

37
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de
um novo modelo, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, pág. 401.
38
SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos; MENDES, Eduardo Heitor. Direito civil constitucional, Aline de Miranda Valverde Terra
et al, coord. Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder. 1ª ed., São Paulo: Atlas, 2016, pág. 98.
39
COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 31ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson
Reuters, 2020, págs. 16/17.
40
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., pág. 242.
(proprietário). O controlador está obrigado a observar a função social da posse do
patrimônio (bens).
O art. 170, III, da Constituição, ao ter a função social da propriedade como um dos
princípios da ordem econômica, reforça a tese de que a norma principiológica do art. 5º,
XXIII, da Carta significa que todo e qualquer tipo de propriedade deverá atender à sua
função social. A principal importância disso está na sua compreensão como um dos
instrumentos destinados à realização da existência digna de todos e da justiça social.
No Capítulo dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, a Constituição atrelou
a atividade econômica à função de servir como instrumento de valores de cunho
existencial. A partir dessa previsão, a função social se espraiou para a empresa, para o
contrato e para outros institutos de direito civil (SCHREIBER, 2016).41
Assim, correlacionando essa compreensão com a valorização do trabalho humano
(art. 170, caput), a defesa do consumidor (art. 170, V), a defesa do meio ambiente (art.
170, VI), a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII) e a busca do pleno
emprego (art. 1º, VIII), tem-se configurada a sua direta implicação com a propriedade dos
bens de produção, especialmente imputada à empresa pela qual se realiza e efetiva o poder
econômico, o poder de dominação empresarial. Disso decorre que tanto vale falar de
função social da propriedade dos bens de capital, como de função social da empresa,
como de função social do poder econômico (SILVA, 2014)42.
A função social da propriedade prevista no art. 170 é um princípio que se confunde
com intenção. Apesar de o texto constitucional ter consagrado uma economia
descentralizada e de mercado, autorizou o Estado a intervir no domínio econômico com
a finalidade de exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sempre de
caráter normativo e regulador (MORAES, 2017) 43.
A interpretação dos arts. 1º, IV, 5º, XXII e XIII, e 170, caput, III, IV e VIII, deve,
portanto, ser sistêmica pois, no campo econômico, a Constituição não adotou um modelo
de Estado totalmente liberal, mas um modelo de Estado regulador/intervencionista
(RAMOS, 2018).44 Consequentemente, esses dispositivos se articulam e se

41
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., pág. 19.
42
SILVA, José Afonso da. Op. cit., pág. 826
43
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33ª ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016, São Paulo: Atlas,
2017, págs. 599/600.
44
RAMOS, André Santa Cruz. Constituição Federal Comentada/Alexandre de Moraes; et al. 1ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2018,
pág. 754.
complementam, formulando princípios gerais econômicos e financeiros da tutela do
mercado e da própria atividade econômica.
Logo, a função social da empresa assume para o empresário45 (proprietário) o papel
de um princípio geral que condiciona sua autonomia. Conforme esse princípio
constitucional, os atos e as atividades da empresa, para terem reconhecimento jurídico,
devem ter uma finalidade positiva e serem avaliáveis conforme a razão (função). A
atividade de gozo e de disposição do empresário (proprietário) não pode ser exercida em
contraste com a utilidade social ou de modo a provocar danos à segurança, à liberdade e
à dignidade humana. Trata-se da passagem de uma ética individualista para uma ética
solidarista. (PERLINGIER, 2002).46
Quando se fala em função social da empresa faz-se referência à atividade
empresarial em si, que decorre do uso dos chamados bens de produção pela empresa.
Como a propriedade (ou o poder de controle) desses bens está sujeita ao cumprimento de
uma função social, nos termos do art. 5º, XXIII, da Constituição, a consequência lógica
é que o exercício da empresa (atividade econômica organizada) também deve cumprir
uma função social específica (RAMOS, 2020).47
É preciso destacar que o princípio da função social da empresa não foi instituído
pela Constituição de 1988. Já constava do art. 157, III, da Constituição de 1967, o qual
previa que a ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base, dentre
outros, no princípio da função social da propriedade.48
Dando concretude ao disposto na Constituição de 1967, a Lei nº 6.404, de 1976 (Lei
das S/A), arts. 116, parágrafo único, e 154, previu que a empresa tinha a obrigação de
observar a sua função social. A norma prevê que o administrador da empresa deve exercer
suas atribuições para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências
do bem público e da função social da empresa (art. 154). A Lei das S/A estabelece que o
interesse social da empresa compreende o daqueles que trabalham na sociedade, da
comunidade em geral e o interesse nacional (art. 116, par. Único). Conforme se observa,

45
Segundo o Código Civil, art. 966, considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para
a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Não é empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária
ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
46
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil constitucional, trad. Maria Cristina De Cicco. 3ª ed.,
rev. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pág. 216/228.
47
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial: volume único. 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 104.
48
Constituição de 1967: art. 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: I -
liberdade de iniciativa; II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana; III - função social da propriedade; IV -
harmonia e solidariedade entre os fatores de produção; V - desenvolvimento econômico; VI - repressão ao abuso do poder econômico,
caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. (grifo nosso)
já em 1976, muito antes da Constituição de 1988, a Lei das S/A constituiu a importante
expressão da doutrina institucionalista (TOMAZETTE, 2017).49
A propriedade privada, garantida constitucionalmente, não mais poderá ser
considerada como um direito exclusivamente individual. Seu conceito e significado
foram relativizados, pois os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da
realização de seu fim: assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da
justiça social (FACCHINI NETO, 2018).50
É insuficiente para atendimento da função social da empresa a simples imposição
de deveres negativos, consistentes, em termos gerais, na vedação à provocação de
prejuízos a terceiros. O princípio da função social da empresa, para ser eficazmente
cumprido, exige condutas positivas e um comportamento pautado pela prevenção de
danos, e não pela simples responsabilização (GAMA e BARTHOLO).51
A função social da empresa não pode ser confundida com a responsabilidade social
da empresa, pois são coisas distintas e com fundamentações absolutamente diferentes. A
função social da empresa é mandamento constitucional. Para ser cumprido não é
necessário que a empresa gere novos postos de trabalho, nem mesmo que, vindo a
atravessar dificuldades, mantenha os que tiver gerado. Também não se exige que a
empresa ajude a comunidade vizinha aos seus estabelecimentos empresariais ou promova
ações culturais ou educacionais (COELHO, 2020).52
Já a responsabilidade social da empresa, conforme o SEBRAE, compreende ações
e posturas voluntariamente desenvolvidas que buscam promover o bem-estar dos seus
públicos interno e externo. São práticas voluntárias e não se confundem com ações
compulsórias impostas pela Lei ou por quaisquer incentivos externos, como, por exemplo,
os incentivos fiscais.53
É preciso compreender que quando se fala em função social da empresa, por se
tratar da propriedade (patrimônio) na ordem econômica, estamos falando dos bens de

49
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. 8ª. ed. rev. e atual, São Paulo:
Atlas, 2017, pág. 517.
50
FACCHINI NETO, Eugênio. Comentários à Constituição do Brasil, J. J. Gomes Canotilho et al.; outros autores e coordenadores
Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck, Gilmar Ferreira Mendes. 2ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, Série IDP, 2018, pág.
3342/3343.
51
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno de Paiva. IV Jornada de Direito Civil, org. Ministro Ruy Rosado
de Aguiar Jr., Brasília: CJF, 2007, pág. 286/287.
52
COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 31ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson
Reuters, 2020, pág. 16/17.
53
Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/sebraeaz/5-dicas-para-implementar-a-responsabilidade-social-na-
sua-empresa,4b5819c6fc0c0710VgnVCM1000004c00210aRCRD
capital54, dos bens intermediários55, dos bens de consumo56 e dos contratos que são
celebrados na atividade econômica.
A função social da empresa desloca a titularidade da propriedade do âmbito estrito
dos direitos subjetivos para o direito-função ou poder-dever. Em uma economia de massa,
os interesses a serem tutelados são superiores ou alheios e vão além do direito subjetivo
privado e da função de produção e circulação de bens e serviços da empresa. Com isso, a
empresa ultrapassa a antiga noção de mera organização produtiva, pois seus deveres para
com a sociedade autorizam a conferir-lhe uma função social consequentemente com a
ideia natural de bem público (BRASILINO, 2020).57
Quando se utiliza a expressão “função social da empresa”, o termo “empresa”, sob
o ponto de vista jurídico, deve ser encarado como empresa-instituição-organização que
surge do inter-relacionamento entre empresa-empresário (sujeito), empresa-
estabelecimento (objeto) e empresa-atividade (fato jurídico) e a expressão “função social”
diz respeito aos compromissos e obrigações para com os empregados, os consumidores e
a comunidade como um todo (BRASILINO, 2020).58
A submissão da atividade da empresa (propriedade) privada ao cumprimento de
uma função social não afeta o necessário cálculo econômico racional59 e nem interfere na
alocação eficiente dos recursos. A função social da empresa refere-se à atividade
empresarial em si e decorre do uso dos bens de produção.

54
Os bens de capital são utilizados na fabricação de outros bens, mas não se desgastam totalmente no processo produtivo. É o caso,
por exemplo, de máquinas, equipamentos e instalações. São usualmente classificados no ativo fixo das empresas, e uma de suas
características é contribuir para a melhoria da produtividade da mão-de-obra. Exemplo: máquinas e equipamentos.
55
Os bens intermediários são transformados ou agregados na produção de outros bens e são consumidos totalmente no processo
produtivo (insumos, matérias-primas e componentes). Diferenciam-se dos bens finais, que são vendidos para consumo ou utilização
final.
56
Os bens de consumo destinam-se diretamente ao atendimento das necessidades humanas. De acordo com a durabilidade, podem ser
classificados como duráveis (por exemplo: geladeiras, fogões, automóveis) ou como não duráveis (alimentos, produtos de limpeza).
57
BRASILINO, Fábio. Bem jurídico empresarial: função social, preservação da empresa e proteção ao patrimônio mínimo
empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 151/154.
58
BRASILINO, Fábio. Op. cit., págs. 160 e 195.
59
Segundo Ludwig von Mises, sem o cálculo econômico não pode existir uma economia, pois é ele que permite a alocação de recursos
em aplicações produtivas. Em uma economia de trocas voluntárias, “a unidade comum de cálculo econômico é representada pelo
valor objetivo de troca das mercadorias. Isso gera uma vantagem tripla. Em primeiro lugar, passa a ser possível basear o cálculo
econômico de acordo com as valorações de todos os participantes da troca. O valor subjetivo que um dado bem tem para uma pessoa
é um fenômeno puramente individual e, portanto, não pode ser imediatamente comparado ao valor subjetivo que esse mesmo bem
tem para as outras pessoas. Isso só se torna possível quando se utiliza valores de troca, os quais surgem naturalmente da interação
das valorações subjetivas de todos os indivíduos que participam da troca. Nesse caso, o cálculo baseado nos valores de troca fornece
um controle sobre o método mais apropriado de se empregar os bens. Qualquer um que deseje fazer cálculos relacionados a algum
complicado processo de produção irá imediatamente perceber se ele está agindo de maneira mais econômica que os concorrentes ou
não; se ele descobrir — por meio das relações de troca predominantes no mercado — que não será capaz de produzir lucrativamente,
isso significa que outros estão sabendo melhor como fazer um uso mais adequado desses bens de ordem alta. Por último, utilizar os
valores de troca para se fazer cálculos econômicos é o que possibilita avaliar os bens de acordo com uma unidade de conta definida.
E para esse propósito — dado que os bens são mutuamente substituíveis de acordo com as relações de troca predominantes no
mercado —, qualquer bem existente pode ser escolhido. Em uma economia monetária, esse bem escolhido é o dinheiro.” (MISES,
Ludwig von. O cálculo econômico sob o socialismo, ed. Instituto Ludwig von Mises Brasil, pág. 17)
O conceito jurídico de poder-dever implica que o poder dado ao titular de um direito
é um instrumento para que se cumpra o dever decorrente daquela titularidade. E, portanto,
passa-se a exigir dele, titular do direito, não apenas uma abstenção, mas uma ação, da
qual, supostamente, advirão benefícios gerais, por exemplo construindo um edifício ou
plantando em terrenos até então ociosos (NUSDEO, 2005)60.

A função social da empresa no Código Civil


Conforme já estabelecido anteriormente, a livre iniciativa e o direito à propriedade
são traços marcantes das sociedades capitalistas. Na ordem econômica ditada pelo art.
170 da Constituição e pelo Código Civil (arts. 187, 421, 1.228 e 2.035) esses institutos
estão condicionados e devem ser exercidos em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais. A livre iniciativa tem como função social a de propiciar a todos
uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Já a função social da
propriedade permite ao proprietário praticar qualquer ato que lhe traga comodidade ou
utilidade, mas o impede prática de atos com o dolo de causar externalidades negativas
para prejudicar outrem ou a comunidade onde está radicado (Código Civil, art. 1.228,
§2º).
O Código Civil estendeu acertadamente a função social da empresa também aos
contratos. Não haveria sentido à Constituição atribuir função social à propriedade
empresarial e não o fazer em relação ao meio dinâmico de aquisição desta propriedade e
ao meio de circulação das riquezas, qual seja, o contrato. Assim, qualquer atividade
econômica a ser desenvolvida, inclusive a contratual, deve ter como propósito assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos termos do art. 170,
caput, da Constituição (CUNHA, 2005).61
A função social do contrato, disposta no Código Civil (art. 421), não afasta a
autonomia privada, mas com ela se compatibiliza. A inclusão da função social do contrato
na disciplina da ordem econômica da Constituição está presente de forma implícita, como
uma exigência lógica, e de forma explícita por previsão do Código Civil. Aplica-se às
empresas porque é nelas e na sua atividade econômica que se reconhece a natureza
jurídica eminentemente contratual. O principal corolário que se extrai do princípio da

60
NUSDEO, Fábio. Curso de Economia – Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2005, pág. 210.
61
CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. III Jornada de Direito Civil, org. Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. Brasília:
CJF, 2005, pág. 165.
função social dos contratos é a prevalência dos interesses sociais eventualmente
envolvidos no contrato sobre os interesses individuais nele regulados.
A atribuição de uma função social ao contrato condiciona o direito subjetivo a
liberdade contratual à respectiva função da avença. Albergada como pressuposto de
legitimidade da própria atividade empresarial, a função social da empresa possui relação
direta com a incontestável função social exercida por outros dois institutos, quais sejam:
a propriedade (Constituição, arts. 5º, inc. XXIII, e 170, inc. III), particularmente no que
tange aos bens de capital necessários à prática empresarial; e o contrato, tendo em vista a
natureza contratual inerente à maioria das sociedades empresárias, que respondem pela
esmagadora parte dos empreendimentos empresariais, e a presença desse instrumento
negocial na maior parte das atividades exercidas pela empresa. Destarte, a efetiva
consecução do fim social da empresa só será possível pela observância a deveres
positivos, dentre os quais, inevitavelmente, aqueles expressos nos princípios do art. 170,
da Constituição de 1988 (GAMA e BARTHOLO).62
Por sua característica, a função social da empresa é dotada de dois momentos: um
com a função de patrimônio (propriedade) individual; e, outro, com função coletiva
(social). O primeiro (individual), refere-se ao direito do titular da coisa de usar, gozar e
dispor da coisa e de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha
(Código Civil, art. 1.228, caput). O segundo (coletivo), é pertinente à utilização do
patrimônio (bens) como instrumento de uma função da propriedade (Código Civil, art.
1.228, §1º). São distintos os fundamentos que justificam a propriedade dotada de função
individual daquela dotada de função social. A primeira (individual), justifica-se para que
o indivíduo possa prover a sua subsistência e de sua família. Já a propriedade dotada de
função social é justificada pelos seus fins, seus serviços e sua função (GRAU, 2010).63
Nessa linha, não apenas os bens de capital estão sujeitos à sua função social, mas
também o produto gerado ou transformado. Não pode, portanto, a produção ser retida
para fins de especulação ou acumulada sem destinação ao uso fixado. Nesse caso, a
propriedade excede sua característica de função individual e frusta sua função social. Tal
conduta é vedada e a Lei nº 8.137, de 1990, que define ser crime contra a ordem
econômica e a economia popular recusar-se a fazer circular seu produto para fins de
especulação (art. 7º, IV e VIII).

62
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno de Paiva. Op. cit., pág. 286/287.
63
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., 2010, págs. 243/244.
O importante a salientar é que na ordem econômica prevista na Constituição o
princípio da função social da empresa está estritamente vinculado ao regime jurídico da
iniciativa econômica que incluiu a propriedade dos bens de capital, dos bens
intermediários, a produção e os contratos destinados a fazer circular economicamente as
mercadorias e os serviços.
Conclui-se, portanto, que a função social da empresa é discernida a partir da
consideração da propriedade dinâmica, que não tem por objeto a fruição do seu titular,
mero direito subjetivo, mas a produção de outros bens (função). Assim, a teoria da
propriedade da empresa não pode ser construída independentemente daquilo que alguns
doutrinadores denominam de Teoria da Iniciativa Econômica (GRAU, 2010).64
É preciso destacar que o atendimento à função social da empresa não é excludente
do intento de lucro perseguido pelo empresário. Pelo contrário, pressupõe a
compatibilização da obtenção de lucro com os deveres jurídicos que advém da
propriedade. A função social da empresa implica em o empresário ou o administrador
assumir o poder-dever de conciliar a atividade empresarial com a observância de um
plexo de deveres jurídicos, positivos e negativos, em benefício da vida social (MARTINS,
2016).65
Assim, a atividade econômica desenvolvida pela empresa tem função social e deve
ser reconhecida e protegida para que a fruição dos direitos de conteúdo patrimonial seja
feita de maneira a alcançar seu escopo social de utilidade à coletividade, ainda que
indiretamente. Desta feita, as situações jurídicas patrimoniais possuem uma
instrumentalidade indireta à concretização da dignidade humana, pois o seu principal
objetivo é a realização de uma função social. A funcionalização das situações jurídicas
leva à consideração de que os legítimos interesses individuais dos titulares da atividade
econômica somente serão merecedores de tutela quando realizem uma função social, isto
é, “na medida em que interesses socialmente relevantes, posto que alheios à esfera
individual, venham a ser igualmente tutelados”. A proteção dos interesses privados
vincula-se ao atendimento de interesses sociais, a serem promovidos no âmbito da
atividade econômica (SANTOS, 2016).66

64
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., pág. 245.
65
MARTINS, Adriano de Oliveira. Recuperação de empresa em crise: a efetividade da autofalência no caso de inviabilidade da
recuperação. Curitiba: Juruá, 2016. pág. 60.
66
SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos. Op. cit., pág. 91.
A posição da jurisprudência sobre a função social da empresa
O STF apreciou o princípio da função social da empresa em várias assentadas.
Citem-se especificamente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) nºs 3.934 e
4.613 que, no nosso entendimento, melhor representam a posição do Tribunal.
Na ADI 3.93467, o STF discutiu a constitucionalidade dos arts. 60, parágrafo único,
83, I e IV, e 141, II, da Lei nº 11.101, de 2005, que regula a recuperação judicial,
extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, por supostamente
serem incompatíveis com o disposto nos arts. 1º, III e IV, 6º, 7º, I, e 170, VIII, da
Constituição de 1988. Alegavam os autores da ADI, dentre outros, que os dispositivos
impugnados afrontam os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, do
trabalho e do pleno emprego ao liberar os arrematantes de empresas alienadas
judicialmente das obrigações trabalhistas, tornando-os imunes aos ônus de sucessão.
O Relator da ADI 3.934 entendeu não existirem os vícios constitucionais apontados,
pois a Lei nº 11.101, de 2005, ao estabelecer a inocorrência de sucessão dos créditos
trabalhistas, optou por dar “concreção a determinados valores constitucionais, a saber,
a livre iniciativa e a função social da propriedade – de cujas manifestações a empresa é
uma das mais conspícuas – em detrimento de outros, com igual densidade axiológica, eis
que os reputou mais adequados ao tratamento da matéria”. Destacou ainda o Relator que
a Lei de Recuperação Judicial e Falência buscou garantir a sobrevivência das empresas
em dificuldades, “tendo em conta, sobretudo, a função social que tais complexos
patrimoniais exercem, a teor do disposto no art. 170, III, da Lei Maior”.
Já a ADI 4.613 questionava dispositivos do Código Brasileiro de Trânsito que
determinavam a veiculação de mensagens educativas de trânsito em peças publicitárias
de produtos da indústria automobilística. Sustentou o autor da ação, dentre outros, que o
setor produtivo não pode ser “eleito como financiador de programas educativos que ao
Estado compete promover”.
Ao apreciar a matéria, o STF entendeu que as normas impugnadas atendiam ao
estipulado na Constituição, pois são consectárias da proteção ao consumidor e da função
social da propriedade, princípios da ordem econômica.68 Conforme o Relator, a exigência
legal encontra-se em consonância “com o princípio da função social da propriedade e,
ainda, com o princípio da proteção ao consumidor, ambos direcionadores, nos termos
do art. 170 da CF/88, da livre iniciativa”. Ressaltou o Relator que, em diversas

67
ADI 3.934, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/5/2009, DJE de 6/11/2009.
68
ADI 4631, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 20/9/2018, DJE de 3/12/2018.
oportunidades69, o STF assentou que “o princípio da livre iniciativa não pode ser
invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do
consumidor”. Destacou ainda o Relator que, com base o princípio constitucional da
função social da propriedade, limitador da livre iniciativa, não procedia a alegação de que
as propagandas seriam custeadas pelas empresas automobilísticas, o que estaria por
transmitir a obrigação do Estado à informação educativa de trânsito às empresas
automobilísticas.
No âmbito infraconstitucional, o Conselho da Justiça Federal (CJF), para tentar
uniformizar a interpretação, elaborou três enunciados nos quais aborda a questão do
princípio da função social da empresa e do contrato e seu desdobramento, onde estatui:
Número Enunciado
O contrato empresarial cumpre sua função social quando não acarreta prejuízo a direitos
26 ou interesses, difusos ou coletivos, de titularidade de sujeitos não participantes da
relação negocial.
Aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a função social do contrato e a boa-
29 fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as especificidades
dos contratos empresariais.
Art. 966: Deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação
53
das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa.

A relação da democracia com a função social da empresa


Num Estado Democrático de Direito de matriz capitalista e liberal a aquisição da
propriedade e da posse dos meios de produção e o respeito à sua função social são
elementos essenciais para a concretização de uma democracia plena. Trata-se de um
direito nodular à fisiologia do Estado, e consequentemente, de toda base jurídica da
sociedade (BULOS, 2009)70.
Postulado de toda a ordem jurídica que deflui da Constituição, a dignidade da
pessoa humana está voltada para permitir a todos usufruir de uma existência digna como
um ser individualizado, sem desconsiderar as consequências coletivas pelo fato de viver
em sociedade. A dignidade se manifesta pela capacidade de ter uma vontade livre e
consciente e ser capaz de adquirir propriedade.
Os institutos de aquisição, exercício e fruição da propriedade devem ser
qualificados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. São eles que garantem o

69
Nesse sentido: RE nº 349.686, Rel. Min Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ de 5/8/05; AI nº 636.883 /RJ-AgR, Rel. Min. Cármen
Lúcia, Primeira Turma DJ de 1º/3/2011.
70
BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos. São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 649.
direito à participação social das pessoas no espaço democrático e sua inserção na
construção da justiça.
A democracia não se restringe à possibilidade de as pessoas manifestarem-se,
mesmo em eleições. Exige que os indivíduos sejam ouvidos e, sendo esta a vontade da
maioria, tenham condições de modificar as relações da sociedade e desta com o Estado.
A forma como a propriedade é adquirida, exercida e fruída é a pedra de toque que vai
efetivar uma democracia plena em uma sociedade.
A propriedade como manifestação da riqueza – entendida esta em sentido amplo –
é um dos instrumentos chave no empoderamento democrático do ser humano. A riqueza
exerce uma influência substancial nas relações horizontais entre os membros de uma
sociedade e vertical em relação ao Estado. Por isso, a forma de acesso e de exercício da
propriedade são primordiais como instrumento de concretização dos direitos
fundamentais.
Num sistema capitalista a empresa desempenha um importante papel econômico-
social ao convergir vários interesses individuais e coletivos: a remuneração do empresário
(lucro); a remuneração dos trabalhadores; o pagamento de tributos; o crescimento
econômico; o desenvolvimento de novas tecnologias etc. A Constituição de 1988 exige
que a empresarialidade seja fundada numa função social e na boa-fé objetiva, tendo por
finalidade: geração de um valor econômico agregado: serviço à comunidade;
desenvolvimento das pessoas que a integram e capacidade de continuidade (BOITTEUX,
2009)71.
A empresa, entendida como atividade econômica organizada, é o centro da
economia democratizada, tendo por base a governança corporativa, a produção e a
circulação de bens e serviços, beneficiando empresário, empregados, sociedade de
consumo, e por diretriz os princípios constitucionais (CE, art. 170, I a IX): soberania
nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa
do consumidor e do meio ambiente, redução de desigualdades regionais e sociais, busca
do pleno emprego, tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas
e sediadas no Brasil.
A empresa tem responsabilidade social e desempenha uma importante função
socioeconômica, sendo elemento de paz social e solidariedade constituindo um
instrumento de política social e de promoção da justiça social. Sua responsabilidade social

71
BOITTEUX, Fernando N. A função social da empresa e o novo Código Civil. Revista da Faculdade de Direito da FAAP, n. 2,
2009, págs. 92-101.
a impulsiona a propiciar, com sua atividade econômica, comunicação mais aberta com
seus colaboradores e com a coletividade, melhores condições sociais, garantindo sua
sobrevivência no mercado globalizado, por ser fator decisivo para seu crescimento, visto
que ganhará o respeito de seus colaboradores e consumidores e provocará sua inserção na
sociedade (DINIZ, 2016).72

Conclusão
O Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 rompeu de
vez a dicotomia do Estado Liberal que separa em campos opostos o direito público e o
direito privado. Com o intuito de cumprir as diretrizes da igualdade e justiça e da
construção de uma sociedade pluralista, a Constituição, por intermédio do instituto da
função social da propriedade, tutela interesses que ultrapassam o âmbito individual, tendo
o cuidado de não o extinguir.
A Constituição enuncia no art. 3º os objetivos fundamentais da República, dentre
os quais se encontra a construção de uma sociedade solidária (inc. I). A solidariedade ou
socialidade é um dos princípios basilares do Estado, e deve ser entendida, como um
elemento essencial de interpretação – interpretação conforme a Constituição, decorrente
do princípio da maior democracia social e econômica (CANOTILHO, 2003)73.
A Carta estabeleceu o paradigma da função social da propriedade como gênero no
art. 5º, XXIII, e como espécies, com o mesmo caráter de direito fundamental, a função
social da propriedade rural, a função social da propriedade urbana e a função social da
empresa e do contrato.

Função social da propriedade rural (CF, art. 186)

Função Social da Função social da propriedade urbana (CF, art.


Propriedade 182, e Estatuto das Cidades)
(CF, art. 5º, XXIII)

Função social da empresa e função social do


contrato (CF, art. 170, III, e Código Civil)

72
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo; Saraiva, Vol. 8, 2016. págs. 47- 51.
73
CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., pág. 341.
Em conformidade com a principiologia definida para a Ordem Econômica na
Constituição de 1988, a função social da empresa implica que a propriedade empresarial
deve atender aos princípios da liberdade, igualdade, dignidade, solidariedade,
democracia, da busca da reduz redução das desigualdades sociais, do cumpre os valores
ambientais.
A função social da empresa e do contrato, conforme previsto na Constituição e nas
normas infralegais é um encargo que condiciona a propriedade, a posse e as relações
contratuais. A livre iniciativa e o direito à propriedade são traços marcantes das
sociedades capitalistas. Porém, na ordem econômica ditada pelo art. 170 da Constituição
e pelo Código Civil (1.228, §1º), tanto a livre iniciativa como o direito de propriedade da
empresa são condicionados e devem ser exercidos em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais, sendo defeso ao proprietário a prática de atos com o
dolo de causar externalidades negativas para prejudicar outrem ou a comunidade onde
está radicado (Código Civil, art. 1.228, §2º). A livre iniciativa tem como função social a
de propiciar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Já a
função social da propriedade permite ao proprietário praticar qualquer ato que lhe traga
comodidade ou utilidade.
Na ordem econômica a função social da propriedade confunde-se com a função
social da iniciativa econômica ou a função social da empresa. Isso impõe limites,
negativos e positivos, ao controlador da empresa que não pode desenvolver sua atividade
econômica em afronta a utilidade social ou de modo a causar dano à segurança, à
liberdade e aos direitos humanos.
A função social da empresa também é regida por normas de direito público. Logo,
pode-se afirmar que a Constituição prevê uma ordem econômica regida pelo direito
privado e pelo público ou, em outras palavras, uma ordem pública econômica. Desta
maneira, por se tratar de matéria afeita também ao direito público, aplicam-se às
convenções celebradas o disposto no Código Civil, art. 2.035, parágrafo único, o qual
prevê que nenhuma avença prevalecerá se contrariar o preceito de ordem pública da
função social da propriedade.
A função social da empresa implica que os interesses constitucionalmente
protegidos não se concentrarem apenas na titularidade das empresas. Além do lucro do
empresário, a função social da empresa e do contrato exige que o exercício, o gozo e a
fruição do direito de propriedade observe a proteção jurídica dos interesses
metaindividuais, de toda a sociedade ou de parcela desta, potencialmente afetados pelo
modo com que se empregam os bens de produção. Assim, a empresa cumpre sua função
social ao gerar empregos e riqueza, pagar tributos, contribuir para o desenvolvimento
econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou do país, adotar
práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os
direitos dos consumidores (COELHO, 2012)74.
Da formulação do princípio inscrito no art. 170 da Constituição de 1988 e a partir
de sua densificação no Código Civil (arts. 421, 1.228, §§ 1º e 2º), depreende-se que a
função social da empresa e do contrato, sem afetar o fundo de direito em si, deve buscar
um compromisso, uma relação entre o interesse individual do proprietário e os interesses
das pessoas, naturais ou jurídicas, e as organizações públicas ou privadas, afetadas de
forma direta ou indireta, positiva ou negativamente, pelo exercício dos atributos da
propriedade.

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