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SIMPÓSIO
Dignidade da pessoa no desenrolar cultural
Hubert Lepargneur

No Cristianismo, a dignidade da pessoa humana tem raízes dogmáticas que o leitor conhece: o ser
humano foi criado por Deus à sua imagem e é destinado à partilha da divindade, mediante a
redenção efetuada pelo Verbo Encarnado. Neste contexto religioso o conceito de dignidade está
eminentemente atrelado ao conceito de pessoa, teologicamente elaborado por ocasião das dis-
cussões em torno do dogma da Trindade, nos primeiros séculos de nossa era; este artigo supõe isso
conhecido.

Hubert Lepargneur
Doutor pela Universidade de Paris;
Unitermos: dignidade, pessoa humana, cultura
teólogo moralista da Ordem
Camiliana; pesquisador do Núcleo
de Pesquisa em Bioética do Centro
Universitário São Camilo/SP

Dignidade entre os antigos gregos

Será a dignidade natural ao homem? Mas o que é natu-


ral? Na sua Política, Aristóteles justifica a escravidão pre-
cisamente por ser ela uma diferenciação natural. Na
Antiguidade, natural era a hierarquia dos seres, num
nível tal que a Idade Média preocupou-se em estabelecer
as hierarquias dos anjos e arcanjos, ao passo que nossa
“dignidade” pretende homogeneizar a essência dos seres
humanos. Em sua Metafísica, Aristóteles compara o uni-
verso dos corpos celestes e a família humana; os seres
sublunares (debaixo da lua, como nós) correspondem aos
Bioética 2004 - Vol. 12, nº 1

escravos e aos animais domésticos, ao passo que aos cor-


pos mais afastados é atribuída uma divina e incorruptí-
vel igualdade.

Ao integrar o campo moral, a dignidade sofre um “mais


ou menos”, conforme o ser em evolução se aproxima
mais ou menos de sua perfeição. Isto é claro na Ética a

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Nicômaco: cada ser tem uma função e seu ser. O universo estático e fechado da
desempenho o situa na escala do mais ou Antiguidade termina por explodir na con-
menos da dignidade que o filósofo chamava per- cepção de Jean-Jacques Rousseau, que va-
feição ou excelência. Cada homem, porém, tem loriza a fecundidade da liberdade humana.
sua função própria (sua vocação, diz-se no Houve uma revolução na antropologia, e por
vocabulário cristão), tornando mais delicadas as conseguinte na pedagogia, com novos rumos
comparações. de pesquisa. Perde-se certa referência cósmi-
ca, determinações para o agora e o sempre;
A natureza determina para cada ser sua finali- nasce um caminho que, passando pelas
dade, estruturando assim o dinamismo da ética Luzes, vai permear o mundo moderno, com
para a humanidade. Esta determinação variá- seu fundo de insubmissão. O centro do uni-
vel, decidida pela natureza, evoca o carisma de verso não é tanto o sistema estelar, isto é, as
nossa linguagem. A moral cristã consiste em leis imutáveis atribuídas ao cosmo, mas o ser
seguir o rumo do aperfeiçoamento da própria humano reputado autônomo, ainda que
natureza ou do carisma pessoal. Esta excelência geralmente subordinado a uma divindade que
corresponde à virtude no vocabulário ético, a se afastará mais sensivelmente da cultura, ou
respeito da qual Aristóteles escreve, em sua na cultura, apenas no século 20.
Ética, que “na ordem da excelência e do per-
feito, a virtude é um ápice” (1107 a5). O ser Aos poucos, o homem vai inventar seus fins,
virtuoso é aquele que utiliza corretamente sua não sem impacto sobre sua ética. Sua subje-
natureza para realizar obras valiosas no exercí- tividade vai crescendo a ponto de em nossa
cio de sua função, isto é, mediante seu carisma. época se maximizar na exaltação da emoção,
Obtém-se assim a perfeição pela qual a subje- declaradamente vencedora de antiga razão. Na
tividade individual coincide com a realização de realidade nem tanto, porque, acoplada a uma
sua missão. constante experimentação que verifica se suas
equações se revelam funcionais em nosso con-
Secularização da dignidade na texto real, é a razão criativa que suscita o pro-
sociedade moderna gresso tecnocientífico destinado a beneficiar a
todos; de modo que dois mundos se misturam
A antropologia de uma época depende das na atualidade, um mundo que ainda exige rigor
concepções cosmológicas da cultura ambi- no pensar e no agir e um mundo hedonista que
ente. A cosmologia antiga é fixista. Com a se diverte em infindáveis jogos carregados de
relativa superação do determinismo cósmico, grande emoção. A religiosidade subsiste, com-
da imutabilidade de seu ordenamento, reino partilhando um pouco dos dois mundos, para
da necessidade e, portanto, da fatalidade, jun- aqueles que a cultivam.
tamente com certa descrença a respeito dos
deuses, aparecem as idéias de democracia e de A tecnociência faz recuar as zonas tenebrosas
perfeitabilidade não apenas do agir mas do da natureza e do real em geral, que pareciam

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pertencer ao domínio do mistério sagrado. A transferência ao cosmo de antigas característi-
dessacralização começou pela natureza e cas da divindade. A celebrada universalidade
prossegue com a sociedade e o ser humano, da dignidade humana pouco condiz com cer-
com as restrições que conhecemos. As éticas tas doutrinas filosófico-religiosas de cunho
procuram âncoras de substituição, na época em oriental. O budismo entende celebrar e
que, após o enfraquecimento institucional das respeitar toda vida; com o péssimo karma que
crenças religiosas compartilhadas, a metafísica um malfeitor ganhou na presente existência,
não faz mais receita. O conceito de dignidade ele pode reencarnar como animal ao qual não
que serviu para fundar a ética, com as premis- atribuímos dignidade. Liderados por grupos
sas cristãs que temos lembrado, sobreviveu até islâmicos, árabes e outros orientais não escon-
certo ponto na ética secular, por falta de dem sua pouca adesão às Declarações ociden-
vocábulo de melhor aceitação, embora esvazia- tais de Direitos Humanos, fundamentadas
do de sua real fundamentação. Declarações dos sobre a dignidade da pessoa. O comunismo
Direitos do Homem e certas Constituições, marxista não promoveu a pessoa, mas o
como a brasileira de 1988, ainda mencionam a Partido, o grupo de dirigentes que encarnam o
dignidade humana, porque são herdeiras da cul- sentido da História, por saber onde deve ir a
tura da antiga Cristandade. Humanidade. Como conciliar com um remo-
to sentido da dignidade da pessoa as
Entretanto, o próprio conceito de dignidade numerosas facções terroristas que infestam a
está indiretamente posto em cheque de diver- história contemporânea? Mesmo profunda-
sas maneiras. Por isso, ainda vemos alguns mente erradas, as guerras anteriores preten-
autores, poucos, contestar que o humanismo diam, de certo modo, lutar para salvaguardar
seja ainda um conceito válido para nosso o que se entendia por pessoa civilizada.
tempo. A dignidade enfrenta algumas pergun-
tas que entendem a desafiar. Questionam o A cultura nasceu na submissão amedrontada
ponto de partida da dignidade na evolução do dos primeiros homens à Natureza, habitada
ser humano individual. No seguimento não por espíritos que vão fazer, aos poucos, as
apenas do australiano Peter Singer, catedráti- vezes de divindades. Emergindo dos politeís-
co de ética numa das principais universidades mos, os monoteísmos, ao situar no ápice da
norte-americanas, mas também de zelosas realidade um Deus único e criador, permiti-
associações anglo-saxônicas, fortifica-se a mi- ram uma valorização do ser humano que
litância para o reconhecimento de pretendidos achou sua expressão no termo de “dignidade”
direitos dos animais. Lembramos que o con- que estamos comentando. Na medida em que
ceito de dignidade, sobretudo com e após a história nos é conhecida, quase todas as cul-
Kant, está ligado ao conceito de consciência turas, a partir de certa época e até a época
ética e de responsabilidade pessoal. Mais forte moderna, foram ou são imbuídas de religiosi-
do que nunca, no âmbito de uma Nova Era dade. A separação das Igrejas e dos Estados,
ou não, revela-se a tradição de Espinoza da na época moderna, é apenas um aspecto ou

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uma decorrência da autonomia que as quias entre anjos e arcanjos, significando


sociedades civis, fortalecidas pelos progressos maior ou menor dignidade. Existe também um
tecnocientíficos, assumiram. Tratava-se mais ou menos no reconhecimento da dig-
então de permitir um pluralismo religioso nidade entre responsáveis da Igreja em razão
exigido pela tolerância democrática, a partir precisamente das hierarquias eclesiásticas,
da evidência de que todos os cidadãos não falando das sociais, porque a hierarquia defini-
comungavam mais na mesma fé. A tecno- tiva é da santidade que escapa a nossa mensu-
ciência não mais se justifica como descoberta ração. Aos graus de responsabilidade socioética
dos propósitos do Criador embutidos nas leis correspondem graus da dignidade social: quem
da natureza, mas como conquista de um mais recebeu, mais deve.
aperfeiçoamento norteado pelo voluntarismo
criativo da mente humana. Descobrimos leis Muito discutido em nossos dias é o Estatuto da
da natureza para tentar fazer coisas melhores Mulher. No Novo Testamento, Cristo não faz
de nosso ponto de vista. Ainda nesta ótica, na diferença entre homem e mulher, deixando de
bioética, alguns se perguntam sobre o devir lado, aqui, a questão da escolha dos apóstolos e
da dignidade do ser humano; o que significa suas eventuais decorrências quanto ao sacerdó-
respeitá-la, supondo que haja certo consenso cio da mulher. As cartas de São Paulo difun-
sobre seu conteúdo ou exigências? dem uma igualdade de dignidade entre batiza-
dos, “para ser um só corpo, judeus e gregos,
Comporta a dignidade um “mais ou escravos e livres” (I Cor 12, 13). “Aí não há
menos”? mais grego e judeu, circunciso e incircunciso,
bárbaro, cita, escravo, livre” (Col 3, 11); “não
Na teologia católica, a dignidade do ser homem nem mulher” (Gal 3, 28).
humano como pessoa é um absoluto que pouco
admite o “mais ou menos”. Não eliminamos Não é exatamente assim no judaísmo ortodoxo
totalmente certa gradação porque na disciplina de nossos dias. Estes judeus recitam ainda, a
penitenciária dos primeiros séculos cristãos a cada manhã, a oração: “Bendito sejas tu,
gravidade do abortamento, e portanto sua Eterno, nosso Deus, rei do universo que não
sanção, dependiam da idade do feto, o que me fizeste mulher”. Não é considerada uma
implica gradação na dignidade. honra para a mulher ser dispensada da obser-
vação dos 613 mandamentos (mitsvot). O
No Império Romano a dignitas é um conceito adultério é severamente sancionado por parte
social antes que religioso. Atribui-se à deter- da mulher casada, não do homem, casado ou
minada pessoa em razão de seus méritos, não. Os filhos adulterinos da mulher são
façanhas ou cargos eminentes de autoridade. mamzerim, isto é, ilegítimos que não integram
Existem, assim, graus na dignidade porque o a família; os filhos do marido com mulher não-
Império, como toda sociedade, era ou é hierar- casada são integrados. O homem tem a inicia-
quizado. A angelologia conhece várias hierar- tiva do divórcio; a mulher que sai sem obter o

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libelo outorgado pelo marido é agouna, não Conclusão
pode mais casar (existem hoje milhares de mu-
lheres com este título de agouna, “encadeada”) O processo da interiorização do conceito de
(P. Bebe, Isha. Dictionnaire des femmes e du dignidade é tão notável quanto o processo da
judaïsme). No mundo árabe e no mundo interiorização do conceito de liberdade. A
muçulmano, a situação inferior da mulher, de liberdade que conheceram os antigos gregos,
fato, é mais conhecida. pais da filosofia, era a liberdade cívica: havia
cidadãos e escravos. O conceito ético de liber-
As imagens da dignidade dade, fonte interior de dignidade e de respon-
sabilidade moral, tardou a se exprimir para
Em todas as culturas, a dignidade, com este passar do social à intimidade individual. O
nome ou um equivalente, está vinculada não mesmo fenômeno verificou-se com a dig-
apenas a prerrogativas - que não nos compete nidade: sua significação pagã é social,
aqui detalhar - mas também a um simbolismo refletindo estruturas hierárquicas na sociedade.
de respeitabilidade, como é patente com a Ao valorizar o ser humano, o judeu-cristianis-
autoridade, sua irmã. Tais símbolos expressam mo ajudou a interiorizar o conceito de dig-
valores que alimentam a confiança e ajudam a nidade, juntamente com o conceito de pessoa,
manter uma paz frequentemente desafiada em ao qual ele costuma ser unido em nossos dias.
nossos dias. Homens e mulheres precisam de Direitos do indivíduo humano como pessoa
ritos, mesmo se espíritos muito críticos os são virtualmente universais para a
acham supérfluos; na realidade, poucos ateus os humanidade, mas tal conceito não existiu na
dispensam totalmente. Antiguidade que elaborou primeiro o conceito
de cidadão, após as fases tribais. Este virtual
Assim, apenas para sugerir uma ilustração, nas alcance universal da dignidade da pessoa
igrejas dos bairros burgueses de muitos países humana sustenta ainda a idéia do universalis-
católicos podíamos observar durante as cerimô- mo dos “Direitos Humanos”, cujas
nias litúrgicas os augustos passos de uma espé- Declarações sucessivas no Ocidente refletem o
cie de bedel, eventualmente chamado suíço, avanço de fundamentos comuns para uma
qualquer que seja sua origem. Era um homem ética universal. O paralelismo é incontestável,
alto e forte, de bigode, revestido com um uni- mas muito se espera ainda.
forme de antiga guarda da Casa Imperial e que,
com um báculo dourado na mão, andava a pas- Num balanço atualizado, o conceito de dig-
sos contados nos corredores do santuário. Após nidade comporta uma tripla dimensão que
alguns passos, deixava seu báculo bater ruidosa- emergiu na história e apareceu nestas notas.
mente contra o pavimento. Ainda que com Mantém-se uma dimensão social que a própria
fundo de música sacra, tal ruído ressoava no Igreja conhece, tendo uma hierarquia interna:
silêncio sem alterar a dignidade desta cena hierarquia de funções dificilmente vela hierar-
patriarcal. quia de dignidade social. A progressão cultural

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da interiorização da consciência, o desenvolvi- judia Ida Grinspan veio a contar sua depor-
mento psicossocial da consciência do eu, faz tação da França, em 1944, para Auschwitz,
com que a dignidade comporte uma dimensão aos 14 anos, tatuada com a matrícula 75360
de auto-estima; esta reclama comportar uma no braço: ilustra a força que pode gerar a auto-
consciência correspondente dos deveres vincu- consciência responsável da dignidade (J'ai pas
lados ao poder e ao suposto respeito recebido. pleuré, livro de 2002). Como resistiu à fome,
Enfim, a dignidade adquire na doutrina social ao frio, ao aviltamento, às vexações impostas
cristã uma eminente dimensão ontológica, pelos nazistas? Ida responde: “Guardar a dig-
explicitada na ética que proíbe todo aborto. A nidade a qualquer preço”.

RESUMEN

Dignidad de la persona en el desvendar cultural

En el Cristianismo, la dignidad de la persona humana tiene raíces dogmáticas conocidas: el ser


humano fue creado por Dios a su imagen y está destinado a compartir la divinidad, mediante la
redención efectuada por el Verbo Encarnado. Bajo este contexto religioso el concepto de dignidad
está eminentemente ligado al concepto de persona, teológicamente elaborado por ocasión de las
discusiones en torno del dogma de la Trinidad, en los primeros siglos de nuestra era; este artículo
supone esto conocido.

Unitérminos: dignidad, persona humana, cultura

ABSTRACT

Individual dignity in cultural unraveling

In Christianity, the human person's dignity has dogmatic roots the reader is aware of: God created
human beings in His image and they are destined to share divinity, through redemption brought by
the Incarnated Verb. In this religious context, the concept of dignity is eminently linked to the con-
cept of the individual, elaborated theologically in the discussions regarding the dogma of the Trinity
that occurred in the first centuries of our era; this article presupposes this is known.

Uniterms: dignity, human person, culture

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