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Revista Brasileira de
ISSN 1517-5545 Terapia Comportamental
2003, Vol. V, nº 2, 151-165 e Cognitiva

1
Análise Funcional: Definição e Aplicação na Terapia Analítico-Comportamental .
Functional Analysis: Definition and Application in Behavior-Analytic Therapy.

2
Simone Neno
Universidade Federal do Pará

Resumo

O artigo revisa alguns usos do conceito de análise funcional na análise do comportamento e na


terapia comportamental, enfatizando suas relações com o modelo causal de seleção por
conseqüências. Em seguida, propõe que uma aplicação clínica da análise funcional consistente com
o sistema explicativo analítico-comportamental estaria apoiada em: a) selecionismo como modelo
causal e funcionalismo como princípio de análise; b) externalismo como recorte de análise; c)
complexidade, variabilidade, e caráter idiossincrático das relações comportamentais; d) critério
pragmático na definição do nível de intervenção; e) distinção entre alcance da avaliação e alcance
da intervenção.

Palavras-chave: análise funcional; análise do comportamento; terapia comportamental; terapia


analítico-comportamental.

Abstract

This paper reviews some uses of the concept of functional analysis in behavior analysis and
behavior therapy, emphasizing its relation to the causal mode of selection by consequences. It
proposes that a clinical application of functional analysis consistent with the behavior-analytic
explanatory system would be based on: a) selectionism as a causal model and functionalism as the
principle for analysis; b) externalism as analytical orientation; c) the complexity, variability, and
idiosyncrasy of behavioral relations; d) the pragmatic criteria for defining the intervention level; e)
the distinction between assessment scope and intervention scope.

Key words: functional analysis; behavior analysis; behavior therapy; behavior-analytic therapy.

1
Este artigo reproduz parte da Dissertação de Mestrado apresentada pela autora ao Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa
do Comportamento, Universidade Federal do Pará (Brasil), sob orientação do Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho
2
Endereço para correspondência: Rua Aristides Lobo, 884, Apto.100. Reduto. 66.053-020, Belém, Pará, Brasil. E-mail:
sneno@amazon.com.br
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Simone Neno

A análise funcional tem sido mencionada como Análise Funcional e Behaviorismo Radical
o tipo de recurso explicativo de que se serve a
análise do comportamento (e.g. Skinner, A análise de relações funcionais representa
1953/1965) e também como estratégia (e.g., um modelo de interpretação e investigação
dos fenômenos naturais que estará presente
Owens & Ashcroft, 1982), ou método (e.g.,
no projeto skinneriano de constituição da
Hayes & Follette, 1992; Samson & McDonnell,
psicologia como ciência do comportamento.
1990) de intervenção em terapias compor-
Originalmente, o conceito foi empregado por
tamentais. Enquanto recurso explicativo, seu
Skinner com o sentido atribuído pelo físico
alcance pode não ser tão consensual, uma vez
Ernst Mach (1838-1916): identificação de
considerados aspectos diversos da
relações ordenadas entre eventos da natureza.
interpretação analítica-comportamental para
Na proposição do reflexo como unidade
as relações organismo-ambiente (cf.
básica de análise de uma ciência compor-
Micheletto, 2000). A ausência de consenso tamental, descrição e explicação científicas
sobre o que significa a análise funcional foram interpretadas como coincidindo com a
aparece de modo mais evidente na literatura especificação de relações ordenadas entre
de aplicação clínica, onde uma diversidade de (classes de) estímulos e respostas, portanto
definições para o termo tem sido referida (eg. requerendo a análise funcional (cf. Skinner,
Haynes & O'Brien, 1990) e a necessidade de 1931/1961a) i.
estudos conceituais a respeito sugerida (cf. A análise funcional promove a identificação
Sturmey, 1996). O presente trabalho tem como de relações de dependência entre eventos, ou
objetivos: (a) examinar o conceito de análise de “regularidades na relação entre variáveis
funcional no behaviorismo radical dependentes e independentes” (Chiesa, 1994,
skinneriano, assinalando alguns aspectos p.133), mas com respeito às quais o uso dos
controversos ou não inteiramente conceitos de causa e efeito não seria mais
equacionados nesse domínio; (b) revisar apropriado, uma vez que implicaria
algumas interpretações sobre o que significa suposições (metafísicas) além do alcance de
ii
empregar a análise funcional na terapia uma ciência (cf. Skinner, 1953/1965) .
comportamental; e (c) sugerir alguns aspectos A descrição de relações ordenadas entre
definidores de uma aplicação clínica da eventos encontra um modo de expressão na
análise funcional que esteja em acordo com o matemática. O reflexo, por exemplo, pode ser
sistema explicativo analítico-comporta- expresso pela equação “R = f (S)”, onde “R” é a
mental. resposta e “S” o estímulo (cf. Skinner,
1931/1961a). A relação especificada por
aquela equação é uma relação “funcional” no
sentido de que o primeiro termo (a resposta) é
i
Moore (1984) aponta que no livro Verbal Behavior, Skinner trata descrição e explicação como empreendimentos contínuos e não
isomórficos. A descrição envolveria a especificação topográfica e a explicação corresponderia à indicação das variáveis das quais o
comportamento sob análise é função. Pode-se dizer, no entanto, que ao identificar descrição com explicação (e.g. Skinner, 1931/1961a) a
preocupação de Skinner estaria em ressaltar que uma descrição “completa” do comportamento requer a indicação de relações
funcionais; de outro lado, a limitação da explicação àquelas descrições representaria a interdição de recursos explicativos que apelam a
eventos localizados num plano diferenciado daquele das relações ambiente-comportamento. Assim, a proposição de que descrição e
explicação são, para Skinner, esforços contínuos, está correta tanto quanto se observe que descrições topográficas são descrições parciais
do fenômeno comportamental e explicações comportamentais são aquelas que permanecem no nível das relações organismo-ambiente.
iiSkinner (1953/1965) falará destas implicações afirmando: “Os termos 'causa' e 'efeito' não são mais amplamente usados na ciência. Eles

têm sido associados a tantas teorias da estrutura e da operação do universo que podem significar mais do que os cientistas querem dizer.
Os termos que os substituem referem-se, porém, ao mesmo núcleo fatual. Uma 'causa' torna-se uma 'mudança numa variável
independente' e um efeito, 'uma mudança em uma variável dependente'. A antiga conexão causa-efeito torna-se uma 'relação funcional'.
Os novos termos não sugerem como uma causa produz seu efeito; eles meramente afirmam que eventos diferentes tendem a ocorrer
juntos em uma certa ordem. Isso é importante, mas não é crucial. Não há nenhum perigo particular no uso de 'causa' e 'efeito' em uma
discussão informal, se estivermos sempre prontos a substituí-los por suas contrapartidas mais exatas” (Skinner, 1953/1965, p.23).
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Análise Funcional: Definição e Aplicação na Terapia Analítico-Comportamental.

será encontrada na avaliação das


abordado enquanto função do (causado pelo)
contingências de reforçamento
segundo termo da equação (o estímulo). A predominantes. Uma contingência
noção de causação aqui implicada é do tipo especifica a interrelação entre uma
mecânica e será abandonada por Skinner à condição antecedente, uma resposta e
uma conseqüência alcançada pela
medida que o modelo de seleção por
resposta. A relação funcional que existe é
conseqüências vai sendo admitido como a relação entre a resposta e sua
modelo causal apropriado para a interpre- conseqüência, indicada pela condição
tação do fenômeno comportamental (cf. antecedente; juntas [as condições
antecedentes e conseqüentes] constituem
Micheletto, 1995).
a variável independente e a resposta em
Com o advento do modelo de seleção por questão, a variável dependente. A
conseqüências, a análise funcional estará variável dependente é tipicamente
associada a uma noção selecionista, não tratada em termos de probabilidade da
mecanicista, de causalidade. No lugar da taxa de resposta. Diz-se que o controle é
exercido sobre a probabilidade de
busca por um agente originador do resposta pelo conjunto de interrelações
comportamento, a análise estará voltada para chamado contingência (Moore, 1984,
o reconhecimento da múltipla e complexa p.87).
rede de determinações de instâncias de O funcionalismo analítico-comportamental,
comportamento, representada pela ação em seja em sua elaboração mecanicista, seja na
diferentes níveis (filogênese, ontogênese e versão selecionista, representará um
cultura) das conseqüências do compor- afastamento frente a abordagens de
tamento sobre a probabilidade de respostas orientação estruturalista na psicologia.
futuras da mesma classe. O princípio Originalmente, o estruturalismo havia se
selecionista apresenta-se como um princípio manifestado na psicologia do século XIX com
explicativo derivado da investi-gação do um viés mentalista, a exemplo do projeto
comportamento operante. Como apontado científico de Wundt. Mas também no interior
por Chiesa (1992) a “seleção como modelo de abordagens comportamentais, o
causal não é uma suposição; ela é estruturalismo pode se sugerir, quando a
empiricamente validada em experimentos de análise tem como foco a especificação
condicionamento operante, que demonstram topográfica do comportamento, em detri-
a modelagem e manutenção de compor- mento das relações funcionais entre
tamentos complexos por contingências organismo e ambiente. O recorte analítico-
complexas” (p.1291). comportamental, ao contrário, sugerirá que a
Com o advento do conceito de operante, a especificação topográfica não deve ir além do
adesão a um modelo causal selecionista que permite apreender as relações ordenadas
representará, ainda, uma reelaboração do entre ambiente e comportamento (cf. Skinner,
funcionalismo skinneriano. A análise deve 1935/1961b).
agora se voltar para as “funções” das Na ciência skinneriana, a busca de relações
respostas e para os modos através dos quais as funcionais estará sempre associada ao
mudanças por elas produzidas afetam a reconhecimento da multideterminação do
probabilidade de comportamento futuro. A fenômeno comportamental e à seleção de um
análise funcional requerida passa a ser aquela recorte específico como domínio da análise do
que identifica relações de tríplice contingência comportamento o das relações do organismo
responsáveis pela aquisição e manutenção de como um todo com eventos do ambiente a sua
repertórios comportamentais. volta.
No sistema skinneriano, uma explicação Os analistas do comportamento
da categoria de comportamento mais procuram relações causais na interação
importante, o comportamento operante, entre comportamento (a pessoa ou outro
organismo) e aspectos de seu ambiente.
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Esta ênfase não nega contribuições de dos diferentes níveis de variação e seleção
aspectos genéticos, biológicos, estende-se para além dos repertórios
bioquímicos, neurológicos e outros do
organismo. Ela simplesmente identifica comportamentais, alcançando também as
os tipos de relações causais buscadas pela próprias condições orgânicas e os eventos
ciência comportamental skinneriana; ela privados de cada um.
é a direção na qual os analistas do Micheletto (2000) sugere que com o conceito
comportamento procuram as relações
de operante e com o modelo de seleção por
que explicam seu objeto de estudos
(Chiesa, 1994, pp.114-115). conseqüências torna-se discutível se uma
A complexidade do fenômeno comporta- análise funcional pode/deve ater-se à
mental adquire amplo reconhecimento à identificação das variáveis atuais às quais o
medida que o comportamento humano torna- comportamento está funcionalmente
iii relacionado. Na medida em que o fenômeno
se o objeto central da análise skinneriana . É
sobre o homem que operam os três conjuntos comportamental passa a ser abordado não
de variáveis ambientais (filogenéticas, apenas do ponto de vista da relação presente
ontogenéticas e culturais), conjugando entre variáveis, mas, também, do modo como
determinações de modos únicos e gerando tais relações são produzidas e/ou mantidas,
uma variada gama de repertórios uma outra perspectiva de análise se instaura.
comportamentais. Micheletto (1995) aponta Micheletto (2000) deriva das afirmações de
que: Skinner sobre o assunto duas possibilidades: a
A variabilidade, ao nível humano, está primeira, de supor “que as conseqüências
associada a determinações múltiplas - a passadas não participam das relações
multiplicidade e variabilidade presentes funcionais. Sendo assim, o que eu posso falar
em cada nível de determinação se
potencializam ao se conjugarem os vários do comportamento não incorpora suas
níveis, tornando pouco prováveis características significativas” (p.120). A
semelhanças nas condições de segunda possibilidade é colocada nos
determinação do comportamento. Estas seguintes termos:
determinações se inter-relacionam, podemos (...) supor que as conseqüências
agindo juntas ou às vezes de forma passadas participam da análise funcional,
conflitante e produzindo também efeitos o que implicaria mudanças na noção de
múltiplos (Micheleto, 1995, p.167). relação funcional. Falta responder como
A variabilidade pode também ser abordada incorporar outras variáveis. Consi-
com os conceitos correspondentes aos derando uma diversidade de sentidos
produtos daqueles conjuntos de variáveis que que se pode atribuir a variáveis
ambientais - ambiente externo, ambiente
afetam o indivíduo: a filogênese produz o
interno, ambiente imediato, ambiente
organismo, a ontogênese produz a pessoa (ou relacionado à história passada, ambiente
iv
as pessoas, muitas vezes sob a mesma pele ) e genético, ambiente cultural ou social que
a cultura produz o self (conjunto de estados variáveis deveriam estar envolvidas na
internos observados) (cf. Skinner, 1989). Desse função? Como considerar na função
variáveis de complexidade tão diversa e
modo, o caráter idiossincrático do que resulta
iii
Micheletto (1995) sugere que tanto o interesse de Skinner pelo comportamento humano aumenta com o desenvolvimento de sua obra,
quanto o reconhecimento da complexidade do fenômeno comportamental assume maior dimensão com a elaboração do modelo de
seleção por conseqüências. Diz ela: “O foco do interesse no fazer do organismo se mantém, mas adquire um novo sentido e toma amplas
dimensões no decorrer [da] obra [de Skinner]; na fase final de sua obra seu interesse dirige-se principalmente para o fazer humano. Há
uma ampliação de seu objeto de estudo, ou seja, seu objeto abarca o comportamento humano em toda a sua complexidade” (p.154);
“Durante toda a sua obra, Skinner trabalha com o comportamento como objeto de estudo, mas a abrangência do que pode ser entendido
como comportamento se estende no desenvolvimento de sua ciência (...) Skinner mantém a suposição, do primeiro momento de sua
obra, de que o comportamento é determinado, mas apresenta uma noção de determinação muito ampliada. As determinações se tornam
múltiplas e variáveis na medida em que uma nova noção de determinação se desenvolve” (p.160).
iv
Diz Skinner (1989): “As contingências de reforçamento operante ... dão origem a repertórios chamados pessoas. Diferentes
contingências produzem diferentes pessoas, possivelmente sob a mesma pele, como mostram os exemplos clássicos de múltiplas
personalidades” (Skinner, 1989a, p.28).

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Análise Funcional: Definição e Aplicação na Terapia Analítico-Comportamental.

pertencentes a dimensões temporais tão abordagens comportamentais, pouca atenção


distintas? Seria possível manter a noção tem sido dada à discussão de aspectos teóricos
de função matemática? (Micheletto, 2000,
p.120). e ao estudo conceitual do termo “análise
No mínimo, a discussão levantada por funcional” (Sturmey, 1996). Assim, diferentes
Micheletto (2000) significa que a análise termos têm sido empregados como
funcional requerida para a compreensão do equivalentes em sua definição: a) “análise do
fenômeno comportamental muda com a comportamento”, b) “análise comporta-
transição de uma causalidade mecânica para mental funcional”, c) “avaliação comporta-
uma causalidade selecionista. A mudança mental” e d) “elaboração comportamental de
ocorre, entre outras coisas, para dar conta da caso” (cf. Haynes e O'Brien, 1990, p.654). Ao
complexidade dos processos de determinação lado disso, observa-se o uso de um mesmo
do comportamento e do caráter idiossin- termo genérico com diferentes conotações (cf.
crático de seus produtos. Trata-se, neste caso, Haynes e O'Brien, 1990; Sturmey, 1996). Isso
ou de reformar o conceito de “análise tem expressado um
desacordo sobre a definição de análise
funcional” para abarcar a rede de
funcional, seus supostos subjacentes, seus
determinações que se supõe pertinentes a métodos de derivação, seus componentes
instâncias comportamentais, ou de notar que a relevantes e seu domínio de utilidade.
análise funcional concebida como a simples Estas inconsistências impedem a
indicação de relações entre variáveis não dá comunicação entre analistas do
comportamento sobre as características
conta dos processos que precisam ser da análise funcional e seu papel na terapia
considerados na avaliação e intervenção comportamental (Haynes e O'Brien, 1990,
comportamental. Segundo Micheletto (2000), p.654).
“parece que em lugar de reiterarmos a noção A existência de diferentes conotações para o
de relação funcional, como uma noção termo “análise funcional”, ou diferentes
esclarecida, precisamos no mínimo elucidá-la interpretações do que seria uma intervenção
ou, mais provavelmente, reformulá-la” clínica baseada na análise funcional, espelha
(p.121). uma diversidade de entendimentos do que
tem sido apresentado como característica
1.2 Análise Funcional e Terapia Comporta- central da intervenção em terapia compor-
mental tamental. As soluções para tal diversidade
elaboradas por alguns autores são também
Na terapia comportamental, a análise diferenciadas e ilustram a dificuldade
funcional tem sido apontada como um corrente na área. Alguns trabalhos sobre o
fundamento para a avaliação clínica (e.g. tema são discutidos a seguir, com o intuito de
Sturmey, 1996) e identificada como o caminho explicitar algumas das divergências e os
mais efetivo para o planejamento da aspectos com respeito aos quais parece ser
intervenção (e.g. Carr, 1994; Ferster, 1973; possível traçar algum consenso.
Haynes e O'Brien, 1990; Samson e McDonnell, Owens e Ashcroft (1982) apontam que a
1990). A ênfase na busca de relações ampla adoção da análise funcional na
funcionais é interpretada por Haynes e psicologia clínica tem como precursores usos
O'Brien (1990) como resultado tanto da diferenciados na matemática/física e nas
rejeição às abordagens estruturalistas para o ciências sociais/biológicas. Na matemática e
estudo dos problemas de comportamento, na física, o uso da análise funcional
como da reação ao modelo “causal” e às corresponde à “especificação das variáveis às
questões metafísicas que dele se originam. quais um fenômeno está relacionado” (p.181),
Embora ocupe lugar de destaque nas sem referência a causalidade. Nas ciências

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sociais e biológicas, a indicação das variáveis funcionais alternativas para casos clínicos é
relacionadas envolve a explicação das funções infinita e mesmo o número de análises
de um fenômeno, ou “a forma da relação entre funcionais precisas (efetivas) para um caso
as variáveis especificadas” (p.182), o que particular é provavelmente muito grande”
conduz a uma indicação de causalidade. A (p.373). Hawkins faz os comentários acima no
psicologia conjugaria as duas perspectivas, na contexto de uma discussão sobre a validade,
medida em que se ocupa “tanto dos para os analistas do comportamento, de
sistemas nomotéticos de classificação e
determinantes do comportamento, quanto da
diagnóstico, particularmente o DSM (Manual
forma das relações entre tais determinantes e
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
o comportamento” (p.182).
Mentais APA, 1994), naquela ocasião em sua
Limitado à identificação de variáveis
terceira edição. O debate sobre a compa-
relacionadas ao fenômeno comportamental e
tibilidade de uma perspectiva funcional na
ao modo como essas relações se dão, o uso
avaliação e intervenção clínicas com sistemas
psicológico da análise funcional não
nomotéticos de classificação e diagnóstico
constituiria uma teoria, mas apenas “uma
será abordado adiante neste trabalho. Do
estratégia para a resolução de problemas”
ponto de vista da análise de Hawkins, o autor
(Owens e Ashcroft, 1982, p.188). Também não
apresenta argumentos contrários a uma tal
estaria comprometido com nenhuma
v compatibilidade, mas também indica a
“perspectiva teórica particular” (p.188),
existência de trabalhos favoráveis ao uso do
embora implique a adesão ao “paradigma
DSM por terapeutas comportamentais.
ABC”, a “investigação do comportamento (B),
Uma revisão mais sistemática dos usos da
seus antecedentes (A) e suas conseqüências
análise funcional na terapia comportamental é
(C)” (p.188).
apresentada por Haynes e O'Brien (1990). Os
Owens e Ashcroft (1982) também salientam
autores identificam, na literatura da terapia
que, enquanto estratégia, a análise funcional
comportamental, 11 definições diversas para a
aplica-se tanto a clientes individuais quanto
análise funcional: a) “uma especificação de
institucionais. No entanto, especificamente
comportamentos alvo” (p.653); b)
abordando seu uso clínico na avaliação e
“demonstrações de 'controle' através da
intervenção com clientes individuais,
manipulação de variáveis controladoras
ressaltam o caráter idiossincrático de seus
(causais) hipotetizadas (p.653); c)
produtos. “Na prática, é claro, é normal que a
“especificação de fatores controladores para
análise funcional seja altamente complexa e,
uma classe de problemas de comportamento,
como decorrência, específica àquele
em vez de para um caso individual” (p.654); d)
indivíduo” (p.183).
“identificação de fatores situacionais (setting
Hawkins (1986) também destaca o caráter
factors )” (p.654); e) “relações estímulo-
idiográfico da intervenção baseada na análise
resposta ou resposta-resposta” (p.654); f)
funcional. Diz ele que “as funções que se
“fatores motivacionais e de desenvol-
descobrirão em um caso individual serão
vimento” (p.654); g) “identificação de relações
únicas, individuais, ou idiográficas” (p.371).
funcionais potenciais, alternativas àquelas em
De forma semelhante, no interior de um
operação para um cliente” (p.654); h)
mesmo caso, dada a complexidade das redes
“previsões sobre o comportamento de um
de determinação de instâncias de
cliente” (p.654); i) “especificação de
comportamento, a pluralidade de análises
componentes da resposta” (p.654); j)
funcionais é possível. “O número de análises

v
Segundo Owens e Ashcroft (1982) a observação freudiana de que a “agorafobia pode servir à função de evitar situações que produzem
ansiedade pode claramente ser vista como constituindo uma análise funcional” (p.184), tanto quanto a análise comportamental de
Fester para a depressão.
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Análise Funcional: Definição e Aplicação na Terapia Analítico-Comportamental.

A análise funcional clássica é


“integração global conceitual de problemas de
essencialmente a arte de analisar um caso
comportamento, variáveis causais e individual em termos de contingências
mediacionais, recursos, e assim por diante” funcionais. Não há nenhuma regra clara
(p.654). Adicionalmente, afirmam que a de como isso deveria ser feito (...)
nenhuma evidência sobre a melhor
análise funcional ora é definida como
maneira de fazê-lo. Como todas as artes,
processo, ora como produto. ela é aprendida e passada adiante de
Haynes e O'Brien (1990) apontam dois forma direta e o 'melhor' método de
fundamentos epistemológicos da análise realizá-la é uma questão de convenção
social (Hayes e Follette, 1992, p.361).
funcional, em sua apropriação pela terapia
comportamental: a rejeição do estruturalismo A “análise funcional clássica”, que estaria
e a evitação de questões metafísicas. Na distante de representar uma aplicação
definição proposta por Haynes e O'Brien, a científica do conceito cientificamente
análise funcional é “a identificação de relações derivado, é descrita por Hayes e Follette
funcionais importantes, controláveis e (1992) como uma metodologia de "avaliar-
causais, aplicável a um conjunto especificado formular-intervir-avaliar", constituída dos
de comportamentos alvo para um cliente seguintes passos: 1) “identificar caracte-
individual”.(p.654). Entretanto, nos limites da rísticas potencialmente relevantes do cliente
proposição dos autores, “apenas algumas individual, seu comportamento e o contexto
variáveis funcionalmente relacionadas a um no qual ocorre, através de uma avaliação
comportamento alvo serão causais, ampla” (p.349); 2) “organizar a informação
controláveis e importantes” (p.654). Assim, coletada no passo 1 em uma análise
“uma análise funcional (...) nem sempre preliminar das dificuldades do cliente em
'explica' o comportamento, no sentido de termos de princípios comportamentais, de
identificar todas as variáveis causais modo a identificar relações causais
importantes (...) ela identifica variáveis importantes que poderiam ser mudadas”
causais importantes, que podem ser (p.350); 3) “juntar informação adicional com
manipuladas, ou [colocadas] sob controle do base no passo 2 e finalizar a análise
cliente ou do analista do comportamento” conceitual” (p.350); 4) “planejar uma
(p.655). Também para Haynes e O'Brien, “as intervenção com base no passo 3” (p.350); 5)
análises funcionais são idiográficas (abordam “implementar o tratamento e avaliar a
relações causais para problemas de mudança” (p.350); e 6) “se o resultado não for
comportamento de clientes individuais), e não aceitável, retornar aos passos 2 e 3” (p.350).
nomotéticas (abordam relações causais para Hayes e Follette (1992) entendem a definição
um problema de comportamento de vários proposta por Haynes e O'Brien (1990),
clientes)” (p.656). segundo a qual a análise funcional consiste da
De acordo com Hayes e Follette (1992), a “identificação de relações funcionais
ausência de consenso sobre os usos clínicos da importantes, controláveis e causais, aplicável
análise funcional é o modo como repercute na a um conjunto especificado de comporta-
prática de terapeutas comportamentais o não mentos alvo para um cliente individual”
desenvolvimento de metodologias que (p.654) como um apelo à utilidade da análise
representem uma aplicação consistente da conduzida, para a tomada de decisões com
análise funcional no contexto clínico. A respeito ao tratamento. No entanto, Hayes e
metodologia atualmente disponível é Follette (1992) apontam que a utilidade da
designada de “análise funcional clássica” e análise funcional não pode ser apenas
descrita como “altamente abstrata” (p.351), na “assumida”. “Mesmo que um cliente melhore,
medida em que não explicita claramente os como saberemos se ele teria melhorado mais
passos de uma intervenção nela baseada. se o tratamento tivesse sido guiado por uma

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análise alternativa?” (p.355). Na interpretação comportamento e a possibilidade da


dos autores, então, a análise funcional clássica variabilidade dos procedimentos na
não se desenvolveu positivamente na clínica intervenção clínica, Hayes e Folette (1992)
pela ausência de regras que a tornem insistem em que uma sistematização da
replicável em diferentes contextos análise funcional poderia ser buscada a partir
terapêuticos. Em outras palavras, o princípio de duas alternativas: a) especificação de
da análise funcional teria fracassado na tarefa métodos analíticos e b) especificação de
resultados analíticos. Na primeira hipótese, a
de prover metodologias a serem empregadas
conduta do analista seria guiada por um
indiscriminadamente no contexto clínico.
sistema de regras coerente com o sentido da
Neste sentido, uma sistematização da análise
análise funcional clássica, possibilitando, em
funcional deveria prover: a) “um guia para a
tese, a replicação do procedimento. Na
coleção de informação para avaliação”; b)
segunda alternativa, Hayes e Follette (1992)
“uma linguagem para comunicação em
sugerem o desenvolvimento de sistemas de
relação aos casos”; c) “um guia para o uso dos
classificação e diagnóstico funcionalmente
princípios comportamentais”; d) “decisões de
orientados, os quais deveriam ser
tratamento” e e) “a base para testar a confrontados e avaliados com base em sua
adequação da própria análise funcional” (p. utilidade para o tratamento. Mais exatamente,
355). a solução vem no sentido de converter a
Mas a alegação (de Hayes e Follette, 1992) de análise funcional em um procedimento que
fracasso da análise funcional como geradora seja replicável e capaz de prover a análise
de metodologias para a clínica “talvez aplicada do comportamento de um recurso
recomende um passo anterior, que favoreça a classificatório que possa fazer frente às
discussão da real possibilidade de emergência demandas dirigidas ao Manual Diagnóstico e
de tais metodologias, uma vez que a expressão Estatístico de Transtornos Mentais, DSM IV. O
'contexto clínico' pode estar encobrindo uma confronto promovido por Hayes e Follette
diversidade de situações de intervenção” (1992) entre o DSM e a perspectiva funcional
(Cavalcante & Tourinho,1999, p.145). A de análise, classificação e diagnóstico situa-se
padronização precisa dos procedimentos no terreno de uma problematização que tem
clínicos também é contestada por Owens e como referência o critério contextualista de
Ashcroft (1982). Como mencionado acima, verdade. No pensamento contextualista, a
estes autores enfatizam o caráter utilidade de uma explicação é aceita na
idiossincrático dos produtos da avaliação e medida em que favorece uma ação efetiva
intervenção e discordam da possibilidade de (Pepper, 1942/1970). Entretanto, torna-se
generalizações amplas a esse respeito, a necessário demarcar, precisamente, o critério
mesma tese defendida por Hawkins (1986), de instrumentalidade que estaria orientando a
que aponta a possibilidade de análises construção de sistemas alternativos de
funcionais múltiplas para um mesmo caso. Na classificação fundamentados nos princípios
mesma direção, Samson e McDonnell (1990) analítico-comportamentais (cf. Tourinho &
argumentam que a análise funcional Neno, 2003).
psicológica será sempre particular em função Samson e McDonnell (1990) também
da diversidade de funções dos comporta- enfatizam a ausência de um consenso sobre o
mentos humanos. Desse modo, pode ser que significa análise funcional no contexto
incorreto pressupor que intervenções clínico e apontam, assim como Owens e
padronizadas podem vir a ser efetivas quando Ashcroft (1982), a existência de pelo menos
aplicadas a problemas que apresentem dois usos diversos do termo “função”: um na
alguma similaridade. matemática, outro nas ciências biológicas e
Embora admitam a determinação múltipla do
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sociais. Na primeira, o termo função remete à fenômenos psicológicos (medo, ansiedade,


especificação de quais variáveis estão por exemplo) são vistos como multidimen-
relacionadas; nas segundas, a como essas sionais, envolvendo componentes comporta-
variáveis se relacionam. O uso “psicológico” mentais, cognitivos e fisiológicos. A referência
da análise funcional combinaria os dois usos, a inobserváveis, sob a forma de construtos
ocupando-se dos “determinantes do hipotéticos, “é essencial para aumentar a força
fenômeno e das relações entre esses explanatória de uma Análise Funcional”
(p.261), como também para facilitar “a
determinantes e o fenômeno” (Samson e
geração de um grande número de hipóteses,
McDonnell, 1990, p.260).
algumas das quais merecedoras de exame
A diversidade de funções dos comporta-
empírico” (262).
mentos humanos, segundo Samson e
Jones e Owens (1992) comentam a
McDonnell (1990) confere a instâncias da
interpretação de Samson e McDonnell (1990)
análise funcional psicológica um caráter
para a análise funcional recomendando
particular e limitado:
Uma análise funcional pode ser altamente cuidado com a referência a “variáveis que
complexa e, como decorrência, específica existem apenas num nível teórico” (p.37). Tais
ao indivíduo. É improvável que sejam referências são admissíveis apenas se “nos
exatamente as mesmas as intervenções ajudam a prever e controlar (...) eventos
que as análises funcionais podem
recomendar para dois problemas que
externos” (p.38). McDonnell e Samson (1992)
pareçam ser similares. Quaisquer observam que as ponderações de Jones e
similaridades entre as intervenções Owens não explicitam uma posição com
estarão relacionadas à similaridade das respeito à definição de análise funcional
funções a que os problemas servem. Isso
proposta por Samson e McDonnell.
significa que não é possível, quando se
usa uma abordagem analítica funcional, Acrescentam que a proposição de aceitação da
fazer generalizações amplas sobre a referência aos inobserváveis não vem
intervenção a ser realizada ou sobre o acompanhada de uma negligência para com
estilo com que deve se apresentar as metodologias empíricas. Ao contrário
(Samson e McDonnell, 1990, p.260).
disso, busca integrar capacidade preditiva
O uso da análise funcional não estaria restrito,
com força explicativa.
contudo, a um quadro conceitual particular.
Sturmey (1996) acrescenta à lista de Haynes e
Em vez disso, pode ser visto como
O'Brien (1990) sete definições diversas para o
independente de sistemas teóricos
termo análise funcional: 1) “afirmações que
específicos. Partindo desta posição, Samson e
dizem respeito à forma matemática da relação
McDonnell (1990) propõem uma definição de
entre diferentes variáveis” (p.8); 2)
análise funcional nos seguintes termos:
a análise funcional é um método de
“afirmações relativas à função ou propósito
explicar fenômenos, que envolve a do comportamento” (p.8); 3) “abordagem
geração de hipóteses com respeito a ateorética, genérica, para avaliação e
dados observáveis e não observáveis. Ela elaboração de caso” (p.8); 4) “análises
busca explicar e prever a(s) função(ões)
funcionais descritivas ecléticas” (p.8); 5)
de um fenômeno através do exame das
relações que contribuem para ele (p.261). “análises funcionais descritivas comporta-
A admissão de referência a “não observáveis” mentais” (p.8); 6) “uso do termo exclusi-
sustenta-se, na argumentação de Samson e vamente para manipulações experimentais de
McDonnell (1990), tanto na postulação de que variáveis, a fim de demonstrar relações
a análise funcional não exige a adesão a uma funcionais entre comportamento e ambiente”
teoria que interdite tal referência, quanto na (p.8); e 7) “análise funcional como método de
suposição de que disso depende um maior tratamento ou como componente do
alcance das hipóteses explicativas. Alguns tratamento” (p.8). Alguns esclarecimentos de

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Sturmey sobre as definições citadas são úteis (estímulos antecedentes/conseqüentes,


para a visualização do alcance da análise comportamentos). A sexta definição para
funcional no contexto clínico. análise funcional citada por Sturmey
Na explicação da primeira definição, Sturmey representa a restrição da referência a relações
(1996) salienta que as relações matemati- funcionais experimentalmente verificadas. A
camente descritas podem não ser de causação, última definição corresponde a tomar-se o
mas de correlação. Não está contida na versão tratamento como oportunidade para prover
matemática da relação funcional a referência à ao cliente um treinamento em análise
função adaptativa de uma classe de variáveis funcional, de modo que possam “desenvolver
ou uma indicação necessária de causação. A uma análise funcional de seu próprio
segunda definição, um outro “tipo de comportamento e assisti-los para que usem a
funcionalismo” (p.11), envolveria a suposição análise funcional para mudar seu próprio
de que “os comportamentos sob consideração comportamento” (Sturmey, 1996, p.18).
servem a um propósito para o indivíduo” Na interpretação de Sturmey (1996), a
(p.11). A terceira definição coincide com a definição de análise funcional proposta por
proposição de Samson e McDonnel (1990), Haynes e O'Brien (1990) está baseada num
segundo a qual a análise funcional não tem reconhecimento da multicausação do
compromisso estreito com qualquer comportamento e do caráter probabilístico de
abordagem teórica. A quarta definição pode instâncias de relações inferidas. Desse modo,
a aplicação clínica da análise funcional
ser tomada como uma variação da terceira, na não tenta descrever todas as relações
medida em que acrescenta simplesmente a entre variáveis relevantes. Aquelas que
possibilidade de se conciliar apelos a variáveis têm um alcance insignificante e que não
comportamentais e cognitivas no interior de podem ser modificadas são excluídas, a
fim de simplificar o quadro e identificar
um mesmo tipo de aplicação da análise
aquelas variáveis que poderiam ser
funcional. A quinta definição é apontada por modificadas durante o tratamento.
Sturmey como mais diretamente vinculada à Assim, nesse contexto, a análise funcional
tradição da análise aplicada do compor- é uma forma idiográfica de avaliação,
vi orientada para o desenvolvimento de um
tamento . Além do foco no comportamento
tratamento individualmente programado
desajustado, descrição das contingências (Sturmey, 1996, pp.10-11).
atuais responsáveis pelo comportamento e Segundo Cone (1997), uma adoção ampla das
ausência de manipulação experimental das estratégias baseadas na análise funcional
variáveis envolvidas, as seguintes depende da superação de abordagens para
características desta versão da análise classificação e diagnóstico baseadas em
funcional são citadas: definição operacional categorias de síndromes, cuja ênfase recai em
do comportamento (enquanto classe aspectos topográficos do comportamento (o
funcional), especificação funcional das exemplo mais significativo é o DSM-IV). Tais
conseqüências que mantêm o comportamento abordagens, na medida em que não enfatizam
(e.g. referências a reforçadores positivos e as funções do comportamento, pouco
negativos), distinção entre variáveis poderiam orientar a intervenção eficaz. “O
antecedentes e operações estabelecedoras e, fato de que os clientes podem ser
finalmente, inclusão dos eventos privados na confiavelmente classificados em classes de
análise, enquanto eventos comportamentais síndromes com base em topografias comuns
vi
Um exemplo do uso da terminologia apresentado por Sturmey (1996) pode ser encontrado em Lopes (1997), onde a autora apresenta a
sistematização de uma análise funcional comportamental descritiva de comportamentos de enfrentamento de mulheres com câncer de
mama. Com base no modelo analítico-comportamental de Skinner, os comportamentos de enfrentamento foram compreendidos como
"uma classe de respostas operantes (pensamentos, ações e sentimentos), discriminadas em relação a certos aspectos do ambiente e
mantidas por contingências de reforçamento que estariam produzindo reforçadores positivos e evitando, removendo estimulações
aversivas"(p.21).

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não nos leva longe, se nosso interesse está em análise funcional pode ser tomada como
entender seu comportamento a fim de ajudar produto no sentido de que já é uma
a mudá-lo” (p.272). proposição de relações, a partir de uma coleta
Um aspecto da interpretação de Cone (1997) e análise sistemática de dados do caso sob
que pode apontar para um modo mais amplo exame. Em qualquer das definições, a
de compreensão da intervenção compor- preocupação é com a identificação de relações
tamental está em sua proposição de que a ambiente-comportamento decorrentes da
análise funcional corresponde à etapa de teste história ambiental dos indivíduos e com o
das hipóteses explicativas para o problema planejamento de uma intervenção baseada
sob exame, sendo precedida por uma etapa de naquela identificação.
avaliação funcional, que inclui a coleta de Alguns autores tratam a análise funcional
informações e a formulação de hipóteses. A como dissociada de constrangimentos
contribuição não reside na introdução de teóricos particulares (e.g. Owens e Aschcroft,
novas expressões para designar as diferentes 1982; Samson e McDonnell, 1990) e mesmo
etapas do processo terapêutico, mas em como de uso não limitado à intervenção com
chamar atenção para o fato de que, enquanto clientes individuais (e.g. Owens e Ashcroft,
na etapa de testes da hipótese a intervenção do 1982; Sturmey, 1996). Se estas são
terapeuta atém-se a variáveis observáveis, nas possibilidades contidas numa noção ampla de
etapas de coleta de informações e formulação análise funcional, é também verdade que no
de hipóteses a referência a eventos remotos e interior de uma prática orientada por
não manipuláveis é possível (e eventualmente princípios analítico-comportamentais a
necessária). análise funcional assume características
particulares, que podem ser resumidas nos
1.3 Aplicação clínica da análise funcional: seguintes pontos tratados acima: a)
Aspectos definidores em acordo com o selecionismo como modelo causal e
sistema explicativo analítico-compor- funcionalismo como princípio de análise; b)
tamental. externalismo como recorte de análise; c)
complexidade, variabilidade, e caráter
Apesar de sua importância para a constituição idiossincrático das relações comportamentais;
do sistema explicativo analítico-compor- d) critério pragmático na definição do nível de
tamental, são poucas as obras nas quais o intervenção; e) distinção entre alcance da
modelo causal elaborado por Skinner é avaliação e alcance da intervenção. Estes
tratado detalhadamente (Moore, 1984). A pontos podem ser resumidamente definidos
lacuna talvez explique parcialmente a como a seguir.
diversidade de leituras relativas ao uso clínico a) selecionismo como modelo causal e
da análise funcional, ora referida como funcionalismo como princípio de análise.
estratégia (Owens e Ashcroft, 1982) ou A rejeição de modelos estruturalistas desde
método (Hayes e Follette, 1992; Samson e o princípio afasta a análise do comporta-
McDonnell, 1990) através do qual o analista mento de uma preocupação estrita com a
do comportamento reconstitui processos topografia comportamental. A posterior
comportamentais e a partir da qual planeja a adoção do modelo de seleção por
mudança, ora citada como produto de um tal conseqüências representa o reconheci-
processo (Haynes e O'Brien, 1990). O sentido mento da complexidade dos processos de
com que Haynes e O'Brien (1990) propõem a determinação dos comportamentos
análise funcional como produto é o mesmo humanos, ao mesmo tempo em que indica
contido na distinção de Cone (1997), entre a adoção de uma nova versão de
avaliação funcional e análise funcional. A funcionalismo (Micheletto, 1995), cuja

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ênfase recai nas funções do compor- cia, a análise funcional e/ou a intervenção
tamento na produção de conseqüências por ela orientada são idiográficas
ambientais. A noção de função caracte- (Hawkins, 1986; Haynes e O'Brien, 1990;
rística de uma interpretação selecionista Owens e Ashcroft, 1982; Samson e
difere daquela presente na noção McDonnell, 1990; Sturmey, 1996), não são
matemática de função (Micheletto, 2000; possíveis generalizações amplas da
Owens e Ashcroft, 1982; Samson e intervenção (Owens e Ashcroft, 1982;
Samson e McDonnell) e a pluralidade de
McDonnell, 1990; Sturmey, 1996), sendo
análises funcionais é reconhecida como
essa última insuficiente para dar conta da
uma possibilidade mesmo no interior de
análise funcional psicológica, que se
um único caso (Hawkins, 1986), o que
interessa não apenas pela identificação de
contraria o apelo a uma formalização da
variáveis relacionadas, mas também pela
análise funcional que a torne replicável.
identificação das relações de causação e
d) critério pragmático na definição do nível
pelo modo como estas relações se
de intervenção. A análise funcional
constituem e se mantêm.
desenvolve-se dentro de limites que
b) externalismo como recorte de análise. Ao
atendem ao interesse pela solução de
interpretar o fenômeno comportamental
problemas comportamentais concretos (cf.
de uma perspectiva funcional, a análise do
Hayes e Follette, 1992; Haynes e O´Brien,
comportamento busca identificar relações
1990; Sturmey, 1996). É a preocupação com
do indivíduo com o ambiente que lhe é
o atendimento deste critério que leva
externo. O interesse por relações neste
Haynes e O´Brien (1990) a proporem uma
nível exclui o apelo a construtos hipotéticos
definição de análise funcional que a limita a
(Jones e Owens, 1992; McDonnell e
variáveis “controláveis” e Jones e Owens
Samson, 1992; Samson e McDonnell; 1990),
(1992) a fazerem restrições ao uso de
mas não a investigação dos eventos
“inobserváveis”. Este critério também está
privados (Sturmey, 1996), Ao contrário, a
presente na proposição de Sturmey (1996)
compreensão destes eventos requer sua
de que a análise aplicada do compor-
análise no contexto de relações do
tamento trabalha com a análise funcional
indivíduo com contingências sociais.
enquanto “análise descritiva compor-
Tampouco representa a negação da
tamental”, que envolve a identificação de
importância de variáveis biológicas no
relações atuais de tríplice contingência
fenômeno comportamental, mas apenas
(ainda que não envolva manipulação
limita o campo das relações das quais o
experimental). O caráter pragmático da
analista do comportamento se ocupa ao
análise funcional na terapia compor-
abordar o fenômeno comportamental
tamental vai sendo elaborado, então, de
(Moore, 1984).
modo entrelaçado e nem sempre coerente
c) complexidade, variabilidade, e caráter
com outros aspectos definidores da análise
idiossincrático das relações comporta-
e intervenção baseada neste modelo,
mentais. Da complexidade dos processos
requerendo um tratamento mais cuidado-
de determinação do comportamento
so. Em particular, torna-se necessário
humano resultam produtos variáveis e
diferenciar o interesse na solução dos
idiossincráticos. A variabilidade manifes-
problemas (do qual a análise funcional
ta-se inter e intra-sujeitos (Micheletto,
pertinente a um modelo de intervenção
1995) e são seus produtos idiossincráticos
analítico-comportamental efetivamente
os comportamentos em geral, condições
não se afasta e que pode ser atendido de
orgânicas e processos comportamentais
modos diversos) de princípios que supos-
privados (Skinner, 1989). Como decorrên-
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tamente são condição para sua realização. funcional nem sempre “explica” o
e) distinção entre alcance da avaliação e comportamento, uma vez que se atém ao
alcance da intervenção. Na análise que é manipulável, pode bem ser
funcional do fenômeno comportamental, considerada pertinente a uma etapa de
uma restrição às variáveis presentes pode teste de hipóteses e definição da
representar a não consideração dos intervenção (Cone, 1997). A diferenciação
processos amplos de determinação estabelecida por Samson e McDonnell
(Micheletto, 2000); de outro lado, a referên- (1990) entre força explicativa e capacidade
cia a todas as variáveis com as quais o preditiva das análises, salientando a
comportamento está historicamente necessidade de integração das duas, sugere
relacionado pode comprometer a precisamente o movimento necessário
instrumentalidade da análise para a entre uma avaliação que leve em conta os
solução do problema (Haynes e O'Brien, diferentes processos de determinação do
1990). Este aparente paradoxo pode ser comportamento e a necessidade de
equacionado por meio de uma delimitação da intervenção para a solução
diferenciação das etapas da intervenção concreta dos problemas. A dificuldade é
baseada na análise funcional (Cone, 1997). também detectada na concordância de
A referência a eventos inobserváveis Sturmey (1996) com a definição de Haynes
(Samson e McDonnell, 1990) e a eventos e O´Brien (1990), interpretada como
remotos e/ou não manipuláveis (Cone, correspondendo a excluir da análise
1997) é compatível e pode ser necessária relações entre variáveis que não podem ser
nas etapas de coleta de informações e modificadas, mas que também têm um
elaboração de hipóteses. Isto é, a rejeição do “alcance insignificante” (pp.10-11). Como
apelo a construtos hipotéticos não as categorias de disponibilidade para
desqualifica a proposição de Samson e manipulação e significância não são
McDonnell de que a análise funcional em coincidentes, a melhor solução parece ser a
algumas circunstâncias precisa levar em proposta por Cone (1997), de distinção do
conta fenômenos inobserváveis (porém alcance das análises nas diferentes etapas,
interpretados sob a ótica analítico- levando em conta a problematização de
comportamental), a exemplo da inclusão Micheletto (2000) sobre o que pode vir a se
de eventos privados (Sturmey, 1996)) no constituir em um modelo de análise
escopo da análise funcional. A proposição funcional pertinente, derivada de visão
de Haynes e O´Brien (1990) de que a análise selecionista do comportamento.

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Recebido em: 03/11/2003


Aceito em: 15/11/2003

Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 151-165 165

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