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01 de Dezembro de 2021.

Documento Científico
Departamento Científico de Hepatologia

Nilza Maria Medeiros Perin


Presidente do Departamento Científico de Hepatologia
AVALIAÇÃO LABORATORIAL
INTRODUÇÃO
DO FÍGADO
Aminotransferases rases maiores que 1000 U/L são vistas
em distúrbios associados a doenças
As aminotransferases (anteriormente
O uso de testes bioquímicos séricos tem com extensa lesão hepatocelular, mais
chamadas de transaminases) são indica-
um papel importante no diagnóstico e comumente causada por lesão hepática
dores sensíveis de lesão dos hepatóci-
tratamento das doenças hepáticas. No induzida por toxinas ou drogas, lesão
tos. Consistem em aspartato amino-
entanto, um teste isolado fornece infor- isquêmica aguda do fígado ou hepatite
transferase (AST) e alanina aminotrans-
mações limitadas, as quais devem ser viral aguda. Hepatite autoimune grave
ferase (ALT).
avaliadas no contexto da história e do ou doença de Wilson também podem
quadro clínico do paciente. Em adultos, os níveis normais de ALT cau- sar elevação acentuada das
variam de 29 a 33 U/L nos homens e de aminotrans- ferases. Níveis de ALT e
Os testes bioquímicos do fígado consis- 19 a 25 U/L nas mulheres. Em crianças, AST podem estar normais em pacientes
tem em marcadores de lesão hepatoce- os níveis médios de ALT variam de 17 a com cirrose hepática.
lular (aminotransferases e fosfatase 21 U/L em meninos e de 14 a 20 U/L
alcalina [FA]), testes de metabolismo em meninas, com o percentil 97 Fosfatase alcalina
hepático (bilirrubinas) e testes de função (comumente utilizado como valor de
sintética hepática (albumina sérica e corte) de 29 a 38 e de 24 a 32 U/L, res- A FA representa um grupo de enzimas
tempo de protrombina [TP]). pectivamente. presentes em praticamente todos os
tecidos. Apresenta quatro subtipos de
A AST é encontrada, em ordem decres- acordo com sua localização (intestinal,
MARCADORES DE LESÃO cente de concentração, no fígado, mús- placentária, células germinativas e
HEPATOCELU- LAR culo cardíaco, músculo esquelético, rins, fíga-
do/osso/rim).
cérebro, pâncreas, pulmões, leucócitos
e eritrócitos. Já a ALT está presente em Os níveis de FA no sangue variam com
O fígado contém uma alta concentração a idade. São geralmente mais elevados
de enzimas, algumas das quais estão maior concentração no fígado, sendo
assim, um marcador mais específico em crianças e adolescentes devido à
presentes no soro em concentrações ativida- de osteoblástica fisiológica. Os
muito baixas. A ocorrência de lesão na para lesão hepática.
níveis podem ser até três vezes maiores
membrana do hepatócito leva ao extra- Uma relação de AST/ALT maior que do que em adultos saudáveis, sendo
vasamento dessas enzimas no soro, o cin- co, especialmente se ALT é normal mais elevados na infância e
que resulta em aumento da concentra- ou ligeiramente elevada, é sugestiva de adolescência, coincidindo com períodos
ção sérica dentro de algumas horas após lesão dos tecidos extra-hepáticos, como de velocidade máxima de crescimento
o dano hepático. hemólise, rabdomiólise, miopatias, ativi- ósseo (Tabela 1). Em adultos, os níveis
Os testes de enzimas séricas podem ser dade física vigorosa recente e doenças normais variam de 40 a 129 U/L nos
categorizados em dois grupos: enzimas do miocárdio. homens e de 35 a 104 U/L nas mulheres.
cuja elevação reflete dano generalizado Embora os valores de ALT e AST Como a FA está presente em diferentes
dos hepatócitos (aminotransferases) e inferio- res a oito vezes o limite superior tecidos, elevações isoladas nem sempre
enzimas cuja elevação reflete principal- da nor- malidade (LSN) possam ser significam doenças do fígado. Doenças
mente colestase (FA, observados na doença hepática ósseas, do intestino delgado e até mes-
gamaglutamiltrans- ferase ou hepatocelular ou colestática, valores mo a gestação podem causar aumento
gamaglutamiltranspeptidase [GGT], 5 maiores que 25 ve- zes o LSN são vistos isolado.
´nucleotidase [5´-NT]). principalmente nas doenças
hepatocelulares. Aminotransfe-
Sociedade Catarinense de Pediatria
Documento Científico 01
Avaliação Laboratorial do Fígado

Tabela 1. Valores de referência para a 7 meses de idade. No fígado, está ligada à membrana sinu-
fosfa- soidal canalicular dos hepatócitos. Sua
tase alcalina. Um aumento gradual ocorre nas meni-
atividade é paralela a da FA, o que é
nas até os 10 anos e nos meninos du-
Idade Sexo U/L provavelmente um reflexo de sua locali-
rante a adolescência (Tabela 2).
Masculino e zação semelhante no hepatócito.
0 - 14 dias 63-251
feminino Níveis elevados de GGT sérica foram
Masculino e
Tal como a GGT, seu valor clínico está
15 dias - < 1 ano 102-464 relatados em uma ampla variedade de
feminino em sua capacidade de determinar a
condições clínicas, incluindo doença
Masculino e origem da FA sérica elevada.
1 - 9 anos 121-334 pancreática, infarto do miocárdio,
feminino
insufi- ciência renal, doença pulmonar
10 - 12 anos
Masculino e
108-414 obstruti- va crônica, diabetes mellitus e Desidrogenase láctica
feminino
alcoolis- mo. Valores elevados de GGT A desidrogenase láctica (LDH) é uma
Masculino 109-449
13 - 14 anos sérico também são encontrados em enzima citoplasmática presente nos
Feminino 52-243 pacientes que tomam medicamentos tecidos de todo o corpo. Cinco formas
Masculino 77-317 como fenitoí- na e barbitúricos, e nos isoenzimáticas de LDH estão presentes
15 - 16 anos
Feminino 46-110 que recebem nutrição parenteral. no soro e podem ser incluídas por vá-
Masculino 50-142 rias técnicas eletroforéticas. A banda de
17 - 19 anos É particularmente útil em crianças para
Feminino 41-82 estabelecer a probabilidade de doença migração mais lenta predomina no fíga-
Fonte: Estey MP et al.5
biliar, já que a FA não é um indicador do.
confiável. Elevações muito acentuadas Este teste não é tão sensível quanto as
O método mais preciso para determinar de GGT podem ser encontradas em aminotransferases séricas na doença
a fonte de FA é fracionar as isoenzimas doenças obstrutivas do trato biliar, co- hepática e tem baixa especificidade di-
por eletroforese; entretanto, isso não é mo na atresia de vias biliares, no cisto agnóstica. É mais útil como marcador de
amplamente disponível na maioria dos de colédoco, na colestase intra-hepática hemólise. Encontra-se elevada em casos
laboratórios. Na prática, uma fonte he- (síndrome de Alagille), na deficiência de hepatite isquêmica e, quando acom-
pática geralmente é confirmada pela de alfa-1-antitripsina e colangite panhada de elevação de FA, sugere
elevação simultânea de outras medidas esclero- sante. infil- tração maligna do fígado.
de colestase como, por exemplo, GGT. Tabela 2. Valores de referência para ga-
maglutamiltransferase TESTES DE METABOLISMO HEPÁTICO
O principal valor da FA sérica no diag-
nóstico de doenças hepáticas está no Idade Sexo U/L

reconhecimento da doença colestática. Masculino e Bilirrubinas


0 - 5 dias 34-243
feminino
Em pacientes com colestase, a FA é A ruptura das hemácias libera a hemo-
Masculino e
tipicamente elevada em pelo menos 1 - 3 anos
feminino
6-19 globina, que é captada pelo sistema
quatro vezes o limite superior da norma- Masculino e retículo-endotelial do fígado, baço e
lidade. A magnitude da FA sérica não 4 - 6 anos 10-22
feminino medula óssea, sendo transformada pe- la
distingue a colestase extra-hepática da Masculino e hemeoxigenase em
7 - 9 anos 13-25
colestase intra-hepática. Graus menores feminino
de elevação são inespecíficos e podem Masculino 17-30 biliverdina. A biliverdina-redutase
10 - 11 anos
ser vistos em muitos outros tipos de Feminino 17-28 converte a biliver- dina em bilirrubina
doença hepática, como hepatite viral, Masculino 17-44 livre. Essa forma de bilirrubina é
12 - 13 anos
doenças infiltrativas do fígado e hepato- Feminino 14-25 denominada não conjugada ou indireta
patia congestiva. Masculino 12-33 (BI) e é lipossolúvel. A BI liga
14 - 15 anos
Feminino 14 - 26 -se à albumina, forma pela qual é trans-
Gamaglutamiltransferase Masculino
portada no plasma, captada pelo hepató-
11-34
16 - 19 anos
11-28 cito e transportada ao retículo endoplas-
A GGT é uma enzima presente nos he- Feminino
mático, onde é convertida pela ação da
patócitos e nas células epiteliais biliares, Fonte: Bussler Set et al.4
enzima uridina difosfataseglicuronosil-
bem como nos rins, próstata, pâncreas,
5´nucleotidase transferase em bilirrubina conjugada ou
baço, coração e cérebro.
direta (BD). A BD é transportada
Em adultos, os níveis normais de GGT A 5'-NT é encontrada no fígado, intesti-
através da membrana canalicular para a
variam de 29 a 42 U/L nos homens e de no, cérebro, coração, vasos sanguíneos e
bile, sendo uma das etapas mais
19 a 73 U/L nas mulheres. Em neonatos pâncreas, mas só é liberada no soro pelo
susceptí- veis de comprometimento na
a termo saudáveis, a atividade sérica de tecido hepatobiliar. Embora sua função
vigência de lesão hepática.
GGT é de seis a sete vezes o limite su- fisiológica seja desconhecida, sabe-se
que catalisa especificamente a hidrólise Uma vez excretada do hepatócito para o
perior da faixa de referência para adul-
de nucleotídeos, como adeno- sina 5'- canalículo biliar, a BD é transportada por
tos; posteriormente, os níveis diminuem
fosfato e inosina 5'-fosfato, meio da bile, pelas vias biliares, para o
e atingem níveis baixos por volta dos 5
duodeno.

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Documento Científico 02
Avaliação Laboratorial do Fígado

Aumentos da BI podem ser decorrentes plasmática, sendo responsável por 80% dor sensível nas doenças hepáticas crô-
do aumento de sua produção, diminui- da pressão osmótica do plasma. Devido nicas, pois mesmo em casos de cirrose
ção da sua captação e/ou conjugação a sua meia-vida longa, de cerca de 21 severa, os níveis podem ser normais ou
pelo hepatócito, enquanto que aumentos dias, seus níveis podem não ser afeta- discretamente alargados.
da BD são geralmente devido a disfun- dos nas doenças agudas hepáticas, co-
A deficiência de vitamina K também
ção hepatocelular ou biliar. mo hepatite viral ou insuficiência
cau- sa prolongamento no TP, podendo
hepáti- ca de qualquer etiologia. Na
No período neonatal, pode haver aumen- ser decorrente de desnutrição, má
cirrose ou doença hepática crônica, a
to fisiológico da BI. Entretanto, absorção e colestase grave com
albumina sérica baixa pode ser um sinal
recomen- da-se dosar as bilirrubinas incapacidade de absorver vitaminas
de doen- ça hepática avançada.
totais e fra- ções em todas as crianças lipossolúveis. A ad- ministração de
que perma- necem ictéricas após a No entanto, a albumina sérica baixa não vitamina K pode ajudar a distinguir a
segunda semana de vida. é específica para doença hepática e po- deficiência de vitamina K da disfunção
de ocorrer em outras condições, como dos hepatócitos, pois a repo- sição
De modo diferente da hiperbilirrubine- desnutrição, infecções, síndrome nefró- resulta na correção do PT no caso da
mia indireta, que pode ser fisiológica, a tica ou enteropatia perdedora de proteí- deficiência de vitamina K, mas não na
elevação da BD correlaciona-se sempre na. disfunção hepática.
com estados patológicos e traduz a di-
minuição da secreção biliar por doença As concentrações séricas normais de Os valores normais do PT estão entre
hepatocelular ou biliar, ou seja, coles- albumina encontram-se entre 3,5 g/dL e 11,1 e 13,2 segundos e são comparados
tase. 5,0 g/dL. a plasma controle, analisando-se o tem-
po de atraso em relação ao controle ou
Todo recém-nascido ou lactente que
Tempo de protrombina através do RNI, que normalmente en-
apresente BD > 1,0 mg/d Lmerece in-
contra-se entre 0,9 e 1,1.
vestigação diagnóstica. Este é um qua- O PT e o RNI (relação normatizada
dro que representa uma urgência e deve inter- nacional) medem a atividade dos
ser identificado precocemente pelo pedi- fatores de coagulação I, II, V, VII e X,
atra. que são todos sintetizados no fígado e
depen- dentes da vitamina K para
A concentração normal de bilirrubina
síntese. Os fatores de coagulação tem
sérica total é menor que 1 mg/dL. A
meia-vida muito mais curta do que a
fração direta corresponde até 30% do
albumina. Por isso, o PT/RNI é a melhor
total, ou, 0,3 mg/dL.
medida da função sintética do fígado em
quadros agudos. Prolongamento do TP
TESTES DE FUNÇÃO SINTÉTICA
de mais de 5 segundos acima do valor
DO FÍ- GADO
de con- trole (RNI > 1,5) é sinal de mau
prog- nóstico da doença hepática e um
Albumina fator importante para definir prioridade
A albumina é a mais abundante proteína do transplante hepático. Não é um
indica-

REFERÊNCIAS

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aminotransferase, γ-glutamyltransferase): Effects of age, sex,
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