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apêndice

hepatopatia medicamentosa
implicados. Os hepatócitos (lesão hepatocelu-
INTRODUÇÃO lar), o fluxo biliar (lesão colestática) e as estru-
turas vasculares podem ser comprometidos em
O objetivo primordial deste capítulo é que o combinações variadas.
aluno tenha conhecimento das principais dro-
gas capazes de causar lesão hepática, sabendo Os mecanismos que levam à lesão envolvem
algumas particularidades de cada uma, como efeito direto do agente ou reação “idiossincrá-
o tipo de lesão instalada. Por exemplo, o para- sica” (própria) do indivíduo. Esta última respos-
cetamol em altas doses pode provocar necrose ta pode ser desencadeada por reação imunoló-
de hepatócitos na região centrolobular, even- gica “contra” o fígado, induzida pela formação
tualmente levando à insuficiência hepática de neoantígenos compostos por moléculas do
fulminante; já os anticoncepcionais podem ser parênquima hepático combinadas à droga em
associados à colestase intra-hepática, por alte- questão ou seus metabólitos, ou por diferenças
rarem os mecanismos de secreção dos sais individuais na metabolização do agente (com-
biliares na membrana dos canalículos biliares. ponente genético), fenômeno que induz a for-
mação de metabólitos tóxicos. Por motivos
A definição de “hepatopatia medicamentosa” desconhecidos, as hepatopatias medicamentosas
é bastante abrangente: qualquer grau de alte- são mais frequentes no sexo feminino...
ração hepática que tenha relação com o uso
de alguma droga deve ser inserido neste con- A apresentação clinicolaboratorial pode variar
ceito! Assim, podemos afirmar que o número desde anormalidades assintomáticas nas provas
de drogas e toxinas que pode levar à injúria de função hepática até a necrose hepática ma-
hepática é muito grande. Em termos epidemio- ciça e fatal. A hepatite viral e a obstrução biliar
lógicos, a real incidência de hepatopatia far- podem ser simuladas pelas reações medicamen-
macoinduzida não pode ser determinada, pois tosas hepatotóxicas, e a exposição a determi-
na maioria das vezes essas alterações são as- nados agentes também pode resultar em hepa-
sintomáticas e passam despercebidas (acredita- tite crônica, cirrose e tumores hepáticos.
-se que menos de 10% dos casos sejam detec-
tados). Lesões mais significativas, por outro lado,
recentemente tiveram sua incidência estimada em Quadro de Conceitos I
países como a Inglaterra: estima-se que ocorram
O que é “hepatopatia medicamentosa”?
cerca de 22 casos de hepatopatia medicamentosa
para cada 1 milhão de pacientes-ano naquele
Por hepatopatia medicamentosa entendemos
país. Mas atenção: não podemos generalizar QUALQUER alteração hepática relacionada
esta última cifra! Em países em desenvolvi- ao uso de uma droga (ex.: aumento de amino-
mento (como o Brasil), acredita-se que o nú- transferases ou enzimas biliares), tenha esta
mero de casos de hepatopatia farmacoinduzida alteração um caráter assintomático ou mesmo
seja ainda menor, e relacione-se a um número se expresse na forma de uma insuficiência
mais restrito de drogas... hepática fulminante, subfulminante ou crôni-
ca. As hepatopatias medicamentosas podem
Os agentes químicos industriais, os alcaloides ser decorrentes de toxicidade direta (dose-
vegetais, as microtoxinas de ocorrência natural -dependente e previsível) ou então serem
e as drogas utilizadas no tratamento das diver- mediadas pelo fenômeno de idiossincrasia,
sas doenças (tanto em doses farmacológicas isto é, dose-independentes, imprevisíveis e,
quanto na overdose) são os principais agentes em geral, geneticamente determinadas...

Tab. 1: Classificação da hepatopatia farmacoinduzida.


CATEGORIA EXEMPLOS
Necrose zonal Acetaminofeno, tetracloreto de carbono,
sinvastatina
Hepatite inespecífica AAS, oxacilina
Reação semelhante à hepatite viral Halotano, isoniazida, fenitoína, diclofenaco
Semelhante à hepatite autoimune (ataque contra Metildopa, nitrofurantoína, diclofenaco,
antígenos de superfície das células hepáticas, fenofibrato, fenitoína, propiltiouracil,
com formação de autoanticorpos – FAN, antimús- lovastatina
culo liso)
Colestase não inflamatória Estrogênios, esteroides 17-alfa-substituídos
Lesão inflamatória dos pequenos ductos (síndro- Amoxicilina-clavulanato, piroxicam, tia-
me do evanescimento dos ductos biliares) bendazol, haloperidol

Lesão dos grandes ductos (colangite esclerosante) Fluorodesoxiuridina
Esteatose hepática:
Grandes gotículas Etanol, corticosteroides
Pequenas gotículas Tetraciclina, ácido valproico, didanosina,
amiodarona
Fosfolipídios e esteato-hepatite Amiodarona, maleato de perexilina

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Granulomas Fenilbutazona, alopurinol, carbamazepi-


na, diltiazem, hidralazina, fenitoína, rosi-
glitazona, sulfonamidas, penicilamina
Fibrose Metotrexato, hipervitaminose A, etanol,
metildopa
Tumores:
Adenoma Estrogênios
Angiossarcoma Cloreto de vinila
Trombose de veia hepática Estrogênios
Doença veno-oclusiva Agentes antineoplásicos (ex.: busulfan),
azatioprina
Peliose hepática Esteroides anabolizantes, estrogênio, clo-
reto de vinila
Artrite hepática Alopurinol, Fluorodesoxiuridina
Hiperplasia regenerativa nodular Azatioprina, agentes antineoplásicos

PRINCÍPIOS DE DIAGNÓSTICO Em vista da típica dificuldade diagnóstica,


E MANUSEIO um conceito prático muito importante deve
ser enfatizado: à menor suspeita de hepato-
toxicidade após a introdução de um novo
Os fármacos podem produzir anormalidades medicamento (ex.: aumento de ALT > 3x o
semelhantes às observadas em outros distúrbios LSN), o mesmo deve ser imediatamente sus-
comuns, como hepatite viral ou doença biliar, e penso!!! Não se devem aguardar resultados
alguns podem provocar lesões mistas. Contudo, de exames laboratoriais para confirmar ou
em 90% das vezes, o padrão é hepatocelular, descartar outras hipóteses... A suspensão pre-
com aumento predominante de ALT/AST em coce da droga tem o potencial de evitar a
relação aos demais marcadores hepáticos... Des- evolução para insuficiência hepática na gran-
se modo, o fator decisivo para o diagnóstico é o de maioria das vezes!!!
alto grau de suspeição por parte do médico, o
que está baseado no estabelecimento de uma Em alguns casos, quando apenas um agente é
“linha do tempo” entre a introdução do(s) fár- envolvido e encontra-se um tipo histológico ca-
maco(s) e o surgimento de lesão hepática: em racterístico de lesão, o diagnóstico com base em
geral, a maioria das drogas inicia sua hepatoto- achados laboratoriais e de biópsia é relativamen-
xicidade entre 5 a 90 dias... te simples. São exemplos a esteatose hepática
microvesicular causada pela tetraciclina, ou a
Isso torna a história clínica detalhada a peça fun- necrose centrolobular provocada pelo acetami-
damental para o diagnóstico, e as informações nofeno (paracetamol). O diagnóstico se torna
sobre qualquer exposição anterior a um agente mais complexo quando vários fármacos estão
suspeito podem ser de grande valia (toxicidade sendo utilizados ao mesmo tempo, e qualquer um
mais tardia). Como numerosas substâncias quí- deles pode ser responsável por uma lesão hepá-
micas industriais são hepatotóxicas, também é tica inespecífica ou semelhante à hepatite viral.
imprescindível obter detalhes relativos à profissão Eventualmente, até mesmo os distúrbios subja-
e ao ambiente de trabalho do paciente. O exame centes para os quais os fármacos foram prescritos
físico costuma oferecer pouca ajuda, exceto nos também podem causar lesão hepática (EHNA,
casos onde se detecta um rash cutâneo (que cor- no portador de diabetes mellitus)...
robora, por exemplo, a hipótese de toxicidade da
fenitoína – ver adiante). A hepatopatia farmacoinduzida costuma ser
controlada pela interrupção do(s) fármaco(s)
Evidentemente, outras etiologias devem ser implicado(s) e, muito raramente, o curso clínico
descartadas através de uma rotina geral de in- pode ser progressivo a despeito da suspensão do
vestigação das hepatopatias (ex.: sorologias agente envolvido... Com exceção da toxicidade
virais). A negatividade desses exames, associa- pelo paracetamol, em que um antídoto específico
da à resolução das alterações hepáticas em é comprovadamente benéfico (N-acetilcisteína),
semanas a meses após a suspensão do fármaco, e da toxicidade pela tetraciclina (onde a L-carnitina
é o principal meio de diagnóstico das hepato- se mostrou benéfica), nos demais casos só po-
patias medicamentosas! demos oferecer tratamento de suporte e o trans-
plante ortotópico de fígado, quando indicado. E,
Vale ressaltar que a biópsia hepática costuma diga-se de passagem, em mais de 50% dos casos
ser de pouca valia neste processo: em geral de falência hepática associada à idiossincrasia o
encontramos alterações histopatológicas indis- TxH será necessário (pois nesta situação a mor-
tinguíveis de uma hepatite viral! Entretanto, talidade sem transplante gira em torno de 80%).
casos onde múltiplas possibilidades etiológicas Os glicocorticoides não têm valor no tratamento
são aventadas poderiam ser resolvidos pelo da hepatopatia farmacoinduzida, embora possam
encontro de certos achados (incomuns) bastan- suprimir manifestações de hipersensibilidade,
te sugestivos de hepatopatia farmacoinduzida: como a síndrome semelhante à doença do soro
infiltração eosinofílica hepática ou formação que ocorre em decorrência de certas reações
de granulomas no parênquima. idiossincrásicas...
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cimento de cisteína para a síntese da glutatio-


Quadro de Conceitos II na, o que regenera este importante agente
Como estabelecer o diagnóstico de uma “he- antioxidante endógeno. Seu benefício após 24h
patopatia medicamentosa”? da ingestão tóxica não foi estabelecido... A
Em suma, o diagnóstico de hepatopatia farma- dose oral recomendada é de 140 mg/kg ini-
coinduzida depende de: cialmente, seguida por doses de manutenção
1- História de exposição, em geral, entre 5 e de 70 mg/kg a cada 4h, durante 72h. Também
90 dias; é possível utilizar um protocolo de adminis-
2- Achados clínicos e laboratoriais e, ocasio- tração endovenosa da NAC, que consiste numa
nalmente, de biópsia hepática consistentes;
etapa de infusão rápida de 150 mg/kg em
3- Eliminação de outras possibilidades diag-
nósticas; 60min, seguida de infusão 50 mg/kg ao longo
4- Resolução da lesão hepática após a inter- de 4h e, por fim, 6,25 mg/kg/h em 16h. A
rupção da toxina suspeita. principal desvantagem da via endovenosa é
que 10-20% dos indivíduos desenvolve reação
anafilactoide quando o fármaco é feito por esta
via. Em pacientes gravemente enfermos (fa-
HEPATOPATIA FARMACOINDUZIDA lência hepática franca, vômitos incoercíveis,
AS PRINCIPAIS íleo paralítico) esta pode ser a única maneira
DROGAS ENVOLVIDAS de administrar a NAC...

De forma geral, pacientes com intoxicação


1 - Paracetamol (Acetaminofeno) aguda por paracetamol que são tratados a tem-
po conseguem se recuperar por completo, sem
Esse analgésico e antipirético é um exemplo qualquer lesão hepática residual.
clássico de hepatotoxina intrínseca (dose-
-dependente) que provoca necrose hepatocitá-
ria e insuficiência hepática aguda, frequente- 2 - Esquema RIPE
mente associada à insuficiência renal. Em geral,
ocorre lesão hepática significativa com doses Três drogas do esquema RIPE (Rifampicina,
acima de 10 a 15 g, tomadas quase sempre Isoniazida e Pirazinamida) possuem potencial
como tentativa de suicídio. Trata-se da princi- para lesão hepática aguda. A associação isonia-
pal causa farmacológica de IHF no mundo... zida + rifampicina tem sinergismo hepatotóxico.
Das três, a isoniazida é a mais estudada. Essa
Em algumas horas o paciente apresenta náu- droga tem um metabólito chamado acetilidrazi-
seas, vômitos e diarreia, manifestações iniciais na – o verdadeiro responsável pela lesão hepá-
que regridem rapidamente, sendo seguidas por tica, formado pelo sistema do citocromo P450.
uma fase assintomática. Os sinais clínicos e As drogas indutoras deste sistema enzimático,
laboratoriais de dano hepático tornam-se evi- como a rifampicina, aumentam os níveis do
dentes 24 a 48 horas após a ingestão do fárma- metabólito, aumentando a chance de hepatoto-
co. São comuns níveis séricos de aminotrans- xicidade. Os indivíduos acetiladores lentos são
ferases > 5.000 UI/L, e a lesão hepática grave mais suscetíveis ao acúmulo desse metabólito,
pode resultar em insuficiência hepática progres- pois a sua transformação para a substância ató-
siva, com encefalopatia, coagulopatia, hipogli- xica diacetilidrazina está lentificada.
cemia e acidose láctica.
A isoniazida isoladamente pode induzir um leve
O tratamento inicial da superdosagem do pa- aumento das aminotransferases em 10-20% dos
racetamol consiste em medidas de suporte e casos, surgindo geralmente nas primeiras se-
descontaminação gástrica, como o uso de manas do tratamento. Essa elevação reflete uma
carvão ativado pela via oral (1 g/kg de peso, hepatite focal transitória. Entretanto, cerca de
dose máxima 50 g), dentro das primeiras 4h 1% dos pacientes que tomam a droga desenvol-
da ingestão tóxica. Deve-se administrar N-a- vem lesão hepática grave, cuja histopatologia é
cetilcisteína (NAC) a pacientes de alto risco, muito semelhante à da hepatite aguda viral. Esse
isto é, aqueles que ingeriram quantidades tipo de hepatite costuma ocorrer dentro dos
previsivelmente tóxicas do fármaco! Nestes primeiros 2-3 meses do uso da droga, manifes-
casos, a NAC reduz a gravidade da necrose tando-se com mal-estar, anorexia, náuseas e
hepática e a taxa de mortalidade, principal- vômitos. A icterícia chama atenção. O quadro
mente se administrada ANTES da elevação laboratorial é típico de uma lesão hepatocelular
das aminotransferases. Como regra geral, (elevação das aminotransferases). Alguns pa-
recomenda-se que a NAC seja administrada, cientes podem evoluir com hepatite crônica e
nestes indivíduos, dentro das primeiras 8h da até mesmo cirrose hepática. A hepatotoxicidade
ingestão... Dosar o nível plasmático de para- pela isoniazida é mais frequente em pessoas
cetamol não é a melhor forma de avaliar o com mais de 50 anos de idade.
prognóstico (o fator mais importante é a dose
total ingerida, pois a droga é previsivelmente Quando o paciente está em uso do esquema
tóxica)! Todavia, níveis superiores a 200 mg/L RIPE, um aumento de até 250 UI/ml das ami-
em 4h, 100 mg/L em 8h ou 50 mg/L em 12h notransferases, estável ou em involução, não
após a ingestão do fármaco são preditivos de justifica a suspensão das drogas. Porém, se
lesão hepática grave e também constituem houver icterícia ou elevação de aminotransfe-
indicações para o tratamento com N-acetilcis- rases acima desses níveis, a conduta deve ser
teína... A NAC parece atuar através do forne- suspender todo o esquema RIPE e introduzir
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droga por droga, com intervalo de quatro dias. 5 - Amoxicilina-Ácido Clavulânico


Será que é hepatotoxicidade da pirazinamida?
Se não for, provavelmente trata-se de lesão A amoxicilina em si tem pouco potencial he-
hepática propiciada pelo sinergismo entre iso- patotóxico; todavia, em combinação com o
niazida + rifampicina. inibidor da β-lactamase ácido clavulânico,
produz lesão hepática colestática, cujas mani-
festações frequentemente surgem várias sema-
3 - Amiodarona nas após o término do tratamento. Os homens
idosos são afetados com mais frequência. A
Diversos pacientes que recebem amiodarona icterícia constitui uma característica consisten-
apresentam discretos aumentos dos níveis séricos te, e o exame histológico do fígado revela co-
de aminotransferases, que se podem normalizar lestase com necrose ou inflamação mínima. As
mesmo com a continuação da terapia, acompa- manifestações de hipersensibilidade são inco-
nhados de ingurgitação dos lisossomos com fos- muns. A evolução clínica tem sido benigna na
folipídios. 1 a 3% dos pacientes que recebem maioria dos casos, com recuperação completa
amiodarona desenvolvem lesão hepática mais em quatro a seis meses.
grave, que se assemelha, histologicamente, à he-
patite alcoólica aguda, com infiltração gordurosa
dos hepatócitos, necrose focal, fibrose, infiltrados 6 - Eritromicina
de leucócitos Polimorfonucleares (PMN) e cor-
púsculo de Mallory. Essa lesão, também conhe- Seu uso pode ser complicado pelo desenvol-
cida como esteato-hepatite não alcoólica, pode vimento de uma reação colestática com com-
progredir para cirrose micronodular com hiper- ponentes de infiltração das células inflamató-
tensão portal e insuficiência hepática. Tal lesão rias e necroses dos hepatócitos. Na maioria
pseudoalcoólica e sua progressão para cirrose dos casos, essa reação é observada com o
ocorrem, geralmente, de modo clinicamente in- estolato de eritromicina, enquanto as outras
sidioso, com elevação mínima dos níveis séricos eritromicinas, como o etilsuccinato e o lacto-
de aminotransferases. Hepatomegalia pode ser bionato, implicadas com menos frequência.
encontrada, porém icterícia é rara. As evidências Tipicamente, a hepatotoxidade manifesta-se
de hepatotoxidade podem persistir por vários como síndrome aguda de dor no hipocôndrio
meses após a interrupção do fármaco. direito, febre e sintomas colestáticos variá-
veis. O quadro clínico pode imitar bastante o
A biópsia hepática mostra-se útil no estabele- da colecistite aguda ou colangite, e, em alguns
cimento do diagnóstico, devendo ser conside- casos, exige exploração cirúrgica. O prognós-
rada em pacientes em uso de amiodarona que tico é sempre excelente, porém a reação pode
desenvolvem elevações persistentes ou signi- sofrer recidiva alguns dias após a readminis-
ficativas (mais de duas vezes) dos níveis séricos tração do fármaco.
de aminotransferases ou hepatomegalia. A
decisão de suspender a amiodarona, quando há
evidências histológicas de hepatotoxidade é 7 - Halotano
frequentemente difícil em pacientes que foram
tratados com amiodarona após fracasso de ou- Esse anestésico raramente provoca uma reação
tras medicações menos tóxicas, sobretudo se o semelhante à hepatite viral e, nos casos graves,
uso de cardioversor/desfibrilador implantado pode progredir para necrose hepática maciça
automático não for apropriado. fatal. A suscetibilidade à hepatite por halotano
parece ser aumentada em indivíduos idosos,
mulheres e indivíduos obesos; em geral, ocor-
4 - Alfa-Metildopa rem reações graves após exposições anteriores
ou múltiplas a esse anestésico. Os sintomas
Até 6% dos pacientes tratados com este agente surgem 7 a 10 dias após a anestesia; esse inter-
anti-hipertensivo desenvolvem alterações assin- valo pode ser reduzido após exposição repetida.
tomáticas nas provas de função hepática. A he- A febre com calafrios e sudorese, precede co-
patotoxidade clinicamente óbvia, que habitual- mumente o início da icterícia. A evolução pode
mente se assemelha à hepatite viral aguda ou à levar à morte em alguns dias, ou pode ocorrer
hepatite ativa crônica, é muito menos comum e recuperação rápida e completa. Alguns pacien-
surge, em geral, nas 20 semanas após o início tes têm uma evolução mais prolongada antes
da administração de metildopa. O teste de da sua recuperação ou do desenvolvimento de
Coombs pode se tornar positivo nos usuários insuficiência hepática. Os metabólicos do ha-
desse fármaco, porém não se correlaciona com lotano formados pelo sistema do citocromo
o desenvolvimento de lesão hepática. Além dis- P-450 são claramente importantes no mecanis-
so, as manifestações clínicas de hipersensibili- mo da lesão hepática. Alguns desses metabó-
dade medicamentosa são incomuns na hepato- licos podem ser diretamente tóxicos; outros
patia induzida por metildopa, que pode ser podem formar haptenos com as proteínas da
mediada por um metabólito tóxico do fármaco. membrana celular, provocando um ataque ao
Em geral, a hepatite regride, quando o fármaco fígado imunologicamente mediado. Pode ocor-
é interrompido; entretanto a recuperação pode rer sensibilização cruzada entre o halotano, o
ser retardada de vários meses, e, em alguns ca- metoxiflurano e o enflurano, embora a lesão
sos, ocorre progressão para um desfecho fatal a hepática pareça ser menos comum com os dois
despeito da interrupção do medicamento. últimos agentes anestésicos.
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8 - Fenitoína mente deficiência de carnitina (molécula respon-


sável pelo transporte de ácidos graxos para o
Este anticonvulsivante pode estar raramente interior da mitocôndria, onde sofrem betaoxida-
associado a um quadro de injúria hepática ção), e que esta deficiência se correlaciona em
grave, semelhante à hepatite viral (em termos grande parte com os efeitos hepatotóxicos do
de histopatológico e laboratório), porém, cur- fármaco. Seguindo este raciocínio, foi demons-
sando também com sinais proeminentes de trado que a administração de L-carnitina pela
“hipersensibilidade” (do tipo “doença do via endovenosa (50 mg/kg/dia) reduz de forma
soro”). Os sintomas começam dentro de seis importante a morbimortalidade associada à he-
semanas do seu uso, apresentando-se com patotoxicidade do ácido valproico!
mal-estar, febre alta, linfadenopatia e rash
cutâneo. O hemograma revela leucocitose
neutrofílica, linfocitose atípica e eosinofilia. 10 - Anticoncepcionais Orais (ACO)
A hepatite difere da hepatite viral aguda ape-
nas por conter eosinófilos no infiltrado portal. Esses agentes hormonais produzem vários
A predisposição à hepatotoxicidade pela fe- efeitos adversos sobre o sistema hepatobiliar:
nitoína é geneticamente predeterminada – uma 1- colestase hepatocelular; 2- neoplasias dos
incapacidade inata de metabolizar os óxidos hepatócitos; 3- maior predisposição à formação
arenos altamente reativos provenientes da de cálculos biliares de colesterol; e 4- trombo-
biotransformação do fármaco. se de veia hepática (síndrome de Budd-Chiari).
Esta última complicação parece ocorrer em
indivíduos com síndrome mieloproliferativa
9 - Ácido Valproico ainda assintomática.

Este anticonvulsivante de amplo espectro é Os efeitos colestáticos dos anticoncepcionais


utilizado no tratamento do pequeno mal e no orais podem ser atribuídos, em grande parte, ao
grande mal epilépticos. A hepatotoxicidade componente estrogênico. Os estrogênios parecem
pode ser grave, especialmente em crianças com afetar diretamente vários aspectos da formação
idade < 10 anos. Tal como ocorre com a iso- da bile. A maioria das usuárias de ACO exibe
niazida, o uso do valproato pode elevar apenas distúrbios sutis na função excretora hepática. Um
levemente as aminotransferases, o que não pequeno número de pacientes desenvolve coles-
justifica a sua suspensão. Em raros casos, pode tase clínica com prurido e icterícia algumas se-
ocorrer injúria hepática grave, cuja biópsia manas ou meses após iniciar o uso de ACO. Não
hepática demonstra necrose centrolobular e há manifestações de hipersensibilidade medica-
esteatose microvesicular. Alguns pacientes mentosa, e, histologicamente, observa-se coles-
podem até desenvolver insuficiência hepática tase sem inflamação ou necrose dos hepatócitos.
grave fatal. Na maioria dos casos a suspensão
da droga é suficiente para garantir uma boa O tratamento da colestase por anticoncepcio-
recuperação do paciente. nais orais-induzida consiste na interrupção do
fármaco e em suporte sintomático, quando
Estudos recentes mostraram que o paciente in- necessário. A resolução completa em dois a três
toxicado por ácido valproico desenvolve comu- meses é a regra.

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