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Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional


ou uma concepção da constituição?*
Neocostituzionalismo: un modello costituzionale o una
concezione della costituzione?

Susanna Pozzolo**
Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Apresentarei uma breve introdução sobre a noção de neoconstitucionalismo. A isso seguirá a análise
de alguns pontos especialmente interessantes e problemáticos sobre os quais se confrontam os opostos susten-
tadores do jurispositivismo e neoconstitucionalismo. No ponto 1.1 desenvolverei algumas considerações sobre
o modelo preceptivo e sobre sua relação entre direito e moral. No ponto 1.2 apresentarei algumas considerações
sobre o modelo preceptivo e sobre a tese da especificidade da interpretação constitucional. No ponto 1.3 de-
senvolverei algumas considerações sobre a ponderação dos princípios constitucionais. No ponto 2 apresentarei
algumas considerações conclusivas, argumentando a favor de uma diferente configuração do papel da jurisdição
no sistema das fontes (nos países de direito codificado). A tese que pretendo defender com essa análise afirma
que as exigências interpretativas perseguidas pela doutrina neoconstitucionalista são intimamente dependentes
da forma em que ela concebe a constituição, por nada objetivas. Em segundo lugar, os meus argumentos serão
dirigidos também à crítica da proposta neoconstitucionalista pela perspectiva do constitucionalismo garantista.
Palavras-chave: Interpretação. Constituição. Princípio.

Riassunto: Proporrò una breve introduzione sulla nozione di neocostituzionalismo. A ciò farà seguito l’analisi
di alcuni punti particolarmente interessanti e problematici sui quali si confrontano gli opposti sostenitori di
giuspositivismo e neocostituzionalismo. Nel punto 1.1. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo
e sul rapporto fra diritto e morale. Nel punto 1.2. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo e sulla
tesi della specificità dell’interpretazione costituzionale. Nel punto 1.3. svolgerò alcune considerazioni sulla
ponderazione dei principi costituzionali. Nel punto 2. svolgerò alcune considerazioni conclusive, argomentando
a favore di una diversa configurazione del ruolo della giurisdizione nel sistema delle fonti (nei paesi a diritto
codificato). La tesi che intendo suffragare con tale analisi afferma che le esigenze interpretative avanzate dalla
dottrina neocostituzionalista sono strettamente dipendenti dalla forma in cui essa concepisce la costituzione e
per nulla oggettive. In secondo luogo, i miei argomenti saranno diretti anche alla critica della proposta neocos-
tituzionalista dalla prospettiva del costituzionalismo garantista.
Parole chiave: Interpretazione. Costituzione. Principi.

Abstract: I will propose a short introduction on the knowledge of neoconstitutionalism. It will be followed by
the analysis of a few points particularly interesting and problematic which the opposites supportive of legal po-
sitivism and neoconstitutionalism are compared on. In the point 1.1. I will develop a few considerations on the
preceptive model and on the connection between law and moral. In the point 1.2. I will develop a few considera-
tions on the preceptive model and on the thesis of the specificity of the constitutional interpretation. In the point
1.3. I will develop a few considerations on the balancing (ponderazione) of the constitutional principles. In the
point 2. I will develop a few (partial) conclusive considerations, deducing in favor of a different configuration
of the role of the jurisdiction in the system of the sources of law (in civil law systems). The thesis I intend to
support with such analysis claims that the interpretative demands advanced by the neoconstitutionalism doctrine
are tight dependent from the form in which it conceives the constitution and for nothing objective. In second
place, my subjects will be directed also to the criticism of the neoconstitutionalist proposal by the perspective
of the constitutionalism as guarantor of liberties and rights.
Key Words: Interpretation. Constitution. Principles.

*Tradução do italiano para português por Juliana Salvetti, revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.
**Ricercatore in Filosofia del diritto presso la Facoltà di Giurisprudenza dell’Università degli Studi di Brescia (Indirizzo: via
del Camoscio 10/7, 16142 Genova (Italia), tel: 00 39 010 8376591-cellulare 0039 347 4140485; email:susanna.pozzolo@giuri.
unige.it; pozzolo@jus.unibs.it)

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Introdução os mesmos podem ser isolados de modo a


reconstruir um modelo peculiar de sistema
O termo ‘neoconstitucionalismo’ jurídico. Dado que aos caracteres desse úl-
foi originariamente criado para identificar timo modelo pareceriam poder adequar-se
uma perspectiva jusfilosófica que se coloca em geral as constituições do segundo pós-
como intermediária entre positivismo jurí- guerra, o neoconstitucionalismo repre-
dico e jusnaturalismo: doutrinas das quais sentaria a doutrina do constitucionalismo
o neoconstitucionalismo teria, por assim contemporâneo. Por uma perspectiva dife-
dizer, eliminado os defeitos e reunidos os rente, ‘neoconstitucionalista’ seria aquele
méritos. O vocábulo neoconstitucionalis- ordenamento jurídico que tenha sofrido,
mo, todavia, sofreu quase imediatamente em qualquer medida, um processo de
algumas depreciações significativas, inter- ‘constitucionalização’, um processo que
ligadas à sua ampla difusão no vocabulário leva o ordenamento jurídico ser totalmente
dos jusfilósofos, que lhe permitiram indi- impregnado pela constituição (GUASTI-
car até outros fenômenos. Uma primeira NI, 1998).
modificação ampliou a sua capacidade de- O uso de neoconstitucionalismo para
notativa e reduziu as suas potencialidades indicar o modelo jurídico do estado cons-
conotativas: ‘neoconstitucionalismo’ foi titucional de direito gera uma espécie de
empregado também para indicar o cons- redundância e é fonte de confusão. Consi-
titucionalismo tout court. Uma segunda dero inapropriado esse uso porque o termo
modificação permitiu ao vocábulo indicar foi originariamente pensado para indicar e
não mais uma doutrina, mas o modelo continua indicando uma doutrina antijus-
de sistema jurídico dotado de específicas positivista que nega utilidade justamente
características (uma constituição longa e àquele tipo de ciência do direito que se
densa): o estado constitucional de direi- preocupa em individuar o modelo de esta-
to (MAZZARESE, 2002). Seguidamen- do o qual se decidiu recentemente denomi-
te, outras modificações, qualitativamente nar neoconstitucionalista. Parece-me, ao
diferentes, permitiram ao vocábulo ser contrário, interessante associar a perspec-
empregado para operar uma série de pará- tiva neoconstitucionalista com o fenômeno
frases da subdivisão de Bobbio de positi- da constitucionalização, já que nesse caso
vismo jurídico: individualizando assim um serão esclarecidas algumas características
neoconstitucionalismo como teoria, como peculiares e distintivas. Refiro-me à pa-
ideologia e como metodologia (COMAN- ráfrase bobbiana, de frente às vantagens
DUCCI, 2002). analíticas que dela derivam, ela finda por
Essas modificações, evidenciadas reconhecer um elevado grau de elaboração
ocasionalmente, criam também uma certa que o neoconstitucionalismo não possui.
confusão. Os vários sentidos, na realida- A tese que defendo nessas páginas
de, estão ligados entre si construindo um é dirigida à reafirmação da originalidade
mosaico cujas pastilhas são difíceis de se- do sentido atribuído ao termo ‘neoconsti-
parar, já que entre eles existe uma forte in- tucionalismo’ e é dirigida a oferecer argu-
terdependência e interligação. Creio que a mentos hábeis que sustentem as exigências
primeira modificação permitiu a segunda: interpretativas prosseguidas pelo neocons-
assumindo ‘neoconstitucionalismo’ como titucionalismo, em relação ao estado de
uma espécie de ‘exatidão’ do ‘constitucio- direito constitucional, são intimamente
nalismo’, uma vez individuados os carac- dependentes do modo em que tal doutrina
teres que determinam sua especificidade, concebe a constituição. Considero que o

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modo de interpretar a constituição está in- reflexão e uma crítica que, às vezes, pro-
timamente ligado ao modo de concebê-la, vinha do mesmo positivismo jurídico e,
ou seja, a metodologia interpretativa e as outras vezes, de áreas teóricas aparente-
exigências interpretativas interligadas não mente próximas e não opostas. No mundo
dependem de uma configuração, por assim anglo-saxão, em especial, foi uma crítica
dizer, neutra, objetiva ou verdadeira, mas dworkiniana que colocou em dificuldade
sim da específica reconstrução neoconsti- o sofisticado positivismo hartiano, dando
tucionalista. Particularmente eles derivam vida a um intenso debate em torno da dico-
da adoção do modelo preceptivo da cons- tomia positivismo inclusivo - positivismo
tituição como norma. Não compartilho, exclusivo (ESCUDERO, 2004).
portanto, da tese daqueles que individua- Na área dos países de civil law as
lizam um modelo institucional essencial- vozes críticas são mais diversificadas, mas
mente neoconstitucionalista, se não como tudo somado convergem sobre uma tese
produto interpretativo-reconstrutivo com de fundo que consiste na afirmação da in-
base em certas assunções ideológicas-po- compatibilidade entre positivismo jurídico
líticas relativas à constituição. Ocorre, to- e constitucionalismo contemporâneo: essa
davia, lembrar-se que a afirmação de uma última crítica e a doutrina que a sustenta
concepção da constituição (no nosso caso
foi denominada neoconstitucionalismo
neoconstitucionalista) determina certas
(POZZOLO, 1997, 2001).
exigências interpretativas e o uso de téc-
A crítica neoconstitucionalista indi-
nicas particulares (por exemplo, a ponde-
vidualiza na teoria e na metodologia do
ração dos valores) que se tornam exercício
positivismo jurídico uma ligação incin-
compartilhado e nesse modo contribuem
dível com o estado de direito do século
para redesenhar ou reconfigurar o objeto
VIII, assim sendo, com a supremacia da
interpretado (a constituição). Nesse sen-
tido, tais práticas acabam conformando o lei ordinária do sistema das fontes, com a
estado de direito constitucional, tornando- supremacia da vontade do legislador sobre
o conforme as assunções das concepções a justiça. Essa ligação e tudo que a segue
de partida, ou seja, a concepção acaba de- tornariam inadequado o juspositivismo
terminando uma certa percepção da reali- para enfrentar o direito do estado constitu-
dade por parte dos operadores, portanto, cional. Direito que seria caracterizado:
endereçam-lhes as praxes, e, finalmente, 1 - Pela supremacia da constituição
reconfigura a própria realidade onde eles sobre a lei ordinária;
operam: os ordenamentos contemporâneos 2 - Pela subordinação da vontade le-
estão quase todos envolvidos em um pro- gislativa aos conteúdos de justiça constitu-
cesso de constitucionalização (no sentido cionalmente previstos (a constituição não
de Guastini). constitui um mero invólucro político e de
Diversos são os aspectos aptos para inspiração para o sistema e nem ao menos
caracterizar o neoconstitucionalismo como um simples grau superior de formalidade,
doutrina da interpretação constitucional. mas introduz um vínculo substancial à
Entre esses, aquele central que consiste na criação do direito positivo);
peculiar e específica crítica que os autores 3 - Pela rigidez;
subsumíveis, sob esse apelativo, retornem 4 - Pela garantia da constituição
ao positivismo jurídico. Esse último, mui- (PRIETO SANCHES, 2003, pp. 112-117).
tas vezes e em diversos modos criticado e A capacidade penetrante que caracteriza o
elogiado, viu em anos recentes surgir uma texto constitucional, permeado de princípios

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e de conteúdos de valor, determina a cons- cessidade, mas uma escolha: um modo de


titucionalização do inteiro ordenamento conceber o papel e a função da constitui-
(Guastini, 1998) e, portanto, favorece: ção é tudo o que determina a reconstrução
5 - A aplicação direta da constituição neoconstitucionalista do direito do estado
às relações interparticulares, coisa que im- constitucional.
plica; Nas reflexões que se segue sinaliza-
6 - A exigência da obediência dire- rei alguns pontos críticos que, a meu ver,
tamente aos cidadãos: a constituição não podem contribuir para demonstrar como a
é mais só norma para os órgãos do estado doutrina neoconstitucionalista avança em
(GUASTINI, 2001, 63-67). pretensões e exigências interpretativas do
Para esse direito adequar-se-iam direito constitucionalizado que dependem
instrumentos conceituais mais moderados intimamente do modo em que a própria
e flexíveis do que aqueles positivistas. É doutrina concebe a constituição e não são,
apropriado, desde já, notar que atrás da ao contrário, exigências objetivas determi-
objeção descritivo-explicativa dirigida ao nadas pelo objeto constituição. No ponto
positivismo jurídico se oculta uma norma- 1.1 desenvolverei algumas considerações
tiva que se detém na impermeabilidade do sobre o modelo preceptivo e sobre a rela-
direito, juspositivisticamente compreendi- ção entre direito e moral. No ponto 1.2 de-
do, à crítica moral construída baseando-se senvolverei algumas considerações sobre
nos valores constitucionais. modelo preceptivo e sobre a tese da espe-
O neoconstitucionalismo, portanto, cificidade da interpretação constitucional.
afirma a arcaicidade do positivismo ju- No ponto 1.3 desenvolverei algumas con-
rídico, não por razões a ele internas, mas siderações sobre a ponderação dos princí-
porque, como um antigo instrumento de pios constitucionais.
relevância científica, uma vez conferida
a maior complexidade do fenômeno que 1.1 O ‘modelo preceptivo da constituição
deveria medir, então, constatada a sua im- concebida como norma’. Direito e moral.
precisão e ineficiência descritiva, é subs-
tituído por instrumentos mais atuais e so- Se o jurispositivismo afirma que o
fisticados, resultado da evolução científica. direito identifica-se com a lei e que essa
Substancialmente, o argumento neoconsti- pode ter qualquer conteúdo, o neoconstitu-
tucionalista sustenta que, determinada a cionalismo afirma que o direito do estado
mais complexa natureza do objeto ‘direito constitucional não se adapta a essa descri-
positivo’ no âmbito do estado constitu- ção ou, pelo menos, não completamente.
cional (em relação ao estado de direito), Se bem que ‘constituição’ seja termo
o instrumento ‘positivismo jurídico’ deve polissêmico, aos presentes fins podem ser
ser substituído porque obsoleto. Pode-se considerados somente dois tipos abstratos
duvidar dessa reconstrução ‘científico- de constituição: um tipo procedimental e
descritiva’, que torna necessária a escolha um tipo substantivo-preceptivo. As consti-
neoconstitucionalista, se não outra, porque tuições contemporâneas, longas e densas,
isso que o neoconstitucionalismo apresen- caracterizam-se por fundir esses dois tipos
ta como um objetivo modelo institucional juntos, apresentando meta-regras no sen-
corresponde mais a uma característica tido lato organizativas e meta-regras que
concepção da constituição. Para os teóri- estabelecem princípios e valores aos quais
cos do direito a adoção de uma concepção se deve conformar a legislação infraconsti-
preceptiva da constituição não é uma ne- tucional. Por isso são rígidas e garantistas.

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Depois de ter individuado nesse perspectiva, a constituição, caracteristica-


modo o objeto ‘constituição’ restam, to- mente situada acima das maiorias parla-
davia, possíveis diversas concepções da mentares e acima das vontades contingen-
constituição: pelo menos, uma concepção tes, constitui um acordo sobre os valores
descritiva de uma concepção preceptivo- fundamentais que irradia seus efeitos sobre
substantiva. todo o ordenamento, chamando o legisla-
Segundo a primeira, a constituição é dor ao seu desenvolvimento.
um conjunto de regras jurídicas positivas O estado de direito constitucional
consideradas superiores ou fundamentais impõe, efetivamente, uma profunda mu-
em relação às outras regras do sistema. A dança ao sistema das fontes: subordina a
constituição representa uma norma sobre o lei a critérios formais e materiais de vali-
exercício do poder e em particular sobre a dade. Tal mutação, porém, tem diversos
produção do direito: falaremos em primei- efeitos dependendo do modo em que se
ro lugar dos órgãos que exercitam o poder concebe a própria constituição. Adotando
jurídico nas suas várias formas, submete o uma concepção preceptivo-substantiva, a
juiz à restrita observância da lei e o legisla- constituição não é só a norma de grau jurí-
dor em relação ao princípio de legalidade. dico-hierárquico mais elevado, mas cons-
Essa concepção constitucional é di- titui a norma axiologicamente suprema. A
visionista, visa descrever fenômenos so- constituição então não exige só respeito,
ciais que pertencem ao mundo do dever não é só vínculo negativo para o legislador,
ser mantendo-os separados do ser e cor- ela impõe o próprio progresso e a própria
responde a uma leitura constitucionalística declinação positiva. A constituição repre-
liberal, baseada na confiança para com os senta o ponto de conexão entre a esfera
governantes e legisladores de quem procu- jurídica e a esfera moral veiculando uma
ra limitar o poder. concepção da justiça que avança preten-
A segunda também concebe, a con- sões universais. Nesse sentido o direito do
cepção preceptivo-substantiva, a constitui- estado constitucional não deve ser só legal,
ção como um conjunto de regras jurídicas mas também justo: avança pretensões de
positivas expressas e fundamentais, em justiça (“Direito injusto” e “Gelo fervente”
relação as outras regras, todavia, diferen- seriam ambos oxímoros).
temente da outra, afirma que tais regras As constituições contemporâneas têm
assumem o caráter constitucional em ra- efetivamente demonstrado uma notável e
zão do especial conteúdo que exprimem. geral força penetrante, que unida a uma
Não é qualquer disciplina fundamental dos concepção preceptivo-substantiva impôs
poderes públicos que pode ser qualificada a tendência à adequação do ordenamento
como ‘constituição’, mas só aquela que ex- (de modo positivo, não só a respeito dos)
prime certos valores, o que permite discri- aos princípios de justiça nelas expressas. A
minar as constituições verdadeiras daquela lei, contudo, não pode ter qualquer conte-
‘aparentes’. Essa concepção da constitui- údo, mas principalmente o direito não se
ção não distingue entre o plano do ser e o exaure na lei. Todavia, a introdução de um
plano do dever ser, a carta constitucional é mais elevado nível normativo e de limites
concebida como um documento normativo à legislação são fatos que não implicam na
que apresenta especificas características e adoção da perspectiva neoconstituciona-
conteúdos de valor pelos quais se distingue lista. Do ponto de vista de uma concepção
dos outros documentos jurídicos. Nessa positivística descritiva, tais eventos assi-

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nalam a determinação de um duplo nível Não é a introdução da constituição


de legislação e de uma qualquer forma, que determina a constitucionalização, an-
mais ou menos acentuada, de necessária tes é a adoção de uma concepção subs-
compatibilidade entre os dois níveis nor- tancialística e da leitura que dela procede
mativos, ou seja, o necessário respeito ou o fator determinante. Mesmo aceitando
adequação do grau de legislação inferior uma concepção substancialística da cons-
(lei) àquele superior (constituição). Nesse tituição, de qualquer modo, os valores que
sentido, é claro que a lei não possa ter um ela exprime poderiam ser diferentemente
conteúdo qualquer: ela deve ser compatí- declinados, nesse sentido permaneceria
vel com a constituição. Nessa perspectiva uma ampla margem de discricionariedade
o direito certamente não se exaure na lei política para o legislador, e o juiz das leis
ordinária, mas poderia ser sustentado que poderia operar um julgamento de compati-
se exaure na lei constitucional. O conteúdo bilidade constitucional. Todavia, na medi-
do direito é, portanto, um dado contingente da em que se difunde uma concepção pre-
determinado pela vontade dos constituin- ceptivo-substantiva acentua-se o recurso
tes, do legislador e dos intérpretes. Nesse ao sindicato de constitucionalidade e dele
contexto modificado, a lei tendencialmente se espera um mero juízo de compatibili-
assumirá deveres de atuação, de progresso dade. Sendo nesse caso um desencontro
e de aplicação da constituição: o grau de sobre os valores e sobre a sua leitura, já
desenvolvimento dessa tendência reduzirá que são múltiplas as concepções do bem
de modo diferente o caráter de livre ex- que podem derivar dos princípios e dos
pressão do poder político da lei. valores aceitos no texto de modo amplo e
O processo de constitucionalização genérico, na medida em que se abandona a
demonstra como a organização estatal não postura descritiva (que torna tais concep-
é um mero árbitro, mas antes um jogador. ções entre elas compatíveis e, portanto,
Embora a simples introdução da constitui- torna legítima a escolha entre uma delas,
ção, mesmo do gênero longo e denso (so- escolha que nesse sentido envolve a liber-
bre os conceitos ‘densos’ ver CELANO, dade política do legislador), os diversos
2002, 1994), no sistema das fontes deixa sujeitos interessados recorrerão ao juízo
abertos muitos caminhos, em relação à de- das cortes (percebidas ainda, pelo menos
finição das relações entre órgãos constitu- idealmente, como meros lugares do saber
cionais (entre os quais estão divididas as jurídico objetivo) para ver afirmado a pró-
funções do poder) e à reconstrução do seu pria concepção ‘verdadeira’ do bem. Eis
sentido e da sua importância, representa que mudam e aumentam as competências
de qualquer modo um dos elementos cen- atribuídas à constituição: a ela é confiada
trais daquele processo de juridicização da a função específica de modelar as relações
política e de difusão do léxico dos direitos sociais através da aplicação dos princípios
que, evidenciando a exigência política de expressos; a constituição perde o caráter
recobrir com a neutralidade ou com a uni- de limite e garantia da atividade política,
versalidade certos valores, permite colocar perde o dever de preservar o mais alto grau
às claras, paradoxalmente, o caráter ativo de legalidade e torna-se programa ou ende-
e participativo da organização estatal, dis- reço que legislador deve perseguir.
tribuidora de políticas públicas que rema- Comparando a concepção descritiva
nejam a riqueza segundo uma concepção juspositivística e a concepção precepti-
qualquer da justiça ou do bem. vo-substantiva neoconstitucionalista deli-

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neiam-se mais claramente os dois modelos A essa primeira reutilização de ins-


constitucionais: trumentos hartianos segue-se à adoção de
1 - Um próprio do liberalismo ga- uma noção de normas jurídicas insepa-
rantista, enquanto a constituição represen- ravelmente ligada àquela de ‘razão para
ta uma moldura aberta, no qual interior, agir’, ou seja, de razão que justifica a ação
respeitando alguns limites, desenvolve-se (RAZ, 1999; REDONDO. 1996; BAYON,
livremente o jogo das forças políticas (por 1991): o ordenamento jurídico seria um
exemplo, a concepção kelseniana); sistema normativo que oferece razões para
2 - O outro próprio do neoconstitucio- agir (NINO, 1994). Para poder oferecer ra-
nalismo, enquanto a constituição é endere- zões capazes de justificar ações e decisões,
ço vinculante, é um ordenamento de valores o direito deve apresentar determinados
estruturados e dominantes do progresso da conteúdos moralmente corretos: um siste-
legislação (por exemplo: Zagrebelsky, ma separado por tais conteúdos não seria
1992, p. 209). Definitivamente, embora o es- um verdadeiro sistema jurídico, poderia
tado constitucional repouse na noção, torna- no máximo oferecer razões meramente de
da mais genérica, de ‘estado de direito’, na cautela, isto é, fundada no temor da sanção
perspectiva neoconstitucionalista distingue- cominada (mas uma razão de cautela não
se ou especifica-se pela substancialização e é uma razão para agir; por exemplo, RAZ,
a penetrabilidade da constituição e, sobretu- 1999). O direito do estado constitucional,
do, pela pretensão de justiça universalística de fato, não seria um mero sistema coer-
dos princípios constitucionais, e, portanto, citivo e teria, ao contrário, o dever funda-
do direito positivo (como na perspectiva mental de desenvolver o bem comum, por
jusnaturalista, um direito separado dos con- cujo exercício da força não lhe representa
teúdos de justiça não seria um ‘verdadeiro’ o elemento definitório, mas um elemento
direito, mas mera coerção). acessório e determinado por circunstân-
Para defender a pretensão de justiça cias contingentes. Em última instância,
do direito constitucionalizado, o neoconsti- para qualificar como ‘jurídico’ um sistema
tucionalismo paradoxalmente saqueia ins- normativo ou uma simples norma seria
trumentos conceituais positivísticos. Particu- necessário o conteúdo de justiça expresso
larmente, menciona-se a distinção hartiana (Alexy, 1994).
entre o ponto de vista interno e o ponto de Diferentemente das tradicionais for-
vista externo, reinterpretando-a como distin- mas de jusnaturalismo, das quais por essa
ção entre participantes e observadores exter- razão o neoconstitucionalismo delas se
nos ao direito. O direito do estado constitu- distingue, o conteúdo de justiça do orde-
cional colocaria em evidência a prioridade namento não seria um ideal externo ou na-
lógica do ponto de vista do participante sobre turalístico, mas um elemento constitutivo
aquele do observador, em razão da necessária intrínseco determinado por valores cons-
consideração que se deveria oferecer às ar- titucionalizados. Os princípios de justiça,
gumentações morais, que claramente emer- de fato, primeiramente relegados ao papel
gem da perspectiva interna (sobre o ponto e de proclamações políticas sem real força
as dificuldades que dela resultariam para o vinculante, seriam agora confirmados, en-
positivismo jurídico ver GOLDSWORTHY, riquecidos e generalizados, tanto que se
1990; PERRY, 1998; NAVARRO, 2000), tornariam deveres para serem alcançados
assim seria conferida a necessidade de uma pelos poderes públicos, cujo agir legítimo
interpretação moral do direito positivo. deve ser conforme. Nessa perspectiva, fa-

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lha aquela aspiração liberal que dirige a ou menos, coerentemente os princípios


atenção aos direitos em função da liber- constitucionais em questão. Trata-se de
dade, para adotar aquela outra perspectiva uma escolha política, baseada em uma
anti-individualística que pensa nos direitos certa reconstrução do conceito de justiça
em função da justiça (ver, por exemplo, e/ou de bem compatível com as diversas
ZAGREBELSKY, 1992, pp. 123-125). E, concepções veiculadas pelo texto consti-
de fato, o neoconstitucionalista afirma que tucional. Nesse sentido, porém, a justiça
com a positivação dos valores constitucio- e a moral não representam um critério de
nais começou a fazer parte dos critérios de validade, mas um sistema de valores exter-
validade o critério moral, de modo que o nos sobre o qual medir e criticar o direito
juízo externo ou ético sobre a justiça do positivo.
direito positivo (por exemplo, de uma lei) Ao contrário, asseverar que a justiça
transforma-se em juízo interno na sua va- (ou a moral) começa a fazer parte dos cri-
lidade (PRIETO SANCHIS, 2003, p. 133). térios de validade sugere que a tese argu-
Desse modo, a justiça (na verdade, uma mentativa como sustento da concretização
concepção do bem) começa a fazer parte escolhida, individua a única solução possí-
dos critérios de validade do sistema, come- vel ou aquela correta. Todavia, na medida
ça a fazer parte dos critérios da regra de em que a concretização corresponda a uma
reconhecimento. concepção do bem geral compartilhada,
Parece pacífico que as constituições ela simplesmente reflete uma concepção
incorporem uma visão ética qualquer, uma da moral positiva, uma moral difundida
concepção qualquer do bem. Todavia, as entre os participantes, mas nada autoriza a
constituições contemporâneas caracteri- atribuir-lhe uma objetividade transcenden-
zam-se por um certo grau de pluralismo, tal. O argumento neoconstitucionalista faz
ou seja, a visão ética acolhida, afortuna- colapsar a distinção entre normas jurídicas
damente, é mais genérica e ampla, para e normas morais: existe um só conceito de
permitir um número múltiplo de concre- norma, aquele moral, já que para ser juri-
tizações compatíveis com o ditado cons- dicamente justificada a norma deve apre-
titucional. Nesse quadro, a perspectiva sentar uma última justificação, ou seja, ba-
descritiva juspositivista permite verificar seada em um princípio que não se justifica,
a mera compatibilidade das concretizações mas que pode ser somente assumido. Nes-
interpretativas, de vez em quando propos- se sentido, aparentemente, é ainda menor
tas, com o ditado constitucional, sem que a a exigência da autoridade, já que tudo que
escolha de uma ou de outra, conservem-se tem valor, vale por méritos intrínsecos.
dentro desse pluralismo, incida sobre a va- Do ponto de vista positivista e descri-
lidade. Essa perspectiva permite e implica tivo não se nega que entre direito e moral
um juízo externo sobre a justiça ao menos existam algumas relações, nega-se que seja
da opção escolhida. A argumentação a fa- a bondade do princípio moral que lhe de-
vor de uma concretização particular, nesse termina a juridicidade, por isso ocorre um
sentido, oferece razões e critérios para in- ato de vontade autoritária: direito e moral
fluenciar o juízo externo, subjetivo, sobre continuam dois âmbitos separados. Aqui a
ela. Mas a tese argumentativa que sustenta distinção entre normas jurídicas e normas
a escolha conservar-se sempre uma opção morais é de caráter conceitual: mesmo se
entre mais teses e escolhas compatíveis, os conteúdos dos dois conjuntos de normas
capazes de declinar positivamente e, mais fossem co-extensivos permaneceriam dois

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conceitos diferentes, já que são diversas as normas jurídicas. A transformação jurídica


definições das umas e das outras. É claro de um princípio moral depende de um ato
que nessa direção a descrição do direito de vontade dotado de autoridade. E, enfim,
positivo remete e exige um juízo externo os princípios constitucionais são parte de
sobre justiça e a bondade do direito positi- um documento jurídico autoritário, consi-
vo e é igualmente evidente que nessa pers- derado vinculante e observado pelos mem-
pectiva a investigação teórica em torno ao bros do grupo social, um documento que
direito positivo não responde ao quesito incorpora uma certa teoria política suscetí-
sobre a justiça, não oferece razões a favor vel de diferente concretização. É sobre essa
ou contra a obrigatoriedade do direito. Mo- última que se exercita a argumentação, que
ral e justiça são sistemas externos ao direi- é em grande parte uma prática persuasiva,
to positivo. sujeita às contingências que conformam o
O neoconstitucionalismo afirma que caso, o tempo histórico, o grupo social, as
a regra de reconhecimento pode incorporar ideologias dos juristas e dos participantes.
critérios morais, de tal modo defende a tese E, ainda, é uma decisão autoritária, aque-
da unidade do raciocínio prático. Como é la que determina o sentido específico dos
conhecida a regra de reconhecimento per- princípios. Com a adoção de uma perspec-
mite identificar ou determina os critérios tiva juspositivística, também para análise
de validade e de identificação das normas do direito do estado constitucional, não
do sistema. Embora, diferentemente do há nenhuma necessidade de estabelecer
neoconstitucionalismo, com uma perspec- um equivalente entre ‘norma jurídica’ e
tiva descritiva juspositivista, o processo de ‘norma obrigatória moralmente’, nem para
produção do direito não é necessariamente aqueles que afirmam nem para aqueles que
um processo de pesquisa da correção mo- negam a existência da moral objetiva.
ral, a eventual presença de critérios morais
entre aqueles da regra de reconhecimento 1.2 Modelo preceptivo da constituição e
não é coisa que falte à tese da separação especificidade da interpretação consti-
(NARVAEZ-POZZOLO, 2003). De fato, tucional.
mesmo se toda regra de reconhecimento
exigisse que o direito válido fosse moral- O problema determinado pela eleva-
mente correto isso não enfraqueceria a dis- da conflituosidade entre princípios consti-
tinção conceitual, já que a correção moral tucionais parece-me intimamente interli-
e aquela jurídica seriam de qualquer forma gada à concepção neoconstitucionalista da
definições diferentes e a sua coincidência constituição. De fato, pode considerar-se
seria um fato contingente: haveria co-ex- que um certo grau de conflituosidade entre
tensividade, mas não co-intencionalidade. princípios, direitos fundamentais e valores
A relação entre direito e a moral social constitucionais seja um dado ‘natural’ das
entendida como uma questão de fato, não constituições longas e densas, ou seja, não
é negada pelo positivismo jurídico: que se trata tanto de um vício de origem quanto
a criação e a modificação ou a manuten- de um elemento característico (CELANO,
ção de normas jurídicas esteja interligada 2002). Os direitos, especificamente, carac-
à adoção de certos valores não qualifica, terizam-se por serem formulados genérica
nem ao menos para aqueles que crêem em e amplamente, com expressões freqüente-
qualquer tipo de correção moral, como mente ‘absolutas’ que se não determinam
moralmente correto nem os valores nem as antinomias abstratamente quase sempre as

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240 Suzanna Pozzolo

determinam concretamente. Bem, a deter- Observando os sujeitos da interpreta-


minação de tais conflitos e a procura por ção constitucional, a especificidade depen-
sua solução torna-se problema na medida derá da estrutura do ordenamento jurídico
em que seja aceita uma concepção precep- (GUASTINI, 1996 b, pp. 238-241; PRIE-
tivo-substantiva da constituição, já que ela TO SANCHIS, 1991, p. 176): se o orde-
pressupõe a compatibilidade necessária namento prevê um juízo constitucional
entre princípios ou direitos constitucionais concentrado em um órgão, pode-se indivi-
(COMANDUCCI, 2003). A adoção de uma dualizar uma especificidade da interpreta-
tal concepção pressupõe a possibilidade de ção da constituição em relação à interpre-
distinguir as ‘verdadeiras’ constituições tação da lei enquanto que a competência da
das ‘falsas constituições’, mas não existe interpretação/aplicação de uma e de outra
maneira, além da convenção significativa é atribuída pelo ordenamento a um sujei-
em relação ao termo ‘constituição’, de dis- to diferente. Todavia, se tal ordenamento
tinguir entre as primeiras e as outras: o dis- prevê um controle difuso de constitucio-
curso neoconstitucionalista, portanto, ten- nalidade, a especificidade não acontecerá,
de a fazer passar por uma descrição tudo o dado que diversificado será o sujeito com-
que se caracteriza como, no mínimo, uma petente pela interpretação/ aplicação de
sugestão estipuladora e, no máximo, uma
constituição e lei.
prescrição ou um discurso persuasivo.
Se observarmos os efeitos causados
A isso se une a tese da especificida-
pelas sentenças do juiz constitucional,
de da interpretação constitucional. Que é,
falaremos de especificidade, por exem-
se existe, a especificidade da interpretação
plo, em relação aos ordenamentos onde
constitucional? O que distingue a inter-
está previsto um controle concentrado de
pretação da constituição da interpretação
constitucionalidade, já que nesses casos as
de qualquer outro texto normativo? A in-
terpretação da constituição é diferente da sentenças de acolhimento do juiz constitu-
interpretação da lei? A minha tese sustenta cional têm efeitos erga omnes, mas não ra-
que as peculiares exigências persistidas ciocinaremos pelos ordenamentos, onde é
pelo neoconstitucionalismo resultam da previsto um controle difuso, já que as sen-
forma em que ele concebe a constituição, tenças têm validades inter partes. Especifi-
ou seja, pela conformação do objeto que cidades, pois, podem originar-se da maior
quer interpretar (POZZOLO, 1997). relevância político-social que as decisões
De interpretação específica do tex- constitucionais costumam apresentar.
to constitucional pode-se raciocinar em No tocante às técnicas interpretativas
diversos sentidos (PRIETO SANCHIS, é duvidoso que se possa falar de especi-
1991; GUASTINI, 1996; 2004), algumas ficidade se por atividades interpretativas
características peculiares da constituição entende-se atribuição de significado para
permitem falar de especificidade. Pode-se um texto. Todavia, com esse propósito,
individuar uma especificidade com base: o neoconstitucionalismo afirma que os
I) nos sujeitos peculiares da interpretação; enunciados constitucionais que exprimem
II) no uso de características técnicas inter- princípios não são interpretáveis da mesma
pretativas/aplicativas adotadas pelo texto maneira daqueles que exprimem regras:
constitucional; III) nos efeitos peculiares a operação que aqui atribui significado
causados pelas sentenças do juiz constitu- não se limitaria a uma análise lingüística
cional; IV) na rigidez ou flexibilidade da (aparentemente adaptada às regras), o sig-
constituição; V) no objeto ‘constituição’. nificado dos princípios deveria ser toma-

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NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 241

do baseando-se nas concepções morais e A diversidade do objeto ‘constitui-


políticas que pressupõem. Esses standard ção’ baseia-se fundamentalmente na pre-
são conceitos que necessariamente re- sença de princípios que, uma vez caracte-
tornam às concessões, mas na linguagem rizados como valores morais positivados,
constitucional eles são convenientemente para serem compreendidos necessitam de
admitidos como indeterminados para que considerações morais, resolvendo o pro-
se adaptem às diversas concepções. Cabe blema interpretativo do direito constitucio-
ao legislador e em parte ao juiz (segundo nal em uma interpretação moral da consti-
o neoconstitucionalismo, em relação às tuição. Isso pressupõe que o intérprete aja
exigências do caso concreto) estabelecer, comparando um modelo ideal de consti-
a cada vez, a melhor concepção possível tuição com o modelo real e interprete esse
conforme e coerentemente com todo o último com base nas assunções de valores
sistema (DWORKIN, 1977). Pode-se in- originados pelo primeiro (NINO, 1996b);
dividuar uma especificidade em relação às obviamente, pressupondo que tudo isso
técnicas argumentativas no direito cons- aconteça concretamente e nunca abstrata-
titucional: freqüentemente o juízo consti- mente (ZAGREBELSKY, 1992, capítulo
tucional (principalmente se concentrado) VII, par. 4). Certamente, ainda que a hie-
motiva baseando-se em argumentos de rarquia axiológica que resolve o conflito
princípio e em argumentos de justiça. Es- seja colocada pelo juiz em razão do caso
sas peculiaridades, todavia, são de caráter concreto, colocando-se no ponto de vista
contingente, não necessário. E será contin- do ‘bom juiz’, as diferentes interpretações
gente também a especificidade da interpre- deverão ser argumentadas de modo a for-
tação constitucional em razão da rigidez mar um quadro coerente. Apesar disso a
ou da flexibilidade da constituição. hierarquia axiológica instituída mudará
Parece, portanto, que, querendo susten- continuamente em relação às exigências
tar uma tese da especificidade suficientemen- de justiça substancial que todo intérprete,
te forte, deva-se incentivar a especificidade a cada vez, considerará relevantes no caso
do objeto constitucional. E é isso o que faz concreto.
o argumento neoconstitucionalista. Aqui, de Assumindo uma concepção descriti-
fato, o objeto constituição está configurado va positivista, igualmente à lei, a interpre-
como um documento normativo que se espe- tação da constituição consiste na atribui-
cifica em relação à lei e que, portanto, deve ção de significado de um texto normativo:
ser tratado de modo distinto. A constituição a atribuição de significado no caso de um
não é moldura e garantia, mas constitui uma juiz ou levantamento de outras atribuições
espécie de ponte entre o discurso jurídico e o no caso de um observador. Nesse sentido,
discurso moral, para a qual sua interpretação se trata de especificidade será relativa a
e aplicação não podem prescindir de ava- outras características peculiares do orde-
liações éticas. O intérprete constitucional, namento examinado, mas não do objeto
para atribuir significado às disposições cons- ‘constituição’ (GUASTINI, 1996 b, PRIE-
titucionais, e em primeiro lugar àquelas de TO SANCHIS, 1991). Ela poderá ser de-
princípio, deve referir-se a uma tese moral: a terminada: a) pelo sujeito específico, se
linguagem constitucional não é interpretável aqui existe, destinado a interpretação da
com os instrumentos habitualmente utiliza- constituição; b) pelo uso específico ou par-
dos para a interpretação do direito infracons- ticular de técnicas argumentativas; c) pelos
titucional. efeitos específicos que possam determinar

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242 Suzanna Pozzolo

a interpretação da constituição, e assim reito, posição de poder o qual correspon-


por diante. Todavia, nessa perspectiva, é de a responsabilidade política, enquanto o
evidente que não se possa distinguir entre poder jurisdicional tem deveres de garan-
‘verdadeiras’ e ‘falsas’ atribuições de sig- tia e tutela contra leis lesivas dos direitos.
nificado ao ditado constitucional, será pos- A constituição, desse ponto de vista, age
sível, porém, dar vida a uma crítica externa como barreira para as decisões políticas
de tais decisões com base em argumentos adotadas pelo legislador, limitando e cir-
de justiça. cunscrevendo a sua competência para
A tese da especificidade da interpre- produzir novo direito. O poder judiciário
tação constitucional é dirigida a sufragar se configura nesse quadro, mas, principal-
a necessidade da interpretação moral da mente, se auto-representa como um instru-
constituição que, por sua vez, é operacio- mento de contrapeso do poder legislativo
nal a escopos de política do direito e não que anula as decisões que ultrapassam os
exatamente a escopos cognoscitivos. Co- limites de tal competência legislativa.
locam-se, todavia, algumas dificuldades, A configuração neoconstitucionalis-
pelo menos do ponto de vista garantista. ta tolhe o dever das escolhas políticas das
Em primeiro lugar, a interpretação mãos do legislador aumentando o poder da
moral da constituição implica que ela não jurisdição, sem que lhe modifique as res-
possa mais ser assumida como norma mais ponsabilidades institucionais e continuando
elevada do ordenamento jurídico: a consti- a pressupô-lo como um poder de qualquer
tuição não fecha o sistema, pressupõe ser outro sentido, como o detentor do direito
interpretada com base em princípios su- objetivo. Nesse modo, possibilita-se o peri-
periores, supraconstitucionais (TROPER, go do chamado ‘governo dos juízes’ e, pelo
1996), da qual não está clara a sua natu- menos em parte, o perigo de um governo
reza. dos juristas, embora se dissolva o receio do
Em segundo lugar, coloca-se em perigo da ‘tirania da maioria’.
discussão o equilíbrio entre os poderes, Todavia, sempre do ponto de vista
oferecendo uma falsa solução. Se ao juiz constitucionalístico, o moderno estado de
constitucional que aparece como agente direito constitucional é uma democracia
consciente da mutação constitucional (ou o que implica, pelo menos: o princípio de
da necessária evolução da interpretação igualdade, aquele de autonomia e de auto-
constitucional), observa-se que do mesmo determinação dos membros da comunidade
dever é empossado também o juiz ordiná- política; a regra de maioria (pelo menos
rio, na medida em que o texto constitucio- como necessidade funcional), não só fecha-
nal está sujeito a uma interpretação dirigida da à mudança, mas restrita, da qual sejam
a deduzir normas diretamente aplicáveis às excluídos alguns âmbitos normativos. Nes-
controvérsias. se quadro os sujeitos delegados a cumprir
Embora esteja claro que a divisão as escolhas políticas têm, dentro da moldura
das funções do poder baseia-se em parte constitucional, liberdade de instituir hierar-
sobre o ideal somente regulador de uma quias axiológicas, das quais são considera-
jurisprudência neutra, além da sua dimen- dos politicamente responsáveis, em relação
são ideológica, ele oferece um instrumento aos objetivos sócios-políticos que eles con-
de garantia dos direitos individuais. Nesse sideram ter de perseguir. Nessa perspectiva,
esquema, de fato, é só o poder legislativo a interpretação moral da constituição des-
aquele legitimado para produzir novo di- perta grande perplexidade.

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NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 243

Se a discussão intersubjetiva que ca- tabelecem as normas constitucionais. Mas


racteriza a democracia é um valor funda- se colocam ainda outros problemas. Um
mental (porque estimula a autonomia dos desses é do tipo garantístico institucional:
indivíduos, a sua participação à vida so- quem controla o controlador? (GUAS-
cial, e assim por diante); se considerarmos TINI, 1990). O outro é mais genérico: na
que o processo democrático e a discussão medida em que a tutela dos direitos não é
intersubjetiva sejam mais profícuos do que mais confiada às palavras do direito, mas à
a reflexão individual: a superioridade mo- interpretação moral do juiz, diminui a rele-
ral do juízo do juiz em relação à avaliação vância do próprio direito . Todavia, a his-
do legislador não se elucida. Isso não inva- tórica precariedade dos direitos encontrou
lida a utilidade de um controle de consti- um terreno mais sólido justamente na sua
tucionalidade das leis, porque as decisões afirmação jurídica e não meramente moral.
tomadas pela maioria poderiam apresentar Além de que, não tendo obtido atualmente
alguns vícios de forma e de conteúdos e nenhum acordo sobre um conjunto deter-
o controle de constitucionalidade é um minado de normas morais, a operação que
juízo de compatibilidade constitucional. para lá transfere os direitos, tolhendo-os do
Ao contrário, a interpretação moral con- plano jurídico, cria a ilusão da sua seguran-
fiada aos juízes enfraquece o princípio da ça, escondendo a sua intrínseca fragilidade
autodeterminação e confia deveres educa- (sobre esse ponto, consultar WALDROM,
tivos à aplicação do direito. Também essa 1993; contra MORESO, 1997; HOLMES,
objeção não invalida a utilidade do juízo 1988; BULYGIN, 1991; GUASTINI,
de constitucionalidade das leis, na medi- 1994).
da em que tenham sido os indivíduos (nas Finalmente, aplicação dúctil ( ZA-
autoridades do poder constituinte) a esta- GREBELSKY, 1992) do direito incide
belecer uma forma de autopaternalismo diretamente sobre a tutela dos direitos.
através do texto constitucional. Isso que se A perspectiva neoconstitucionalista fia-
atinge com a interpretação moral judicial se naquela do ‘bom juiz dotado de bom
da constituição são as mesmas razões em senso’. Todavia, do ponto de vista cons-
favor do processo democrático e aquelas titucionalístico-garantístico, seria melhor
em favor da persistência da constituição. adotar a perspectiva do ‘bad man’, já que
Nessa perspectiva, de fato, coloca-se o o direito apresenta duas faces: uma de ga-
sujeito politicamente mais irresponsável rantia e uma de opressão. Defender a prio-
e inamovível, para reformular as decisões ridade das exigências de justiça concreta e
políticas-valorativas adotadas através do substancial sobre as exigências de certeza,
processo democrático: se a reflexão moral determinação e legalidade, portanto, da in-
individual do único juiz (ou de alguns ‘en- terpretação moral sobre a dura aplicação
saios’) é considerada superior à discussão da lei, parece ir bem até quando nos en-
intersubjetiva, que sentido há em manter contrarmos perante o ‘bom juiz dotado de
um procedimento para a tomada das deci- bom senso’, mas deve estar claro que a di-
sões coletivas de tipo democrático? A per- mensão garantística do direito se dissolve,
sistência da constituição, se compreendida e assim permanece até quando não seja o
como documento auto-obrigatório estabe- bom juiz aquele chamado para julgar.
lecido pelos cidadãos, não teria razão de Em defesa da interpretação moral,
ser porque o juízo moral do juiz individual contra o duro positivismo jurídico, às ve-
seria cada vez mais justo daquilo que es- zes, é lembrada a tristemente conhecida

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244 Suzanna Pozzolo

locução ‘a lei é lei’. Isso, porém, é somente ponderação, assumindo uma e outra como
um artifício retórico, é necessário de fato es- técnicas interpretativas. A primeira, consi-
clarecer a ambigüidade de tal locução, caso derada, com razão ou não, própria do jus-
venha ser retirada do contexto histórico em positivismo, seria refletida e concebida por
que nasceu. No âmbito de uma sociedade um direito formado exclusivamente por
constitucional-democrática-pluralista tal lo- regras; a segunda, não empregando ins-
cução pode ser interpretada pela perspectiva trumentos rigorosamente dedutivos, mas
positiva do garantismo legislativo. Se a au- somente instrumentos eqüitativos mais
tonomia e a liberdade são valores e o direito flexíveis, ou de raciocínio prático, seria
um ‘mal necessário’, a afirmação do valor aquela própria de um direito composto
da lei torna-se uma garantia contra as impo- (também) de princípios, seria, de fato, di-
sições morais de quem quer que seja. ‘A lei rigida a equilibrar os valores, levando em
é lei’, em suma, pode representar uma pres- conta as exigências de justiça erguidas por
crição restritiva da liberdade interpretativa cada caso concreto.
do juiz, uma interpretação que, fazendo re- Não está claro o que sejam os princí-
ferência ao significado comum das palavras, pios, o que denote e como conote o termo
restringe o âmbito dispositivo da interpreta- ‘princípio’ (para uma panorâmica sobre
ção judicial. Isso pode parecer um defeito esse ponto, consultar POZZOLO, 2001 e
quando a solução legislativa não satisfaz o
bibliografia indicada). Seguramente, são
senso de justiça, e freqüentemente nesses
um tipo de norma, mas distintos são os
casos os juízes configuram a existência de
modos para caracterizá-los. Nem ao me-
uma lacuna axiológica. Mas é necessário
nos está claro o que exija a ponderação (ou
fazer uma particularização. Existe diferença
balanceamento), ou seja, quais são as suas
entre o caso em que seja judicialmente pre-
características. Todavia, podem ser desen-
vista uma exceção ao ditado legislativo em
base de uma consideração abstrata da lei e volvidas algumas considerações sobre es-
o caso em que a exceção seja construída em ses aspectos.
base de uma consideração concreta da lei: Sobre a oposição subsunção/ponde-
no primeiro caso, a exceção permanecerá ração como técnicas interpretativas nota-
também para os casos futuros (satisfazendo se o que se segue.
o princípio de igualdade e de certeza), mas a) A ponderação (ou balanceamento)
não no segundo. tipicamente se aplica para conflitos entre
normas (princípios) não solucionáveis
1.3 Neoconstitucionalismo e ponderação através dos tradicionais critérios de so-
dos princípios. lução das antinomias: trata-se de normas
do mesmo nível hierárquico (quando não
A dimensão constitucionalística do é aplicável o critério da lex superior), en-
direito do estado constitucional derivaria tre as quais não se verifica uma relação
da introdução dos princípios no sistema de especialidade (quando não é aplicável
jurídico. E seria justamente a interpretação o critério da lex specialis), contemporâ-
dos princípios constitucionais a pretender nea entre elas (quando não é aplicável o
uma aproximação e uma metodologia dife- critério da lex priori), caracteristicamente
rentes daqueles positivísticos, em particu- normas ou princípios constitucionais (do
lar, seria diferente a sua interpretação. balanceamento constitucional faz parte
O argumento neoconstitucionalis- ainda um terceiro elemento, constituí-
ta opõe à técnica da subsunção aquela da do pela norma da qual deve ser julgada a

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NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 245

constitucionalidade). Os princípios, além equilibram os princípios e como realmente


disso, trazem dificuldades interpretativas resolvem os conflitos. Isso nos diz somente
porque freqüentemente são formulados que o intérprete deve procurar construir a
através de uma linguagem genérica, com melhor relação entre os princípios em con-
tom absoluto e o seu campo de aplicação flito, defendendo sua base de argumentos
tende constantemente a se sobrepor, ge- morais, que trazem seu sentido de justiça;
rando (no mínimo) antinomias do gênero a argumentação assim oferecida representa
parcial bilateral. É necessário notar que, de a justificação externa da decisão judicial,
qualquer modo, a técnica ponderativa não ou seja, é dirigida para oferecer argumen-
é exclusiva do juízo de constitucionalidade tos para suporte da interpretação adotada.
ou não exaure ali os seus efeitos; ela tem Nesse sentido poderia ser individuada uma
influências ou joga um papel também na acentuação das exigências argumentativas
atribuição do significado às normas infra- a cargo do intérprete, mas a técnica da sub-
constitucionais. A ponderação dos prin- sunção.
cípios, portanto, é algo com mais de um c) A argumentação neoconstitucio-
método de solução das antinomias. Obser- nalista, embora não seja unívoca a carac-
vando, por esse ponto de vista, a pondera- terização dos princípios, parece indicar
ção, pode-se notar que não se trata tanto de critérios eqüitativos ou de proporcionali-
uma técnica interpretativa quanto de uma dade para dar conteúdo, tornar compatí-
técnica aplicativa. De fato, para resolver o veis, resolver os conflitos entre princípios
conflito são comparadas (no mínimo) duas constitucionais. Também essa indicação
normas, ou seja, duas entidades às quais já deve ser esclarecida. A exigência em em-
foi conferido significado, a interpretação, pregar métodos eqüitativos deriva do tipo
portanto, já aconteceu: com a pondera- de consideração que se deva dar ao caso
ção escolhe-se qual norma dar aplicação. concreto objeto de juízo. Em particular, o
Também a subsunção acontece quando in- método eqüitativo parece indicar um com-
térprete já produziu a norma; poderia ser portamento do tipo particularista, ou seja,
então sustentado que, depois de ter pon- o quanto é relevante para individuar a so-
derado, o intérprete subsume o caso sob a lução, depende do contexto em que a ação
norma a qual decidiu dar aplicação (nesse deve se desenvolver: é o contexto da ação
significado, PRIETO, 2003). que faz a diferença prática e explica a dife-
b) O neoconstitucionalismo afirma rente importância que assumem as proprie-
que para dar conteúdo aos princípios, ou dades relevantes ao objeto de juízo (sobre
seja, para atribuir significado às disposi- particularismo e universalismo das razões
ções que expressam princípios, a fim de para agir, consultar REDONDO, 2005). A
resolver o conflito, é necessário recorrer a oposição com a subsunção, portanto, nesse
argumentos morais e sopesar as exigências caso se baseia no fato que essa última pare-
de justiça veiculadas pelo caso concreto, ce pressupor uma interpretação do gênero
escolhendo a melhor solução, avaliando literário, tal que não permita uma renúncia
todas as variáveis da situação específica, ao ditado normativo: a norma individua-
e particularmente o grau de satisfação do da deve ser aplicada. Ao contrário, o uso
princípio vencedor em relação à lesão do do critério equitativo incidiria justamente
princípio preterido (ALEXY, 1994). Isso, sobre a aplicação da norma individuada,
na verdade, não diz muito sobre o processo mas, ainda uma vez, não sobre sua inter-
de ponderação, não nos diz como os juízes pretação: seria consideração particular do

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246 Suzanna Pozzolo

caso concreto que conduziria a uma aplica- Nesse modo, a premissa maior da decisão
ção dúctil da normativa, ou seja, permitiria judicial seria constituída pela reformulação
também uma decisão contra legem. Nesse de um princípio que leva em conta uma
sentido, porém, a configuração do caso pa- normativa complexa, obtida para explicitar
receria determinar a construção da norma: condições de aplicação precedentemente
é necessário então notar que se é o caso implícitas. O resultado, portanto, é uma
individual que determina a identificação da nova norma ou um novo princípio solicita-
norma ou do princípio, ou seja, a sua for- do pelas circunstâncias do caso.
mulação ou o seu conteúdo, é difícil sus- No primeiro caso, na reconstrução da
tentar que seja aquela ou aquele que regule ponderação como hierarquização axiológi-
o caso, já que não preexistiriam à solução. ca entre princípios, a teoria ética com base
Sobre a natureza dos princípios e na qual, segundo o neoconstitucionalismo,
sobre a solução das antinomias daqueles deve operar o intérprete, incide sobre a
gerados observa-se o que se segue: aplicação: o sentido da norma, o sentido
a) Segundo uma certa reconstru- dos princípios é invariável e constante, não
ção (por exemplo, GUASTINI, 2004) a muda com as circunstâncias do caso; aqui-
ponderação daria lugar a uma hierarquia lo que muda é a sua relação de força ou de
axiológica móvel entre princípios. O intér- hierarquia com base em propriedades que
prete atribuindo significado aos princípios emergem do caso concreto.
em conflito daria a eles um certo peso ou No segundo caso, na reconstrução
valor instituindo entre eles uma relação de da ponderação como solução de um con-
precedência que vale para o caso concre- flito entre normas defectíveis, a teoria
to. Observada por essa perspectiva, a pon- moral com base na qual se encontraria a
deração incide ainda sobre a aplicação da operar o intérprete, parece incidir sobre o
norma, mas não sobre sua interpretação. significado da norma, sobre o sentido dos
Nesse caso, baseando-se em proprieda- princípios: se as normas jurídicas (os prin-
des relevantes externas à formulação dos cípios) são defectíveis e as razões morais
princípios, propriedades determinadas podem modificar o antecedente, então são
pelo caso concreto, o intérprete atribui as razões morais que serão universais e
maior peso ou valor ou força a um deles constantes, enquanto aquelas jurídicas são
que regulará o caso. A requisição de ope- somente auxiliares.
rar segundo eqüidade incide, justamente, O juízo de ponderação, que resolve
sobre a aplicação dos princípios que serão o conflito entre princípios constitucionais,
aplicados seguindo um critério de raciocí- representa metaforicamente o estabeleci-
nio eqüitativo. Nessa perspectiva, todavia, mento de pesos diferentes aos princípios
a formulação dos princípios não depende para determinar qual deles tem maior força
das circunstâncias do caso, desse depende (MORESO, 2002); esse juízo caracteriza-
a sua hierarquização. se por estender a uma antinomia concreta,
b) Segundo uma outra perspectiva ou seja, sobre uma contradição entre duas
(por exemplo: MORESO, 2002, 2002 b), normas entre cujas classes de ações regula-
a ponderação cairia sobre normas defectí- das não existe vínculo conceitual, mas que
veis; o conflito seria resolvido através da no caso específico mostram-se ambas apli-
introdução de novas condições de aplicação cáveis, regulando de modo distinto a ação
no antecedente, modificando o conteúdo do objeto de juízo. Os princípios são ambos
princípio e não somente a sua formulação. válidos, ocasionalmente as suas áreas de

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NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 247

aplicação se sobrepõem e tal antinomia dos quais pode ceder frente ao outro. Seria
deve ser resolvida sem expulsar nenhum por isso um conflito prático sem solução.
deles do sistema. Enquanto que concebidos como normas
As dificuldades surgem porque nesse defectíveis, isso permite uma solução ra-
quadro não parece possível prever antecipa- cional dos conflitos entre direitos funda-
damente os casos de contradição de modo mentais” (COMANDUCCI, 2003, p. 328).
a definir um critério estável de solução ou Celano, todavia, destacou que somente de-
precedência. Isso obviamente determina monstrando a estabilidade das revisões dos
diversos problemas, mesmo institucionais, princípios defectíveis, conseqüentemente
colocando em discussão o conhecimento a sua definitiva transformação em deveres
ex ante do direito positivo, o equilíbrio en- condicionais indefectíveis, seria possível
tre as funções legislativa e jurisdicional, o refutar o particularismo (CELANO, 2002
papel próprio da jurisdição. É, de fato, o b). Mas se existem razões éticas-políticas
debate em torno do juízo de ponderação ou, para considerar defectíveis dois princípios
melhor ainda, em torno do modo de resol- constitucionais em conflito, por que essas
ver os conflitos entre princípios constitu- mesmas razões não deveriam ser consi-
cionais deriva do fato que aqui não parece deradas nos casos de conflitos entre prin-
ser oferecida uma solução razoavelmente cípios constitucionais revistos? Por que
fundamentada e controlável. O ponto, en- essas razões jogam um papel na primeira
tão, é como evitar a conclusão que o resul- revisão e não deveriam jogá-lo mais nas
tado da atividade ponderativa, seja para ser sucessivas?
considerado como meramente subjetivo e Seja concebida a ponderação como
particularista, ou seja, “não [possa] ser jus- instituição de uma hierarquia axiológica
tificado e, nessa acepção, que os conflitos móvel que resolve um conflito entre prin-
entre princípios constitucionais não [pos- cípios, seja concebida como reformulação
sam] ser resolvidos em um modo racional- de normas defectíveis, persiste o problema
mente controlável: [senão] a sua motivação do controle da motivação da decisão. Tal
não estaria sujeita a controle” (MORESO, controle poderá ser desenvolvido sobre a
2002, p.206). A idéia de Moreso é aquela congruência do raciocínio, da razão, mas
de tornar racionalmente controlável e pre- certamente isso torna palpável o poder
visível a solução do conflito entre princí- dispositivo em mão dos intérpretes e co-
pios através da sua revisão, que permane- loca em discussão o papel da jurisdição no
ce sujeita a múltiplos vínculos, para obter esquema tripartite do poder no estado de
como resultado a produção de duas normas direito constitucional.
compatíveis. Como explica Comanducci, A proposta de Moreso é interessante
“As razões, que parecem impelir Moreso também porque me parece indicar um per-
a configurar os princípios constitucionais curso, necessariamente jurisprudencial, de
que conferem direitos fundamentais como especificação e articulação daquelas pro-
normas defectíveis, são de ordem ética po- priedades relevantes, implícitas na formu-
lítica. Se concebêssemos (e aplicássemos) lação dos princípios, que poderiam consti-
os princípios constitucionais como normas tuir uma complexa grade de condições de
indefectíveis, seriam produzidos, na fase aplicação em grau de circunscrever, certo
da sua aplicação, conflitos práticos insaná- que sempre parcialmente, o poder disposi-
veis: no sentido que teríamos dois princí- tivo dos intérpretes, constituindo também
pios constitucionais em conflito, nenhum limite à argumentação interpretativa. A

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248 Suzanna Pozzolo

proposta, em suma, registra de qualquer dade que deve ser considerada no momen-
maneira um movimento já em ato, mas to de decidir um caso, um quadro diferente
creio que sugira ainda a adoção de um ide- é obtido. Desse modo o princípio não res-
al regulador ao longo do qual se moveria ponde à pergunta sobre como se deva agir
a jurisprudência. Isso tudo que ela põe às em um determinado caso, mas indica uma
claras, realmente, é o papel mudado que se propriedade que invariavelmente deverá
encontra para desenvolver a jurisdição no ser levada em conta para definir qual o
direito contemporâneo. Voltarei ao assunto comportamento deve entrar em ação.
nas conclusões. Na hipótese que no caso C possam
Sobre princípios e as razões para ser aplicados os diferentes princípios A e
agir pode-se notar o que se segue. B, estaremos frente a um conflito se assu-
A noção de defectibilidade não é míssemos os princípios como tipo de re-
desprovida da ambigüidade (REDONDO, gra; a solução justificada será obtida com
2005): uma norma pode ser defeated em a revisão do princípio o qual será aplicado
duas maneiras diferentes e com diferen- tornando-o compatível com outro preteri-
tes implicações no plano da concepção do.
da norma. Uma norma pode ser defeated Mas se assumíssemos princípios
porque vem modificadas as suas condições como dois deveres incondicionais inde-
de aplicação: seja modificado o antece- fectíveis que indicam a relevância de duas
dente da norma e, portanto, o conteúdo da propriedades diferentes e contrastantes
própria norma; em tal caso nos encontra- pelas quais será necessário ter atenção,
ríamos dentro de uma concepção particu- não nos encontraríamos necessariamente
larista das razões para agir. Uma norma perante a um conflito. Os princípios pode-
pode ser defeated porque a ela é assinalado riam ser vistos como deveres que não indi-
um peso menor em relação a uma outra, cam o comportamento que deve ser man-
mas sem que se modifique o conteúdo de tido em um determinado caso, mas como
qualquer das duas normas; nesse caso nos deveres dirigidos ao intérprete que deverá,
encontraríamos dentro de uma concepção sempre e invariavelmente, considerar no
universalista das razões para agir. momento de solucionar o caso e do qual
Se concebermos os princípios como deverá ser responsável. Os princípios não
uma espécie de regras aptas para regular o indicariam a solução do caso, mas somente
caso concreto, pede-se a elas que respon- a exigência de considerar invariavelmente
dam a seguinte pergunta “Como devo agir o dever neles indicado; os princípios im-
nesse caso?”. A essa pergunta dá a resposta poriam, portanto, o dever ao intérprete de
Moreso, que parece ainda satisfazer exigên- oferecer uma justificação da relevância a
cias de garantia: transformando o princípio eles atribuída. É claro que nesse panorama,
em uma norma indefectível explicitam-se ao intérprete é explicitamente atribuído um
suas condições implícitas e determina-se notável poder dispositivo, mas ao mesmo
o direito. Todavia, isso funciona somente tempo ele é explícito e em uma certa me-
na medida em que o princípio reformulado dida controlável por se basear em critérios
não esteja efetivamente submetido a uma de racionalidade, razão e congruência. A
nova revisão. solução e a justificação produzidas serão e
Se concebermos os princípios como deverão ser sobrepostas a uma crítica ex-
normas pro tanto, ou seja, como normas terna baseada em argumentos de justiça, a
que indicam a relevância de uma proprie- pretensão de justiça será sempre meramen-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 249

te jurídica e a crítica externa será sempre colha significativa operada ou a hierarquia


ética. axiológica instituída.
Essa reformulação não soluciona as O neoconstitucionalismo reconstrói
dificuldades da ponderação, mas conside- essa exigência como uma modificação dos
ro que somente na medida em que as di- critérios de validade: o juízo externo ou
ficuldades não se resolvam, permaneça a ético sobre justiça de uma lei torna-se juí-
necessidade da ponderação ou do balance- zo interno sobre a sua validade (PRIETO
amento. Na medida em que fosse possível SANCHIS, 2003, p. 133). Desse modo a
transformar em regras os princípios se dis- justiça, uma concepção do bem, começa a
solveria a necessidade de ponderar e seria fazer parte dos critérios de validade do sis-
possível operar com mera racionalidade tema, começa a fazer parte dos critérios da
subsumida. Coisa que, no entanto, não so- regra de reconhecimento.
lucionaria absolutamente as problemáticas Como já foi indicado, parece pacífi-
interpretativas. Como já se notou, todavia, co que a constituição incorpore uma visão
uma estabilização da hierarquia axiológi- ética qualquer, coisa que já é a escolha de
ca entre princípios constitucionais, para um procedimento em relação a uma outra.
oferecer uma disciplina constitucional As constituições de contemporâneas são
racional que satisfaça um outro grau de pluralistas e permitem um diferente núme-
determinação, evitando as antinomias e ro de concretizações completáveis (nesse
reduzindo a discricionariedade interpreta- modo parecem quase implicar a idéia do
tiva, como colocou às claras Bruno Celano conflito).
(2002), não parece possível. Justamente Nesse quadro, a adoção de um com-
por essas razões parece necessário o juízo portamento positivista permite coerente-
de ponderação entre princípios (PRIETO mente verificar a mera compatibilidade da
SANCHIS,2003, pp. 199-203) que, defi- concretização interpretativa escolhida com
nitivamente pode ser representado como o princípio constitucional abstrato, abrin-
um procedimento argumentativo baseado do a possibilidade individuar multíplices e
na explicitação das razões que sustentam possíveis concretizações, ou seja, a escolha
a escolha do princípio e da sua formulação de uma ou de outra não tem repercussões
concreta. no plano da validade. A isso se sujeita a
tese da separação conceitual entre direito
2. Conclusões e moral que se revela útil ainda para subli-
nhar a autoridade que caracteriza o direito
Tudo que o tema da ponderação põe (do qual o neoconstitucionalismo parece
claramente é o emergir de uma exigência se esquecer): não é a bondade do princípio
argumentativa qualitativamente mais for- que lhe determinar a juridicidade, por isso
te em relação a outros sistemas jurídicos, ocorre um ato de vontade autoritário. E, fi-
diferentes daquele do estado constitucio- nalmente, os princípios constitucionais são
nalizado. Substancialmente, aquela área parte de um documento jurídico autoritá-
indeterminada do significado jurídico cuja rio, considerado vinculante pelos membros
determinação era reconstruída como resul- do grupo social observado. E é ainda uma
tado de uma atividade meramente discri- decisão autoritária aquela que determina
cionária, parece agora reconstituível como o significado específico dos princípios em
uma sagaz obra argumentativa apta a jus- conflito e soluciona-o construindo entre
tificar, através de bons argumentos, a es- eles uma hierarquia axiológica.

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250 Suzanna Pozzolo

Tudo que parece caracterizar o estado complexidade do fenômeno interpretativo:


constitucionalizado e que realmente muda, se não acontece em relação biunívoca en-
dissolvendo definitivamente o mito de uma tre disposição (enunciado jurídico, texto)
jurisdição mecanicista, é o papel do juiz. e norma (produto da interpretação, signi-
Trata-se de um processo de transformação, ficado), a intervenção da jurisdição é algo
provavelmente não previsto nesses termos, além de uma mera aplicação, trata-se então
em parte principiado pelo próprio modelo de encontrar novos ou mais sofisticados
constitucional que se afirma no segundo instrumentos de garantia. A ponderação
pós-guerra. Não é essa a focalização para dos princípios tornou evidente a deficiên-
ser percorrida novamente, nem mesmo as cia no plano institucional do controle juris-
características proeminentes dessa histó- dicional, parece difícil prever os casos de
ria, antes se trata de destacar a existência conflito e os critérios de precedência entre
de uma discrasia entre realidade e modelo princípios de modo a tornar o direito certo.
teórico que exige ou impõe ao constitu- Mas essas dificuldades não são exclusivas
cionalismo uma profunda reflexão acerca da interpretação dos princípios, eventual-
dos instrumentos de garantia à limitação mente aqui estão mais evidentes.
jurídica do poder. A tradicional divisão A proposta neoconstitucionalista
do poder concede (também na fórmula do sugere enfrentar essas dificuldades garan-
check and balances) uma função de garan- tísticas do constitucionalismo percorrendo
tia à jurisdição. E persistente é a idéia que
uma via jusnaturalística que, atribuindo
o direito possa ser aplicado ou, no mínimo,
validade moral ao direito positivo, para-
individuado em modo objetivo (como uma
doxalmente apresenta alguns riscos de
lei natural), que esse seja o dever da juris-
positivismo ideológico. Considero-a uma
dição, que meramente aplica uma vontade
falsa solução, mas principalmente uma so-
alheia, aquela do legislador, que tem o mo-
lução não constitucionalística, na medida
nopólio da produção jurídica e pela qual é
responsável politicamente. Esse sistema de em que se confia na mera boa vontade do
deveres e relações reflete-se na dogmática intérprete a cada vez dotado de autoridade;
das fontes do direito, todavia, na medida pensando em fortalecer o direito positivo,
em que a atividade jurisdicional mostra-se enfraquece-o, atribuindo-lhe uma pretensa
cada vez mais evidentemente construtiva correção moral; criando a ilusão de uma
do direito positivo, impõe-se uma profunda perfeita correspondência entre justo e le-
reflexão sobre os diversos dogmas, sobre gal, sacrifica a possibilidade de uma crítica
o sistema das fontes, sobre as funções do externa ao direito positivo.
poder, sobre seus papéis, sobre a estrutura Pela perspectiva positivista, é ne-
dos contrapesos para limitar juridicamente cessário, todavia, notar que, tudo somado,
o poder. Uma vez declinado aquele ideal propostas como aquela de Moreso buscam
jurisprudencial, uma vez que tenha sido in- reformular o problema dissolvendo-o, ou
troduzida a idéia que na passagem do texto seja, tão interessantes e úteis no plano da
à norma se desenvolvem algumas avalia- análise, não resolvem absolutamente as di-
ções, enfraquecendo a própria idéia de uma ficuldades constitucionalísticas.
aplicação teórica do direito. Se as coisas Creio que seja necessária ter em men-
estão assim, corre-se o risco de diminuir te que, na medida em que o processo de
também o papel de garantia da jurisdição e constitucionalização progride e amplia a
com ele o princípio de legalidade. aplicação direta dos princípios constitucio-
O tema da ponderação dos princípios nais, a ponderação é também uma técnica
colocou definitivamente às claras a geral para a aplicação elástica do direito infra-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 251

constitucional, dirigida a evitar a expulsão Isso mostra o papel necessariamente cria-


de normas inválidas que permaneçam pre- tivo da jurisdição e impõe o abandono de
teridas para o caso concreto. Nesse modo, um certo ideal jurisprudencial. A jurispru-
o direito se faz mais fluído, diminuem as dência aplica normas, mas certamente não
áreas de certeza e ao mesmo tempo pare- faz só isso: ela participa como co-autora da
cem crescer enormemente os deveres dis- criação das normas. Grande parte daquele
positivos da jurisprudência. background sobre o qual vão ser deposita-
É necessário notar, contudo, que tais das as palavras do legislador foi construído
deveres de dispositivos são em determinada pela jurisprudência e por ela continuamen-
medida conaturais a um discurso jurídico te modificado e renovado. A jurisprudên-
(por natureza?) substabelecido. Trata-se, cia então é, nesse sentido, fonte do direito,
então, de afinar os instrumentos de contro- não só em um geral e amplo sentido só-
le da obra de determinação dos intérpretes; cio-político, mas no sentido jurídico: sem
trata-se de observar como os intérpretes a mediação da jurisprudência o direito não
usam as fontes de direito e como os mesmos seria capaz de intervir onde existe o con-
contribuem para construí-las. Aceitar que a flito e desenvolver o seu papel. Em todo
decisão interpretativa seja considerada em caso, ainda se pode dizer que o juiz decide
todo caso uma escolha seja que se desen- segundo o direito, porque a jurisprudência
volva sobre princípios seja que se desen- é só um co-autor, no meu parecer necessá-
volva sobre regras, não implica considerar rio, das normas. O juiz decide o significado
os enunciados jurídicos como caixas vazias das disposições, produz em parte as nor-
(antes da interpretação). Trata-se, mais co- mas, mas só em parte, porque a sua obra
erentemente, de derivar as conseqüências interpretativa é redefinitória e não criativa
necessárias da tese interpretativa de parti- no sentido restrito. O assim chamado easy
da: se não há relação biunívoca entre texto case não desmente esse fato, mas o confir-
e norma, as disposições jurídicas veiculam ma. O caso claro, de fato, é um momento,
diversos significados e a interpretação (do- uma conclusão parcial, no âmbito de um
tada de autoridade) torna concreto um de- sistema de expectativas recíprocas. Ele,
les (POZZOLO, 2001 b). O intérprete, em porém não é easy em virtude da interpre-
suma, tem naturalmente à disposição multí- tação da única disposição, mas depende
plices normas, todas reconduzíveis ao mes- de um bom mecanismo de estabilização
mo texto, entre elas escolhe e decide; essa e de feedback, que, regenerando-se conti-
determinação é necessária à concretização nuamente, oferece a impressão que como
do direito positivo. autoritariamente estabilizado não seja fru-
A natureza substabelecida do discur- to de interpretação e não exija por sua vez
so jurídico não se reduz transferindo as interpretação (POZZOLO, 2001 b).
dificuldades interpretativas sobre o plano Quanto deve ser modificado da nos-
moral, que não é certamente mais deter- sa cultura jurídica a fim de que se admita
minado. Aliás, isso impõe ainda ao posi- que a jurisprudência faz tudo o que efeti-
tivismo jurídico uma reflexão, pois que vamente faz; não só integrar e manipular
parece claro que ficando assim as coisas, (segundo alguns), mas produzir o direito.
um operador competente não é capaz de Mas talvez ainda seja lícito questio-
responder oferecendo uma única solução narmos se isso seja útil, ou se, ao contrá-
jurídica para um caso na base da única rio, não seja melhor um direito em que “o
análise lingüística do texto. Mais de um mago-jurista cura os pacientes justamente
são os resultados juridicamente possíveis. porque os engana?” (JORI, 1995).

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252 Suzanna Pozzolo

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