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Sermão de Santo António aos Peixes,

de Padre António Vieira


Entre as disciplinas ministradas pela Companhia de Jesus, contava-se a Retórica/Oratória, ou
seja, a disciplina que ensina um orador a construir um discurso de forma a persuadir os seus
ouvintes. A Companhia também estimulou bastante o uso, então vulgarizado, de coleções ou
elencos de lugares-comuns, listas intermináveis de passos das Escrituras e dos Doutores da
Igreja, e ainda de alguns escritores latinos, para consulta e uso do pregador, onde este podia
encontrar os “conceitos predicáveis” que serviam de fundamento obrigatório à sua
argumentação, de modo a obter o monopólio e o controlo total do ensino, quer normal quer
universitário.

A oratória de Vieira segue os moldes e processos tradicionais de predicação, desenvolvendo-se


o sermão, como hoje, a partir de um texto bíblico que se comenta de acordo com o tema e as
teses que o orador se propõe desenvolver. O texto, palavra de Deus, contém múltiplos
mistérios a decifrar, não consistindo num comentário moral e doutrinal apoiado no bom senso,
mas sim em considerar isoladamente um termo, em forjar uma pretensa etimologia das
palavras, em atender à sua posição, às repetições, ao número de letras e sílabas de que se
compõem, aos seus vários significados, ao jogo dos sinónimos e antónimos, à interpretação
alegórica.

A retórica é um conjunto de processos que constituem a arte de bem falar – a eloquência, isto
é, a faculdade de ensinar, deleitar e convencer um auditório por meio da palavra – a arte
oratória. Em rigor e na prática, a eloquência pretende atingir essas três metas: ensinar, deleitar
e “convencer” o auditório, no latim da época eram: docere (ensinar a doutrina cristã, dar a
conhecer o texto bíblico, o objetivo era conseguir que os cristãos seguissem os ensinamentos
de Cristo e os praticassem no quotidiano), delectare (o orador procurava agradar os ouvintes
ou mesmo deslumbra-los com as suas palavras e o seu raciocínio), movere (persuadir os
ouvintes – fiéis – e influenciar o seu comportamento). Tradicionalmente, a Retórica distinguia
cinco partes: 1 – a invenção, que se ocupa da pesquisa das ideias ou dos argumentos; 2 – a
disposição, que nos ensina a realizar um plano; 3 – a elocução, parte que compreende os
preceitos sobre o estilo e o ritmo; 4 – a memória, isto é, a arte de facilitar as operações de
memória por meios artificiais, ligando ideias e factos difíceis de reter a factos e as ideias mais
familiares e mais simples; 5 – a ação, que consiste nas entoações, atitudes e gestos. Com o
passar dos tempos, ficou reduzida às três primeiras partes.

Estrutura interna do Sermão – Divisão em Estrutura


partes externa – Conteúdo
Capítulos
Intro - Apresentação do tema, partindo
1ª Exórdio – ideia sumária do duçã do conceito predicável;
assunto do Sermão (tese) e alcança a o I - Exploração do tema;
benevolência, simpatia e atenção - Panegírico a Santo António
(semelhança/idolatrar);
dos ouvintes
- Invocação à Virgem Maria.
2ª Exposição – apresentação Dese II - Proposição até “E onde há bons
circunstanciada e contextualização nvolv e maus, há que louvar e que
do assunto / Confirmação – imen repreender”
desenvolvimento e apresentação de to - Início da alegoria “Suponho isto,
para que procedamos com
argumentos clareza”
Comprova e censura a exploração - Divisão desde “Suposto isto” até
dos índios do Brasil “vossos vícios”
- Louvores em geral
III - Louvores em particular: peixe
de Tobias, rémora, torpedo,
quatro-olhos
IV - Repreensões em geral (ictiofagia
e cegueira e vaidade)
V - Repreensões em particular
(roncadores, pegadores,
voadores, polvo)
3ª – Peroração – parte final do Conc VI - Apelo, incitamento, elogio: os
discurso (mudarem atitudes), lusão peixes estão acima dos outros
recapitula o essencial e conquista o animais e os peixes estão acima
auditório, para que adira aos seus do pregador – mais inteligentes e
sabem defender-se dos seus
ensinamentos
defeitos

O Sermão de Santo António aos Peixes foi pregado na cidade do Maranhão, no ano de 1654,
no dia 13 de junho, dia de Santo António, na véspera da partida de Padre António Vieira para
Lisboa a fim de, junto do rei D. João IV, apoiar a criação de leis que acabassem com a
exploração dos colonos brancos para com os índios brasileiros.

Alegoria – representação de uma realidade abstrata através de uma outra concreta que a
simboliza por analogia, encadeando de forma lógica imagens, metáforas, comparações,… é o
simbolismo concreto que abrange o conjunto de toda uma narrativa ou quadro, de maneira a
que cada elemento do símbolo corresponda a um elemento significado ou simbolizado. O
Padre António Vieira recorre à alegoria – um recurso expressivo em que um conjunto de
imagens concretas serve ao autor para transmitir uma realidade abstrata. Neste caso, o
pregador visa criticar os seus ouvintes, denunciando os seus pecados nas suas pregações,
acabando por ser hostilizado pelos habitantes do Maranhão – não só por criticar os seus
defeitos, mas também por defender a libertação dos Índios da escravatura. Decide então
simular que dirige o seu sermão aos peixes. Através desta alegoria, irá representar
metaforicamente os pecados do seu auditório, criticando-o ferozmente.

Capítulo I
- O pregador apresenta o tema, partindo de uma citação bíblica “Vós sois o sal da terra” –
conceito predicável (método de argumentação que tinha como ponto de partida uma máxima
ou proposição de natureza moral, que urgia provar de modo evidente para que o fiel a pudesse
aceitar sem contestação. Para tal demonstração, decorria o orador não a argumentos lógicos,
mas ao artifício de apresentar uma frase ou conjunto de versículos bíblicos como sendo uma
alegoria ou uma imagem daquilo que se ia demonstrar – a função do sal é impedir a corrupção.
Logo, a função dos pregadores é espalhar a doutrina de Cristo, de modo a impedir que a
corrupção exista. Assim, estas imagens e alegorias da Bíblia serviam de prova irrefutável aos
factos que o orador apresentava ou até profetizava) e apresenta as razões pelas quais a terra
está corrupta.

- Reflete sobre a atitude dos pregadores e dos crentes sobre a corrupção da sociedade, dado
que há corrupção na terra. Ou a culpa está no sal “o sal não salga” (pregadores não estão a
cumprir a sua função) ou na terra “a terra não se deixa salgar” (ouvintes não querem receber a
verdadeira palavra de Cristo). Se a culpa está no sal, é porque os pregadores não pregam a
verdadeira doutrina, ou porque dizem uma coisa e fazem outra ou porque se pregam a si e não
a Cristo, já que se preocupam com os seus interesses e não com os interesses cristãos. Se a
culpa está na terra, é porque os ouvintes não querem saber da doutrina, ou porque querem
antes imitar os pregadores e não o que eles dizem ou porque em vez de servirem os apetites
de Cristo, servem os seus.

- Vieira preocupa-se com a razão pela qual a terra está corrupta, partindo do princípio que a
culpa é dos ouvintes que não querem receber a doutrina. Relata o milagre de Santo António, já
que proferiu o sermão no seu dia, em Arimino/Rimini, no norte de Itália, onde o povo da
localidade se insurgiu contra o pregador por este denunciar os seus pegados. Este santo,
perante a revolta dos seus interlocutores, decidiu ir pregar aos peixes, o que deu origem a um
dos seus milagres, na medida em que estes vieram ouvi-lo, elogiando a sua astucia e coragem.
As respostas de Cristo a este problema são então deitar o sal fora e calcá-lo pelos homens, já
as respostas de Santo António do que se fazer à terra que não se deixa salgar são mudar o
púlpito e o auditório.

Capítulo II
- O pregador desenvolve um discurso alegórico, referindo-se aos peixes, mas pretendendo ser
entendido pelos colonos portugueses do Maranhão. O sal apresenta funções, para Cristo,
como conservar o são e evitar a corrupção, preservando-o. Por isso, as funções do sermão são
louvar o bem (virtudes dos peixes) e repreender o mal (os seus vícios).

- Este capítulo contempla os louvores aos peixes em geral. Como suas qualidades temos: não
se domam, nem domesticam; não acreditam no homem, fugindo dele (puros e livres); foram as
primeiras criaturas que Deus criou; foram os primeiros a serem nomeados; sobressaem em
número; obediência/ordem/tranquilidade/atenção ao escutarem a palavra de Deus

- Apresenta, por antítese, os defeitos dos homens. Logo, é melhor manterem-se afastados
destes.

Capítulo III
- O pregador apresenta as virtudes de quatro peixes. Através de um discurso figurativo, Vieira
pretende, com o louvor particular aos peixes, criticar os vícios dos homens, uma vez que estes
ignoram a palavra de Deus e mostrar a relação entre o homem e o divino, mas também para
mostrar como os peixes se dão a estes cuidados ao contrário dos homens que não pensam em
tais coisas.

Peixe de Tobias – tem umas entranhas que curam a cegueira e um coração que expulsa os
demónios. Simboliza o poder purificador da palavra de Deus, logo se os homens quisessem, o
padre iria curar a sua cegueira com a sua palavra, criticando a cegueira de quem não quer ver.

Torpedo – produz descargas elétricas que fazem tremer o braço do pescador. Simboliza o
poder da palavra de Deus, como o arrependimento e mudança de vida, criticando o facto de os
homens não se deixarem abalar com o efeito da palavra.

Quatro-olhos – tem dois pares de olhos, defendendo-se dos peixes e das aves. Simboliza o
dever dos cristãos em tirar os olhos da vaidade, prestando atenção ao céu, nunca esquecendo
do inferno, criticando a incapacidade de distinguir o bem e o mal.
Rémora – peixe que, quando se agarra a um navio, tem força o suficiente para determinar o
seu rumo. Simboliza o poder da língua do pregador como um guia de almas, mostrando a força
das palavras do Padre contra os ímpetos do livre-arbítrio e das paixões humanas, que tantas
vezes se sobrepõe à razão, criticando a fraqueza humana na cedência às paixões que se opõem
à razão.

- Critica 4 defeitos dos homens – soberba (julgam-se superiores), vingança (facilmente entram
em conflito), cobiça (quanto mais têm, mais querem) e sensualidade (o homem é facilmente
seduzido por mentiras).

Capítulo IV
- O pregador apresenta os defeitos dos peixes. O pior, na sua opinião, é a ictiofagia – o facto de
os peixes se comerem uns aos outros.

- Os homens praticam a antropofagia social, ou seja, exploram-se uns aos outros. O mais grave
de tudo é que são os peixes grandes que comem os pequenos, ou seja, são precisos mais
pequenos para alimentar um grande.

- Acusa-os, igualmente, de cegueira, vaidade e maldade, caracterizando-os como cruéis,


ambiciosos e cobardes.

Capítulo V
- De caráter particular, o Padre apresenta 4 exemplos de peixes que se referem a tipos
comportamentais.

Roncador – simboliza a arrogância, a soberba e o orgulho. Os arrogantes e soberbos


confrontam Deus e acabam por perder. Por isso, o melhor é calar e imitar Santo António. O
poder e o saber é que costumam fazer dos homens roncadores.

Pegador – simboliza os oportunistas (parasitismo). Vivem nas dependências dos grandes,


morrendo com eles mesmo sem comer.

Voador – simboliza os ambiciosos e aqueles que querem ser o que não são.

Polvo – simboliza os hipócritas e traidores. Engana as pessoas, com a sua maldade.

Coesão e coerência textual


 Coerência textual

Ocorre quando existe compatibilidade entre as ocorrências textuais e o nosso conhecimento


do mundo e quando o texto respeita a lógica das relações intratextuais, isto é, as relações
internas ao texto.

- Relevância – as ocorrências textuais devem ser pertinentes, apresentando factos que estejam
relacionados entre si (relações de causa-efeito, temporais, semelhanças, oposição) e que
sejam compatíveis com o conhecimento que os recetores possuem do mundo envolvente.

- Não contradição – as ocorrências textuais não se podem contradizer, por exemplo aos níveis
de informação ou dos valores temporais construídos.

- Não tautologia – as ocorrências textuais não se devem repetir desnecessariamente,


tornando-se, por exemplo, redundantes e impossibilitando a progressão temática do texto.
 Coesão textual

Designa o conjunto de mecanismos linguísticos que permitem uma sequencialização lógica


entre os elementos de um texto. Assim, para assegurar a unidade textual, o falante deve
recorrer a processos lexicais e gramaticais que possibilitem a articulação de diversos
componentes.

 Coesão gramatical

- referencial (anáfora) – referente retomado por vocábulos ou expressões que mantêm o


mesmo valor do antecedente.

- referencial (catáfora) – processo similar ao da anáfora, mas os vocábulos ou expressões


surgem em posição anteposta ao referente.

- referencial (eclipse) – os vocábulos ou expressões são suprimidos, evitando-se repetições.

- referencial frásica – processo que consiste na sequencialização dos vários elementos de uma
frase, através, por exemplo, da concordância entre género e número ou da ordenação lógica
das palavras.

- referencial interfrásica – processo que assegura a sequencia lógica entre frases e parágrafos.

- referencial temporal – processo que permite manter a lógica temporal ao longo de um texto.

 Coesão lexical

- reiteração – repetição de um vocábulo ou expressão.

- substituição (sinonímia) – utilização de um vocábulo ou expressão com sentido similar.

- substituição (antonímia) – utilização de um vocábulo ou expressão com sentido contrário.

- substituição (hiperonímia/hiponímia) – utilização de um vocábulo ou expressão com sentido


mais geral ou mais especifico.

- substituição (holonímia/meronímia) – utilização de um vocábulo ou expressão que expressa o


todo ou a parte.

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