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TENDÊNCIAS GASTRONÔMICAS

Cesar Augusto Kenzo Horikawa Sakaki


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3 A COZINHA CONTEMPORÂNEA

Apresentação
Neste bloco, estudaremos a Cozinha Contemporânea, o que a diferencia da Cozinha
Moderna e quais as transformações que ela trouxe à Gastronomia.
Vamos perceber um marco bastante claro que começa a distinguir a cozinha praticada
até o começo dos anos 2000 para a cozinha que se desenvolve a partir da revolução
promovida pelos espanhóis e também pelo surgimento de novas interpretações, novos
movimentos que se inserem na chamada “cozinha tecnoemocional”.

3.1 Gastronomia Molecular


Entre as décadas de 1980 e 1990, um cientista francês chamado Hervé This começou a
se interessar pelos fenômenos físicos e químicos que ocorrem durante as
transformações culinárias. O efeito da temperatura, a ação do sal, a composição
química dos alimentos, as alterações nas proteínas, e assim por diante no mundo
dentro da cozinha.
Ele não construiu uma ciência toda nova dentro da Gastronomia, ao contrário do que
se acredita. Hervé This na verdade utilizou o conhecimento científico já existente e
aprofundou sua aplicação dentro da Gastronomia, muitas vezes fazendo uma
adaptação da escala industrial do conhecimento existente em Tecnologia de Alimentos
para ser aplicado em um restaurante, outras vezes aplicando um método ou
procedimento tipicamente de laboratório de análises em um alimento. Em outras
palavras, é como se ele tivesse pegado uma caixa de ferramentas já existente para
construir uma cadeira nova.
Todo esse novo repertório de técnicas de cozinha ampliou largamente o espectro de
possibilidades, seja para chegar a resultados ainda melhores em receitas já existentes,
ou então, poder concretizar as ideias mais diferentes, como um algodão-doce
(comestível) que tenha uma aparência de um tecido de estopa de algodão…
Começou então a se constituir um movimento de chefs entusiasmados por essas
técnicas novas e inovadoras que permitiam a eles fazer coisas totalmente diferentes,
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como espumas, esferas que explodem na boca, cozimento a vácuo sob baixa
temperatura, novos espessantes, geleias que se solidificam quentes, “plásticos” e
“tecidos” comestíveis, entre inúmeras outras ideias aparentemente insanas.
No início dos anos 2000, a Gastronomia Molecular foi ganhando um espaço e destaque
cada vez maiores, tendo suas técnicas se espalhando aos poucos, bem como alguns de
seus equipamentos que facilitaram muitos dos procedimentos existentes.
Três chefs então se destacaram mais proeminentemente. Heston Blumenthal, Homaru
Cantu e, o maior deles, Ferran Adrià, responsável por colocar a Espanha na vanguarda
da Gastronomia Contemporânea.

3.2 Cozinha Espanhola de Vanguarda


Liderada por Ferran Adrià, a cozinha contemporânea da Espanha foi a grande
impulsionadora da Cozinha Molecular no mundo, sendo Adrià talvez o mais importante
chef desse tipo de trabalho que procura pesquisar cada vez mais novas possibilidades
com os alimentos, explorando o lado da experiência como um todo durante a refeição,
muito além de oferecer uma preparação incrível.
A ideia de Ferran Adrià com seu multipremiado e aclamado restaurante El Bulli, já
fechado, era proporcionar uma experiência sensorial, cultural e de entretenimento
completa. Para isso, procurava inovar cada vez mais tecnicamente, tanto é que ele e
sua equipe passavam seis meses do ano apenas realizando pesquisas e testes para a
elaboração de um novo menu que seria servido nos próximos seis meses seguintes em
que o restaurante estaria de portas abertas.
Era um modelo de negócio diferente e arriscado, por assumir um custo operacional
gigantesco. Mas, ainda assim, o El Bulli foi um sucesso estrondoso, sendo um grande
marco da cozinha contemporânea, não apenas pelo trabalho mostrado ali como
também porque funcionou como um grande centro de aprendizado para chefs e
cozinheiros que desejavam aprender, conhecer todo aquele novo universo da cozinha
que era feita ali.
Uma das mais intensas pesquisas de Adrià era “desconstruir” os alimentos, destrinchar
sua estrutura, separá-los em seus componentes unitários e depois utilizar cada um
desses componentes como peças, como pequenos blocos de construção para

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reorganizar muitas vezes esse mesmo ingrediente, mas numa apresentação inovadora,
provocativa.
Algumas das brincadeiras sensoriais que surgiram nesse movimento vanguardista foi o
da confusão sensorial. Imagine que você recebe um prato com uma cenoura, mas ao
colocá-la na boca sente o sabor de peixe com trufas brancas… Essa desconstrução e
reconstrução dos alimentos permitiu que os chefs extrapolassem os limites da ideia de
que havia até então de “alimento”. Um trabalho bastante provocativo e que causou
muitas discussões acaloradas, em especial com o chef Santi Santamaria se
contrapondo ferozmente ao que seus colegas estavam fazendo.
Santamaria defendia o resgate da relação do indivíduo com o alimento e o terroir, a
preservação da cultura alimentar familiar, as receitas tradicionais. Era, em suma, um
entusiasta da modernização da cozinha preservando suas origens.
A chamada cozinha tecnoemocional acabou gerando, assim, uma cisão inicial na
Gastronomia. De um lado, os que viam nessa vanguarda novas possibilidades de
exploração técnica para provocar novas sensações e emoções nas pessoas. De outro,
os que diziam que a cozinha molecular não passava de uma cozinha fria e sem
sentimentos, sendo uma exploração da técnica pela técnica apenas e que estava
transformando o alimento e a nossa relação com ele em algo sem sentido, quebrando
a conexão do indivíduo com o alimento e do alimento com ele mesmo.
Aqui não estamos tentando tomar partido de uma ou outra corrente de pensamento,
apenas apresentando a discussão. Cabe a você, aluno, chegar às próprias opiniões de
acordo com seu interesse em pesquisar mais sobre o tema e ver o que faz mais sentido
em sua visão profissional.
O fato concreto é que todo esse movimento foi irreversível, suas transformações
acabaram influenciando mesmo aqueles que não são adeptos diretamente da cozinha
molecular ou da cozinha tecnoemocional. Seja porque algumas técnicas e
equipamentos ocuparam lugares centrais nas cozinhas, ou então, porque a ideia de
oferecer uma experiência multissensorial e provocativa seja interessante.

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Figura 3.1 ̶ Sorvete sendo preparado com sifão e gelo seco.

Entre as técnicas/equipamentos que mais se popularizaram a partir desse período, o


sifão com certeza é o grande destaque. Oferecendo diversas possibilidades, desde de
extrair um purê extremamente aerado como também produzir uma espuma de queijo,
ou até mesmo, um sorvete gelificado instantaneamente, esse equipamento trouxe
novas e versáteis aplicações.
Outro destaque que ganhou espaço na cozinha é a técnica de sous vide (“sob vácuo”).
Consiste em embalar o ingrediente em uma embalagem a vácuo e levar à cocção a
uma temperatura constante, imerso em água. A temperatura é controlada por um
termocirculador.
Esse processo permite que, por exemplo, uma peça de carne bovina sofra um
cozimento em que apenas as fibras do tecido conjuntivo sofram o efeito da
temperatura e, assim, a carne fique extremamente macia. Isso acontece devido à
diferença de temperatura em cada tipo de fibra sob a ação do calor e possibilita que se
deixe a peça de carne macia sem que o tecido muscular sofra desnaturação. A ideia é
que cada tipo de alimento ou ingrediente tenha uma temperatura ideal. Na verdade,

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que haja uma equação tempo X temperatura ideal para cada alimento. Para se fazer o
Ovo Perfeito, por exemplo, é necessário que se mantenha o ovo por 1h35min a 63 °C.
Dessa forma, se obtém um ovo cuja clara está totalmente coagulada e firme, mas não
dura, e a gema cremosa como uma manteiga.

Figura 3.2 ̶ Técnica de sous vide.

Mais do que a Cozinha Molecular em si, propagada por Adrià, apelidado de Alquimista
da Cozinha, o movimento da vanguarda espanhola trouxe uma renovação na linha de
frente da Gastronomia mundial, dando espaço e oportunidade para grandes chefs de
diversos outros países ganharem destaque e prestígio, incluindo chefs brasileiros.
Ferran Adrià viajou muitas vezes mundo afora com suas pesquisas e um dos lugares
pelo qual ficou mais encantado foi justamente o Brasil por cauda de tantos e tantos
alimentos desconhecidos por ele, tanto assim que se encantou pela tapioca e
desenvolveu diversos pratos com esse insumo tão típico de nossa culinária.

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3.3 Receitas Moleculares


Espaguete de parmesão
Parmesão ralado ̶ 250 g
Água ̶ 230 g
Agar Agar ̶ 3 g

Modo de preparo:
Ferver a água com o parmesão ralado.
Manter em simmering por 1 hora.
Coar, preservar o líquido e descartar os sólidos.
Levar à geladeira até resfriar completamente.
Aquecer novamente o líquido junto com o agar agar.
Levantar fervura e desligar.
Com a utilização de uma seringa com bico de alimentação acoplado a uma cânula
hospitalar de PVC, sugar o líquido ainda quente e imergir em água bem gelada para
solidificar o espaguete.
Extrair o espaguete fora da água, em um recipiente, empurrando o êmbolo da seringa.

Esferas de ervilha
Etapa 1:
Ervilha congelada ̶ 300 g
Água ̶ 375 g

Processar as ervilhas com água fervente até obter uma mistura lisa.
Coar, reservar o líquido concentrado e descartar os sólidos.
Resfriar.

Etapa 2:
Concentrado de ervilha da etapa anterior ̶ 500 g
Alginato de sódio ̶ 2,5 g

Misturar o alginato ao concentrado e resfriar.


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Etapa 3:
Cloreto de cálcio ̶ 6,5 g
Água ̶ 1 L

Dissolver o cloreto de cálcio em água.


Gotejar o concentrado diretamente nessa mistura.
Deixar as esferas imersas por 2 minutos para estabilizar a película externa.
Retirar as esferas e colocá-las em água limpa por 1 minuto para interromper o
processo de esferificação.
Retirar da água limpa e secar sobre papel absorvente.

Conclusão
Até este ponto da disciplina, pudemos conhecer a transformação da Gastronomia nos
últimos 20 anos em um processo que na verdade se iniciou entre as décadas de 1970 e
1990 da renovação da Gastronomia, seja pela Nouvelle Cuisine, seja pela Cozinha
Molecular.
Apesar de parecer já algo consolidado, um processo de 20 anos ainda é bastante
recente, ainda que a força da vanguarda espanhola tenha sido realmente poderosa e
influente. Dentro de uma perspectiva histórica, até mesmo a Nouvelle Cuisine é
recente, pois 50 anos de sua aplicação é pouco tempo perto de três séculos de
desenvolvimento da Gastronomia Clássica.

Referências
BARCELOS, G. Banquete da psiquê, imaginação, cultura e psicologia da alimentação.
Petrópolis: Vozes, 2017.

JAMES. K. Escoffier, o rei dos chefs. São Paulo: Senac-SP, 2008.

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KELLY, I. Carême, cozinheiro dos reis. São Paulo: Zahar, 2005.

MONTANARI, M.; FLANDRIN, J. L. História da alimentação. São Paulo: Estação


Liberdade, 2003.

MONTANARI, M. Cucina politica. Il linguaggio del cibo fra pratiche sociali e


rappresentazioni ideologiche. Bari: Laterza, 2021.

MONTANARI, M. The culture of food. Hoboken, New Jersey: Wiley-Blackwell, 1994.

PERULLO, N. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento.


São Paulo: SESI-SP, 2013.

SAVARIN, J. A. B. A fisiologia do gosto. Serra-ES: Companhia de Mesa, 2017.

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