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PROTOCOLO

Doença hemolítica
perinatal
Luciano Marcondes Machado Nardozza1

Descritores ETIOPATOGENIA
Doença hemolítica Aloimunização é a resposta imunológica a um antígeno da mesma espécie.
perinatal; Aloimunização Até o momento, mais de 400 antígenos de superfície foram descritos nas
Rh; Eritroblastose fetal
células vermelhas humanas,(1) muitos dos quais estão implicados na doença
hemolítica perinatal (DHPN) e, por essa razão, são de particular interesse
para a obstetrícia. A exposição a determinado antígeno, seguida da produ-
ção do anticorpo correspondente, ocorre em virtude de algumas variáveis,
dentre as quais sobressai a resposta individual de cada organismo. Assim,
por razões pouco compreendidas, alguns indivíduos, ainda que expostos de
forma repetida a um antígeno estranho, não desenvolvem anticorpos, en-
quanto outros os formam após uma única exposição. Consideram-se como
principais fatores determinantes da imunização: a intensidade do estímulo,
a via de administração, a imunogenicidade do antígeno e a sua frequência
na população. Embora mais de 40 antígenos eritrocitários já tenham sido
associados à DHPN,(2) cumpre ressaltar o papel de destaque do antígeno D,
integrante do sistema Rh, cuja importância clínica reside em sua elevada
imunogenicidade e consequente frequência com que provoca sensibilização
na ausência de medidas profiláticas. O sistema Rh, considerado o mais com-
plexo dos sistemas de grupos sanguíneos, é controlado por dois genes ‒ RHD
e RHCE ‒ localizados em loci e intimamente relacionados, no braço curto do
cromossoma 1. O status positivo ou negativo para o sistema Rh é definido de
acordo com a presença ou ausência, respectivamente, do antígeno D, o que
reflete sua “hegemonia” no sistema. Um indivíduo que possui o antígeno D é
considerado Rh+, ainda que não carregue em suas células vermelhas o alelo
dominante C ou E. As gestantes sensibilizadas por antígenos eritrocitários,
que não pelo fator Rh, apresentam, de maneira geral, melhores resultados
perinatais. É necessário, porém, individualizar os casos, uma vez que o com-
portamento biológico dos diferentes antígenos é diverso.
Como citar?
Nardozza LM. Doença hemolítica
perinatal. São Paulo: Federação
FISIOPATOLOGIA
Brasileira das Associações de Quando um antígeno penetra em um organismo dele desprovido, desen-
Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo);
cadeia, como resposta, uma série de reações que culminam com a pro-
2018. (Protocolo Febrasgo de
Obstetrícia nº 36/Comissão dução de anticorpos específicos contra esse antígeno. A esse fenômeno
Nacional Especializada em Medicina denomina-se imunização. Aloimunização ou isoimunização é a resposta
Fetal). imunológica a um antígeno da mesma espécie e embasa todos os even-
tos da DHPN.(3) O processo se inicia com a penetração de hemácias Rh+
1. Escola Paulista de Medicina, na circulação de mulheres Rh–, com isso, determinando a produção de
Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
anticorpos específicos.(4) Os linfócitos e os macrófagos acham-se envol-
vidos nesse mecanismo de defesa imunológica. O contato da gestante
* Este protocolo foi validado pelos
com sangue incompatível por transfusão, ou quando ocorre passagem
membros da Comissão Nacional transplacentária de sangue fetal para a mãe com feto Rh+ leva à resposta
Especializada em Medicina Fetal imune primária contra o antígeno Rh. A resposta imune primária é lenta,
e referendado pela Diretoria levando de seis semanas até seis meses para acontecer, talvez, pela imu-
Executiva como Documento Oficial
da Febrasgo. Protocolo Febrasgo de
nodepressão característica do estado gravídico, e resulta na produção de
Obstetrícia nº 36, acesse: https:// imunoglobulina do tipo M (IgM), anticorpo de peso molecular 890.000 e
www.febrasgo.org.br/protocolos coeficiente de sedimentação 19 Svedberg (19S). Esse anticorpo não cruza

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a barreira placentária e, portanto, não agride o feto. ção consequente principalmente da hipoproteinemia.
Em uma subsequente exposição da mãe ao antígeno Outro efeito da hemólise é o aumento na produção da
Rh, rápidas respostas celular e humoral deflagram-se, bilirrubina do tipo não conjugado, que é transportada
com produção especificamente de anticorpos anti-Rh no plasma ligada à albumina. A bilirrubina não agride
do tipo IgG, que são moléculas pequenas com peso o feto, desse modo, não se verifica icterícia intraútero
molecular de 160.000 e coeficiente de sedimentação mesmo nos casos graves da doença, pois o pigmento é
7S, que cruzam a placenta, indo aderir à membrana do metabolizado pelo fígado materno. Após o parto, a si-
eritrócito Rh+ e causando hemólise fetal.(4) tuação é drasticamente alterada pelo desaparecimento
Alcançada a circulação fetal, os anticorpos ficam ad- repentino do compartimento materno, eficiente depó-
sorvidos à superfície das hemácias portadoras de seu sito de bilirrubina. Assim, julga-se, no epílogo dessas
antígeno específico. Os monócitos do sistema retículo- considerações, que os problemas relacionados ao feto
-endotelial, através dos receptores Fc, reconhecem as e ao recém-nascido atingidos pela doença hemolítica,
hemácias assim sensibilizadas, e o complexo antíge- são basicamente dois: a anemia e suas consequências
no-anticorpo é, então, eritrofagocitado, principalmen- intraútero e a anemia e a hiperbilirrubinemia após o
te no baço. O feto procura compensar a destruição de parto (Figura 1).
suas hemácias pelo incremento na eritropoiese me-
dular e, mais tardiamente, pelo aparecimento de fo-
cos extramedulares de eritropoiese no fígado, baço, ROTEIRO PROPEDÊUTICO
rins e placenta. Isso leva à hepatoesplenomegalia e Anamnese
ao aparecimento de células imaturas, principalmente Os antecedentes obstétricos são de extremo valor, des-
reticulócitos e eritroblastos, circulando no sangue pe- tacando-se a presença de icterícia ou transfusões no
riférico, por isso, justificando o termo “eritroblastose período neonatal, transfusões intrauterinas ou hidro-
fetal”. Quando o processo atinge intensidade suficiente pisia fetal.(6) Há correspondência entre o histórico das
para a velocidade de hemólise superar à de formação gestações e o grau de comprometimento fetal em 62%
de novas células sanguíneas, instala-se a anemia. A dos casos. Também é de suma importância o relato da
persistência do processo hemolítico gera hepatome- necessidade de reposição sanguínea pela paciente de-
galia crescente, ocasionando alteração na circulação vido à possibilidade de transfusões de tipos incompa-
hepática com hipertensão portal; concomitantemente, tíveis. Vários autores chamaram atenção para o uso de
a função do hepatócito é afetada, provocando hipoal- drogas injetáveis como forma cada dia mais frequente e
buminemia. Tal associação pontua o início do apareci- perigosa de sensibilização materna.(7)
mento da ascite. A difusão prejudicada dos aminoáci-
dos, combinada com a síntese de proteína diminuída
Determinação do tipo sanguíneo
pelo hepatócito, resulta em hipoproteinemia grave
com anasarca, caracterizando a hidropisia.(5) Embora a Tipagem sanguínea materna: Toda gestante deve ser
anemia grave possa causar insuficiência cardíaca con- submetida à investigação do tipo sanguíneo Rh. Res-
gestiva e, assim, resultar em hidropisia fetal, estudos salta-se que, em algumas ocasiões, o fenótipo (tipagem
em neonatos hidrópicos demonstram ser essa condi- sanguínea) pode não corresponder à genotipagem.

Anticorpos IgG Passagem transplacentária

Hemólise ↑ Pigmento biliar no líquido amniótico

↑ Débito cardíaco
↓ Viscosidade
Eritroblastose Anemia

Eritropoiese extramedular Hipóxia

Anemia Disfunção hepática Placenta Lesão endotelial

Hipoproteinemia

↑ PAN Falência cardíaca Ascite Plasma no extravascular

↑ Líquido amniótico Hidropisia

Figura 1. Esquema 1 – Representação esquemática da fisiopatologia da aloimunização Rh

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Doença hemolítica perinatal

Tipagem sanguínea paterna: Nas gestantes Rh–, o Determinação do Rh fetal


risco de sensibilização ocorre quando o pai é Rh+. A zi-
O DNA fetal pode ser detectado a partir de cinco sema-
gotagem do parceiro é um exame opcional, geralmente
nas de gestação. Inicialmente, é oriundo da apoptose
indicado em casos de maior gravidade.
do sinciciotrofoblasto e, posteriormente, pela passagem
do substrato cromossômico, resultante da lise celular
Pesquisa dos anticorpos antieritrocitários do concepto pela barreira placentária.(12) Em contraste
(teste de Coombs indireto – CI) com a célula fetal ‒ que pode perdurar na circulação
Em 1945, Coombs, Mourant e Race(8) descreveram o teste sanguínea e nos tecidos maternos por tempo prolonga-
da antiglobulina, que simplificou a detecção e a quan- do, o DNA fetal tem meia-vida média de 15 minutos(13) e é
tificação da aloimunização. A pesquisa de anticorpos detectado até as primeiras 24 horas pós-parto. Devido à
irregulares, por meio do teste de CI, deve ser realizada sua rápida degradação, a utilização do DNA fetal aumen-
para todas as gestantes. Na Universidade Federal de São ta a sensibilidade dos testes, minimizando a contamina-
Paulo (Unifesp), por questões financeiras, recomenda-se ção por gestações prévias.(14)
que só se realize o Coombs nas gestantes Rh+ quanto há As proteínas que expressam o antígeno D são cha-
mau passado obstétrico ou transfusão ou uso de drogas. madas de RhD, com diferenças de outras proteínas re-
Essa dosagem deve ser realizada na primeira visita pré- lacionadas a antígenos eritrocitários, sobretudo nas se-
-natal e repetida na 28ª semana de gestação, embora quências dos éxons 4, 5, 7 e 10. Chinen et al.,(15) em 2010,
haja evidência de que anticorpos detectados apenas no encontraram sensibilidade de 100% para a detecção do
terceiro trimestre não causem DHPN. Rh fetal no sangue materno utilizando o éxon 7 e a as-
A sensibilização materna só é caracterizada quando sociação dos éxons 7 e 10.
esse exame é positivo, isto é, existem anticorpos an-
tieritrocitários na circulação materna. Nessa situação Ultrassonografia
é imprescindível a realização do painel de anticorpos É um método propedêutico pouco sensível para predi-
irregulares visando à definição do(s) antígeno(s) en- zer os estados anêmicos do concepto, detectando-os
volvidos. Nos casos em que o resultado é negativo, a apenas nos estados avançados. Seu maior objetivo é
gestante é considerada de risco para a sensibilização, o rastreamento de sinais que possam sugerir o início
sendo orientada a realizar a profilaxia ante e pós-natal, da descompensação fetal a caminho da hidropsia. Os
como descrito, a seguir, no subtítulo Profilaxia. Quando achados mais importantes são: aumento do líquido am-
for caracterizada a DHPN por CI positivo, esta só terá niótico, ascite incipiente (halo anecogênico ao redor da
repercussão clínica importante quando a titulação for bexiga e vesícula biliar, derrame pericárdico e, nos fetos
superior ou igual a 1:16, visto que níveis inferiores a esse masculinos, aumento da hidrocele), aumento da espes-
não oferecem risco de anemia moderada ou severa na sura placentária e surgimento de áreas de maior eco-
grande maioria dos casos. É um teste inespecífico e de- genicidade dispersas pelo parênquima (representando
tecta a presença de IgG antieritrocitária; a especificida- a substituição do tecido placentário por tecido hema-
de em predizer os estados anêmicos graves é de 65%, topoiético extramedular). A hidropisia fetal, grau máxi-
principalmente, com títulos superiores a 1/128. mo de comprometimento do concepto, é caracterizada
por pelo menos dois derrames serosos (ascite, derra-
Espectrofotometria do líquido amniótico me pericárdico ou derrame pleural) acompanhados de
edema de pele. O ecografista que acompanha gestantes
Visa à quantificação dos pigmentos biliares liberados na
aloimunizadas deve investigar sinais premonitórios da
diurese fetal, cujos níveis são proporcionais à hemólise.
hidropsia, visando detectar a melhor época para ini-
O líquido amniótico é avaliado pela técnica de espectofo-
ciar os procedimentos invasivos, como cordocentese e
tometria. Provavelmente, a passagem da bilirrubina não
transfusão intrauterina, com isso melhorando o prog-
conjugada (aumentada pela hemólise) para o líquido am-
nóstico perinatal.
niótico resulta da transudação pelos vasos fetais da su-
perfície placentária e também pelos pulmões e traqueia.
Até há menos de uma década, o acompanhamento de Dopplervelocimetria
gestantes aloimunizadas com risco para DHPN consistia Nas patologias que determinam anemia fetal, como a
na realização de amniocentese seriada, a cada duas a aloimunização Rh, a avaliação pela dopplervelocimetria
três semanas, para determinação de desvios na densi- baseia-se no preceito fisiológico do aumento da veloci-
dade óptica do líquido amniótico a 450 nm, até que ela dade média da coluna de sangue advinda do aumento
atingisse o percentil 80 da zona 2 da curva de Liley(9) para do trabalho cardíaco e da diminuição da viscosidade san-
idades gestacionais maiores que 28 semanas. Atualmen- guínea devida à diminuição dos elementos figurados. A
te, com o advento da dopplervelocimetria, esse método avaliação do pico de velocidade sistólica na artéria ce-
está cada vez mais em desuso. Nardozza et al.(10,11) mostra- rebral média (PVS-ACM), pela dopplervelocimetria, apre-
ram a superioridade do uso do Doppler na detecção da senta vantagens no diagnóstico da anemia fetal, quan-
anemia fetal quando comparado à espectrofotometria. do comparada com a análise do líquido amniótico pela

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espectrofotometria, como já foi demonstrado por vários dor da 28ª semana e, caso permaneça negativo, faz-se a
autores.(11,16) Esses estudos mostraram que a dopplervelo- profilaxia antenatal com Ig anti-D. A conduta obstétrica
cimetria é o método mais eficaz, seguro, não invasivo e deverá ser tomada baseada em outros parâmetros clíni-
de fácil repetição, fornece de imediato o resultado, por cos e obstétricos. Cabe lembrar que, após a ministração
ser um método direto, e é o de eleição na aloimuniza- da Ig anti-D, a pesquisa de anticorpos antieritrocitários
ção Kell, em que a anemia ocorre principalmente por de- pode permanecer positiva, porém em títulos baixos.
pleção medular, em vez de hemólise. Vários vasos foram Nas gestantes sensibilizadas, isto é, com teste de CI
propostos e estudados por inúmeros autores, como a ar- maior ou igual a 1:16, deve-se fazer o acompanhamento
téria aorta, esplênica, carótida, umbilical, o duto venoso, por meio da análise dopplervelocimétrica do PVS-ACM.
a veia cava inferior e veia umbilical, entre outros. Mari et A manutenção da normalidade na dopplervelocimetria
al. (1995)(17) demonstraram que a artéria cerebral média e provas de vitalidade preservadas são fatores que não
fornece resposta rápida à hipoxemia, fácil visualização no influenciarão na conduta obstétrica a ser tomada e po-
ângulo 0o, menor variabilidade intra e interobservador e de-se levar a gestação a termo, visto que as gestantes
técnica difundida entre os ultrassonografistas. apresentam baixo risco para anemia moderada ou grave.
Mari et al. (1995) mostraram que, por meio da aná- Nos fetos, contudo, que apresentam velocidades de
lise do PVS-ACM, houve redução em 70% dos testes artéria cerebral média acima de 1,5 múltiplo de media-
invasivos, mas ressaltam que a técnica adequada e o na, com idades gestacionais superiores a 34 semanas, o
correto treinamento do examinador são fundamentais. parto deve ser imediato.
Cabe lembrar, ainda, que, após a 35ª semana de ges- Diante de fetos imaturos (abaixo de 34 semanas), com
tação, na vigência de alguns medicamentos, diante da alterações de dopplervelocimetria (pico de velocidade
excessiva movimentação ou repouso fetal prolongado, a sistólica > 1,5 múltiplo de mediana), sinais de hidropisia
sensibilidade do método é reduzida. Outro fator muito fetal ou mesmo ascite isolada, devem ser feitos a cor-
importante a lembrar é a análise do PVS-ACM após a docentese, a análise do sangue fetal e, diante do resul-
transfusão intrauterina. Scheier et al.(18) mostraram uma tado, o imediato tratamento intrauterino, que se baseia
redução da sensibilidade para 58% após uma transfusão na transfusão intravascular. Anemia fetal grave pode
e para 36% após duas transfusões. ser definida como hematócrito abaixo de 30% ou dois
Como já mencionado, três mensurações da velocida- desvios-padrão abaixo da média do hematócrito para
de do pico sistólico são obtidas e a maior é registrada. a idade gestacional, devendo ser indicado tratamento
Quando o PVS-ACM apresenta valores acima de 1,5 múl- pelo risco de desenvolvimento de insuficiência cardíaca
tiplo da mediana para a idade gestacional correspon- fetal. A antecipação do parto deve ocorrer próximo a 34
dente, estamos diante da anemia moderada ou grave, semanas com o uso de ciclo de corticoide materno an-
com sensibilidade de 100%, segundo vários autores. tes do nascimento.
A frequência e os intervalos de exames dopplervelo- Em razão da baixa frequência de aloimunização por
métricos ainda não estão bem estabelecidos na literatu- outros anticorpos do sistema Rh (C, c, E, e) e anticorpos
ra. A manutenção da normalidade do PVS-ACM (valores não Rh, faltam na literatura protocolos específicos, re-
inferiores a 1,5 múltiplo da mediana) na dopplervelo- comendando-se que nesses raros casos seja seguido o
cimetria é fator importante na presunção de ausência algoritmo usado na aloimunização RhD.(19,20)
de anemia pronunciada, e a gestação pode ser levada Com exceção da aloimunização RhD, não há estraté-
a termo. gias específicas para profilaxia. É possível sempre ado-
Nos fetos cujo PVS-ACM é acima de 1,5 múltiplo de tar medidas gerais que minimizem o risco de troca san-
mediana, com idades gestacionais superiores a 34 se- guínea entre o feto e a mãe no período antenatal, dessa
manas, o parto deve ser imediato. Diante de fetos ima- forma evitando procedimentos invasivos no feto e seus
turos com alterações de dopplervelocimetria, sinais de anexos, bem como manobras de versão externa. Já no
hidropisia fetal ou mesmo ascite isolada, devem ser fei- parto, dever-se-ia procurar realizá-lo pela via vaginal,
tos a cordocentese, a análise do sangue fetal e, diante não fazer uso excessivo de ocitocina, realizar amnioto-
desse resultado, o imediato tratamento intrauterino. mia oportuna, evitar a remoção manual da placenta e
não manter o clampeamento do cordão umbilical en-
ACOMPANHAMENTO E CONDUTA OBSTÉTRICA quanto se aguarda a dequitação.(21)

As gestantes Rh– não sensibilizadas devem realizar a


genotipagem fetal. Aquelas cujos fetos são Rh– não ne- TRANSFUSÃO INTRAUTERINA
cessitam receber a Ig anti-D na 28a semana e terão seu O advento da funiculocentese representou grande pro-
parto no termo, salvo intercorrências clínicas ou obsté- gresso para a avaliação e o tratamento dos fetos aco-
tricas. Aquelas cujos fetos são Rh+ realizarão a pesquisa metidos pela DHPN, pois propicia quantificar e tratar, de
de anticorpos antieritrocitários. forma mais efetiva, a anemia fetal. A introdução desse
Nas gestações com teste de CI negativo, sem história procedimento promoveu o desenvolvimento da técnica
de sangramento, sugere-se a repetição do exame ao re- de transfusão intravascular. Essa modalidade terapêu-

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Doença hemolítica perinatal

tica passou a ser a mais utilizada no tratamento da que o marido seja Rh+ ou com tipagem indeterminada.
anemia grave, ocupando, então, o lugar da transfusão Aplica-se a droga por via intramuscular, em dose que
intraperitoneal. A transfusão intravascular é, sem dúvi- varia de 250 a 300 µg no Brasil:
da, o tratamento da forma grave da DHPN, dessa for- • Com 28 semanas de gestação;
ma evitando a morte intrauterina. A via preferencial é
• Nas primeiras 72 horas depois do parto ou
a intravascular, que tem como vantagens a correção
até 28 dias, (3) em caso de omissão ou falta
mais rápida e fisiológica da anemia, o acesso aos pa-
do produto, desde que o recém-nascido seja
drões hematimétricos e a estimativa da época da pró-
Rh+ ou D fraco, apresente teste de Coombs
xima transfusão, baseando-se na taxa diária de queda
direto (CD) negativo e que o parto ocorra
do hematócrito. Soma-se a isso a maior incidência de
após três semanas da primeira dose;
complicações para a via intraperitoneal. A transfusão
intravascular pode ser realizada a partir de 18 até 34 • Em casos de abortamento, gestação molar
semanas de gravidez. O sangue utilizado é concentrado ou ectópica, sangramentos genitais e trauma
com hematócrito entre 65% e 85%, do tipo 0 Rh negativo, abdominal na gravidez, biópsia de vilo corial,
submetido à irradiação (para a destruição de leucócitos amniocentese, funiculocentese, versão cefálica
e diminuição de reação enxerto-hospedeiro), com ve- externa ou feto morto, todas com Rh–, CI negativo
locidade de infusão em torno de 5 a 10 mL/min. A taxa e parceiro Rh+ ou desconhecido recebem
de complicações advindas da transfusão intravascular é profilaxia com 250 µg de anti-D intramuscular,
preferencialmente nas primeiras 72 horas
da ordem de 2% e entre as mais comuns estão a bradi-
após o evento, reaplicada a cada 12 semanas
cardia, a hipercapnia, o tamponamento ou o hematoma
naquelas que se mantenham grávidas;
do cordão por extravasamento de sangue para a geleia
de Wharton, o sangramento para o líquido amniótico e • Em não gestantes, Rh–, não sensibilizadas e
a embolia. transfundidas inadvertidamente com sangue
Rh+, administram-se 12 µg de anti-D para cada
mililitro de sangue incompatível. Quando se
PROFILAXIA
necessita do emprego de mais de cinco ampolas,
A partir de 1968, a Food and Drug Administration (FDA) a dose deve ser fracionada a cada 24 horas. Para
dos Estados Unidos aprovou a utilização da Ig anti-D transfusões incompatíveis acima de 900 mL,
profilaticamente após o parto, com 300 mcg de IgG em homens ou mulheres com prole constituída,
anti-D entre 72 horas até 28 dias, ressaltando-se que nada deve ser feito. Naquelas que desejam
quanto menor o intervalo entre o evento e a aplicação engravidar, entretanto, deve ser feita inicialmente
da profilaxia, maior a eficácia.(22) Desde então, o risco de exossanguineotransfusão de 1,5 volume, com
sensibilização nas mães que deram à luz fetos Rh+ e ABO sangue ABO compatível, Rh–, seguida de aplicação
compatíveis caiu de 16% nas que não recebiam a profila- de anti-D na dose suficiente para neutralizar 25%
xia para 1,5% a 2% naquelas tratadas, quando avaliadas do volume de sangue incompatível transfundido.
até seis meses após o parto. O percentual remanescente
de falha da Ig deve-se provavelmente à ocorrência da REFERÊNCIAS
sensibilização durante a gravidez ou pela atuação de 1. Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Hauth JC, Gilstrap L,
anticorpos menos frequentes que não o D, em que não Wenstrom KD. Williams obstetrics. 23nd ed. New York: McGraw-Hill;
há ação da gamaglobulina. Visando diminuir ainda mais 2005.
essa incidência, Bowman et al.,(23) em 1978, propuseram 2. Moise KJ Jr. Non-anti-D antibodies in red-cell alloimmunization. Eur
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a profilaxia antenatal, aplicando uma dose adicional de
3. Braga LF. Prevenção da doença hemolítica perinatal no recém-
300 mcg de Ig anti-D na 28a semana de gestação.
nascido. Femina. 1978;6:394-400.
Em recente revisão sistemática da Fundação Cochra-
4. Peddle LJ. The antenatal management of the Rh sensitized woman.
ne,(24) foi apontada a efetividade da profilaxia pós-natal Clin Perinatol. 1984;11(2):251-6.
da aloimunização Rh com anti-D, reduzindo a ocorrência 5. Rote NS. Pathophysiology of Rh isoimmunization. Clin Obstet
de sensibilização para 1,5%, porém as evidências foram Gynecol. 1982;25(2):243-53.
consideradas limitadas para se recomendar qual seria a 6. Management of isoimmunization in pregnancy. ACOG Technical
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dose ótima a ser aplicada (grau B de recomendação). A
1992;37(1):57-62.
cobertura profilática obtida no pós-parto não foi subs-
7. Bowman JM. Hemolytic disease (Erythroblastosis Fetalis). In: Creast
tancialmente diferente quando doses de 100, 200 ou 300 RK, Resnick R, Greene MF, Iams JD, Lockwood CJ, Moore TR, editors.
mg de imunoglobulina anti-D foram administradas. Do- Creasy and Resnik’s Maternal-Fetal Medicine: Principles and
ses menores que 50 mg de anti-D mostraram-se menos Practice. 7th ed. Philadelphia: Elsevier Saunders; 1999. cap. 43, p.
736-82.
efetivas.(25)
8. Coombs RR, Stoker MG. Detection of Q fever antibodies by the anti-
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da aloimunização na gestação é que a mulher seja Rh–, 9. Liley AW. Intrauterine transfusion of foetus in haemolytic disease.
não possua anticorpos anti-D (teste de CI negativo) e BMJ. 1963;2(5365):1107-9.

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