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TEXTO: ESTADO DE DIREITO REPUBLICANO


Vinício Carrilho Martinez

Fonte: MARTINEZ, Vinício Carrilho . Estado de Direito republicano. Revista


Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12 , n. 1279, 1 jan. 2007 .
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9308. Acesso em: 18 set. 2022.

RESUMO: O texto busca definir Estado de Direito Republicano — sem confundir-


se com o conceito de República Popular: que requer argumentos e componentes
socialistas. Portanto, foram desenvolvidas noções em paralelo ao conceito
central de Estado de Direito Republicano, como governo das leis, Estado de
Direito Formal e igualdade na lei.

PALAVRAS-CHAVES: Estado de Direito Republicano; coisa pública; Estado de


Direito Formal; participação popular.

SUMÁRIO: 1. Governo das leis sob a República; 2. O Princípio da Igualdade na


República; 3. O Direito Justo na República; 4. Prioridades na República;
5. Ethos Público ou Estado Ético; 6. Educação Para a República; 7) Estado
Federal ou Federativo; 8) República Federativa; 9) Estado Popular e
Democrático; 10) Conselho da República; 11) Bibliografia.

Governo das leis sob a República


Seguindo o governo dos homens, o poder tende à personificação, à
idolatria: no lugar do governante há um símbolo, constrói-se um ídolo e
emblemas que devem ser cultuados, um ícone que não poderá ser
julgado. No governo dos homens, o poder tende à concentração e à
obscuridade, porque o poder seguiria a tendência de fortalecer o
governo baseado em interesses pessoais, egoístas.

A expressão "o poder corrompe; o poder absoluto corrompe


absolutamente" vale especialmente para o governo dos homens. Aqui,
é a lei claramente expressa, inconteste em sua validade e de
compreensão popular que deveria bloquear o abuso de poder, esse
desvio de função, essa deturpação da finalidade política comum.

A lei claramente expressa visa a atender ou deriva da vigência e do


cumprimento dos princípios da publicidade, da transparência e da
clareza [01]. Desse modo, seu alcance social também é maior. É como
se houvesse uma crença (crer) no Direito, reconhecer o Direito que nos
cabe, e depois um querer esse mesmo Direito para si e para outrem.
Em síntese, isso é a vontade de justiça e o espírito republicano (a
política não-mesquinha).
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Neste sentido, só na República há uma finalidade política comum, dada


pela própria definição de coisa pública: República = res publica.
Portanto, seguindo-se o governo das leis, o poder tende
à glorificação do público, como na Roma antiga, e de acordo com uma
situação política ideal em que o poder seria global, indistinto aos
membros da comunidade.

Por isso, poder-se-ia dizer que a República deve lançar luzes sobre a
política, evitando o fascínio pessoal pelo mando (fortalecendo-se o
comando), combatendo-se a corrupção do patrimônio e/ou dos ideais
da vida social e do respeito pela coisa pública. Assim, o melhor remédio
contra a corrupção é fortalecer a República e esta, por sua vez,
revigora-se com o impulso acelerado do governo legal [02]. Nada melhor
do que a própria lei (clara, bem formulada, promulgada) para combater
o que é obscuro, a corrupção.

A república, portanto, necessita do povo, de sua vigilância e


envolvimento: "Não há regra moral na omertà, não se pode admitir
como obrigação ética o silêncio entre criminosos. Na verdade, a
obrigação é para com a sociedade. O que existe realmente é o dever
de colaborar para a elucidação do crime, pois esse é o interesse social"
(lima, 29/08/2005). Tanto a República, quanto a Democracia implicam
transparência, clareza e verdade dos fatos: aqui só interessa
a narrativa pública.

Para nós, de modo mais amplo, e de acordo com a vontade constituinte


de 1988, República, Federação e Democracia formam um trinômio que
não pode ser separado ou desfeito. Portanto, República, Federação e
Democracia não podem ter objetivos de governo antipopulares. Ou
seja, é mais do que evidente que Federação – além da declaração
solene da divisão dos poderes e das funções públicas – é ação
constitutiva de condições para governar com legitimidade. Porém, com
governos antipopulares em suas medidas políticas e jurídicas, essa
tarefa se mostra a cada dia mais difícil.

Esse governo legal e legítimo, sob a Federação, em si, também teria


particularidades se observarmos especialmente a divisão dos poderes
ou das funções públicas. O Poder Judiciário (seguindo o brocardo
jurídico: "O Direito não socorre a quem dorme") só age se for
pressionado – e raramente o Judiciário age de ofício: será exceção.

Já os poderes Executivo e Legislativo, ao contrário, deverão ter na lei


(sob a tutela da legalidade) o estabelecimento dos seus limites e a
previsão de sua conduta. A definição dos limites entre o que o
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governante pode fazer e o que é considerado corrupção da


República ou abuso de poder, está estabelecido na própria lei – sob o
chamado princípio da legalidade estrita.

A ação e a intervenção é o que se espera do Executivo e do Legislativo:


é próprio da alçada e da capacidade enquanto poder. O Ministério
Público, por exemplo, deverá agir, provocar, por obrigação de ofício, em
razão da definição legal de suas funções, ao passo que o Judiciário
espera ser provocado pelos demais poderes. Mas, sem voluntariedade
ou força para sozinho romper o repouso, realmente o Judiciário só pode
esperar pela ação alheia, a fim de que sua paralisia se encerre.

Então, o Ministério Público (ligado ao Executivo), neste caso,


deverá acionar, fustigar o Judiciário para que este dê respostas ao
povo, enquanto o Judiciário permanece estacionário. Portanto, sob a
vigência do governo das leis, enquanto um poder permanece latente,
na inércia, no repouso (Judiciário) e isto seguindo a prescrição legal, os
demais poderes (Legislativo e Executivo) deverão pressioná-lo a fim de
que a própria prescrição legal seja cumprida (império da lei),
especialmente se o objetivo é realmente produzir Justiça.

A República é uma barreira moral, a Federação é defesa contra a


prepotência e a Democracia é um conjunto de promessas que o Povo
deve ansiar, bem como exigir sua concretização. Parte da
desesperança e da frustração popular atual, deve-se ao fracasso do
socialismo real e da desarticulação desses três fatores.

De forma geral, este deveria ser o funcionamento do governo das


leis sob a vigência da República e da Federação. No entanto, a divisão
dos poderes deve ter implicações mais específicas. É importante frisar
o papel da Federação, neste momento, porque a estrutura de repartição
e de distribuição das funções e do comando (natural da Federação)
deve fortalecer a coisa pública, evitar a concentração e a personificação
do poder, além de combater a todo custo a corrupção social. Deriva daí
o fato de que um poder provoca e deve fiscalizar os demais.

Como vimos, na República, o titular da política é o Povo e, por isso, a


corrupção deve ser severamente punida. Também por este motivo,
definitivamente, a República não suporta a mentira, o engodo, a
falsidade ideológica, porque tudo isso deprecia seus valores, deturpa
suas intenções e denigre suas verdades políticas. Como diz o ditado
popular, "são necessários mil passos para se chegar à ilegalidade, mas
é melhor não dar nenhum". Porém, quantos anos seriam precisos para
a irresponsabilidade?
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Nesta forma de gestão pública, o governo tem de ser direto e objetivo,


combatendo a tergiversação, a falta de clareza e/ou de direção. Afinal,
o interesse público e popular é sempre imediato e urgente, e, neste
aspecto, a República não é um ideal, é uma meta. Por isso, também é
mais força e convicção do que, propriamente, ponto de vista ou
negociação, como se vê na Democracia.

É um regime de governo que alterna vigor e sonho. É uma forma de


governar que exige basicamente atitude moral, em que o governo seja
movido pela esperança, mas esteja sempre pronto para agir com
firmeza, vigor e decisão contra seus detratores. A indecisão política
jamais poderá decorrer da imprecisão ou do descuido moral: seu
veneno é essa dubiedade moral e/ou político-ideológica.

Ser republicano é, acima de tudo, apostar na honestidade, na correição,


na verdade, na clareza e na inteireza das ações e das intenções. Sem
dúvida, é uma aposta no futuro político e no conjunto social, mas que
se inicia na ética do presente. Sob esse aspecto, o povo é honesto e
sabe que, agindo dessa forma, terá mais vantagens do que desgastes,
na verdade terá lucro:

Há quem diga também que ser honesto dá lucro. Como o mecânico


Ângelo Freitas. Aos 65 anos, ele aprendeu com o pai que a pessoa
pode não ter nada na vida, mas caráter e honestidade são essenciais.
Conselho que passou aos filhos e diz pôr em prática trabalhando direito
e cobrando o justo. "Nossos clientes são todos de boca em boca e
honestidade para nós aqui dá resultado. Só não sei se no governo
ocorre a mesma coisa", diz, rindo (Garbin, 28/08/2005).

O Estado de Direito Republicano necessita obrigatoriamente de


sobriedade e de eficácia. A República também exige solidariedade e
esta, por sua vez, impõe algum custo social – esta solidariedade é
construída por um sentimento republicano, que é a doação à causa de
todos. A desonestidade inibe a vida social e a isso a reação popular
também é de desapreço, pois sabe-se que, mesmo com muitos
problemas sociais, a vida social é preferível ao isolamento e à
corrupção de todos os valores morais. A corrupção só traz "medo
social":

"Quando ela está ausente, sentimos necessidade de trazê-la à


discussão, porque sua ausência é insuportável, dá medo", diz Branca
Jurema Ponce, professora titular da PUC. "Até inconscientemente, as
pessoas pressentem o risco do caos que seria viver só entre
desonestos" [...] "Cada ser humano é uma bricolagem única. Na Idade
Média, acreditava-se que o indivíduo nascia bom ou mau, mas essa
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concepção foi superada. Hoje, se vê honestidade como construção.


Ninguém nasce com ela, é algo construído" (Garbin, 28/08/2005).

É como se disséssemos que é preferível o império da lei à mera ou pura


ideologia (mesmo que do estilo salvacionista). Trata-se ainda da
liberdade positiva que, no entanto, segue o prognóstico da lei, em nome
da República, da ação para o público. A isto responderia assim Cícero:

Perguntando-se a Xenócrates, filósofo insigne, que conseguiam seus


discípulos, respondeu: "Fazer espontaneamente o que se lhes obrigaria
a fazer pelas leis". Logo, o cidadão que obriga todos os outros, com
as penas e o império da lei, às mesmas coisas a que poucos
persuadem os discursos dos filósofos, é preferível aos próprios
doutores. Onde se poderá encontrar discurso de tanto valor que se
possa antepor a uma boa organização do Estado, do direito público e
dos costumes? (Cícero, p. 20).

Cícero redigiu esse discurso há mais de 2000 anos, mas desde esse
período, é um modelo de Estado (Estado de Direito Republicano) que
trata de valores e de ações. Em nosso entendimento, o Estado de
Direito Republicano trata de virtudes políticas:

A virtude republicana da abnegação é sobretudo uma virtude de quem


está no poder. Quem mais precisa tê-la não é quem apenas obedece,
mas quem manda. Talvez por isso o self-governement, o autogoverno
dos colonos norte-americanos, tenha sido uma escola tão notável de
governo, forjando uma disciplina que súditos de uma monarquia
absoluta não podiam – nem precisavam – ter [...] A república foi a
admirável invenção romana para resolver um paradoxo, uma enorme
dificuldade teórica e prática, que é as mesmas pessoas mandarem e
obedecerem (Ribeiro, 2001, p. 69).

É claro que o autogoverno republicano não sobrevive sem abertura e


participação popular intensa, o que também exige transparência e
visibilidade do Poder Político (seja como monopólio do uso legítimo da
força, seja enquanto monopólio da produção legislativa). Visibilidade
implica em transparência e, no caso da República há uma outra
particularidade: a ampla visibilidade na vida pública exige, em
contrapartida, restrição e privacidade na vida privada. Estes são os
temas mais caros à soberania estatal e à soberania popular, sob a
ordem da República:

É preciso, contudo, distinguir as relações entre o soberano e os


cidadãos, e as relações entre os Estados. No primeiro caso, a exigência
da visibilidade, aliás da transparência do poder, é uma exigência
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legítima, e aliás necessária, para a boa ordem da república (por


visibilidade e transparência entendo que o exercício do poder seja
controlável e que seja exercido segundo normas conhecidas e
sancionadas pela lei) (Bobbio, 2002, p. 109).

Com o que vimos, já podemos depreender que, o que denominamos de


Estado de Direito Republicano corresponde a um tipo de Estado, isto é,
tratamos enquanto tipologia de Estado e não apenas como forma de
governo. José Afonso da Silva define o modelo como "formas
institucionais do Estado" (2003, p. 102), colocando-se além da simples
forma de governo, no sentido de que se pode mais facilmente modificar
o governo do que o Estado.

De certa forma, Bobbio também trata o tema de forma depreciativa,


como mera forma de governo: "Na minha formação de estudioso de
política nunca me detive sobre o republicanismo ou a república [...]
‘república’ é o nome da forma de governo oposta à ‘monarquia’ ou ao
‘principado’, a começar pelo nosso Maquiavel" (2002, pp. 10-11).

De certo modo, é como se estivesse em jogo só a questão da


representação – aqui se trata da representação formal parlamentar. Isto
é, como forma de governo, a República estaria assistida somente com
o exercício da representação, porque garantiria a governabilidade
necessária. Esse tipo de análise da governabilidade também, não
raramente, a confunde com o bom funcionamento do governo e este,
por sua vez, é limitado à separação dos poderes. A representação
formal parlamentar, entretanto, não estimula a sociedade civil com esta
tão necessária consciência republicana – esta forma de representação,
por si, já inibe a autonomia.

A cidadania ativa e a representatividade básica da ação popular são


deixadas de lado, para segundo plano. Desse modo, a representação
formal de base institucional é mais importante (ou é mais destacada) do
que a representatividade dos conteúdos políticos populares, quando, na
verdade, não existe forma sem conteúdo e vice-versa.

Esta realmente parece ser a tradição que formou boa parte dos nossos
juristas de maior relevo e que se inclinaram a tratar do tema, como é o
caso de Geraldo Ataliba, que logo no início do seu clássico República
e Constituição indica a esteira dada por Bobbio:

República é o regime político [03] em que os exercentes de funções


políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em
seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletividade e mediante
mandatos renováveis periodicamente [...] São, assim, características da
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república a eletividade, a periodicidade e a responsabilidade. A


eletividade é instrumento da representação. A periodicidade assegura
a fidelidade aos mandatos e possibilita a alternância no poder. A
responsabilidade é o penhor da idoneidade da representação popular
(2004, p. 13).

Enfim, estas são lições da Política que não temos hoje em dia na órbita
do Estado, mas, mesmo assim, são os princípios que regem a
separação dos poderes e de funções organizativas sob esse
chamado governo das leis sob a República.

Portanto, são condições ideais que poderiam ser esperadas, pelo


menos, como princípios gerais de organização da Política e do Estado
brasileiro, mas que hoje se revelam ausentes e muito distantes dos
seus princípios. Em suma, estas são as principais promessas políticas,
éticas, "republicanas" que gostaríamos de ver cumpridas.

O governo das leis sob a República implica no governo sob leis justas,
ou seja, que observem a integralidade do princípio da igualdade. A
igualdade é princípio fundamental, essencial da República:
tanto igualdade diante da lei, quanto igualdade na lei.

O Princípio da Igualdade na República


Isso se justifica porque na República não pode haver leis injustas e
ainda que para efetivar o próprio princípio da igualdade (igualdade
perante a lei), a lei tenha de impor certa discriminação – "tratar os iguais,
igualmente; os desiguais, desigualmente". Esta é a discriminação
positiva, mas que também deve vir lastreada na lei (igualdade na lei),
nos princípios constitucionais do Estado de Direito.

Neste sentido, podemos supor então que os Princípios Gerais do Direito


devem orientar a produção do Direito e não só sua aplicação - mas, o
legislador raramente os conhece. Os Princípios Gerais do Direito devem
servir de limites à discricionariedade do legislador. Dentre eles, o
princípio da igualdade surge como o orientador de princípios, uma vez
que a lei republicana é a lei da igualdade. Disso também decorre a
necessidade tanto da igualdade perante a lei, quanto da igualdade na
lei:
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O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma


voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador.
Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas,
a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento
equânime às pessoas (Mello, 2005, p. 09).

As normas devem ser aplicadas conforme as disposições das normas,


sejam elas próprias, sejam normas superiores – como a Constituição:
"Com efeito, Kelsen [04] bem demonstrou que a igualdade perante a lei
não possuiria significação peculiar alguma. O sentido relevante do
princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria lei, vale
dizer, entendida como limite para a lei" (Mello, 2005, p. 10).

Os Princípios Gerais do Direito devem ser frisados porque, na


República, o objetivo deve ser a Justiça [05]: neminem laedere ("não
prejudicar ninguém"). Na República, a norma jurídica deve objetivar e
promover o bem público, visto que o ordenamento jurídico resulta do
Estado, mas igualmente expressa o aparelho estatal:

"Em lugar da fórmula ‘princípios gerais do Direito vigente’, que poderia


parecer extremamente limitada para o intérprete, julguei preferível a de
‘ princípios gerais do ordenamento jurídico do Estado’. Nesta, o termo
‘ordenamento’ torna-se compreensivo em seu amplo significado, para
além das normas e dos institutos, e para além, ainda, da orientação
político-legislativa estatal e da tradição científica da Nação [...] Esse
ordenamento, adotado ou sancionado pelo Estado, seja ele privado ou
público, dará ao intérprete todos os elementos necessários para a
pesquisa da norma reguladora" (Bobbio, 1999, p. 157) [06].

Princípios gerais do ordenamento jurídico do Estado, portanto, são


normas, com força de lei, e devem regular tanto a atividade estatal
(pública), quanto os direitos de cidadania: tanto se aplicam ao todo,
quanto às partes. No entanto, como bem ilustra Celso Antônio Bandeira
de Mello, a mesma lei que exige igualdade de tratamento
(diante e na própria lei), impõe um desnivelamento ou tratamento
peculiar e, assim, tem seus aplicativos absorvidos de modo inverso, ou
seja, na aplicação, a lei cria discriminação:

O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas.


Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função
precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos
desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar
situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em
outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas
são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a
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outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo


de obrigações e direitos (Mello, 2005, pp. 12-13).

É fato, pois, que não é possível a estrita observância do princípio da


igualdade, mesmo que se trate do Estado de Direito Democrático e
Republicano. O tratamento peculiar dado pela lei – como fator de
discriminação legal e necessária – não pode ser transportado
aleatoriamente a outras pessoas, coisas ou situações, sob pena, aí sim,
de se impor a desigualdade, a discriminação, o tratamento injusto.

Neste caso, a desigualdade traria conformidade à própria lei,


destacando privilégios no ponto de partida da ação do Estado – este é
o caso, por exemplo, do privilégio explícito em que a lei privada já
nomeia o destinatário em seu caput. Portanto, a discriminação positiva
(essencial à República), tem de ter no caput e no espírito a motivação
da igualdade – com o que, então, seria possível falar-se de
desigualdade:

Para que um discrímen legal seja convivente com a isonomia,


consoante visto até agora, impede que concorram quatro elementos: a)
que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só
indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra
de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam
características, traços, nelas residentes, diferençados; c) que exista,
em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais
existentes e a distinção de regime jurídico em função deles,
estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de
correção supra-referido seja pertinente em função dos interesses
constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de
tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto
constitucional – para o bem público (Mello, 2005, p. 41).

Um aspecto formal, mas fundamental ao Estado de Direito Republicano


é sua sujeição ao binômio da liberdade/igualdade [07]. Outro fator
meramente formal, mas preponderante no Estado de Direito
Republicano é a limitação dada pelo princípio da legalidade:

[...] o próprio do Estado de Direito, como se sabe, é encontrar-se, em


quaisquer de suas feições, totalmente assujeitado aos parâmetros da
legalidade. Inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em
seguida, aos próprios termos propostos pelas leis, e, por último, adstrito
à consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie,
expedidos pelo Poder Público. Deste esquema, obviamente, não
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poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de "poder"


discricionário (Mello, 2003, pp. 10-11).

O Estado de Direito Republicano terá de suportar plenamente o


princípio da igualdade na lei, a regra da bilateralidade da norma jurídica,
isto é, o Estado está sujeito às leis criadas para o conjunto dos
cidadãos:

A grande novidade do Estado de Direito certamente terá sido subjugar


totalmente a ação do Estado a um quadro normativo, o qual se faz,
assim, impositivo para todos – Estado e indivíduos. Se fossem
buscadas as raízes produtoras da feição própria do Estado de Direito,
poder-se-ia encontrar a seguinte matriz: O Estado de Direito é
resultante da confluência de duas vertentes de pensamento: o
pensamento de Montesquieu e o pensamento de Rousseau (Mello,
2003, p. 11).

Portanto, para que a discriminação seja positiva, no rumo da Justiça, é


preciso que alguns fatores sejam muito bem expressos, inclusive, em
conformidade com os Princípios Gerais do Direito e/ou princípios
constitucionais fundamentais. Sem esse mínimo de igualdade (material
e formal), que possa nortear tanto a Justiça Formal quanto a Justiça
Material, não é possível pensar na República. Isto é, a República só
viável com base na República.

Mesmo assim é preciso especificar que as normas


discriminadoras (o discrímen legal) fazem parte de um ordenamento
jurídico e que, portanto, devem ser vistas como integradas e não como
vontade isolada quer seja do príncipe, quer seja do legislador. Significa
dizer que o Direito – como ordenamento jurídico – é um complexo:
"Essa organização complexa é o produto de um ordenamento jurídico.
Significa, portanto, que uma definição satisfatória do Direito só é
possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento
jurídico" [08] (Bobbio, 1999, p. 22).

Aí reside, inclusive, a força normativa e a soberania do próprio


ordenamento jurídico. De certo modo, podemos dizer que aí está a
confluência da soberania legislativa com o ordenamento jurídico:

Com a expressão muito genérica "poder soberano" refere-se àquele


conjunto de órgãos através dos quais um ordenamento normativo é
posto, conservado e se faz aplicar. E quais são esses órgãos é o próprio
ordenamento que o estabelece [09]. Se é verdade que um ordenamento
jurídico é definido através da soberania, é também verdade que a
soberania em uma determinada sociedade se define através do
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ordenamento jurídico. Poder soberano e ordenamento jurídico são dois


conceitos que se referem um ao outro. E, portanto, quando o Direito é
definido através do conceito de soberania, o que vem em primeiro plano
não é a norma isolada, mas o ordenamento; dizer que a norma jurídica
é a emanada do poder soberano equivale a dizer que norma jurídica é
aquela que faz parte de um determinado ordenamento (Bobbio, 1999,
p. 25).

Como vimos, trata-se da fusão entre dois domínios: monopólio do uso


legítimo da força física e da produção legislativa. Estas também seriam
as matrizes da base que integra Direito e Política, e que muito interessa
ao Estado de Direito Republicano. Portanto, desse prisma, o
ordenamento jurídico é um complexo de normas e de relações sociais
e jurídicas, e não como comumente se associa a uma norma isolada,
vista em si mesma e em suas aplicações/implicações restritas a
determinados casos e/ou situações.

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