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Relatório PPE IV - Estudo e pesquisa - Sobre o trabalho docente

Descrevo neste relatório reflexões sobre o trabalho docente. Sigo a analise empreendida por Tardif e
Lessard1 que interpretam a atividade docente sobre o ângulo analítico do trabalho. Isso porque deve-
se entender a escola inserida na conjuntura maior do mercado de trabalho, e nisso, tradicionalmente
foi compreendida como local em que se preparam os filhos dos trabalhadores para ingressar em tal
mercado. É importante frisar também que o trabalho foi compreendido também como o processo
produtivo de transformações de matérias-primas em mercadorias, e o trabalho material que elabora
essa matéria em objetos de consumo sempre teve maior importância do que outros tipos de
atividade, como a docente. O trabalho do professor é costumeiramente criticado como uma
atividade menor, dispendiosa, cara e improdutiva2:
“O tempo de aprender não tem valor por si mesmo; é simplesmente uma preparação para a
‘verdadeira vida’, ou seja, o trabalho produtivo, ao passo que, comparativamente, a
escolarização é dispendiosa, improdutiva ou, quando muito, reprodutiva. Em grande parte,
a sociologia da educação, adotando, nesse ponto, as ideologias sociais, interiorizou essas
representações e trouxe essas categorias para dentro do campo da análise do ensino. Desse
modo, os agentes escolares têm sido vistos como trabalhadores improdutivos (Braverman,
1976; Harris, 1982), seja como agentes de reprodução da força de trabalho necessária à
manutenção e ao desenvolvimento do capitalismo (Bowles & Gintis, 1977), seja como
agentes de reprodução sociocultural (Bourdieu & Passeron, 1970). 3”

Mas, a partir dos dados trazidos pelos autores, pode-se observar que nas condições do mercado de
trabalho, as atividades manuais e produtivas tem deixado cada vez mais espaço para atividades de
outra ordem, mais ligada ao setor de serviços, de interações humanas ou apenas de burocracia. É
neste contexto que o trabalho docente se inclui como mais uma das atividades em que a matéria-
prima são as pessoas, e o objetivo é modificar, transformar ou alterar a situação humana das
pessoas, como no caso de serviços de saúde em que se produz um trabalho de melhorar a situação
patológica do paciente.
Deve-se lembrar que a escola é uma instituição criada na dinâmica das sociedades modernas,
em que impera o Estado como órgão que organiza e administra a sociedade, e o capital, que
coordena e implementa a dinâmica do trabalho e da produção material. Neste sentido, deve-se
pensar o trabalho do professor como oriundo das dinâmicas de produção e de trabalho na qual a
escola está inserida. Percebe-se que a escola é um ambiente que imperam normas, regras e
procedimentos compartilhados com instituições militares, ou ainda da logica de produção industrial.
É famosa a analise de Foucault sobre a disciplina e a produção de corpos doceis que as instituições
disciplinares compartilham, como a prisão, o hospício, a escola e o exército. Estas caraterísticas

1 TARDIF, Maurice. LESSARD, Claude. O trabalho docente : elementos para uma teoria da docência como profissão
de interações humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
2 Ibid., p.17.
3 Ibid., p. 17
incluem constituição de um corpo dócil através de mecanismos disciplinares, imposição de normas
abstratas que regulam uma grande massa de indivíduos a fim de produzir resultados semelhantes.
No interior da escola então, o professor, só pode ser compreendido como parte e
engrenagem da instituição e dos modelos que ela regula a realização profissional do docente. Como
trabalhador, devemos então entender o estatuto do tipo de trabalho realizado pelo docente. Sob uma
concepção mais simplista, a atividade do trabalhador é a a transformação do objeto, que é
concebido então numa relação puramente exterior ao sujeito que o transforma, não tendo
capacidade de alterar ou modificar o sujeito responsável pela sua produção. De acordo com a teoria
marxista ao contrario, o trabalhador e o objeto são ambos transformados nesse processo de
produção e reprodução do capital. Pois, a teoria marxista tem um pressuposto de que a natureza
humana subjaz na práxis, então, a identidade do trabalhador modifica-se de acordo com o trabalho
por ele realizado sobre os objetos do mundo material. Porém, ainda permanece latente a oposição
sujeito e objeto, o que não nos ajuda a compreender a natureza do trabalho docente, visto que esta
atividade é uma interação entre dois sujeitos, e o trabalhador tem o objetivo de “transformar” o
outro sujeito com vista a fins específicos, não podendo então tratar o aluno como simplesmente
objeto. Isso porque “o tratamento reservado ao objeto não pode mais se reduzir a sua transformação
objetiva, técnica, instrumental; ele levanta as questões complexas do poder, da afetividade e da
ética, que são inerentes à interação humana, à relação com o outro.”4.
O trabalho do docente também pode ser classificado como constituindo-se entre um lado
mais formalizado e codificado, e outro mais flexível e autônomo. Por lado o docente deve ter
passado por uma longa formação universitária, que lhe outorgou as competências e habilidades
necessárias a profissão. Ele também é inserido dentro de uma estrutura burocrática mais ampla, que
engloba a escola, as organizações estatais, os sindicatos entre outros. No plano das atividades
cotidianas, todo o trabalho docente se apoia em um conjunto prescrito de regras e normas a serem
seguidas, com horários e ritmos específicos. Além disso, outros elementos vem formatar sua
atividade, como o currículo, e outros ainda de natureza legal, social ou econômica, como as
exigências relativas as normas sindicais, ou aos compromissos desenvolvidos na escola no
desenrolar do ano letivo. Enfim, é uma atividade que se assemelha aquelas realizadas no âmbito
burocrático, em que tudo é organizado segundo critérios e regras previsíveis, ordenadas, repetitivas
e padronizadas, sendo seguidos mais ou menos por todos que pertencem a profissão.
Por outro lado, a profissão também comporta inúmeros problemas e um contexto de atuação
imprevisível, indeterminado e constantemente móvel. Isso porque há na atuação do docente um
espaço autônomo para a escolha de técnicas ou atividades em sala de aula que diferencia a atuação
de cada profissional. Diz-se que cada professor tem um estilo de ensino e de aula, como que

4 Ibid., p. 30.
técnicas e habilidades adquiridas pela experiencia. O ambiente escolar, é um espaço que apesar de
codificado e formalizado, simplesmente por lidar com pessoas, está num âmbito impossível de
controlar completamente. Justamente por isso, o objeto do trabalho do professor, a interação com os
alunos, é algo que lhe escapa constantemente, pois lida com um confronto entre aspectos
individuais dos alunos e as rotinas e regras gerais da instituição escolar. A escola é a um só tempo
individual e coletivo, pois é permeada das pessoas que a gerenciam e dos alunos que a usufruem,
como também é coextensiva ao campo social, permeada de aspectos econômicos, políticos,
religiosos, culturais etc. Neste sentido, o processo educacional parece difícil de ser formalizado,
permeado por características difíceis de controlar, o que parece indicar o ensino como regido por
uma racionalidade fraca, embasada na experiencia do docente e no seu traquejo no dia a dia de lida
com as turmas.
Logicamente que ambos os aspectos são apenas abstrações para analise, pois, a docência é a
um só tempo permeada de
“aspectos formais e aspectos informais, e que se trata, portanto, de um trabalho flexível e
codificado, controlado e autônomo, determinado e contingente, etc. Consequentemente, é
absolutamente necessário estudá-lo sob esse duplo ponto de vista se quisermos
compreender a natureza particular dessa atividade.”5

Nesse sentido, deve-se entender que a docência só pode ser compreendida a luz da
organização do trabalho da escola, que é fruto de uma ação conjunta e social de diversos atores:
alunos, professores, pais, dirigentes escolares, sindicatos, representantes do governo etc. Como é a
ação e a interação desses atores, que estrutura uma instituição especifica e condiciona um conjunto
de ações que se unificam numa só ação conjunta, se pensarmos na escola como um todo? Deve-se
compreender essa dimensão, a partir de certas características dos atores sociais, e mais
particularmente para nosso caso aqui, a do professor. Tais características envolve a atividade, o
status da profissão e a experiencia docente.
A docência, em essência, é uma atividade de agir numa situação especifica buscando fins
específicos, educacionais, através de métodos e técnicas que atuem sob a capacidade de aprender e
educar dos alunos. Logo, a atividade docente envolve dois pontos: primeiro as organizações e
formalizações do trabalho, na forma como é controlado e segmentado; segundo, por meio do
próprio desenvolvimento e resultado desta atividade, sua realização no ambiente de trabalho, na
interação com os alunos, os outros atores escolares, os recursos didáticos. Além disso, há o status do
docente, ou seja o processo normativo e formativo que o indivíduo profissional realizou e as
normais e processos instituições que caracterizam sua profissão, ou seja, a identidade do
trabalhador, e como ela se insere na dinâmica da organização escolar estratificada, e como, a partir
desta identidade, o profissional orienta e planeja suas ações futuras e em consonância ou

5 Ibid., p. 45.
dissonância com outros atores sociais. Por fim, a questão da experiencia, pois, como discutido
anteriormente, muito do saber docente, envolve não apenas os aspectos acadêmicos e formativos
pelos quais eles se tornaram profissionais, mas, o traquejo, o saber intuito de lidar com os
problemas do cotidiano, tanto na organização social da turma, na disciplina mínima para ministrar
as aulas quanto na organização e padronização do currículos e conteúdos mínimos a serem
ministrados, sua execução a médio e longo prazo, e o desenvolvimento das matérias ao longo do
ano escolar. Estas experiencias e aprendizado constituído no cotidiano das atividades escolares não
são simplesmente fruto de méritos pessoais e individuais, mesmo que possam sê-lo em alguns
níveis, pois muitos professores identificam suas competências também como fruto de uma jornada
pessoal de aperfeiçoamento e desenvolvimento profissional. Mas, a “noção de experiencia social do
ator é precisamente as situações e significações pelas quais a experiencia de cada um é também de
certa maneira, a experiencia de todos”6. Isso significa que o aprendizado desenvolvido ao longo da
jornada pessoal de um professor, é também algo que ele compartilha com colegas de trabalho, na
medida em que cada um soube adaptar-se e e enquadrar diante das exigências da atividade, e do
manejo de alunos e conteúdos. É a um só tempo individual e social.
Dado esses aspectos gerais, gostaríamos de adentrar na temática mais central da docência: o
trabalho em sala de aula, e as perspectivas que Tardif e Lessard colocam acerca da complexidade
inerente a esta atividade. Tal atividade é o coração a docência, que define-se então, de maneira mais
geral como trabalhar sobre crianças e jovem, tomando-os como “objeto” de seu oficio. Essa questão
engloba muitas dificuldades e desafios, pois os jovens estão imersos no que o autor chama de
sociedade pós moderna. Listemos então, aqueles aspectos elencados pelo autor que afetam a
dinâmica dos jovens e professores: 1) desenvolvimento tecnológico que possibilidade maximização
da produtividade, mas flexibiliza profissões e encarrega-se de uma desocupação generalizada; 2) a
globalização das economias, e os contextos cada vez mais multiculturais em que os jovens se
inserem; 3 ) incerteza diante das verdades cientificas que leva a uma desconfiança em relação aos
saberes constituídos; 4) fluidez organizacional, que leva a uma situação de lidar com improvisações
e incertezas diante das dinâmicas institucionais. 5) busca de autenticidade fragilizada diante de um
mundo sem raízes morais seguras; 6) um refinamento e complexidade tecnológicas levando a
contextos muito fluidos e incertos e 7) compreensão flexível do tempo e do espaço, que podem
provocar novas formas de comunicação, como também sobrecargas de inovação e de mudanças.
Estes contextos e aspectos afetam a dinâmica de ensino dos professores, o que leva a constatar que a
atividade docente coloca-se numa situação de mudança continua. Nesta sociedade pós-industrial,
muda-se as configurações tradicionais do papel da escola e do professor, e sua ligação com o
conhecimento cientifico e humano. Pois se antes o professor era um mediado entre alunos e

6 Ibid., p. 53.
conhecimento, hoje, ele é apenas mais um entre muitos mediadores, a quem os alunos podem
requisitar acesso a saberes.
Além disso, outros aspectos são colocados em discussão. A questão do preparo para o
mercado de trabalho a que a escola se destina, coloca sob o professor a tarefa de preparar o aluno
para tal contexto, dispondo-o então de conhecimentos uteis e práticos para lidar com os desafios
específicos e gerais das profissões. É neste ponto que observamos o aspecto empresarial que marca
muitos entendimentos educacionais e organizações escolares. É uma visão que considera a escola
uma instituição que oferece como serviço a aquisição de saberes como bens de consumo, o aluno
como consumidor destes e o professor como aquele que vende seus saberes específicos de uma
certa disciplina, e o valor deste saber depende da utilidade que ele terá para tais consumidores.
Neste contexto, em que a autoridade docente é colocada em desafio diante de um mundo de
relatividade de valores e morais, a atividade do professor torna-se mais complexa e desgastante
diante das exigências. Ambos, escola e professor, encontram diante de uma situação delicada, em
que a sociedade relativiza a importância da transmissão dos saberes, antes definidores da natureza
do ensino, e hoje, não encontra-se condições para legitimar a ação e a a papel docente. Tais
profissionais, recorrem então, a recursos simbólicos oriundos de sua própria formação, a
características individuais que definem sua excelência e sue valor, mas que não deixa de evidenciar
que as bases pelas quais define-se o conhecimento dos professores encontra-se fragilizada.
Dessa forma, podemos concluir que, a atividade docente concentra-se em grande parte na
relação com os alunos, mas em menor medida, envolve outras atividades na esfera administrativa e
e com outros atores sociais. Também inclui atividades não estritamente empregatícias, que
envolvem a vida inteira do profissional, suas atividades nas férias, finais de semana, etc. Isso
significa que a própria definição das tarefas a cumprir na educação, varia conforme as
concordâncias entre os atores e as dinâmicas as quais a sociedade está inserida. Neste sentido, tanto
do ponto de vista individual, quando do ponto de vista objetivo das condições de trabalho geral, a
carga de trabalho do docente aumento em dificuldade e complexidade. Tornou-se mais extenuante
no trato emocional com os alunos diante das dificuldades que tais jovens enfrentam e do mundo
pós-moderno em constante fluxo, como também cognitivo, pois os desafios, as exigências, e as
contradições que a todo momento tal profissional precisa lidar, significam as vezes uma sobrecarga
psicológica e emocional da maior importância.

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