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A INVENÇÃO DO ARTISTA NO NEOLIBERALISMO CONTEMPORÂNEO

THE ARTIST'S INVENTION IN CONTEMPORARY NEOLIBERALISM

Lucas Dilacerda / UFC

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar como o neoliberalismo tem inventado o artista no
contemporâneo. Para isso, recorremos a uma bibliografia especializada para apresentarmos
as mudanças que o neoliberalismo tem provocado no mundo da arte. Na primeira parte,
apresentamos que o neoliberalismo é o novo colonialismo do séc. 21 e que, para além de
uma teoria econômica, o neoliberalismo é também uma forma de vida que incorpora os valores
do capitalismo, tais como: a produtividade, a velocidade, a visibilidade, a competitividade, a
individualidade etc. Na segunda parte, analisamos as mutações que o neoliberalismo tem
provocado no mundo da arte, tais como a exigência do artista se tornar MEI – Micro
Empreendedor Individual, a ditadura do “etc.” e a blogueirização do trabalhador cultural.

PALAVRAS-CHAVE
História da Arte; Artista; Neoliberalismo; Contemporâneo.

ABSTRACT
The purpose of this article is to introduce how neoliberalism has invented the artist in the
contemporary world. For this, we resort to a specialized bibliography to present the changes
that neoliberalism has caused in the art world. In the first part, we present that neoliberalism is
the new colonialism of the 20th century. 21 and that, in addition to an economic theory,
neoliberalism is also a way of life that incorporates the values of capitalism, such as:
productivity, speed, visibility, competitiveness, individuality, etc. In the second part, we analyze
the mutations that neoliberalism has caused in the art world, such as the artist’s demand to
become MEI – Individual Micro Entrepreneur, the dictatorship of the “etc.” and the
bloggerization of the cultural worker.

KEYWORDS
Art History; Artist; Neoliberalism; Contemporary.

Introdução

A História da Arte nos mostrou que as concepções de arte e de artista se transforma-


ram ao longo do tempo. O artista clássico não é o mesmo que o artista medieval, e o
artista moderno não é o mesmo que o artista contemporâneo. Partimos do

IV Encontro Regional da ANPAP Nordeste. LIMA, José Maximiano Arruda Ximenes de et al (Orgs).
Fortaleza: ANPAP NORDESTE, 2022.
pressuposto de que não existe uma essência do que é a arte e uma essência do que
é o artista, pois tanto a arte quanto o artista são invenções dentro de um determinado
contexto histórico.

Nesse sentido, as concepções de arte e de artista são sempre um efeito de uma rela-
ção complexa de saber e de poder, isto é, um jogo de forças que a todo instante
desenha e redesenha os regimes de visibilidade e de dizibilidade do mundo da arte.
Portanto, nos perguntamos: se o artista é uma invenção dentro de um determinado
contexto histórico, como o artista tem sido inventado hoje no contemporâneo?

A hipótese deste artigo é que o neoliberalismo está provocando drásticas mudanças


no mundo da arte e, assim, tornando-se um elemento fundamental na invenção do
artista no contemporâneo. Por isso, o objetivo deste artigo é lançar um olhar sobre as
mutações que o neoliberalismo tem provocado no mundo da arte, com um recorte
especial na figura do artista. Pois no contemporâneo, vemos nascer novas espécies
de artista, que são elas: o artista MEI – Micro Empreendedor Individual; o artista em-
presário de si; o artista blogueiro de si; o artista tik toker; o artista commodity; o artista
acadêmico; o artista multimídia; o multiartista; o artista “faz tudo”; o artista etc.

Neoliberalismo

Na introdução O devir-negro do mundo, do livro Crítica da razão negra (2013), o filó-


sofo camaronês Achille Mbembe (1957-) afirma que o neoliberalismo é o novo coloni-
alismo do século 21. “Por neoliberalismo, entenda-se uma fase da história da huma-
nidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais” (MBEMBE,
2018, p. 15). Em virtude de sua formação em história, Mbembe afirma que o neolibe-
ralismo é uma nova fase e uma nova época da história da humanidade que tem o seu
início no século 21. Entretanto, podemos perceber aspectos e expressões do neolibe-
ralismo antes do séc. 21, mas é evidente que é apenas a partir da virada dos anos

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dois mil que essa nova política ganha a sua força total e expressividade em escala
mundial.

Mbembe elenca que as principais características do neoliberalismo são: globalização,


privatização, militarização, domínio das indústrias do silício e tecnologias eletrônicas
e digitais. Ou seja, é uma época em que cada vez mais os seres humanos estão aco-
plados às novas tecnologias – notebooks, tablets, celulares, smartphones etc. – isto
é, telas a qual expandimos os nossos corpos e nos tornamos cyobrgues 1 e, assim,
borramos as fronteiras entre humanos e máquinas. Nesse acoplamento, nos conec-
tamos com o tempo não-humano das máquinas: o tempo da internet, da velocidade e
da informação. Esse novo regime de tempo acelerado, a qual não estamos acostuma-
dos, tem provocado drásticas mudanças nos nossos regimes de atenção, de percep-
ção, de sensação, de imaginação e de temporalidade.

Segundo Mbembe, no neoliberalismo, tudo o que existe pode ser atribuído um valor
no mercado, até mesmo a nossa imaginação e criatividade podem se tornar produtos
e mercadorias valiosíssimas para a expansão do capitalismo. Inclusive o tempo se
torna monetizado e passamos a dividir e esquadrinhar o tempo em cada vez mais
horários extremamente regrados e calcularmos estratégias de ganhar e não perder
tempo, que é um vocabulário bastante neoliberal. Nesse sentido, vivemos uma dita-
dura do regime de tempo do capitalismo, que é um regime de tempo acelerado e pro-
dutivista e que não corresponde ao tempo geológico da natureza e da humanidade.
Mbembe ainda afirma que o neoliberalismo provoca uma paranoica codificação da
vida social em normas, categorias e números, isto é, um período em que tudo passa
a ser calculado, medido e quantificados em tabelas, números, likes, visualizações etc.

Mbembe afirma que uma das maiores transformações do neoliberalismo é a fusão


entre o capitalismo (produção de coisas) e o animismo (movimento da vida), isto é,
quando os seres humanos são transformados em coisas vivas, quando o indivíduo é

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desumanizado, e a sua condição de humano lhe é retirada e ele então se torna um
não-humano, sem direito, um condenado da terra2.

No neoliberalismo, o indivíduo é separado de sua humanidade, e aqui não se trata de


uma defesa do humanismo, pois partimos do entendimento que não nascemos huma-
nos, mas sim que nos tornamos humanos. O humanismo é um outro nome para um
projeto iluminista (a face revelada da luz) e um projeto colonialista (a face oculta da
sombra) da modernidade colonial. O humanismo é uma ficção e um discurso endó-
geno inventado pela branquitude intelectual europeia de autodeterminação do cogito
humano e, em consequência disso, excluiu e separou toda a parcela de povos que
foram considerados não-humanos e, portanto, passíveis de serem sequestrados e co-
lonizados.

Para Mbembe, na racionalidade neoliberal, o indivíduo é desumanizado, tornado não-


humano, logo natureza (porque pressupõe a separação humano e natureza), logo
pode se tornar objeto (porque pressupõe a separação sujeito e objeto), logo tornado
coisa, logo tornado mercadoria, logo tornado moeda, máquina, códigos, fluxos e da-
dos.

Para Mbembe, o neoliberalismo é o novo colonialismo do séc. 21 porque ele produz a


coisificação do humano (como ocorreu na escravidão moderna) e agora expande essa
condição inumana para todo o mundo. Essa transformação da maior parcela da hu-
manidade em objeto, coisa, dados e mercadoria, é o que Mbembe chama de “devir-
negro do mundo”.

Quando estudamos com atenção a história do capitalismo, logo per-


cebemos que, para funcionar, desde seu início, ele precisou produzir
o que eu chamo de “subsídios raciais”. O capitalismo tem como função
genética a produção de raças, as quais são, ao mesmo tempo, clas-
ses. A raça não é apenas um suplemento do capitalismo, mas algo
inscrito em seu desenvolvimento genético. No período primitivo do ca-
pitalismo, que vai do século XV até a Revolução Industrial, a escravi-
zação de negros constituiu o maior exemplo da imbricação entre
classe e raça. Meus trabalhos focam particularmente nesse momento

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histórico e em suas figuras. O argumento que desenvolvo em meu
novo livro é que, nas condições contemporâneas, a forma com que os
negros foram tratados naquele primeiro período estendeu-se para
além dos próprios negros. O “devir-negro do mundo” é esse momento
em que a distinção entre o humano, a coisa e a mercadoria tende a se
esvair e se apagar, sem que ninguém – sejam negros ou brancos, mu-
lheres ou homens − possa fugir disso (MBEMBE, 2019, pp. 8-9).

Para Mbembe, o capitalismo é um regime de poder que necessita a todo instante in-
ventar raças que ele subjugue e explore. Assim, é comum vermos o surgimento de
novas classes subalternizadas nos regimes neoliberais, tais como: ubers, entregado-
res, motoboys etc. que são indivíduos sem rosto e sem humanidade transformados
em um puro serviço.

No neoliberalismo, há o surgimento de uma nova subjetividade, uma forma de vida


neoliberal, que é a figura do empreendedor de si. Os trabalhadores se tornam nôma-
des do trabalho, pulando de serviço em serviço, sem contrato ou emprego fixo, se
tornando agora meros prestadores de serviço. Por isso, há a exigência de uma mode-
lação e reconfiguração permanente em função das demandas do mercado, isto é, uma
constante aprendizagem e flexibilidade para aprender novas habilidades que consi-
gam aumentar a chance de empregabilidades precárias nas tendências do mercado.
Assim, o indivíduo se torna solúvel, fungível, escorregadio, serial e plástico, produ-
zindo um padrão de vida generalizado pelo mundo inteiro, que agora opera partir da
racionalização de lógicas empresariais.

No livro A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (2009), os filó-
sofos franceses Pierre Dardot (1952-) e Christian Laval (1953-) afirmam que o neoli-
beralismo não é apenas uma política que modifica a economia e o direito, mas é antes
de tudo uma forma de vida. “O neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo
de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo
inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas
da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7).

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O neoliberalismo é o nome para o deslocamento da lógica do capital para a nossa
vida, isto é, é quando a lógica do capital impregna a nossa maneira de viver e produz
assim os nossos modos de sentir, perceber, lembrar, imaginar e criar. Nesse sistema,
os valores do capitalismo se tornam agora os valores que vão reger as nossas vidas,
tais como: produtividade, rankeamento, velocidade, cronometragem, eficiência, visibi-
lidade, singularidade, competitividade, networking, individualidade etc. Começamos a
valorizar e a seguir esses valores sem nenhum tipo de atitude crítica, uma vez que
esses valores neoliberais são naturalizados e internalizados em todas as esferas da
vida, desde ao nosso modo de existência até as nossas relações amorosas, amiza-
des, familiares, acadêmicas e até mesmo o mundo da arte.

Artista contemporâneo

Dito isso, quais são os impactos do neoliberalismo no mundo da arte? O neolibera-


lismo modificou profundamente as concepções de arte e de artista no contemporâneo.
Hoje, vemos o surgimento de uma nova subjetividade do artista, que não é mais o
artista do período clássico, isto é, um artesão que aprendia um saber técnico do seu
mestre, nem mesmo o artista do período medieval, que conectava a sua arte com as
forças do divino, nem o artista moderno, isto é, o artista autoral que assina e expressa
a sua subjetividade, nem mesmo o artista pós-mídia, que rompe as divisões técnicas
em uma condição pós-meio3.

O que vemos surgir hoje no neoliberalismo contemporâneo é o artista MEI – Micro


Empreendedor Individual, isto é, um artista-empresa que é o seu próprio chefe e o seu
próprio patrão, que é o empresário de si, sem contrato fixo e que vive constantemente
prestando serviços. Nessa perspectiva, o potente conceito de “artista-etc”, do artista-
professor-pesquisador brasileiro Ricardo Basbaum (1961-), foi completamente captu-
rado e incorporado pelo sistema neoliberal.

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Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de
‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de
seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’. (de modo que po-
deremos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor,
artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, ar-
tista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc) (BASBAUM,
2013, p. 167).

O conceito de artista-etc., de Ricardo Basbaum, continua sendo um conceito muito


potente para pensarmos as quebras das fronteiras disciplinares nas artes e para con-
ceber os seus modos de fazer mais rizomáticos e transdisciplinares, em que uma prá-
tica afeta a outra e vice-versa. Entretanto, não podemos cair nem em um romantismo
desse conceito, e nem em um moralismo, mas sim precisamos apontar os limites e as
problemáticas de um artista-etc no contexto do neoliberalismo contemporâneo, e se
questionar até que ponto o “etc” não é um outro nome para a precarização do trabalho
do artista?

Vivemos em mundo capitalista e precarizado em que cada vez mais nos obriga a nos
submetermos à uma infinidade de serviços e que nos pede cada vez mais para nos
desdobrarmos em mil coisas e atividades. E quando se trata do mundo da arte, isso é
ainda mais grave. Pois, hoje em dia, um artista não consegue se sustentar apenas
com a sua arte, hoje em dia, além de artista, ele precisa ser também pesquisador,
professor, graduado, bacharel, licenciado, mestre, doutor, phd, curador, designer,
marketeiro, empresário de si mesmo. No mundo neoliberal, somos todos forçados a
nos tornarmos “etc”. “Multiartista”? Nós diríamos: “Multifudida”! “Multilascada”! “Multi-
precarizada”! Por isso, um dos problemas contemporâneos na arte é: “Como ser ‘etc’
sem ser ‘precarizada’”? ou “Quem tem o direito, o luxo e o privilégio ser ‘etc’ sem ser
‘precarizada’”? Pensamos que o “etc.” deva ser um direito e não uma ditadura.

No livro O artista improdutivo e outros ensaios (2021), a crítica e curadora brasileira


Laura Erber (1979-) investiga como o artista contemporâneo está sendo inventado
hoje no contexto do neoliberalismo. Pois, não existe uma essência da arte e do artista,

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essas figuras são/estão constantemente sendo inventadas e reinventadas a toda ins-
tante. Sobre o seu livro, Erber diz que:

O artista contemporâneo também se vê transformado nessa paisagem


turbulenta; o ensaio que dá título ao livro trata precisamente das mu-
tações na figura do artista e na compreensão do gesto artístico numa
época afetada pela sensação de aceleração temporal e por novas for-
mas de captura do trabalho criativo (ERBER, 2021, p. 11).

Se na antiguidade clássica, a arte e o artista tinham um compromisso com o saber


técnico do mestre; no medievo, a arte e o artista tinham um compromisso com o divino;
na modernidade, a arte e o artista tinham um compromisso com a subjetividade e a
expressão do interior individual e do exterior social; no contemporâneo, a arte e o
artista ainda estão por vir e em constante transformação. Por isso, Laura Erber carto-
grafa as mutações contemporâneas que tem ocorrido nas figuras da arte e do artista
e afirma que:

É nesse âmbito que os artistas parecem se movimentar, mas com a


diferença considerável e decisiva de que a figura do artista serviu nas
últimas décadas para propagar uma ideia positiva da adaptabilidade
criativa, de autonomia e de liberdade ao mesmo tempo prometidas e
requisitadas ao empreendedor. O empreendedor neoliberal apresenta
vários traços facilmente identificáveis com a figura do artista hoje, um
sujeito sem classe definida, capaz de se virar criativamente num
mundo em decomposição. O precariado-chique esbanja charme. Mas
se essa é a imagem comumente projetada do artista contemporâneo,
dificilmente ela pode ser tomada como tradução da realidade da
grande maioria dos artistas em atividade. Um sintoma disso é a ade-
são de cada vez mais artistas ao mundo acadêmico, em busca de bol-
sas de estudo e às vezes de uma carreira na universidade (ERBER,
2021, p. 175).

No ensaio O mundo da arte (1964), o filósofo norte-americano Arthur Danto (1924-


2013) pontua três regimes ontológicos da arte: 1º) Teoria da Representação: a teoria
que diz que a arte é uma representação do mundo exterior, entretanto, para Danto, tal
teoria se torna caduca com o surgimento da arte moderna e a quebra com a repre-
sentação e as artes figurativas e representativas; 2º) Teoria da Expressão: a teoria
que diz que a arte é uma expressão do mundo interior, entretanto, para Danto, tal

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teoria se torna obsoleta com o surgimento da arte contemporânea e o surgimento dos
ready-mades, que não são nem representações (pois são o próprio objeto em si) e
nem são expressões (pois não são a subjetividade do artista). Por isso, Danto inventa
uma solução ao problema ontológico da arte a partir da 3ª) Teoria da Instituição: a
teoria que diz que a arte é legitimada como tal pelas instituições de poder.

Para Danto, a arte contemporânea não possui uma ontologia endógena, isto é, uma
definição internalista (quando o critério é intrínseco à obra de arte), mas sim possui
uma ontologia exógena, isto é, uma definição externalista (quando o critério de defini-
ção é externo à obra de arte). Nesse sentido, as figuras da arte e do artista são vali-
dadas pelas instituições, que se tornam agora engrenagens da máquina neoliberal. A
solução de Danto se aproxima da solução de Foucault, que afirma que a arte e o
artista são um efeito das relações de saber e poder de uma determinada formação
histórica e social. Nesse sentido, cabe a nós nos perguntamos: “Qual arte e qual artista
a nossa formação histórica e social está produzindo?”.

No ensaio A blogueirização do trabalhador cultural (2021), a crítica e curadora brasi-


leira Pollyana Quintella (1992-) afirma que estamos vivendo um período em que o
artista tem se tornado um “blogueiro de si”.

O trabalhador cultural, ao depender da plataforma para engajar seu


público, manter relações e vislumbrar novos trabalhos, acaba entrando
na lógica do “self-banding”, moldando-se a si próprio enquanto produto
vendável no mercado. Se o trabalho flexível no campo cultural já exigia
que o artista fosse uma espécie de “empresa de si mesmo”, as redes
sociais intensificaram o processo de “blogueirização”, exigindo cada
vez mais autopromoção e superexposição (QUINTELLA, 2021).

Novamente, não se trata aqui nem de romantizar o fenômeno da “blogueirização do


artista”, e nem de moralizar. Compreendemos que a blogueirização pode ser um novo
campo de investigação de novas narrativas de si, biografias de si, experimentações
das relações entre vida e arte, tensionamento das relações entre público e privado,
intimididade e diário etc. Entretanto, o que gostaríamos de chamar atenção aqui é que
a prática da blogueirização de si tem se tornado um dever, uma exigência, e quase

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uma condição sine qua non para a sobrevivência do artista contemporâneo, ainda
mais quando este vem das camadas mais pobres da sociedade e vê no alcance das
redes uma chance de aumentar as suas condições precárias de empregabilidade. O
problema, assim como o problema da captura do conceito de “artista-etc”, é que essas
práticas sejam um direito de escolha e não uma obrigação.

Conclusão

Vimos que não existe uma essência do que é a arte e do que é o artista, mas que as
suas concepções são invenções dentro de um determinado contexto histórico, e que
essas concepções se transformam ao longo do tempo. Buscamos neste artigo inves-
tigar como o neoliberalismo tem inventado o artista no contemporâneo. A partir da
bibliografia especializada, concebemos que o neoliberalismo é o novo colonialismo do
séc. 21, que ele é uma teoria econômica e também uma forma de vida que incorpora
os valores do capitalismo. Vimos ainda que o neoliberalismo invade todas as esferas
sociais, incluindo o mundo da arte, provocando assim drásticas mudanças nos seus
regimes de visibilidade e de dizibilidade. Portanto, apresentamos que algumas das
mutações que o neoliberalismo tem provocado no mundo da arte são: a exigência do
artista se tornar MEI – Micro Empreendedor Individual, a ditadura do “etc.” e a bloguei-
rização do trabalhador cultural.

Notas
1. Cf. HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”.
In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu.
2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp. 33-118.
2. Cf. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. 1. ed. Rio de Janeiro:
Editôra Civilização Brasileira, 1968.
3. Cf. KRAUSS, Rosalind. “Arte na era da condição pós-meio”. In: SANTOS, Leonardo Nones. Arte na era da
condição pós-meio: Estudo e tradução de Rosalind Kraus. Tradução de Leonardo Nones Santos. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2019, pp. 24-87.

IV Encontro Regional da ANPAP Nordeste. LIMA, José Maximiano Arruda Ximenes de et al (Orgs).
Fortaleza: ANPAP NORDESTE, 2022.
Referências

BASBAUM, Ricardo. “Amo os artistas-etc.”. In: _____. Manual do artista-etc.. 1. ed. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2013. pp. 168-171.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

ERBER, Laura. O artista improdutivo e outros ensaios. 1. ed. Belo Horizonte, Veneza:
Editora Âyiné, 2021.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. 1. ed. Rio
de Janeiro: Editôra Civilização Brasileira, 1968.

HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final


do século XX”. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-
humano. Tradução de Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp. 33-
118.

KRAUSS, Rosalind. “Arte na era da condição pós-meio”. In: SANTOS, Leonardo Nones.
Arte na era da condição pós-meio: Estudo e tradução de Rosalind Kraus. Tradução de
Leonardo Nones Santos. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019, pp. 24-87.

MBEMBE, Achille. “O devir-negro do mundo”. In: _____. Crítica da razão negra. Tradução
de Sebastião Nascimento. 1. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018, pp. 11-25.

MBEMBE, Achille. Poder brutal, resistência visceral. Tradução de Damian Kraus. 1. ed.
São Paulo: n-1 edições, 2019.

QUINTELLA, Pollyana. A blogueirização do trabalhador cultural. Instituto para Reforma


das Relações entre Estado e Empresa – IREE, 2 ago. 2021. Disponível em:
https://iree.org.br/a-blogueirizacao-do-trabalhador-cultural. Último acesso: 19 fev. 2022.

Lucas Dilacerda
Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em Filosofia, com distinção Summa Cum Laude, pela
Universidade Federal do Ceará (UFC), Especialista em Filosofia Clínica, Mestre em Filosofia,
com ênfase em Estética e Filosofia da Arte, pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da UFC, e Mestrando em Artes, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC. É
coordenador do LAC – Laboratório de Arte Contemporânea; e do LEFA – Laboratório de
Estética e Filosofia da Arte. E-mail: lucasdilacerda3@gmail.com.

IV Encontro Regional da ANPAP Nordeste. LIMA, José Maximiano Arruda Ximenes de et al (Orgs).
Fortaleza: ANPAP NORDESTE, 2022.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

AN532 IV ENCONTRO REGIONAL DA ANPAP NORDESTE.


Anais...Fortaleza(CE) IFCE, 2022

Disponível em <www.even3.com.br/anais/IVencontroregionalanpapNE>

ISBN: 978-65-5941-782-7

1. Artes 2. Educação

IFCE CDD - 370

Ficha catalográfica elaborada por Even3 – Sistema de Gestão de Eventos

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