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O QUE É JUSTIÇA, NO ESPECTRO FILOSÓFICO

A PHILOSOPHICAL VIEW OF JUSTICE

Flavio Allegretti de Campos Cooper*

Resumo: Dos vários pensadores clássicos e modernos extrai-se uma


suma de aspectos dimensionais e conceituais do significado de Justiça,
tendo como pesquisa textos preponderantemente da área filosófica,
perpassando por questionamentos formulados em várias épocas nos
seus contextos históricos, sociais e econômicos, incluindo os de natureza
semântica, teológica, mitológica, jurídica, política e principiológica.

Palavras-chave: Justiça. Direito Natural. História do Direito. Filosofia do


Direito. Natureza Jurídica.

Abstract: From the several classic and modern thinkers we can retrieve a
summary of dimensional and conceptual aspects of the meaning of Justice,
having as research texts mainly from the philosophical area, permeating
by questionings formulated at many epochs in its historical, social
and economical contexts, including the ones of semantic, theological,
mythological, legal, political and principled nature.

Key words: Justice. Natural law. History of law. Legal philosophy. Legal nature.

1 Introdução lato de Justiça, como valor universal.


Sentido estrito de Justiça, como valor
Ao me preparar para a de-
jurídico-político. Divergências sobre
signação de compor banca de exa-
o conteúdo do conceito.”
me oral, presidida pelo Min. Pedro
Paulo Manus, última etapa eliminató- Essa questão me afeta desde
ria no concurso público para a magis- os albores da carreira. Enquanto
tratura, deparei com a Resolução n. aguardava a nomeação, dediquei-me
75 do Conselho Nacional de Justiça, a livros de conteúdo ético-filosófico,
que inclui dentre as disciplinas exigi- como os de Ihering e Calamandrei.
das, no Anexo VI, “Filosofia do Di- Reli trechos de Gustav Radbruch e
reito: 1. O conceito de Justiça. Sentido Gabriel de Moncada.

*Desembargador Federal do Trabalho do TRT da 15ª Região. Professor universitário e de


pós-graduação.
166 Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 39, 2011

Nos escritos de Elieser nas querelas, no processo ou fora


Rosa , falecido professor e Desem-
1
dele. E mais, que o tema perpassa
bargador do Tribunal de Justiça do a mente de escritores, novelistas,
Rio de Janeiro, há interessante re- pessoas e grupos, ideias e ideais,
ferência ao magistrado em dúvida, sacro e profano.
perguntando a crianças. Estas têm
inata, dentro de si, a intuição de Talvez seja uma questão,
justiça. cerne de decisões, ações, no plano
comportamental e no cognitivo,
Disse que as crianças, quan- de dimensões da percepção, razão,
do injustiçadas, têm a clara percep- juízo e discernimento.
ção, sofrem e se revoltam.
2 Grécia
Passando os anos, en-
contrei leituras clássicas e con- Na antiga Grécia, Sócrates
temporâneas, organizadas pelos perguntou a seus colegas no merca-
professores Robert C. Solomon, do ateniense, Cefalus, Trasimacus,
da Universidade Texas-Austin, Glaucon, Polemarcus e Cleitofon:
e Mark C. Murphy, professor de “O que é justiça?”.
Notre Dame.2
O problema é que havia
Na semana corrente visi- pelo menos duas palavras gregas
tei o trabalho da Ministra Maria empregadas como justiça. De um
Cristina I. Peduzzi3, em cuja obra lado, to eson ou isotes significando
relaciona a ideia de justiça com a igualdade, e de outro, dikaiosune
de segurança jurídica ao apontar que mais propriamente significa
para Kelsen, que trata da desvan- retidão.
tagem de falta de flexibilidade, na
sua Teoria Pura do Direito, com a Mas Platão e Aristóteles
vantagem contrapartida da segu- defendiam uma visão de justiça de
rança jurídica, em que indivíduos desigualdade aos desiguais.
se orientam em sua conduta por
possíveis decisões dos tribunais. Na sua Ética a Nicômaco,
a doutrina e classificação de Aris-
Acredito que o tema reside tóteles continua atual. Trata de vá-
no consciente ‘sentido’ dos que rios aspectos da Justiça: 1) como
operam o direito, provocando o um estado de caráter; 2) como lega-
poder jurisdicional ou respondendo lidade e razoabilidade; 3) a justiça
por ele, no exercício administrativo geral em contraste com a especial;
ou judicial, pelo cidadão envolvido 4) a justiça distributiva e o princí-

1
ROSA, Eliezer. A voz da toga. Rio de Janeiro: Barrister’s, 1983.
2
SOLOMON, Robert C. ; MURPHY, Mark C. What is justice? classic and contemporary
readings. New York: Oxford University Press, 1990.
3
PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. O princípio da dignidade da pessoa humana. São
Paulo: LTr, 2009.
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pio da proporcionalidade ou da e “sê justo: o que está próximo à


igualdade proporcional; 5) justiça piedade, e temei a Deus. Pois Deus é
retributiva ou retificadora e o pa- bem conhecido daqueles que assim
pel do juiz; 6) a justiça política (ou o fazem”.
o politicamente justo); 7) a justiça
Santo Tomás de Aquino,
natural e a legal.
inspirado na classificação de Aris-
3 Sentido teológico tóteles, desenvolveu ensaio sobre
a Justiça, discorrendo sobre doze
No sentido sagrado, a Jus- pontos em forma de perguntas:
tiça é uma característica e um atri- 1) O que é Justiça?; 2) Está a Justi-
buto da perfeição de Deus (Salmos ça sempre relacionada a outros?;
11:7); o homem presta conta do 3) É uma virtude?; 4) Está sujeita à
que faz a Deus (Ecl. 11:10 e 12:14); vontade?; 5) É uma virtude geral?;
a prática da justiça consiste na re- 6) Como virtude geral, é essencial-
tidão de ações e sentimentos, e na mente a mesma que todas as outras
submissão a Deus (Miq. 6:8). virtudes?; 7) Há uma Justiça parti-
cular?; 8) Como justiça particular,
(Certo e justo é aquilo que
tem conteúdo próprio?; 9) Trata-se
está de acordo com a vontade de
de paixões ou somente operações?;
Deus. Locke assim expressa: “se
10) São os meios da justiça objetivos
uma pessoa é criada por outra (no
menores?; 11) O ato de justiça é dar
sentido teológico), então aquela
a cada um o que lhe pertence?; 12)
pessoa tem um dever de cumprir
É a justiça a principal das virtudes
com os preceitos estabelecidos a
morais?
ela por seu Criador”. Este princípio
geral sublinha Deus como a 4 China e mitologia grega
autoridade moral legítima).
A filosofia chinesa também
Cristo falou em buscar o se deteve sobre o assunto, como a
reino de Deus e a sua justiça, no teoria dos sentimentos morais de
sentido de retidão de caráter, imitar Mencio, discípulo de Confúcio.
as virtudes divinas de fazer o bem
a todos, perdoar aos outros, ter fé e Pensou na ideia de “li” (re-
servir aos propósitos de Deus (Mat. gras de conduta) e “ren” (amor be-
6:33 e 5:48; vide cap. 5 e 6 in totum). nevolente, como fruto de profunda
Falou do autoaperfeiçoamento em espiritualidade). Sofrer com a des-
cuidar de si e não reparar e condenar graça de outros leva à humanidade.
as fraquezas alheias, oração, jejum O sentimento de vergonha leva à
e serviço ao próximo no caminho justiça. A deferência a outros, à pro-
apertado que leva à vida (Mat. 7). priedade, e o senso de certo levam à
sabedoria.
O Alcorão islâmico contém
este conselho: “não deixes que o Cuidou do tema a mitologia
ódio a outros os faça se bandear grega, no seguinte texto de Platão:
para o erro e se apartar da justiça” “Zeus temeu que a raça humana
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fosse exterminada, então enviou a constituição de uma comunidade.


Hermes a eles, trazendo reverência A justiça comutativa é a justiça do
e justiça para serem os princípios contrato, a distributiva baseia-se
ordenadores das cidades, e os laços no mérito e exige um árbitro, que
de fraternidade e conciliação. define o que é justo. Se um homem
é investido para julgar entre um
Hermes perguntou a Zeus
e outro homem, é preceito do
como ele poderia espalhar justiça
direito natural que ele deve lidar
e reverência entre os homens:
igualmente entre eles (princípio da
deveria distribuí-los como as artes
imparcialidade).
são distribuídas, isto é, apenas a
alguns poucos favorecidos? Deve Das injustiças sociais falam
ser esta a maneira que eu devo Locke e Rousseau. Este disse que
distribuir justiça e reverência entre “o homem nasce livre, mas em todo
os homens, ou devo concedê-las a o lugar ele está acorrentado”. É de
todos? “–A todos”, disse Zeus: “eu John Locke a assertiva: “onde não
gostaria que todos a tivessem, pois há propriedade, não há injúria”.
sem elas as cidades não poderiam Russeau observa no seu Discurso
existir”. sobre a Origem das Desigualdades
que é a instituição da propriedade
5 Direito natural e dimensão privada que toda essa infelicidade
política advém, a artificialidade e competi-
Na dimensão da política tividade da sociedade contemporâ-
filosófica se poderia perguntar: “O nea, as diferenças grotescas entre o
que faz um governo legítimo?”. rico e o pobre, entre aqueles pode-
Uma resposta talvez é que ele rosos e os destituídos de posse.
deveria ser justo. E, mais uma vez, Em seu livro “Teoria da Jus-
o que é Justiça? E como os Estados tiça”, John Rawls diz que “há um
e governos podem devidamente conflito de interesses desde que
clamar serem justos? os homens não são indiferentes a
Os adeptos do direito natu- como os maiores benefícios pro-
ral colocaram a justiça no seu con- duzidos por sua colaboração são
teúdo junto com a liberdade, a bus- distribuídos, pois a fim de perse-
ca da paz e felicidade, livre-arbítrio guirem seus fins, cada um prefere
e outros direitos inalienáveis. mais benefícios do que menos. As-
sim, princípios são necessários para
Hobbes fala do contrato escolher entre os vários arranjos
que é a mútua transferência de sociais que determinam a distribui-
direitos e sentencia: “o que eu ção das vantagens e sublinham um
legitimamente convenciono, não consenso sobre a distribuição apro-
posso legitimamente quebrar”. priada de bens. Essas exigências
definem o papel da justiça”.
Adepto da teoria do
contrato social, ele defende que a Diz também que “uma con-
justiça e propriedade começam com cepção de direito deve impor um
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ordenamento sobre as demandas blico? No que consiste esse bem e


conflituosas para que se evite o como pode ser distribuído? Em que
apelo à força e atos insidiosos a fim extensão uma pessoa se distingue
de que os princípios da retidão e da outra? Em termos de suas ne-
justiça sejam aceitos”. cessidades, suas habilidades, suas
contribuições, e seus direitos indi-
6 Dimensão principiológica viduais? É a igualdade de oportu-
Sobre o direito, justiça, nidades produzida pelo mercado,
equidade e sociedade, todos agru- em seu conceito econômico? Ou
pados ou integrados em uma só como David Hume assinala, a jus-
ideia, disse Ronald Dworkin que a tiça é um modo de utilidade social?
sociedade é vista como uma comu- Grotio, o primeiro grande
nidade de princípios, que exige que pacifista construtivista, sugeriu
as normas públicas da comunidade uma corte mundial de arbitragem.
sejam criadas e vistas, na medida Immanuel Kant, o grande filósofo,
do possível, de modo a expressar em seus tratado “Paz Eterna”, in-
um sistema único e coerente de jus- sistiu que cortes deveriam suplan-
tiça e equidade. tar guerras, federações de nações
Michel Sandel defende que eliminar o individualismo egocên-
os princípios da justiça são produ- trico, tratados tomam o lugar de
tos de escolha; só o indivíduo ou armas e democracias tornam obso-
um grupo deles pode decidir, por letas as dinastias opressoras. Hen-
reflexão racional, o que constitui o rique IV, da França, sonhou com
seu bem, que sistema de finalida- uma Liga das Nações.
des é racional para eles persegui- A Declaração de Indepen-
rem, e por antecipação como tal sis- dência dos Estados Unidos da Amé-
tema irá regular suas pretensões, rica adota a teoria do contrato social
uns contra os outros. e dos direitos naturais, ao estabele-
cer “que governos são instituídos
Para Hume, a justiça decor-
entre os homens, derivando seus
re da falta de amor. Disse ele que
justos poderes do consenso dos go-
nós precisamos da justiça porque
vernados” e que quando um gover-
não amamos uns aos outros sufi-
no falha em realizar seus deveres“ é
cientemente.
o direito do povo alterar ou abolir”.
Várias questões surgem:
Afirma que “todos os ho-
qual o papel da justiça e sua justi-
mens são criados iguais” e que
ficação na sociedade moderna? É,
“eles são investidos por seu Cria-
como Hobbes insiste, uma tenta-
dor com certos direitos inaliená-
tiva de garantir segurança e satis-
veis”, “que entre estes estão a vida,
fação? Ou como diz John Locke,
liberdade e busca da felicidade”.
salvaguardar nossa propriedade
duramente adquirida? Ou melhor, Locke sugere que a pro-
é maximizar e assegurar o bem pú- priedade privada, no sentido de
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um pedaço de terra, seja contada haver nos dois sistemas anteriores e


como um direito natural, conquan- para cuidar de interesses legítimos
to não absoluto, com limites no seu comuns e particulares.
exercício útil. Inclui nesta relação o
próprio corpo, e aquilo que se faz John Stuart Mill trata de
com ele, como o trabalho, que é dois sentidos da justiça, um como
propriedade inquestionável do tra- um sentimento ou instinto peculiar,
balhador. a ser controlado e iluminado por
uma razão elevada, exemplificando
David Hume defende uma que é universalmente considerado
concepção de justiça que, antes de justo que cada pessoa receba o bem
tudo, apoie o bem público, concebi- ou o mal que mereça e injusto que
do em termos de paz e segurança. obtenha o bem ou sofra o mal que
Argui que a utilidade pública não não mereça.
é uma mas a única justificativa da
justiça. Assim, para ele, é mais uma De outro lado, faz referência
virtude ‘artificial’ do que ‘natural’. à justiça como protetiva dos direitos
legalmente reconhecidos a alguém,
Adam Smith idealizou a como sendo injusto privá-lo desses
justiça como um sentimento moral, direitos e justo o respeito à sua
cunhando a expressão ‘senso de liberdade pessoal, propriedade
justiça’, baseado na compaixão que ou qualquer outra coisa que lhe
mais previne de prejudicar outros. pertença por lei.
Uma sociedade não poderia sobre-
viver na presença de sentimentos de Já Friedrich Engels obser-
prejudicar uns aos outros. vou ser injusto o presente modo de
distribuição do produto do trabalho
7 Dimensão social trazendo os contrastes da necessida-
de a uns e luxúria a outros, inanição
Hegel analisa três aspectos
a uns e excesso a outros, criados pelo
da sociedade civil:
moderno capitalismo, como a injus-
A) o sistema de necessida- ta distribuição de classes, uma domi-
des, em que o Estado faz a media- nante, outra explorada, a primeira
ção entre a satisfação das necessi- privilegiada, a segunda serviçal.
dades de uma pessoa através do
seu trabalho e a satisfação da ne- Portanto, defende a abolição
cessidade de outros; da propriedade privada, a utilização
comum de todos os instrumentos
B) o sistema da Administra- de produção e a distribuição de
ção da Justiça, assegurando os prin- todos os produtos de acordo com o
cípios da liberdade e da proteção da consenso de todos.
propriedade privada;
Foi combatido por Friedrich
C) o sistema da Polícia e das Von Hayek, que escreveu “A
corporações que tomam provisões miragem da justiça social”, sendo
contra as contingências que podem um dos defensores ardorosos
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do laissez faire e do sistema do Este último estudou a


mercado livre. igualdade no aspecto de ser
humano, com suas características
Observa ele que, hoje, não genéricas e também nas capacidades
há movimento político ou políticos morais com suas habilidades e
que não invoquem a justiça social conexões (relacionamentos entre
em apoio a medidas particulares uns e outros). Mas estudou também
que advoguem. a igualdade nas circunstâncias
desiguais e as pretensões sobre
Embora a frase tenha ajuda- bens baseadas nas necessidades e
do indubitavelmente e ocasional- no mérito.
mente a tornar a lei mais igual para
todos, duvida que a demanda por David Miller, que estudou
justiça na distribuição de bens po- o sistema de mercado no seu li-
deria tornar a sociedade mais justa vro “Justiça Social”, assevera que
ou reduzir o descontentamento. as sociedades capitalistas não são
sociedades puramente de merca-
Diferencia que a sociedade do, porque combinado com outros
liberal é governada por princípios elementos de estrutura social. Pri-
de conduta individual justa meiro, porque contém uma classe
enquanto que a justiça social coloca aristocrática cuja posição social é
o dever da justiça a autoridades mais herdada do que obtida por
com poder de dirigir as ações do troca e produção. Segundo, porque
povo. contém uma classe trabalhadora,
que conquanto troque seus ser-
Afirma que a justiça é uma viços por um salário e compre do
atitude da conduta humana no comércio seus bens, a relação com
tratamento de uns para com os seus companheiros trabalhadores
outros para assegurar e manter não é de mercado, mas de assistên-
uma ordem benéfica de ações. cia mútua e apoio e proteção contra
um oponente comum – o empre-
Defende o mercado livre gador. Os sindicatos, a principal
como um jogo econômico em que forma através da qual a solidarie-
apenas a conduta dos jogadores dade de classe tem sido expressa,
deverá ser justa e não seu resultado. foram reconhecidos pelos teóricos
do mercado como incompatíveis e
Sobre a igualdade, tema estranhos àquele sistema.
caro à justiça, Friedrich von Hayek
opinou que oportunidades iguais Cabe assinalar que hoje
são ilusórias e impossíveis. Bernard encontra-se organizado, em molde
Williams escreveu que os homens internacional, fórum de discussão
são iguais nas declarações de prin- de princípios e medidas protetivas
cípios ou de metas e que ao mes- ao trabalho a serem convenciona-
mo tempo os homens deveriam ser das por grande parte das nações
iguais, pois no presente não o são. para aplicação interna.
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No Brasil, como órgão do si mesma e injusta, a Suprema


Poder Judiciário figura a Justiça do Corte americana nos casos Furman
Trabalho, comemorando, no cor- v. Georgia (1972) e Gregg v.
rente, seus 70 anos de existência. Georgia (1976) reafirma a validade
constitucional à pena de morte,
A comemorar também, com
argumentando que esta serve a
25 anos, sita o Tribunal Regional
propósitos sociais de inibição ao
do Trabalho da 15ª Região, segun-
crime e retribuição. Consigna-se o
do em movimentação processual
voto minoritário e vencido do Juiz
do país, recebendo anualmente
Marshall insistindo que “não há
cerca de 237.000 ações na primeira
correlação entre a pena capital e
instância e, no Tribunal, mais de
taxa inferior do crime capital”.
80.000 processos.
8 Natureza da punição e justiça Hugo Bedau escreve que a
pena capital mais vulgariza e de-
Outro aspecto da justiça diz grada a vida humana do que fo-
respeito à retribuição que desperta menta respeito por ela. Van Der
várias questões de ordem filosófica, Haag se opõe dizendo que o ho-
em relação às sanções e punições mem culpado do crime capital cor-
de violações à lei e aos direitos de re o risco de tal punição.
outros. Qual a punição “adequada”?
Uma que quite um débito social? A Grassam as reflexões de um
punição é pagamento? Que dizer da lado e de outro, desde o humanis-
pena capital? ta Alberto Camus, que combateu a
inescusável violência da guilhoti-
Temos, de um lado, a virtude na, Susan Jaboby (Justiça selvagem,
presente pelo Novo Testamento de 1983), Robert C. Solomon (em Jus-
“dar a outra face” e a observação tiça e a paixão por vingança, 1989),
de Platão de que a retaliação e que diz ser falsa a dicotomia entre
injúria nunca são certas, mesmo justiça impessoal e mera vingança
em retorno ao mal; de outro, há pessoal, cita Nietzsche que a “ur-
uma subcultura da violência, como gência de punir vem primeiro, as
o código de vingança da Sardenha, razões e tentativas de justificação
em que a vingança é obrigatória e vêm depois”. Fala da metáfora da
ofensas devem ser vingadas. ‘dívida’ = a punição é para pagar
pelo erro”, e da metáfora de que
No entanto, Kant afirmou
a punição deve ser adequada ou
que a natureza e justificação da pu-
se ajustar ao crime. Aqui citando
nição é a retribuição, que se dife-
Camus: “Para haver equivalência,
rencia da vingança. Esta é uma pai-
a pena de morte deveria punir um
xão, aquela equivalente à natureza
criminoso que teria avisado sua ví-
e gravidade do crime é ditada pela
tima da data em que ele lhe have-
razão, pela lei e pela corte.
ria de infligir uma morte horrível
Enquanto Beccaria assevera e que desse momento em diante, o
que toda pena capital é errada em teria confinado à sua misericórdia
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por meses. Tal monstro não é en- e ter herdado bens, está impres-
contrado na vida privada”. sionado com as desigualdades na
distribuição de riqueza, rendi-
9 Ótica contemporânea mentos e oportunidades. Ele está,
acima de tudo, mais impressiona-
Vários outros autores dis- do com a inabilidade dos pobres e
sertaram sobre a justiça, John Rawls destituídos para fazer algo sobre
colocando-se no rol das virtudes e suas próprias condições resultan-
conceituando-a como equidade, tes das desigualdades na distri-
com as três ideias básicas que ex- buição do poder.
pressam a justiça: liberdade, igual-
dade e recompensa pelos serviços, Ele vê esses tipos de desi-
contribuindo para o bem comum. gualdades como ­ injustos e como
constantemente fomentando no-
Robert Nozick estuda a
vas injustiças. Ele acredita que a
justiça distribuída de possessão,
única possibilidade de equalizar as
com a teoria do título (fazer jus a).
desigualdades é melhorar a condi-
ção dos pobres e destituídos, por
Alasdair MacIntyre coloca a
exemplo, fomentando crescimento
seguinte equação entre os cidadãos-
econômico. Ele chega à conclusão
tipo, chamados A e B:
que nas circunstâncias presentes a
“A, que pode possuir uma redistribuição dos impostos para fi-
loja, ser um policial ou trabalha- nanciar a previdência e os serviços
dor na construção civil, tem luta- sociais é o que a justiça demanda.
do para economizar o suficiente Ele pretende votar nos candidatos
de seus ganhos para comprar uma políticos que irão definir a redistri-
pequena casa, mandar seus filhos à buição e sua concepção de justiça”.
escola local, e pagar por algum tipo
especial de plano de saúde para Thomas Nagel fala da jus-
seus pais. Ele sente todos estes seus tiça das instituições: “A justiça das
projetos ameaçados pela elevação instituições sociais é medida não
dos impostos. Ele vê essa ameaça por sua tendência em maximizar
aos seus projetos como injusta: ele a gama ou média de certas vanta-
reclama ter direito sobre o que ele gens, mas pela tendência de con-
ganhou e que ninguém mais tem o trapartida às naturais desigualda-
direito de tirar o que ele adquiriu des advindas do nascimento, talen-
legitimamente e ao qual ele possui tos e circunstâncias, canalizando
um justo título. Ele pretende votar estes recursos no serviço do bem
em candidatos políticos que defen- comum. O bem comum é medido
derão sua propriedade, seus proje- em termos de estabelecer benefícios
tos e sua concepção de justiça”. básicos e restritos a indivíduos,
como liberdade pessoal e política,
“B, que pode ser um pro- vantagens sociais e econômicas e
fissional liberal, assistente social auto-estima”.
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Charles Taylor trata do E quando trata da per-


princípio da proporcionalidade na gunta: “O que é meu?”, afirma
justiça distributiva na perspectiva que na natureza tudo pertence a
do bem comum. todos. A justiça, segundo ele, é
humana, fruto do consenso. “A
Michael Walzer concebeu justiça só existe na medida que
a “Esfera da Justiça” incluindo a os homens a querem, de comum
redistribuição dos bens contra do- acordo, e a fazem”.
minação e monopólio para fomen-
tar igualdade e distribuição pelo 10 Considerações finais
Estado de todos os bens sociais.
Ou seja, prega a intervenção esta- Recordo-me que antes des-
tal para quebrar monopólios ainda ses estudos, ao me questionar ‘o
incipientes e represar novas formas que é justiça’ e ao refletir duran-
de dominação. te algumas semanas, intuí, com
simplicidade, que a justiça é um
Elisabeth Wolgast ensina atributo divino, possuída ineren-
que só se pode apreender a justiça temente e integrativa do caráter
a partir do conceito de injustiça, e humano, uma luz sujeita a ser de-
que a justiça se caracteriza por for- senvolvida com propósitos e ações
ça e urgência. “Nós precisamos de retas; também é um sistema estatal
justiça! A justiça precisa ser feita!”, estabelecido para solucionar con-
e outras expressões denotam impe- trovérsias por atuação e interpre-
rativo de força e urgência. tação da lei. Em outra dimensão,
justiça são condições de vida que
O filósofo parisiense André proporcionam o bem-estar geral
Comte-Sponville4, no seu Pequeno e particular de cada cidadão, que
Tratado das Grandes Virtudes, ao por estas condições asseguradas
escrever sobre a justiça, pergun- pela sociedade podem desenvol-
tou: “Mas quem pode gabar-se de ver todo o seu potencial individual,
conhecê-la ou de possuí-la total- familiar, profissional e social, ten-
mente?”, e tentou posicioná-la no do assento esse último sentido no
equilíbrio, nesses termos: fundamento da igualdade, valor e
dignidade pessoal do homem.
Diante do desmedido da caridade,
para a qual o outro é tudo, diante
do desmedido egoísmo, para o 11 Referências
qual o eu é tudo, a justiça se man-
tém na medida que sua balança COMTE-SPONVILLE, André. Pe-
simboliza, em outras palavras, no
equilíbrio ou na proporção: a cada queno tratado das grandes virtu-
um sua parte. des. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo:


4

Martins Fontes, 2009.


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PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. SOLOMON, Robert C., MURPHY,


O princípio da dignidade da pessoa Mark C. What is justice? classic
humana. São Paulo: LTr, 2009. and contemporary readings.
ROSA, Eliezer. A voz da toga. Rio New York: Oxford University
de Janeiro: Barrister’s, 1983. Press, 1990.

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