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Capı́tulo 1

Simetrias e grandezas conservadas

Na Mecânica Clássica, o teorema de Noether nos ensinou que simetrias em sistemas


fı́sicos levavam a correspondentes grandezas conservadas durante o movimento. As mais
simbólicas são a conservação de energia, associada a simetrias sob translações temporais;
a conservação de momento, relativa à homogeneidade espacial; e o momento angular, re-
lativo à isotropia do sistema. Outras grandezas, que podem ou não estar associadas a
estas, são a Hamiltoniana do sistema, o vetor de Laplace-Runge-Lenz, etc.
No contexto da Relatividade Geral, não é exagero dizer que as simetrias desempenham
um papel talvez ainda mais fundamental que na Mecânica Clássica. Lembramos que no
contexto clássico a existência de grandezas conservadas nos permite integrar as equações
do movimento, seja obtendo atalhos para resolvê-las, seja obtendo informações sobre os
sistemas sem obter a solução explı́cita. No caso da Relatividade, em que as equações são
muito mais complicadas, a existência das constantes de movimento se torna crucial.

1.1 Vetores de Killing e Conservações


Obtivemos anteriormente uma maneira de determinar simetrias por meios da invariância
da Relatividade Geral por difeomorfismos. Se gab é a métrica do espaço-tempo, um (co-)
vetor ξa é dito ser de Killing se for gerador de uma simetria da métrica:

£ξ gab = 0.

Vimos que esta expressão equivale à chamada equação de Killing:

∇a ξb + ∇b ξa = 0.

Os dois resultados mais imediatos que obtemos com vetores de Killing são apresentados
a seguir.

Proposição 1. Seja ξ a um vetor de Killing e seja uma geodésica com vetor tangente ua .
Então, a quantidade
Q = ξa ua

é conservada ao longo da geodésica. 

1
2 CAPÍTULO 1. SIMETRIAS E GRANDEZAS CONSERVADAS

Prova: basta tomar a derivada ao longo da geodésica:


D
Q = ua ∇a (ub ξb )

= (ua ∇a ub )ξb + ua ub (∇a ξb )
= 0.

Na transição da segunda para a terceira linha, usamos o fato de ua ser paralelamente


transportado, e de a soma nas derivadas de ξ a ser simétrica. 

Proposição 2. Seja ξ a um vetor de Killing e seja T ab um tensor de energia-momento


covariantemente conservado. Então, a corrente

J a = T ab ξb

é covariantemente conservada. 

Prova:
∇a J a = ∇a (T ab ξb ) = (∇a T ab )ξb + T ab ∇a ξb = 0.


1.1.1 Coordenadas cı́clicas e momentos conservados


Na Mecânica Clássica, sabemos que se o movimento é descrito por uma Lagrangiana L
que não depende de um coordenada e.g. xζ , então o momento conjugado a esta variável
∂L
pζ ≡
∂ ẋζ
é uma constante do movimento. Como isto se traduz no contexto visto acima, em parti-
cular no da Proposição 1?
Entre as hipóteses desta proposição está que o movimento se dê ao longo de uma
geodésica. Sabemos então que a Lagrangiana deste sistema é dada por

L = gab ẋa ẋb , (1.1.1)

em que um ponto denota a derivada em relação ao parâmetro afim λ da geodésica. Dado


que não há “termos de potencial” nesta Lagrangiana, ela dependerá de uma variável xζ
se e somente se a métrica o fizer. Logo, suponhamos que o tensor métrico não dependa
de xζ .
Vamos primeiro provar que ∂ζ é um vetor de Killing. Com efeito, a condição de Killing
se escreve, de forma não manifestamente covariante,

£∂ζ gab = (∂ζ )c ∂c gab + (∂a (∂ζ )c )gcb + (∂b (∂ζ )c )gac ,

onde (∂ζ )a = δζa , e portanto


£∂ζ gab = ∂ζ gab = 0,
e portanto está provado que ∂ζ é Killing.
1.2. VETORES DE KILLING CONFORMES 3

Usando a Proposição 1, teremos então que a grandeza

(∂ζ )a ẋa = δζa ẋa = ẋζ = gaζ ẋa

é uma constante do movimento. Por outro lado, como a Lagrangiana é cı́clica em xζ ,


segue das equações de Euler-Lagrange que
dpζ d ∂L
= =0 ⇒ pζ = gaζ ẋa = const.
dλ dλ ∂ ẋζ
Comparando as duas expressões acima, fica claro que a grandeza conservada obtida
através do formalismo dos vetores de Killing é o próprio momento conjugado a esta coorde-
nada. Assim, nossa intuição clássica permanece válida - ao vermos que uma Lagrangiana
(ou, equivalentemente, a métrica) não depende de uma coordenada, podemos imediata-
mente obter que o momento conjugado a esta coordenada se conserva durante o movi-
mento.
Por fim, uma outra grandeza conservada numa geodésica é a própria Lagrangiana. Isto
é claro se percebermos que, do modo como foi definida (sem nenhum “termo de poten-
cial”), a Lagrangiana nada mais é que a norma quadrada da 4-velocidade da partı́cula.
Em geodésicas tipo tempo, L = −1; se forem tipo luz, L = 0.

1.2 Vetores de Killing conformes


Além dos dois tipos anteriores de grandezas conservadas, associadas a vetores de Killing
propriamente ditos, existem outras que aparecem em casos menos gerais, mas não de
menor importância. A seguir discutiremos vetores que satisfazem a chamada equação
de Killing conforme:
∇a ξb + ∇b ξa = 2ω(x)gab ,
para alguma função ω : M → R.
Vetores que satisfaçam esta equação são chamados vetores de Killing conformes.

Proposição 3. Seja ξ a um vetor de Killing conforme, e considere uma geodésica de


tipo nulo com vetor tangente ua . Então, a quantidade

Q = ξa ua

é conservada ao longo da geodésica. 

Prova:
D 1
Q = (∇a ξb + ∇b ξa )ua ub = ω(x)gab ua ub = 0.
dτ 2
Na última igualdade, usamos que a geodésica é nula. 

Uma transformação de Weyl, ou conforme, é uma transformação da métrica da


forma
gab (x) → e2ω(x) gab (x),
i.e. a métrica original multiplicada por um fator estritamente positivo em toda a varie-
dade.
4 CAPÍTULO 1. SIMETRIAS E GRANDEZAS CONSERVADAS

É possı́vel provar que se uma teoria fı́sica associa-se a uma ação S (que é um funcional
da métrica e de quaisquer outros campos), tal que S é invariante por transformações de
Weyl, então o tensor de energia-momento desta ação tem traço nulo:

Invariância sob transformações de Weyl ⇒ T aa = 0

(vide Blau, 2012).


Consideremos portanto uma teoria invariante sob transformações de Weyl.
Proposição 4. Seja ξ a um vetor de Killing conforme e seja T ab um tensor de energia-
momento de traço nulo. Então, a corrente

J a = T ab ξb

é covariantemente conservada. 

Prova:

∇a J a = (∇a T ab )ξb + T ab ∇a ξb
1
= T ab (∇a ξb + ∇b ξa ) = ω(x)T ab gab = 0.
2


Comentário: observe que se um vetor ξ a é de Killing para uma métrica gab , então ele será
Killing ou ao menos Killing conforme para qualquer transformação de Weyl da métrica.
De fato, seja a transformação gab → g̃ab = e2ω gab , e seja ξ a um vetor de Killing de gab . A
derivada de Lie de g̃ab ao longo de ξ a é, por definição,

£ξ g̃ab = ξ c ∇c g̃ab + (∇a ξ c )g̃cb + (∇b ξ c )g̃ac


= ξ c ∇c (e2ω gab ) + (∇a ξc )δbc + (∇b ξc )δac
= ξ c (∂c e2ω )gab + (∇a ξb + ∇b ξa )
= 2(ξ c ∂c ω)e2ω gab = 2(ξ c ∂c ω)g̃ab .

Lembramos que a definição covariante da derivada de Lie de um tensor admite que


usemos uma conexão ∇ qualquer que seja simétrica - assim, optamos por utilizar a conexão
de Levi-Civita da métrica gab , que nos permitiu uma série de cancelamentos nos cálculos
acima. Por outro lado,
˜ a ξb + ∇
£ξ g̃ab = ∇ ˜ b ξa ,
˜ é a conexão de Levi-Civita associada à metrica g̃ab . Desse modo,
onde, agora, ∇
˜ a ξb + ∇
∇ ˜ b ξa = 2α(x)g̃ab ,

onde
α(x) = ξ c ∂c ω(x).
Esta é precisamente a equação de Killing conforme. Observe que no caso particular
de ω ser constante ao longo das curvas integrais de ξ a , então ξ a será um vetor de Killing
propriamente dito.
Um vetor de Killing conforme que não é obtido de um vetor de Killing após uma
transformação conforme é dito essencial.
1.3. TENSORES DE KILLING E KILLING-YANO 5

1.3 Tensores de Killing e Killing-Yano


Vamos relembrar o procedimento básico pelo qual obtivemos grandezas conservadas a
partir de vetores de Killing, de modo a podermos generalizar este processo. A equação
de Killing se escreve como qualquer uma das seguintes formas:
∇(a ξb) = 0 ⇔ ∇a ξb = ∇[a ξb] .
Usando também a equação da geodésica ua ∇a ub = 0 fornece a grandeza conservada
ξa ua a partir de
D
(ξa ua ) = ub ∇b (ξa ua ) = ua ub ∇b ξa = 0.

Na última passagem, utilizamos a simetria dos termos ua ub e a antissimetria de ∇a ξb .
Usando esse procedimento, podemos obter dois tipos de generalizações.
Definição 1. Um tensor ξa1 ...an de ordem n totalmente simétrico é dito ser um tensor
de Killing se satisfizer a equação de Killing tensorial:
∇(a ξb1 ...bn ) = 0. (1.3.1)


Proposição 5. Seja uma geodésica com vetor tangente ua , e seja ξa1 ...an um tensor de
Killing. Então, a grandeza
Q = ξa1 ...an ua1 · · · uan
é constante ao longo da geodésica. 

Prova:
D
Q = (∇b ξa1 ...an )ub ua1 · · · uan = 0,

pois os termos ua ua1 · · · uan são obviamente simétricos. Observe que devido ao fato de
estarmos numa geodésica as primeiras n derivadas covariantes (dos vetores tangentes à
geodésica) se anulam identicamente. 

O segundo tipo de generalização de vetores de Killing são os chamados tensores de


Killing-Yano:
Definição 2. Um tensor ξa1 ...an de ordem n totalmente antissimétrico é dito ser um
tensor de Killing-Yano se satisfizer a equação de Killing-Yano:
∇(a ξb1 )b2 ...bn = 0 ⇔ ∇a ξb1 ...bn = ∇[a ξb1 ...bn ] . (1.3.2)


Proposição 6. Seja uma geodésica com vetor tangente ua , e seja ξa1 ...an um tensor de
Killing-Yano. Então, a corrente
Ya1 ...an−1 = ub ξba1 ...an−1
é paralelamente transportada ao longo da geodésica. 
6 CAPÍTULO 1. SIMETRIAS E GRANDEZAS CONSERVADAS

Prova:
D
Ya ...a = ua ub ∇b ξab1 ...bn−1 = 0
dτ 1 n−1
onde usamos o fato, já usual, de os produtos dos vetores tangente serem simétricos, en-
quanto ∇b ξab1 ...bn−1 é totalmente antissimétrico. 

Exemplos: Alguns exemplos imediatos de tensores de Killing são o tensor métrico, cuja
grandeza conservada é a própria Lagrangiana (como já vimos neste mesmo capı́tulo) e
produtos de vetores de Killing. Para ver este último fato, sejam ξ a e ζ a dois vetores de
Killing. Então
D a b
(u u ξa ζb ) = uc ∇c (ua ub ξa ζb ) = ua ub uc (ξa ∇c ζb + ζb ∇c ξa ) = 0,

onde usamos o fato de ambos ξ e ζ satisfazerem a equação de Killing e das somas serem
simétricas. É fácil generalizar este raciocı́nio para um número arbitrário de vetores. Do
raciocı́nio acima fica evidente que constantes obtidas a partir destes tensores de Killing
triviais não acrescentam nada àquelas já obtidas anteriormente.
No caso de tensores de Killing-Yano, alguns exemplos triviais são os próprios vetores
de Killing.

1.4 Propriedades geométricas de vetores de Killing


Voltemos ao estudo dos vetores de Killing. Mostraremos que, de modo surpreendente,
estes vetores possum relações diretas com a geometria da variedade onde vivem.
Teorema 1. Seja ξa um vetor de Killing. Então,
∇a ∇b ξc = Rdabc ξd . (1.4.1)


Prova: comece com a definição do tensor de Riemann


[∇a , ∇b ]ξ c = ∇a ∇b ξ c − ∇b ∇a ξ c = Rc dab ξ d
no caso particular de um vetor de Killing. Vale então a equação de Killing; aplicando-a e
baixando os ı́ndices, obtemos
∇a ∇b ξc − ∇b ∇a ξc = Rcdab ξ d .
Reescreva esta expressão permutando (abc) → (bca) e (bca) → (cab), e tome (abc) +
(bca) − (cab); teremos
2∇b ∇c ξa = −(Rdcab + Rdabc − Rdbca )ξ d = 2Rdbca ξ d ,
onde usamos a simetria
Rd[abc] = 0
do tensor de Riemann. Assim,
∇a ∇b ξc = Rdabc ξd .

Bibliografia

[1] M. Blau, Lecture Notes on General Relativity.


Disponı́vel em http://www.blau.itp.unibe.ch/lecturesGR.pdf. Acesso em
8/11/2012.

[2] R. M. Wald, General Relativity, The University of Chicago Press (1984).

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