Você está na página 1de 8

Aula 7: Reações Heterogêneas I

Prof. Gabriel de Castro Fonseca (DQBIO/UFSJ)


Projeto de Biorreatores

Contextualização

Por que revisitar as rea- Na disciplina de Cinética e Cálculo de Biorreatores


ções heterogêneas? estuda-se principalmente as reações homogêneas,
com breves referências às características qualitativas
das reações heterogêneas. Uma abordagem mais
quantitativa desse tipo de reação, no entanto, não
era possível àquela altura do curso de Engenharia
de Bioprocessos pelo fato de vocês não terem sido
apresentados ainda aos fenômenos de transporte
de massa, que são fundamentais para a modelagem
matemática das reações heterogêneas.

É na disciplina de Projeto de Biorreatores que será


feita, portanto, a síntese entre essas duas disciplinas.

Qual é o papel das rea- Biorreações envolvendo a presença de mais do que uma
ções heterogêneas na En- fase são muito comuns. Já estudamos a transferência
genharia de Bioproces- de massa gás-líquido, importante para as reações
sos? aeradas. A partir desta aula, dirigiremos nossa atenção
para as reações sólido-líquido, com aplicações tanto
para as reações enzimáticas, onde há uso frequente
da técnica de imobilização, quanto para reações de
fermentação* , onde pode ocorrer imobilização ou a
aglomeração entre as células em suspensão.

Uma complicação que a transferência de massa


sólido-líquido tem em relação à gás-líquido é que
frequentemente a reação ocorre ao longo do volume
da partícula sólida. Por isso, para calcular a taxa de
conversão e a velocidade de reação local em cada
ponto da partícula, precisamos saber calcular os perfis
de concentração dentro da partícula. Essa é uma pre-
ocupação que não tínhamos quanto ao interior de uma
bolha de ar, uma vez que o movimento das moléculas
de um gás é muito mais rápido que o das de um sólido,
criando um perfil homogêneo de concentração em seu
interior.
* Usamos aqui a palavra fermentação de acordo com o jargão in-
dustrial, onde qualquer reação envolvendo células vivas é considerada
uma fermentação, independente de a reação ser aeróbia ou anaeróbia.

1
Aplicações em Bioprocessos

Em que tipo de biopro- Reações com catalisadores em fase sólida são impor-
cesso ocorrem reações em tantes em bioprocessos. A presença de sólidos pode
fase sólida? ocorrer naturalmente ou ser induzida de forma artificial.
Pode-se citar como exemplos,
• Heterogeneidade espontânea:
– flocos e aglomerados macroscópicos produ-
zidos naturalmente por algumas bactérias,
fungos e tecidos animais e vegetais;
– partículas de micélios podem ser formadas
em fermentações de antibióticos;
– crescimento de biofilmes nas paredes de um
reator;
– formação de lodos no tratamento de águas
residuárias;
– fermentação semi-sólida.
• Heterogeneidade forçada:

– imobilização de células e enzimas em gels ou


sólidos porosos;
– cultura de células animais em estruturas tri-
dimensionais para produção de carne, teci-
dos ou órgãos.
Apesar da grande quantidade reações sólido-líquida ci-
tada, a matemática envolvida na modelagem desse tipo
de reação é basicamente a mesma, sendo necessário
apenas fazer as devidas correções para as diferentes
geometrias.

A catálise heterogênea introduz resistências à trans-


ferência de massa em um sistema, o que pode reduzir
a velocidade aparente de uma reação. É natural se
perguntar por que se desejaria imobilizar um biocatali-
sador em uma matriz sólida. A vantagem do processo
de imobilização é que os sólidos são facilmente sepa-
ráveis do caldo fermentado, o que permite reaproveitar
os biocatalisadores. No caso das enzimas, uma van-
tagem adicional da imobilização é o incremento na
sua estabilidade e meia-vida. No caso das células, a
matriz sólida pode oferecer proteção contra condições
ambientais adversas, como um alto de cisalhamento.
Além disso, em alguns casos é possível concentrar uma
quantidade maior de biocatalisadores nas partículas
sólidas do que seria possível em suas formas livres, o
que pode aumentar sua atividade catalítica no reator.

Resumo

Reações heterogêneas em Reações heterogêneas são muito comuns em biopro-


bioprocessos cessos, seja por formação natural de aglomerados de
células ou seja por imobilização do biocatalisador.

2
Figura 1: Biocatalisadores imobilisados em (a) gel flexível e (b)
sólido poroso.[1]

Como funciona a imobili- Existem muitas técnicas de imobilização de biocata-


zação? lisadores. Dois métodos comuns estão ilustrados na
Figura 1. O primeiro método envolve o aprisionamento
de células ou enzimas em gels liquefeitos como algi-
nato, agarose e carragenina.

Esses gels são posteriormente enrijecidos ou conec-


tados usando-se moléculas orgânicas com múltiplos
grupos funcionais e baixo peso molecular que fun-
cionam como uma espécie de “cola”, formando um
aglomerado tridimensional entre cadeias poliméricas.
Essa é uma técnica conhecida como cross-linking e o
glutaraldeído é um exemplo de agente multifuncional
utilizado.

O gel polimérico deve ser poroso e flexível o sufici-


ente para permitir a difusão de reagentes e produtos
entre o meio e o interior da partícula. Uma alternativa
à imobilização em gel é o aprisionamento dos biocata-
lisadores em sólidos porosos como cerâmicas, vidros
e resinas. As células e enzimas migram para os poros
dessas partículas e aderem a suas superfícies internas.
O substrato deve se difundir por esses poros para que
a reação ocorra.

Independente do método de imobilização, os biocata-


lisadores se distribuem pelo interior da matriz sólida
funcionando como os sítios ativos de um catalisador
heterogêneo.

3
Figura 2: Perfil de concentração típico para catalisador esférico.[1]

Gradientes de concentração

Como a concentração de Considere um catalisador esférico de raio R imerso


substrato varia dentro do em um líquido bem misturado contendo o substrato
catalisador? A. No seio do líquido, longe da partícula sólida, a
concentração de substrato é uniforme e igual a CAb .

Se o sólido não tivesse atividade catalítica, após


algum tempo a concentração de reagente em seu inte-
rior atingiria um valor constante em equilíbrio com CAb
(mas não necessariamente igual), no entanto, como
o reagente é consumido, a sua concentração é uma
função do raio CA (r) e tem um perfil do tipo mostrado
na Figura 2.

Se os biocatalisadores imobilizados forem distri-


buídas de forma uniforme na partícula, o perfil de
concentração será simétrico com mínimo no centro. A
transferência de massa do caldo para os sítios ativos
(células e enzimas) tem como força motriz a diferença
de concentração entre o seio da solução e o interior da
partícula.

No seio do líquido, o substrato é carregado rapi-


damente por correntes convectivas. Conforme as
moléculas de substrato se aproximam do sólido, no
entanto, elas devem ser transportadas através da
camada limite, em um processo chamado transferência
de massa externa. Existe um gradiente de concen-
tração entre CAb no seio do líquido e CAs na interface
sólido-líquido.

Se a partícula não for porosa e todas as células e


enzimas estiverem adsorvidas à sua superfície externa,
a transferência de massa externa seria a única etapa
do transporte de massa. Caso contrário, se a reação
ocorrer no interior da partícula, haverá mais uma etapa
de transferência de massa interna.

4
Figura 3: Variações no perfil de concentração de substrato em bio-
catalisador esférico.[1]

Como a concentração de Embora o perfil de concentração mostrado na Figura 2


substrato varia dentro do seja típico, outras variações são possíveis.
catalisador?
A Figura 3(a) mostra um perfil de concentração no
caso em que a velocidade da reação no sítio ativo
é muito maior que a velocidade da transferência de
massa interna. Nesse caso o substrato é consumido
mais rápido do que pode ser reposto e sua concen-
tração cai a zero antes de o centro do catalisador ser
atingido. Nesse caso as células no centro do catalisa-
dor morrem de fome e se inativam.

Nas Figuras 3(b) e (c), o coeficiente de partição do


substrato entre o caldo e a partícula é diferente de
um. Isso significa que no equilíbrio, na ausência de
reação, a concentração de substrato no sólido é natu-
ralmente maior ou menor do que no caldo. Isso pode
acontecer, por exemplo, se houver interações hidrofó-
bicas que causam atração ou repulsão envolvendo o
substrato. Na maioria das aplicações em bioprocessos
o coeficiente de partição pode ser desprezado, no
entanto.

Resumo

Imobilização de biocatali- A imobilização é uma técnica que consiste em prender


sadores células ou enzimas em uma matriz sólida porosa ou per-
meável. Geralmente a partícula com biocatalisadores
imobilizados tem formato esférico e a concentração de
substrato em seu interior é mínima no centro.

5
Velocidades de reação aparentes

Como a transferência de Uma vez que as concentrações de substrato variam


massa afeta a velocidade no interior do catalisador sólido, a velocidade/taxa de
de reação? reação também varia em função da posição. A taxa
com que o substrato reage localmente em uma célula
ou enzima depende apenas dos parâmetros cinéticos
da lei de velocidade e é chamada taxa verdadeira ou
intrínseca. Observe que os parâmetros cinéticos (por
exemplo, rmax e Km em uma reação enzimática descrita
pela Equação de Michaelis-Menten) para uma mesma
reação podem ter valores diferentes se medidos em
um biocatalisador livre ou imobilizado (parâmetros
intrínsecos). Isso ocorre porque a imobilização pode
danificar ou alterar a conformação de enzimas ou
provocar modificações no metabolismo das células ao
alterar o ambiente a que ela está exposta.

A mensuração da velocidade verdadeira de reação


localmente é complicada, e por isso é mais conveniente
estimar a velocidade de reação globalmente conside-
rando toda a partícula de catalisador. Em um sistema
fechado, a taxa de desaparecimento do substrato no
seio do líquido deve ser igual à taxa global de reação.
Essa velocidade de reação medida é chamada taxa
observada ou aparente.

Devido às resistências impostas pela transferência


de massa externa e interna, a velocidade de reação
aparente é menor do que a velocidade de reação que
seria obtida se fosse possível expor os biocatalisadores
diretamente ao meio, em uma reação homogênea.

A expressão da lei de velocidade de uma reação


heterogênea também é mais complexa do que a da ho-
mogênea, envolvendo parâmetros de transferência de
massa, como difusividade e coeficiente de convecção.
As taxas de reação e de transferência de massa não
são independentes em sistemas heterogêneos: a difu-
são interna depende do gradiente de concentração no
sistema, que por sua vez depende da taxa de consumo
de substrato em reação. A velocidade de reação, por
outro lado, depende da concentração de substrato e
essa concentração depende da transferência de massa.

Um dos objetivos da análise de reações heterogêneas é


determinar as influências relativas da transferência de
massa e da reação intrínseca na velocidade de reação
aparente. Pode-se supor, por exemplo, que se a rea-
ção intrínseca for muito lenta, mesmo com substrato
abundante, então a difusão interna deve ser rápida o
bastante para repor o que é consumido e nesse caso,
a taxa aparente da reação será aproximadamente
igual à taxa da reação intrínseca. Por outro lado, se
a velocidade de reação for muito rápida, é possível
que difusão interna seja lenta demais para repor o
substrato na proporção que é consumido e então a taxa
aparente da reação será próxima da taxa com que o
substrato se difunde pela partícula.

6
Figura 4: Balanço molar em uma casca esférica.[1]

Balanço de massa em
partícula esférica

Como se quantifica a ve- Existem critérios matemáticos para avaliar o quanto a


locidade de uma reação velocidade aparente da reação é afetada pela transfe-
heterogênea? rência de massa ou pela taxa de reação intrínseca. Uma
abordagem matemática da reação heterogênea neces-
sita primeiramente da aplicação dos balanços materiais
ao sistema. As seguintes hipóteses serão consideradas
para a modelagem matemática do sistema:
(i) a partícula é isotérmica. Os parâmetros cinéticos
de uma reação dependem da temperatura, mas os
gradientes de temperatura podem ser despreza-
dos em biocatalisadores imobilizados.
(ii) a transferência de massa ocorre apenas por difu-
são. Vamos considerar a partícula impermeável
ao fluido, de modo que a convecção é desprezível
nos poros.

(iii) a difusão obedece à lei de Fick com difusividade


constante. O valor da difusividade do sistema é
uma função complexa de características do sólido
e do substrato e pode variar com a posição.
(iv) A partícula é homogênea. Distribuição uniforme
de biocatalisadores.
(v) o coeficiente de partição é unitário. Não há des-
continuidade de concentração na interface. Vá-
lido para a maioria das biorreações.

(vi) estado estacionário. Válido se não há mudança na


atividade do catalisador por desativação enzimá-
tica, crescimento celular, etc.

7
Como se quantifica a ve- Considerando um catalisador esférico em estado esta-
locidade de uma reação cionário, vamos aplicar os balanços materiais a uma
heterogênea? casca esférica como mostrada na Figura 4.

O substrato entra na casca por difusão através de


uma superfície esférica com raio r + ∆r e sai por uma
superfície com raio r. No volume entre as duas su-
perfícies ocorre a reação – tradicionalmente usamos
rA para indicar a velocidade de reação, mas para não
haver confusão com o raio, vamos indicá-la por vA . O
balanço material no sistema fica, portanto

Entra − Sai + Reage = Acumula


! !
dCA 2 dCA
DAB 4πr − DAB 4πr + vA 4πr 2 ∆r = 0
2
dr
r+∆r
dr
r
dCA dC A
DAB (r 2 + 2r∆r + ∆r 2 ) − DAB r 2 + v r 2 ∆r = 0
A
dr r+∆r dr r

No limite quando ∆r → 0,

d2 CA 2 dCA
!
DAB + + vA = 0 (1)
dr 2 r dr

que é a equação geral para difusão com reação em


uma partícula de catalisador esférico unifome.

Podemos encontrar o perfil de concentração de


substrato ao longo da partícula resolvendo a Equa-
ção (1). Ela não pode ser integrada em sua forma atual,
no entanto, pois a velocidade de reação intrínseca
vA é, na maioria das vezes, uma função de CA . Na
próxima aula vamos estudar a resolução dessa equa-
ção diferencial para reações com cinética de ordem
zero, primeira ordem e que obedecem à equação de
Michaelis-Menten.

Resumo

Velocidade aparente de A velocidade observada ou aparente de reação é a


reação velocidade que uma reação heterogênea parece ter
combinando-se os efeitos da transferência de massa e
da velocidade intrínseca da reação. Essa velocidade
pode ser estimada com racionalizações sobre a etapa
limitante da reação ou calculada com mais precisão a
partir dos balanços.

Bibliografia
[1] P.M. Doran. (2013). Bioprocess Engineering Principles. Academic Press. 2a ed., Capítulo 13.
[2] H.S. Fogler. (2004). Elementos de Engenharia das Reações Químicas, 4a ed. Capítulos 11 e 12.

Você também pode gostar