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Aula 6: Mudança de Escala

Prof. Gabriel de Castro Fonseca (DQBIO/UFSJ)


Projeto de Biorreatores

Contextualização

O que é mudança de es- Imagine que uma bruxa entediada lançou um feitiço
cala e qual a sua impor- em um rato para que ele ficasse do tamanho de um
tância? elefante para ver o que acontecia. Primeiro o ratofante
começou a suar. Depois a derreter até, para espanto da
bruxa, se transformar em uma poça de sete toneladas
de gosma cozida. A bruxa e principalmente o rato fo-
ram vítimas de uma mudança de escala mal planejada!
Um rato tem metabolismo muito mais rápido que um
elefante, seu coração bate algumas centenas de vezes
por minuto enquanto o do elefante não chega a trinta.
Um rato com metabolismo de rato, mas tamanho de
elefante vai gerar muito mais calor do que é capaz de
trocar com o meio e terá um fim trágico se a bruxa
não lembrar de ajustar seu metabolismo para a nova
dimensão.

Os mesmos cuidados são necessários para mudar


a escala de um biorreator. É muito comum na fase de
projeto de um bioprocesso realizar testes de laboratório
em escala reduzida (escala de bancada). É bem mais
barato fazer testes em um reator de dez litros do que
construir imediatamente um reator industrial de dez
milhões de litros e descobrir tarde demais que ele não
funciona como pretendido. A mudança de uma escala
menor para uma maior é chamada de scale-up.

Por exemplo, digamos que você estudou um pequeno


biorreator no laboratório e agora deseja construir
uma versão com volume mil vezes maior. Você pode
multiplicar o diâmetro e a altura do equipamento por
dez. Mas o que você deveria fazer com a velocidade
de rotação do impelidor nesse caso? Manter igual?
Dez vezes maior? Mil vezes? Essa não é uma questão
simples de responder, é preciso entender como essas
variáveis afetam o sistema em diferentes dimensões.

O procedimento contrário ocorre quando já se dis-


põe de um processo industrial e deseja-se construir
uma miniatura desse processo no qual se possa fazer
ensaios que permitam explorar novas condições de
operação do processo sem necessidade de interromper
a produção. A mudança de escala de uma dimensão
maior para uma menor é chamada de scale-down.

Via de regra, antes de se passar da escala de bancada


(alguns litros) para a escala industrial ou vice-versa
(milhares de litros), toma-se um passo intermediário,
que é a “escala piloto” (dezenas ou centenas de litros)
para estudar como a variação de escala altera as
condições do processo.

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Figura 1: Escalas de trabalho no projeto de biorreatores

Dificuldades

Quais são os desafios en- O objetivo da mudança de escala é reproduzir um


volvidos em uma mu- processo em uma dimensão diferente ao mesmo tempo
dança de escala? em que se preserva os valores das principais variáveis
de processo. Por exemplo, no caso de um biorreator
é desejável manter a mesma conversão e a mesma
produtividade. Para isso pode ser necessário manter
a mesma temperatura, pH, condições de mistura,
transferência de oxigênio, consumo de oxigênio e
cisalhamento, por exemplo. No entanto, em geral não
é possível preservar todas essas variáveis ao mesmo
tempo.

Por exemplo, uma bolha de ar com um milímetro


de diâmetro tem um efeito nas condições hidrodinâmi-
cas de um biorreator. Mas em um biorreator mil vezes
maior não é possível e nem desejável criar bolhas mil
vezes maiores, e isso poder alterar o coeficiente de
transferência de oxigênio e as condições de mistura do
meio.

A mistura em reatores muito grandes tende a ser


menos homogênea porque a velocidade de agitação
necessária para isso pode exigir uma quantidade de
potência impeditiva ou pode tornar o cisalhamento
no interior do reator perigoso para a integridade das
células.

Assim, ao aumentar a escala de um biorreator, é


preciso adotar um ou mais critérios para ampliação de
escala, ou seja, fazer uma escolha das variáveis que se
deseja manter semelhantes e das que se aceita variar.

Dependendo das características do processo, um


único critério pode ser suficiente. Em outros, pode ser
necessário um critério para conservar as característi-
cas de agitação do sistema em uma escala diferente
e outro critério para conservar as características de
aeração.

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Critérios para ampliação
de escala

Como se escolhe um cri- Ao se planejar uma ampliação de escala, em geral


tério para mudança de es- preserva-se a geometria do reator. Temperatura e pH
cala? são variáveis importantes demais para um bioprocessos
e devem sempre ser preservadas. Existem muitos crité-
rios possíveis para ampliação de escala e seria exaus-
tivo citar todos eles. Nesta aula mostraremos alguns
dos principais visando ilustrar o modo como esses cri-
térios são definidos e utilizados.
• preservação da razão entre potência e volume (P /V );

• preservação da velocidade na ponta do impelidor (vtip );

• preservação da vazão específica de ar (φar ).

• preservação do coef. de transf. de oxigênio (kL a);

A escolha do(s) critério(s) de ampliação de escala a


ser(em) fixado(s) varia de processo para processo, pois
depende das características de cada um, como por
exemplo a reação ser homogênea ou heterogênea, e
nesse caso a demanda de oxigênio ser alta ou baixa; o
meio ser sensível ou não ao cisalhamento, etc.

Quando e como se usa Razão potência/volume constante: Este critério é


P /V como critério? amplamente utilizado na indústria, sobretudo para
reações anaeróbias (sistemas homogêneos), como a
produção de álcool e ácidos orgânicos.

Conforme vimos há algumas aulas, para reatores


do tipo tanque cilíndrico com chicanas e impelidores do
tipo disco de pás planas, no regime laminar (Re < 10)
e até certo ponto também no regime de transição
(Re < 104 ),
1
NP ∝ (1)
Re
Relembrando que NP é o número de potência e Re é o
número de Reynolds.
P
NP =
ω3 Di5 ρ
ωD2i ρ
Re =
µ
P µ
=⇒ ∝ (2)
ω3 Di5 ρ ρωDi2

No aumento de escala, procura-se preservar a tempe-


ratura e a pressão, de modo que propriedades físicas
como densidade (ρ) e viscosidade (µ, no caso de fluido
newtoniano) são mantidas constantes e portanto pos-
sam ser desconsideradas.

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Figura 2: Número de potência em função do Número de Reynolds
para o tanque agitado com dimensões padrão.

Quando e como se usa


P /V como critério? ω3 Di5
P∝
ωDi2
P ∝ ω2 Di3 (3)

Já no regime turbulento (Re > 104 ), NP é constante,


logo
P
= constante
ω3 Di5 ρ
P ∝ ω3 Di5 (4)

O volume do tanque é dado por

DT2
V =π H (5)
4 L
Onde DT é o diâmetro do tanque e HL é a altura da
coluna de líquido. Como se pretende manter a seme-
lhança geométrica na ampliação de escala e uma vez
que DT ∝ Di e HL ∝ Di (geralmente DT = HL = 3Di ),

V ∝ Di3 (6)

Dividindo-se as Equações (3) e (4) por (6)

P
∝ ω2 (regime laminar) (7)
V
P
∝ ω3 Di2 (regime turbulento) (8)
V
Portanto, para se manter a razão entre potência trans-
mitida e o volume do reator ao se mudar de uma escala
1 para uma escala 2, é preciso levar em conta o regime
de escoamento. Para o escoamento laminar (e de tran-
sição, no caso do impelidor tipo hélice)

ω12 = ω22 =⇒ ω1 = ω2 (9)

Para o escoamento turbulento

ω13 Di1
2
= ω23 Di2
2
(10)

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Quando e como se usa vtip Velocidade do impelidor constante: É importante
como critério? conservar a velocidade da extremidade do impelidor
(vtip ) quando as células no biorreator são muito sen-
síveis ao cisalhamento. Pode não ser necessário man-
ter vtip exatamente igual nas duas escalas, desde que
seu valor se mantenha na faixa aceitável entre 250 e
500 cm/s. Isso dá flexibilidade para se usar este critério
em conjunto com algum outro. A velocidade na extre-
midade do impelidor é dada por vtip = πDi ω. Assim, a
ampliação de uma escala 1 para uma escala 2 requer

Di1 ω1 = Di2 ω2 (11)

Quando e como se usa φar Vazão de ar específica constante: A vazão específica


como critério? de ar é definida como
Var Q
φar = = (12)
Vmeio tempo V

Essa grandeza geralmente é medida em “vvm”, que


significa volume de ar por volume de meio por minuto e
equivale à unidade min−1 . É o inverso do tempo espacial
do ar no biorreator.

Como não está relacionado à frequência de agita-


ção do impelidor, deve ser usado em conjunto com
algum outro critério de mudança de escala quando
há aeração mas uma fórmula para kL a não é bem
conhecida. Sabendo-se que V ∝ Di3 ,
!3
Q2 Di2
= (13)
Q1 Di1

Quando e como se usa kL a Coef. de transf. de O2 constante: Em bioprocessos


como critério? aeróbios, sobretudo os que envolvem alta demanda de
oxigênio, como a produção de antibióticos e fármacos
em geral, o coeficiente volumétrico de transferência de
oxigênio (kL a) costuma ser o critério de aeração mais
adequado para ampliação de escala, mas nem sempre
é bem conhecido.

Como o kL a é um parâmetro complicado de medir,


é preciso recorrer a correlações experimentais pouco
precisas para estimá-lo. Uma delas seria
 0,35 !−0,5
Q  Pg  −0,3 σ
kL a = 0, 30  p  Sc (14)
V Q 3 ρg 2 µ2 

σw

5
Quando e como se usa kL a Mais uma vez, podemos ignorar propriedades físicas
como critério? dependentes da temperatura e pressão, como densi-
dade, viscosidade, difusividade (que aparece no número
µ
de Schmidt, Sc = ρD ), tensão superficial (σ ) do meio,
O2
etc. Além disso, podemos considerar o volume do meio
V ∝ Di3 . Ficamos então com
!0,35
Q Pg
kL a ∝ 3 (15)
Di Q

Vimos também em uma aula anterior que


0,45
 P ωDi3 
 2
Pg ∝  0,56  (16)
Q

Considerando regime turbulento P ∝ ω3 Di5


 7 13 0,45
 ω Di 
Pg ∝  0,56 
Q 

ω1,10 Q0,56
=⇒ kL a ∝
D 0,95
Assim, uma mudança da escala 1 para a escala 2 pre-
servando o valor do kL a pode ser feita igualando-se

ω11,10 Q10,56 ω21,10 Q20,56


= (17)
D10,95 D20,95

E quanto aos outros crité- Outros critérios: Existem muitos critérios que podem
rios? ser escolhidos para o escalonamento além dos citados
acima, como a manutenção do número de Reynolds
constante (Re), bombeamento de líquido por unidade
de volume ( FVL ) constante, tempo necessário para
homogeneização da mistura constante (tm ), etc.

A manutenção do tempo de mistura constante (e


pequeno!) seria particularmente interessante em
bioprocessos e existem correlações para estimá-lo
que poderiam ser usadas para a definição do critério,
mas ao se passar de pequenas para grandes escalas,
o consumo de potência para manter tm1 = tm2 seria
proibitivamente grande.

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Tabela 1: Variação da frequência de rotação em uma ampliação de
escala 10 a 5000 L com φar = 0, 3vvm.
Critério de ampliação ω (rpm) (V = 5000 L)
P /V 175,9
kL a 91,3
vtip 88,2
tm 1174,9
FL /V 700
Re 11,1

Comparação entre critérios

Como os diferentes crité- Como exemplo de utilização dos critérios de ampliação


rios de mudança de escala de escala, suponha que se deseja ampliar a escala
se comparam? de um reator de 10 para 5000 L. As condições de
agitação e aeração na escala de bancada foram res-
pectivamente ω =700 rpm e VQ =0,3 vvm com regime de
escoamento é turbulento (Re > 105 ).

Sendo um bioprocesso aeróbio, é recomendável


usar o critério do kL a constante ou um dos critérios NA
e φar constante em conjunto com outro critério que
dê mais informação sobre as condições de agitação.
Vamos escolher a vazão específica de ar constante
(φar ). Esse critério só nos informa sobre o que fazer
com Di e Q durante a ampliação de escala. Precisamos
de outro critério para saber o que fazer com ω.

A Tabela 1 mostra uma comparação dos valores


da velocidade de rotação do impelidor (ω) para um pro-
cesso que muda da escala de 10 L para 5000 L quando
se usa como critério de ampliação φar = cte e diferentes
critérios complementares. Observa-se na tabela que a
escolha do critério kL a constante praticamente não se
diferencia de vtip constante, mostrando que neste caso
os dois critérios são praticamente intercambiáveis. Por
outro lado, a escolha do método tm e FL /V constante
exigiriam velocidades de rotação muito altas (alto con-
sumo de potência) e a escolha de Re a uma velocidade
muito baixa (mistura ruim).

Quando se realiza uma ampliação de escala com


base num dado critério mantendo-se a semelhança
geométrica, outras variáveis importantes do processo
também variam na ampliação. Variações bruscas em
alguma variável podem até inviabilizar o aumento de
escala nas condições pré-estabelecidas.

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Mudança de escala em reator tubular

Como ampliar a escala de Já demos bastante atenção para a mudança de escala


um reator tubular? em um reator de tanque agitado. Vamos discutir bre-
vemente agora o scale-up de reatores de escoamento
pistonado e outros reatores tubulares comparáveis a
ele, como o reator de leito fixo e o air-lift ou coluna de
bolhas.

Reatores tubulares são intrinsecamente mais difí-


ceis de mudar a escala do que tanques de mistura,
uma vez que a concentração de substrato decresce na
direção longitudinal. Qualquer ampliação significativa
no comprimento do reator pode levar ao esgotamento
de nutrientes importantes.

Uma maneira de superar essa limitação seria au-


mentar a vazão de alimentação ou a concentração
de substrato no reator, mas existem limites práticos
para essas soluções. O aumento na vazão exigiria uma
bomba mais potente para compensar a maior perda
de carga no equipamento. Aumentos na concentração
de substrato podem causar efeitos de inibição ou ser
limitados pela sua solubilidade no meio reacional, que
é uma questão muito delicada no caso das reações
aeróbias, por exemplo. Essa dificuldade com a mudança
de escala é um dos motivos porque reatores tubulares
são muito menos comuns do que tanques agitados em
escala industrial.

Bibliografia
[1] R. Dutta. (2008). Fundamentals of Biochemical Engineering. Springer. 1a ed., Capítulo 9.
[2] G.D. Najafpour. (2007). Biochemical Engineering and Biotechnology. Elsevier. 1a ed., Capítulo 6.
[3] Wei-Shou Hu (2017). Engineering Principles in Biotechnology. John Wiley & Sons. 1a ed., Capí-
tulo 9.
[4] W. Schmidell et al. (2001). Biotecnologia Industrial. Volume 2 - Engenharia Bioquímica. Edgard
Blücher, 1a ed., Capítulo 8.

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