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Dor Crônica e Terapia de Aceitação e Compromisso: um Caso Clínico/Chronic


Pain and Acceptance and Commitment Therapy: a Case Report ReSumo

Article  in  Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva · October 2014


DOI: 10.31505/rbtcc.v16i2.696

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2 authors:

Danielle Diniz De Sousa Ana Karina C. R. de-Farias

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Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento
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Revista Brasileira
ISSN 1982-3541 de Terapia Comportamental
2014, Vol. XVI, no. 2, 125 - 147 e Cognitiva

Dor Crônica e Terapia de Aceitação e


Compromisso: um Caso Clínico
Chronic Pain and Acceptance and Commitment Therapy:
a Case Report

Danielle Diniz de Sousa *


Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento

Ana Karina C. R. de-Farias **


Núcleo Regional de Atenção Domiciliar (NRAD - Gama),
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal

Resumo

A dor crônica é um fenômeno complexo que envolve múltiplos elementos biológicos, neuroquímicos, emo-
cionais, psicossociais e socioculturais. Tal patologia traz para a pessoa que a sente perdas sociais, familiares
e profissionais. O presente estudo teve como objetivo evidenciar a importância das estratégias de inter-
venção utilizadas pela Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) no bom desenvolvimento do processo
terapêutico, utilizando-se de um estudo de caso de dor crônica. Para isso, fez-se um apanhado histórico da
evolução da doença em nossa civilização, conceituou-se e classificou-se o termo dor crônica, explicando-o
de acordo com a Análise Comportamental Clínica. Foram realizadas 43 sessões de psicoterapia, ao longo
de 1 ano e 10 meses. As análises funcionais moleculares e molares, a compreensão das contingências atuais
e históricas, proporcionaram o acesso às condições estabelecedoras e mantenedoras dos padrões compor-
tamentais da cliente que favoreciam a permanência do quadro de dor crônica. A partir dessa compreensão,
intervenções terapêuticas utilizadas pela ACT foram de fundamental importância para a melhoria de quali-
dade de vida da cliente: promoveram a tolerância emocional e a aceitação em relação aos estados emocional
e físico vivenciados por ela, assim como possibilitaram mudanças comportamentais relevantes.

Palavras-chave: dor crônica; Análise Comportamental Clínica; Terapia de Aceitação e Compromisso.

* danielledsousa@hotmail.com
akdefarias@gmail.com
**

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Dor Crônica e Terapia de Aceitação e Compromisso: um Caso Clínico

Abstract

Chronic pain is a complex phenomenon that involves multiple biological, neurochemical, emotional, psy-
chosocial and sociocultural elements. This pathology causes social, family and professional losses in the
life of those who suffer it. The present study aimed to highlight the importance of intervention strategies
used by Acceptance and Commitment Therapy (ACT) in order to develop the therapeutic process, using a
chronic pain case study. Therefore, a historical overview about this disease evolution in our civilization
was conducted and chronic pain was conceptualized, classified and explained according to the Clinical
Behavior Analysis perspective. Forty-three psychotherapy sessions were carried out in a period of 1 year
and 10 months. The molecular and molar functional analysis, the understanding of historical and actual
contingencies, provided access to the establishing and maintaining conditions of the patient´s behavioral
patterns which enable the permanence of the chronic pain. Based on this, therapeutic interventions used by
ACT were of fundamental importance to the patient quality of life improvement: they promoted emotional
tolerance and acceptance in relation to the physical and emotional states experienced by the patient as well
as enabled relevant behavioral changes.

Keywords: chronic pain; Clinical Behavior Analysis; Acceptance and Commitment Therapy.

A dor é provavelmente o mais primitivo sofrimen- A International Association for the Study of Pain
to do homem, diante do qual, ao contrário do que (IASP), fundada em 1973, com o objetivo de integrar
acontece com o frio e a fome, ele fica totalmente as múltiplas áreas subjacentes ao estudo da dor, define
impotente. Embora com uma conotação desagradá- dor como “uma experiência sensorial e emocional de-
vel, acaba por exercer funções fundamentais para o sagradável, associada a lesões reais ou potenciais, ou
organismo, como alerta ou alarme, indicando que descrita em termos de tais lesões (...). A dor é sempre
alguma coisa não está bem, além de sinalizar um subjetiva. Cada indivíduo aprende a utilizar este ter-
desequilíbrio no organismo que desencadeia even- mo através de suas experiências prévias, relacionadas
tos fisiológicos para restaurar a homeostase (Gui- a danos” (Mersky, 1979, apud Portnoi, 1999, p. 13).
marães, 1999). Nessa concepção, a dor é considerada um fenômeno
multifatorial, cuja sensação e percepção variarão in-
Todas as pessoas, exceto os portadores de insensibi- dividualmente, de acordo com a influência de fatores
lidade congênita, sabem o que é dor e já a sentiram biológicos, psicológicos e sociais (Portnoi, 1999).
em algum momento de sua vida. Porém, é difícil
para as pessoas descreverem a própria dor, e mais Atualmente, os estudiosos da área rejeitam uma de-
difícil ainda é conhecermos e mensurarmos a ex- finição tradicional da dor diretamente relacionada à
periência de dor de outras pessoas. A dor é uma ex- natureza do tecido danificado. Possuem uma visão
periência individual com características únicas do mais flexível, reconhecendo as características indi-
organismo associada à sua história de vida e ao con- viduais e as variáveis psicossociais como mediado-
texto na qual ela ocorre. ras da experiência dolorosa (Guimarães, 1999).

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A dor pode ser vivenciada para cada pessoa com e, mais especialmente, terapêuticos, põe em cheque
muitas peculiaridades. Essas características podem o conhecimento e a paciência dos profissionais en-
também variar para uma mesma pessoa a cada situ- volvidos. Não poucas vezes os pacientes com dor
ação dolorosa. A descrição de uma condição de dor crônica são despachados de forma sumária por seus
depende de sua localização (se pontual ou difusa), clínicos, devido às queixas constantes de não me-
qualidade (formigamento, perfuração, etc.), intensi- lhoria, quaisquer que sejam os recursos terapêuticos
dade, frequência (ininterrupta ou episódica), nature- utilizados. Com o passar do tempo, a dor torna-se o
za (orgânica ou psicogênica), etiologia (variá­vel de- centro da vida do indivíduo e de sua família, e pas-
sencadeadora) e duração (tempo em que o episódio sa, ela mesma, a constituir-se como doença (Guima-
doloroso permanece) (Guimarães, 1999). rães, 1999; Lobato, 1992).

A classificação mais conhecida é a que se utiliza da Na sua forma crônica, a dor deixa de ter a função de
duração da dor como referencial, podendo ser aguda alerta e frequentemente dá origem a alterações fi-
ou crônica. A dor aguda tem duração relativamente siológicas (distúrbios do sono, apetite), emocionais
curta, de minutos a algumas semanas, e decorre de (depressão, ansiedade), comportamentais (incapa-
lesões teciduais, processos inflamatórios ou molés- cidade física, dependência de terceiros) e sociais
tias. Ainda que conhecida e sentida em algum mo- (conflitos familiares, problemas ocupacionais). Seu
mento da vida por todas as pessoas, a experiência diagnóstico e tratamento são mais difíceis, quando
de dor aguda é um processo complexo, que não se comparados à dor aguda (Portnoi, 1999).
limita à alteração dos tecidos, mas que põe em jogo
toda uma série de mecanismos neurofisiológicos, Diversas são as teorias, de cunho fisiológico e de
hormonais e psicológicos que vão caracterizar a re- cunho psicológico, que estudam os processos de
ação de alarme e preparar o organismo para a ação dor. Por se tratar de um estudo na área de Psicolo-
luta-fuga. Costuma ser acompanhada por alterações gia, o presente trabalho abordará as teorias de cunho
neurovegetativas e pode ser influenciada por fatores psicológico, especificamente as voltadas para uma
psicológicos, embora estes raramente tenham um abordagem comportamental. A Análise Compor-
papel primário na sua ocorrência. Costuma desapa- tamental Clínica (ACC) é de fundamental impor-
recer após o tratamento correto. A resposta emocio- tância para a compreensão do tema em questão, ao
nal básica do indivíduo à dor aguda, na medida em utilizar os pressupostos filosóficos do Behaviorismo
que ela representa um evento ameaçador, é a ansie- Radical que são: determinismo, externalismo, inte-
dade aguda e todas as reações físicas que a acom- racionismo, contextualismo, selecionismo e monis-
panham (Lobato, 1992; Portnoi, 1999; Teixeira & mo (Marçal, 2010; Skinner, 1953/2000).
Pimenta, 1994, apud Guimarães, 1999).
Na natureza, um evento não ocorre ao acaso, mas
A dor crônica tem duração extensa, de vários meses em decorrência de fenômenos que aconteceram an-
a vários anos, e geralmente acompanha o processo teriormente. Desta forma, o presente pode ser ex-
da doença ou está associada a uma lesão já tratada. plicado a partir do passado e o futuro não pode ser
Complexa em termos fisiopatológicos, diagnósticos utilizado para explicar o presente. É desta concep-

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ção sobre o mundo natural que surge o conceito de consequentes (denominados reforçadores) fortale-
que a natureza é determinada e, como o ser humano cem a probabilidade de ocorrência de uma classe de
faz parte da natureza, deve ser interpretado a partir respostas que o produziram, enquanto que a apre-
de uma visão determinista, na qual o que determina sentação de estímulos aversivos ou punidores supri-
suas ações é o ambiente, ou seja, o que é externo ao mem essas respostas. Identificar relações entre os
comportamento deste ser humano. Entende-se por comportamentos dos indivíduos, seus antecedentes e
ambiente tudo a que o organismo é sensível, ou seja, consequências, é a essência da ACC. Porém, investi-
tudo que pode controlar comportamentos desse or- gar somente as contingências atuais não é suficiente.
ganismo, incluindo ele próprio e seus demais com- Análises mais amplas, como as análises molares, são
portamentos. Esta concepção externalista é contrá- necessárias por enfatizarem o papel da história geral
ria à visão mentalista, na qual o comportamento é de vida do indivíduo como determinante da forma
controlado, determinado por entidades internas ao como se comporta atualmente (Marçal, 2005).
organismo.
Vale ressaltar que o comportamento é multidetermi-
Comportamento é a forma pela qual os organismos nado. Ele precisa ser explicado por meio da intera-
interagem com o seu meio. Refere-se às atividades ção de variáveis que são filogenéticas, ontogenéti-
dos organismos que mantêm relações de contin- cas e culturais (Marçal, 2010; Skinner, 1981/2007).
gência (dependência) com o ambiente. Os com- As variáveis filogenéticas afetam o comportamento
portamentos são classificados como respondentes, na medida em que fornecem padrões constantes de
quando uma resposta é eliciada por um estímulo comportamento (instintos e padrões fixos de ações)
antecedente (e.g., comida na boca – evento antece- que servem à sobrevivência e à reprodução. As va-
dente – provoca salivação – resposta); e operantes, riáveis ontogenéticas (história de reforço e punição)
aqueles em que o organismo opera sobre o ambien- explicam a evolução do comportamento durante a
te, modifica este ambiente e tais modificações le- vida de um indivíduo, na medida em que modelam/
vam, por sua vez, a modificações no comportamento refinam o comportamento emitido. As variáveis cul-
subsequente (e.g., falar, dirigir um carro); públicos, turais alteram o comportamento social de um indi-
aqueles que outras pessoas podem observar dire- víduo (Baum, 1994/1999).
tamente (e.g., fazer contas em um papel, chorar);
privados, aqueles que podem ser diretamente per- Pensando em dor como um comportamento, tem-se
cebidos e observados somente pela pessoa que se o entendimento de que ela não acontece ao acaso,
comporta (e.g., sentir, pensar). Dessa forma, tanto sofre influência do meio em que o organismo viveu
os comportamentos públicos como os comporta- e vive, e também o influencia. Os processos histó-
mentos privados são determinados e provenientes ricos da espécie (variáveis filogenéticas) respon-
da interação do organismo com seu meio. dem pelas características do organismo que foram
selecionados ao longo da evolução, permitindo aos
Tais comportamentos ocorrem dentro de um contex- indivíduos sentirem dor ao terem contato com cer-
to e são determinados de acordo com um modelo de tas condições do ambiente. Ao longo da evolução,
seleção por consequências, ou seja, certos estímulos também foram selecionadas outras características

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do organismo que permitem ao indivíduo aprender vendo um comportamento privado e a comunidade


com suas experiências dolorosas particulares, sua verbal não tem acesso aos estímulos que controlam
história de vida (variáveis ontogenéticas). O relato o relato. Porém, a linguagem possibilitou a pessoa a
da dor é reforçado pelas práticas culturais de um identificar e descrever muitos de seus estados orgâni-
grupo (Hunziker, 2010). Assim, o conceito de dor é cos. Assim, os significados da dor são respostas aos
individual por um caminho próprio de cada pessoa estímulos privados, mas também produtos das con-
e do meio sócio-cultural a que pertence. Portanto, a tingências sociais. As explicações variam de acordo
percepção de dor no adulto é essencialmente função com os tipos de respostas aceitas pela comunidade
das experiências que teve durante o seu desenvolvi- verbal. Nesse contexto, a dor adquire dupla função.
mento (Menegatti, Amorim & Avi, 2005). É considerada como respondente na medida em que
está correlacionada a algum estímulo antecedente
Ainda é pressuposto filosófico do Behaviorismo Ra- (e.g., um ferimento). Porém, se o problema de dor
dical que os seres, tanto humanos como não-huma- crônica, juntamente com a pessoa que a tem, estão
nos, têm uma única natureza, que é a material. Tan- inseridos em um contexto, que pode ser entendido
to os comportamentos públicos quanto os privados como o ambiente que oferece reforçamento contin-
ocorrem na mesma dimensão natural. Skinner afasta gente à dor, então, pode-se desenvolver um problema
a metafísica, o que vai além do físico (por exemplo, de dor operante (Martins & Vandenberghe, 2006).
a mente, a consciência), do saber científico e acaba
com o dualismo mente-corpo, um problema con- Quando afetado pela dor, o indivíduo acaba sinali-
ceitual herdado da Filosofia (Skinner, 1974/1982). zando (com contrações faciais, movimentos brus-
Quem se comporta é o organismo e não a mente. cos) para sua comunidade verbal este aspecto de
sua experiência privada, o que permite que possa
Nessa concepção monista, dor ou sofrimento são ser socorrido quando entra em contato com estímu-
igualmente membros de uma grande classe de com- los danosos. Por esta razão, parte do aprendizado
portamentos denominados sentimentos, que têm social se ocupa em identificar os estímulos pré-a-
como características comuns o fato de serem priva- versivos condicionados e as respostas que eles pro-
dos, ou seja, diretamente acessíveis apenas ao indi- vocam, para que se tenha maior controle sobre o
víduo que os sentem. O que sentimos são condições aparecimento e a atenuação ou eliminação da dor.
corporais que aprendemos a discriminar/nomear por Por observações públicas de eventos que produzem
intermédio do reforçamento da comunidade verbal dores e nossas reações reflexas a eles, a comunida-
(Skinner, 1989/1991). Uma comunidade verbal en- de verbal ensina o indivíduo a verbalizar sobre o
sina o indivíduo a emitir uma dada resposta verbal fenômeno doloroso. Assim, o indivíduo, de forma
provendo estímulos reforçadores quando esta res- geral, aprende a sinalizar para os outros que sente
posta ocorre na presença de um dado estímulo dis- dor por meio do comportamento verbal (Wielenska
criminativo (Baum, 1994/1999; Tourinho, 2006). & Banaco, 2010).
Desta forma, a consciência que temos do que senti-
mos dentro de nós é resultado de uma construção so- A comunidade verbal tem, então, um papel impor-
cial. Quando alguém descreve a sua dor, está descre- tante e determinante na forma como as pessoas sen-

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tem e verbalizam seus comportamentos privados. mento pode tornar-se menos sensível às alterações
Acaba por ensinar a forma como nos comportamos das contingências ambientais. O comportamento
diante do mundo, o nosso conhecimento a respeito aprendido por exposição direta é, por outro lado,
desse mundo e nosso conhecimento a respeito de mais sensível às mudanças de contingências que o
nós mesmos, ou seja, nosso autoconhecimento. O aprendido por regras. Assim, caso a relação entre
autoconhecimento, na ACC, pode ser concebido em resposta e as consequências se modifique, o com-
termos de uma discriminação de estados privados, portamento governado por regras levará mais tempo
instalada a partir do reforçamento de discrimina- para se adaptar a essa nova condição (Lowe, 1984,
ções de eventos públicos. Corresponde, ainda, a apud Tourinho, 2006). Tal insensibilidade propor-
uma discriminação de estímulos gerados pelo pró- ciona pouca variabilidade comportamental.
prio indivíduo que se conhece, isto é, autoconhe-
cimento é autodiscriminação (Skinner, 1974/1982; Pensando em dor crônica como um comportamento
Tourinho, 2006). operante, ou seja, sua probabilidade de ocorrência
é função dos eventos que a antecedem e a seguem,
É importante ressaltar que o indivíduo só se enga- pode-se falar que ter/sentir dor é uma forma de o in-
ja em comportamentos autodiscriminativos a partir divíduo expressar o conhecimento que tem a respei-
de contingências providas pela comunidade verbal. to de si mesmo, de autodiscriminar-se, de expor sua
Skinner (1974/1982) cita que o autoconhecimento é subjetividade. Este comportamento foi reforçado ao
apontado como requisito para que o indivíduo ela- longo de uma história de vida, a partir do momento
bore regras que digam respeito ao próprio compor- em que a comunidade verbal lhe ensinou a se co-
tamento. A regra é um estímulo verbal antecedente municar dessa maneira. A dor crônica torna-se uma
que descreve/especifica as contingências. O concei- parte real da condição presente do indivíduo, uma
to de comportamento governado por regras é utili- característica definidora de sua própria identidade.
zado para referir-se ao caso do indivíduo que, ao ser Queixar-se da dor acaba por ter, assim, uma função
exposto a uma dada situação, já possui informações que não é a de apenas sinalizar estímulos nocivos
de como comportar-se a fim de obter os reforços que colocam a saúde e sobrevivência em risco. Pas-
ali disponíveis. Sendo assim, o comportamento foi sa a ser, também, um importante meio de obtenção
estabelecido sem que o indivíduo precisasse se ex- ou de atenuação de situações aversivas (Wielenska
por às contingências originais da situação até que & Banaco, 2010). O indivíduo passa a ter acesso a
seu comportamento fosse por elas modelado. São alguns ganhos que muitas vezes não são possíveis
operantes verbais com múltiplas funções, podendo pela própria inabilidade em consegui-los.
alterar a função de estímulos discriminativos, de
operações estabelecedoras e de estímulos punidores Elaborando regras a respeito do próprio comporta-
e reforçadores (Skinner, 1969/1984). mento de dor, o indivíduo vivencia situações sob o
controle de estímulos que lhe permitiram se com-
Porém, quando o indivíduo segue uma regra, pode portar de uma maneira adequada em momentos
comportar-se de acordo com ela mesmo que as con- anteriores. Desta forma, fica insensível às novas
tingências sejam alteradas. Isto é, seu comporta- contingências ocasionadas pelas mudanças de con-

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textos. Comportamentos que antes eram reforça- As estratégias de fuga e esquiva podem ser eficazes
dos positivamente, agora são punidos ou colocados para lidar com níveis baixos de estimulação aversiva.
em extinção. Tal insensibilidade às contingências Porém, a utilização desta estratégia para lidar com
permite o desenvolvimento de padrões tidos como estímulos dolorosos intensos aumenta consideravel-
“inadequados”, tais como fuga e esquiva diante de mente os níveis de estresse e a magnitude da dor. O
contextos que agora são aversivos. processo de esquiva ainda retira do indivíduo refor-
çadores essenciais em sua vida (Queiroz, 2009).
O organismo evita uma condição aversiva quando
age no sentido de reduzir qualquer indicação de A dor, nas suas diferentes nuances, é um sentimen-
perda de coisas que são reforçadoras para ele (um to inerente à vida: pode ser minimizada, mas não
evento importante, pessoas significativas) (Skin- excluída; pode ser benéfica, necessária à sobrevi-
ner, 1953/2000). Desse modo, quando um estímu- vência, mas pode também se tornar um problema.
lo aversivo se aproxima, qualquer comportamento O enfrentamento dessas contingências, que pode
que converta o estímulo em menos inofensivo será depender de haver ou não alternativas vigentes, vai
reforçado. Assim, a dor, mesmo sendo aversiva, determinar a qualidade de vida dos indivíduos a elas
pode ser bem sucedida por distanciar da pessoa submetidos (Hunziker, 2010).
outra estimulação ainda mais aversiva (Queiroz,
2009). Nesse sentido, as tentativas de solucionar os proble-
mas são frequentemente ineficazes e geram frustra-
A esquiva emocional impede que a pessoa entre ção, sentimentos de invalidez, angústia, desespero,
em contato com as contingências reais em sua isolamento, culpa, intolerância à dor e, sobretudo,
vida. No contexto da dor, a experiência dolorosa desamparo resultante da busca incessante e sem
é reforçada quando a pessoa abandona atividades sucesso pelo controle da dor e de todos os senti-
como o trabalho, vida social e atitudes que pode- mentos advindos dela. É atuando nesse contexto de
riam melhorar sua qualidade de vida, tornando tentativas de controle do que a pessoa sente que a
mais poderosos os comportamentos de dor. Estes Terapia de Aceitação e Compromisso (Acceptance
comportamentos associados a estratégias de esqui- and Commitment Therapy – ACT) tem um papel
va aumentam a probabilidade de novas respostas fundamental, pois, ao abandonar a luta contra a dor,
aversivas e dolorosas, estabelecendo uma fonte de a pessoa pode redirecionar a sua vida e abandonar
manutenção da dor. Nesse círculo vicioso, novos tentativas improdutivas de controlá-la.
papéis e significados vão sendo atribuídos à dor,
diante das adversidades, dos relacionamentos e A ACT, abordagem terapêutica desenvolvida por
dos estressores do cotidiano. A dor se torna uma Hayes e Wilson, em 1999, faz parte da chamada
estratégia para solução de problemas, um recurso “terceira onda” na Terapia Comportamental, por
utilizado para substituir os comportamentos de to- dar um novo enfoque à prática clínica, trazendo
mada de decisões assertivas e, assim, o repertório uma visão contextual de eventos privados onde an-
sócio-verbal da pessoa fica sob controle aversivo teriormente dominaram tentativas diretas de con-
(Martins & Vandenberghe, 2007). trolar e modificar sentimentos e pensamentos. É

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um enfoque psicoterapêutico embasado na Análise evitá-las para não entrar em contato com tais even-
do Comportamento que tem como objetivo desen- tos (Dutra, 2010; Silva & de-Farias, 2013).
volver comportamentos concorrentes aos compor-
tamentos “inadequados” que são mantidos em de- A ACT define esquiva experiencial como uma ten-
corrência dos contextos sócio-verbais presentes na tativa de não sentir sinais, sensações, sentimentos e
comunidade do indivíduo, permitindo que as pes- pensamentos. A pessoa que aprende a evitar pensa-
soas experienciem mais diretamente o mundo, para mentos negativos, emoções desagradáveis ou outros
que o seu comportamento se torne mais flexível e as sinais privados aversivos, pode se sentir melhor em
suas ações mais consistentes com os seus valores. curto prazo, mas perde, ao mesmo tempo, o contato
As tentativas de controle levariam à não aceitação e com fontes de informação valiosas sobre o que está
esquiva de determinados sentimentos e à fusão cog- ocorrendo em sua vida, além de não obter os bene-
nitiva como forma de solucionar problemas psicoló- fícios do autoconhecimento advindos de emoções
gicos. A abordagem é direcionada para a (i) promo- que sinalizam o tipo de contingência em operação
ção da desfusão cognitiva; (ii) para a aceitação, que (Dutra, 2010; Hayes, Strosahl & Wilson, 1999).
significa vivenciar eventos privados (pensamentos,
sentimentos, sensações corpóreas e imagens ou No intuito de enfraquecer os padrões de esquiva ex-
sentimentos referentes à história de vida) de forma periencial, a ACT utiliza-se de metáforas, exercícios
plena, isto é, com redução da esquiva experiencial; e paradoxos procurando promover a aceitação das
e (iii) para o aumento da tolerância emocional no ambiguidades e das contradições da realidade, de-
contexto terapêutico. A ACT procura construir um senvolvimento de padrões interpessoais novos, des-
trabalho curativo visando mudanças profundas nas coberta e explicação de valores. Com isso, altera-se
táticas de vida do paciente, que estão relacionadas a função dos estímulos aversivos e estabelecem-se
às melhoras em termos de remissão da dor e quali- condições que ajudem a conscientizar a pessoa de
dade de vida (Dutra, 2010). que suas emoções são produtos de contingências
ambientais (Dutra, 2010; Vandenberghe, 2005).
O comportamento governado por regras, segundo
essa abordagem, pode favorecer o surgimento de A sociedade estabelece uma série de contextos ver-
padrões comportamentais como a esquiva experien- bais que alteram nossa compreensão e dificultam
cial. Um sujeito pode esquivar-se de situações com a convivência com os sentimentos. Geralmente,
as quais ele nunca teve contato, mas que são verbal- quando os clientes chegam à terapia, não só têm
mente relacionadas a estímulos aversivos condicio- problemas, mas lutam contra eles, e acreditam que
nados em sua história de aprendizagem e passam a são causados por algo, que devam fazer algo para
compartilhar as funções desses. Com isso, o reper- resolvê-los ou controlá-los e que tais problemas são
tório comportamental fica empobrecido e mantido insolúveis (Hayes, 1987).
por estimulação aversiva. A esquiva experiencial
ocorre quando eventos privados passam a ser alvos Três aspectos do contexto sócio-verbal normal da
de controle verbal. Quando as experiências privadas ação humana contribuem para o estabelecimento
são produtos de eventos aversivos, a pessoa passa a dos fatores citados acima: o impacto do significado

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Danielle Diniz de Sousa – Ana Karina C. R. de-Farias

literal dos eventos verbais sobre o comportamento sas devem mudar antes que outras possam fazê-lo.
(contexto da literalidade); a aceitação de razões ver- Se as ações são causadas por eventos internos, para
bais, dadas como explicações válidas para o com- se conseguir uma mudança de ação, é necessário,
portamento individual (contexto de dar razões); o primeiro, controlar os pensamentos e sentimentos
treinamento social no sentido de que um controle que as geram (Brandão, 1999; Hayes, 1987).
cognitivo e emocional pode e deveria ser atingido
como meio para viver uma vida bem sucedida (con- Segundo o manual escrito por Hayes e Wilson, em
texto do controle) (Brandão, 1999). 1999, existem seis diferentes processos, que são as
metas centrais de intervenção na ACT. A combina-
No contexto da literalidade, as palavras ganham sig- ção desses processos pretende alcançar a flexibili-
nificados e os eventos são categorizados do ponto de dade psicológica com a quebra dos contextos cita-
vista conceitual, com base na maneira como a comu- dos anteriormente, ou seja, a habilidade de um ser
nidade verbal refresca constantemente as relações humano consciente em experienciar por completo
entre vários estímulos. As palavras passam a signifi- os resultados emocionais e cognitivos e em alterar o
car mais coisas além daquelas a que elas se relacio- seu comportamento em prol de valores escolhidos.
nam diretamente, podendo evocar comportamentos A primeira meta consiste em estabelecer um esta-
públicos e privados “inadequados”, uma vez que a do de desamparo criativo. Aqui, o principal objeti-
pessoa pode ignorar o responder com base na utili- vo é mostrar ao cliente que, dentro do contexto no
dade experimentada (Brandão, 1999; Hayes, 1987). qual ele trabalha (literalidade, razão e controle), não
No entanto, nesse contexto, não acontece necessa- existe uma solução. Cria-se uma nova comunidade
riamente um processo verbal consciente. As palavras verbal que opere dentro de um contexto diferente.
realmente se tornam as coisas às quais se referem. Para isso, desafiam-se esses contextos, comportan-
Assim, quando uma pessoa ouve “você é preguiço- do-se de uma maneira que não se encaixe neles. A
sa”, o comportamento dela sob esse contexto é o de ACT utiliza-se do paradoxo, uma maneira rápida
se comportar como se fosse de fato preguiçosa, e não de afrouxar o sistema verbal com o qual a pessoa
como se apenas tivesse ouvido uma frase. chega à terapia, a partir do momento em que coloca
o cliente em uma posição insustentável (Brandão,
No contexto de dar razões, certos eventos explicam 1999; Hayes, 1987).
outros. A comunidade verbal reforça relações en-
tre pensamentos ou sentimentos e ações, mantendo Na segunda, afirma-se que o problema está nas ten-
a ideia de que os eventos privados são as causas do tativas de controlar seus pensamentos e sentimen-
comportamento. Sendo assim, as pessoas acabam tos. O objetivo é mostrar ao cliente que a forma pela
por obter ganhos secundários por atribuírem suas qual fomos socializados é que faz parecer que even-
mudanças comportamentais à ocorrência de compor- tos privados necessitem ser controlados e que essa
tamentos privados (Brandão, 1999; Hayes, 1987). tentativa de controle é que se constitui no problema.
A terceira meta permite distinguir as pessoas de seu
Já o contexto do controle é consequência dos dois comportamento. Seu objetivo é levar o cliente a dis-
primeiros contextos. Aqui se acredita que certas coi- criminar a pessoa que ele chama de EU e o proble-

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Dor Crônica e Terapia de Aceitação e Compromisso: um Caso Clínico

ma de comportamento que o cliente quer eliminar. soa. Tal fato é ainda mais reforçado pela comunida-
Separar o que a pessoa é, faz, do que ela pensa, sen- de verbal que ensina que a incapacidade de resolver
te (Brandão, 1999; Hayes, 1987). a dor é uma falta de controle (Vandenberghe, 2005).
A proposta da ACT é, então, abandonar as tentativas
Na quarta, escolhe-se e valoriza-se uma direção. O de controlar a dor, o que implica a necessidade de
objetivo é levar o cliente a escolher mudar ações e reconstruir novos contextos sócio-verbais, reconhe-
não sentimentos, pois a ação é passível de contro- cendo-a e aceitando-a como algo que faz parte de
le, enquanto sentimentos e pensamentos não o são. sua vida, descobrindo que viver com dor não impli-
Abandonar a luta é o objetivo da quinta meta. Le- ca incapacidade, que vale a pena viver mesmo com
va-se o cliente a deixar de lutar contra seus pensa- ela. O presente trabalho tem como objetivo eviden-
mentos e sentimentos, e a aceitá-los. É importante ciar a importância das estratégias de intervenção da
que a pessoa vivencie as sensações, sentimentos e ACT no desenvolvimento do processo terapêutico,
pensamentos dos quais se esquivava. Na sexta meta, utilizando-se de um caso de dor crônica.
assume-se o compromisso com a mudança. Aqui a
pessoa está preparada para empreender uma ação Caso Clínico
diretiva para mudar a qualidade de sua vida. Os
eventos privados são desconsiderados como justifi- Joana, 48 anos, casada, professora, buscou psicote-
cativa para não agir (Brandão, 1999; Hayes, 1987). rapia por prescrição da reumatologista. O diagnósti-
O alvo não é mudar os conteúdos dos problemas, co de dor crônica foi formulado 2 anos antes de ela
mas buscar a transformação mais ampla dos con- procurar a terapia, mas a cliente vinha consultando
textos que os mantêm. Muito disso passa pelo jogo médicos há 5 anos, na tentativa de encontrar uma
dialético de aceitação da vivência como ela é, e de justificativa e solução para as constantes dores que
compromisso com a mudança, de aceitação dos sentia pelo corpo e que a impediam de desenvolver
eventos privados aversivos e de contato intenso com algumas de suas atividades.
as contingências (Cordova & Kohlenberg, 1994;
Hayes, 2002, apud Vandenberghe, 2005). Inicialmente, não relatou uma queixa específica:
“estou aqui, no consultório, a pedido de minha
Na ACT, o comportamento de dor é considerado na médica e não sei como uma psicóloga poderia me
sua função estratégica de relacionar-se com os ou- ajudar, pois minhas dores são físicas, estão no meu
tros e também nos seus aspectos privados, na forma corpo”. Na primeira sessão, enfatizou, por várias
como a pessoa a usa para definir a experiência de si, vezes: “não invento as dores, realmente as sinto”.
dando sentido aos seus sentimentos. Para a pessoa
que sofre de dor crônica, a perda de papeis sociais, No decorrer dos atendimentos, foram identificados
familiares e profissionais pode levar a uma crise de alguns padrões comportamentais (e.g., baixo repertó-
significado da vida. A não aceitação de todo o pro- rio para enfrentamento, fuga e esquiva de condições
cesso está no fato de que essa dor ocorre na ausên- aversivas, busca de controle em diversas situações,
cia de um dado que possa justificá-la. A inabilidade necessidade de validação e aceitação por parte do ou-
de fugir de todo esse problema desqualifica a pes- tro, déficit de habilidades sociais, grande controle por

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Danielle Diniz de Sousa – Ana Karina C. R. de-Farias

regras) que determinavam a manutenção de alguns Trabalhou-se a questão de que a dor crônica era um
comportamentos “inadequados” de Joana. fato em sua vida e que provavelmente essa situa-
ção iria acompanhá-la por longos períodos. Assim,
Até o momento em que o presente trabalho foi re- escolhas precisariam ser tomadas, apesar do custo
digido, haviam sido realizadas 43 sessões de psi- emocional que isso lhe exigiria. Ela poderia con-
coterapia, com duração de 50 minutos cada, ao tinuar controlando sua dor e se vitimizando diante
longo de 1 ano e 10 meses, com alguns períodos disso ou poderia aceitar sua condição física, tole-
de interrupção. Em primeiro lugar, procurou-se de- rar seus sentimentos e pensamentos e procurar ter
senvolver uma relação terapêutica intensa, pautada acesso a reforçadores que lhe proporcionassem uma
no acolhimento, audiência não punitiva, validação melhor qualidade de vida. A dor poderia ser um
dos sentimentos apresentados, transparência e con- grande limitador para a realização de suas ativida-
fiança. Isso foi de suma importância ao se levar em des. Porém, a cliente não vivenciava uma condição
consideração que Joana vinha de um processo de frequente de dor, com crises constantes, a ponto de
privação de reforçadores sociais. essa condição a impedir de realizar tais atividades.

Os comportamentos da cliente estavam sob controle Ferramentas como a utilização de exercícios práticos
de reforçamento positivo, reforçamento negativo e e metáforas foram essenciais, além de estabelecer
punição. Tais contingências levavam Joana a inte- um conjunto de novas contingências diferentes das
ragir com seu meio de forma contraditória e “ina- vivenciadas pela cliente e enfraquecer o domínio da
dequada”, pois ora recebia atenção e era isenta de linguagem sobre a sua experiência. Foram feitos, ain-
algumas responsabilidades, ora recebia críticas por da, questionamentos reflexivos (nos quais a terapeu-
não desenvolver as atividades do trabalho e de casa. ta se isentou de emitir regras para a cliente) sobre a
O comportamento queixoso em relação às dores que condição atual na qual a cliente vivia (relação com
sentia também era punido pelas pessoas que viviam esposo, filhas, colegas), que consequências a dor lhe
à sua volta. trazia, em que momento surgiu a primeira crise de
dor, o que acontecia antes e depois de ter crises e
O estabelecimento de vínculo de confiança foi como a sua forma de agir impactava as pessoas que
necessário para que a cliente relatasse aconteci- viviam à sua volta. Essas questões favoreceram o es-
mentos aversivos importantes em sua vida e que clarecimento dos contextos familiar, laboral, social
estavam diretamente relacionados ao quadro de de Joana. Além disso, questionamentos sobre a his-
dor crônica. Era necessário trabalhar a aceitação tória de vida da cliente, como a dinâmica familiar de
de sua condição física, a tolerância emocional em quando era criança e adolescente, como enfrentava
relação a seus comportamentos privados, estabe- situações que não lhe eram agradáveis, como lida-
lecer novos contextos sócio-verbais diferentes da va com questões como responsabilidade, exigências,
literalidade, dar razões e controle, promover um aceitação por parte do outro, etc., foram importantes
estado de desfusão cognitiva, além de estabelecer para o acesso às contingências em que Joana esteve
estratégias para o compromisso com a mudança de inserida. Tais questionamentos tinham o objetivo de
comportamento. levar Joana a refletir que ela poderia viver de forma

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Dor Crônica e Terapia de Aceitação e Compromisso: um Caso Clínico

muito enriquecedora mesmo com a dor, o que signi- A partir disso, foi possível listar as atividades praze-
ficava reavaliar todos os seus valores. rosas que Joana poderia realmente voltar a fazer, as
quais lhe permitiriam tirar o foco da dor.
Quando se identificava que estava se esquivando
de algum assunto aversivo, por meio do choro ou Após a identificação de padrões comportamentais
desvio do tema, bloqueou-se esse padrão: a terapeu- relevantes (baixo repertório para enfrentamento,
ta fazia perguntas de forma a não permitir a fuga. fuga e esquiva de condições aversivas, busca de
Teve-se o cuidado de não tornar o momento muito controle em diversas situações, necessidade de va-
mais aversivo. lidação e aceitação por parte do outro, déficit de ha-
bilidades sociais, forte seguimento de regras), a te-
O registro de rotina, em que a cliente, por uma se- rapeuta modelou o comportamento verbal da cliente
mana, descreveu tudo o que fazia durante manhã, de modo que esta pudesse realizar análises funcio-
tarde e noite, mostrou que ações Joana fazia no de- nais moleculares e molares, descrevendo as relações
correr de seu dia que possibilitavam maior ou menor entre os padrões, os contextos onde ocorriam, e as
controle de seus comportamentos privados. Ficou consequências para determinadas respostas.
claro que a cliente, desde o momento em que foi
afastada de seu trabalho, deixou de ter uma rotina Devido às características comportamentais da clien-
fixa. Passava a maior parte de seu tempo imersa em te (a saber, forte controle por regras, com predomí-
perguntas sobre as causas de seus problemas. Vivia nio do contexto da literalidade), com o objetivo de
um estado de fusão cognitiva, no qual a literalidade, diminuir o controle dos contextos verbais, a tera-
o dar razões para seus problemas e o controlar tudo peuta eximiu-se de emitir regras. Seguindo os pres-
o que pensava e sentia faziam parte de seu contexto supostos da ACT, o processo terapêutico caracteri-
sócio-verbal. Além disso, esse contexto proporcio- zou-se por um enfoque mais vivencial que analítico,
nou uma privação de reforçadores sociais importan- mas não excluiu este último. Exercícios práticos fo-
tes, como o próprio afastamento do trabalho e a não ram bastante utilizados, juntamente com as demais
participação em atividades sociais. ferramentas da ACT (sendo alguns deles apresenta-
dos no Quadro 3). Essas vivências permitiram que a
Utilizou-se o exercício dos quadrantes com o intui- cliente levasse para fora do ambiente terapêutico o
to de Joana discriminar do que ela estava realmente que estava sendo trabalhado e favoreceram seu con-
abrindo mão. A forma como vinha se comportando, tato com as contingências naturais que determina-
sua maneira de ver e significar toda a situação leva- vam e mantinham seus comportamentos.
vam-na a uma perda de reforçadores significativos em
sua vida, o que justificava crises de depressão leve. Resultados
Nesta tarefa, a cliente tinha que pontuar as atividades
de que gostava e fazia; não gostava e fazia; gostava 1. Repertório e Contingências de Reforçamento
e não fazia; não gostava e não fazia. Evidenciou-se o Presentes no Início da Terapia
quanto a cliente, desde o diagnóstico de dor crônica, A vida da cliente girava em torno da dor crônica.
havia deixado de fazer coisas importantes para ela. Queixar-se de dor era a forma como ela se relacio-

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nava com o mundo à sua volta. Joana não trabalha- quando ela estava com 26 anos e a mãe ainda era
va desde que foi diagnosticada com a doença. Seu viva. Moraram no interior até o falecimento do pai.
ambiente de trabalho era exigente, favorecendo a Era casada e tinha duas filhas (de 20 e 17 anos).
dedicação constante. Esta dedicação levava a bons
resultados por parte da cliente que, por sua vez, Na infância e adolescência, tinha uma relação con-
contribuíam para o surgimento de novas exigências. flituosa com sua mãe. Comportava-se para evitar
punições imprevisíveis e, geralmente, incontro-
Em casa, assumia muitas responsabilidades e o ma- láveis. Não tinha carinho e atenção: “era como se
rido e as filhas não faziam as atividades domésticas. eu não existisse”. Mantinha um padrão de exigên-
Nas poucas relações sociais que estabelecia, era vis- cia consigo mesma na tentativa de agradá-la ou ter
ta como a pessoa que fazia tudo “certinho”. A dor acesso a um mínimo de atenção. O pai era quem
crônica invalidava tudo o que as pessoas pensavam lhe dava carinho, mas ele sofria as consequências
a seu respeito. Porém, obtinha ganhos como aten- do comportamento controlador e punitivo de sua es-
ção e se eximir de algumas responsabilidades que posa. Era omisso a tudo o que ela fazia com Joana.
vivenciava de uma forma aversiva. Relatou que, desde muito pequena, era responsável
pelos afazeres domésticos, pelos cuidados com o ir-
O ambiente social e familiar em que Joana vivia era mão mais novo e com os animais (a casa possuía um
sinalizador constante de ameaças relacionadas ao quintal grande e criavam patos, galinhas, porcos).
não ser eficiente, ser improdutiva, não dar “conta do Contava com a ajuda de uma empregada doméstica
recado”. Este controle aversivo estabelecia repertó- que apenas cozinhava. Os pais trabalhavam fora.
rios de fuga e esquiva. Supõe-se que a dor crônica
fosse um exemplo desse padrão comportamental. Tinha um tratamento diferenciado de seus irmãos.
Dormia no menor quarto da casa, não tinha roupas
Joana vivia em um ambiente com privações afeti- tão boas, não fazia suas refeições na mesma mesa
vas. Recebia atenção, carinho e cuidado do marido que os demais. Sua mãe a via como uma empregada,
e das filhas quando apresentava crises de dor: era e a punia com castigos e surras, sem motivo aparente.
levada para o hospital pelo marido, e as filhas per-
guntavam, com frequência, como se sentia. Passada Possuía uma relação distante com os irmãos. Eles
a crise, “tudo voltava para a normalidade, cada um apenas estudavam, enquanto ela tinha uma série de
na sua vida própria”. O marido voltava a trabalhar outras atividades para desenvolver. Em idade escolar
o dia inteiro e, em casa, envolvia-se com bebida; as mais avançada, os irmãos foram estudar na capital.
filhas ocupavam-se com suas atividades. Joana vol- Os quatro irmãos fizeram faculdade; a cliente con-
tava a sentir-se “como um zero à esquerda”. cluiu seu ensino médio, optando pelo Magistério.

2. Histórico da Cliente Aos 15 anos, as tias revelaram que era filha adotiva
e compreendeu o porquê de sua mãe se comportar
Familiar. Joana foi a segunda filha de cinco filhos, de forma tão diferente com ela. Nasceu de um rela-
sendo quatro mulheres e um homem. O pai faleceu cionamento extraconjugal do seu pai biológico, que

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era irmão do pai adotivo. Sua mãe adotiva se recu- zava serem esses, juntamente com suas filhas, seus
sou a adotá-la, mas o pai a quis. maiores troféus.

Aos 24 anos, casou-se. Relatou que não estava in- Afetivo-sexual. Ao longo de sua história, não vi-
teressada nele, mas ele insistiu tanto que acabaram venciou contingências que lhe permitiram desen-
iniciando o relacionamento. Joana viu uma oportu- volver um repertório adequado de habilidades so-
nidade de sair de casa, sair do controle de sua mãe. ciais. Sem amigos, possuía apenas colegas com os
Verbalizou que não teve orientações sobre sexo. Por quais mantinha relacionamentos superficiais. Teve
este motivo, engravidou logo após o casamento. como namorado somente seu marido.

Após o falecimento do pai, com o objetivo de con- A cliente sentia-se rejeitada e “mal olhada pelos
seguir algo melhor para sua família (marido desem- outros” por ser filha adotiva. Comportamentos pri-
pregado e filha pequena), mudou-se sozinha para a vados depreciativos e de menos-valia faziam parte
capital. Conseguiu trabalhar como auxiliar em uma de sua vida e influenciavam diretamente sua relação
creche e, 6 meses após, já com um trabalho para o com os que estavam à sua volta.
marido, trouxe-o com sua filha. Com 27 anos, teve sua
segunda filha. A responsabilidade de “fazer dar certo” Depois de casada, possuía um contato social restrito
era imposta a ela, pois o marido não concordou, ini- à sua família (marido e filhas) e às colegas do traba-
cialmente, com sua vinda para a nova cidade. lho. Afastada desse ambiente, devido à sua condi-
ção física, passava todo o tempo em sua residência.
Dez anos após a mudança, o marido começou a se Para Joana, a dor crônica era uma condição que a
envolver com bebida e relacionamentos extracon- impedia de manter os contatos sociais já existentes
jugais (os quais ele negava). Bebia todos os dias, e estabelecer novas relações. Quando a chamavam
as filhas reclamavam da ausência do pai. A clien- para sair, queixava-se de dores. Desta forma, acaba-
te afirmou que nunca teve um bom relacionamento va por ficar muito privada dessas relações e de todos
com seu marido, não existiam conversas, somente os reforçadores que elas poderiam proporcionar.
discussões. Joana pensava em separação, porém,
não possuía habilidades para tomar essa decisão. A Joana tinha como rotina passar o dia todo deitada
primeira crise de dor crônica da cliente aconteceu (em sua cama e no sofá da sala), assistir à televisão
após ter a certeza de que o marido a traía. e fazer algumas atividades domésticas no intuito de
evitar a cobrança do marido e filhas. Apresentava
Com as filhas, existiam conversas abertas (sobre variações no horário de dormir (entre 0h e 02 h) e,
sexo, drogas, estudos), carinho, compreensão e aco- por este motivo, acordava muito tarde (por volta das
lhimento. Sua maior preocupação era em que suas 11 h). Acordava cedo (5 h) somente quando necessi-
filhas não sofressem o que ela sofreu. tava agendar alguma consulta em hospital.

Aos 42 anos, concluiu curso superior e, no ano se- Não conseguia fazer atividades físicas, o que era in-
guinte, passou em um concurso público. Verbali- dicado para a melhoria de seu bem estar. Relatava

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não gostar desse tipo de atividade e seu estado físi- tos públicos e privados que indicavam depressão,
co não permitia fazer caminhadas ou hidroginásti- baixa autoestima, culpa e vitimização.
ca. Quando se dispunha a fazer algo nesse sentido,
solicitava a ajuda de uma das filhas ou marido. No 3. Análises Funcionais Moleculares
entanto, vinha às sessões de psicoterapia sozinha, e Molares
de ônibus. O consultório ficava cerca de 31 Km de
sua residência, e distante da parada de ônibus. Os Quadros 1 e 2 destacam, respectivamente, as aná-
Saúde. Joana relatava não apresentar sérios proble- lises funcionais moleculares e molares de alguns pa-
mas de saúde anteriores ao seu diagnóstico de dor drões comportamentais apresentados pela cliente no
crônica. No entanto, a cliente, mesmo antes do sur- decorrer dos atendimentos. Estas análises permitiram
gimento da dor crônica, apresentava comportamen- a formulação de hipóteses apresentadas abaixo.

Quadro 1. Algumas análises funcionais moleculares dos padrões comportamentais da cliente realizadas no decorrer da psicoterapia. Ref. é sigla de reforçamento.
â refere-se à baixa frequência. á refere-se à alta frequência.

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4. Hipóteses Levantadas pelo “inadequado”. Uma verbalização de Joana mos-


Terapeuta trava o quanto ela sentia o peso desses eventos:
“sempre levei o mundo nas costas”;
• O elevado grau de exigência e muitas responsa- • Os comportamentos de dor e de queixas ad-
bilidades contribuiu para o desenvolvimento e quiriram a função de se relacionar com o
manutenção de um repertório comportamental mundo e as pessoas à sua volta, aprendeu a

Quadro 2. Algumas análises funcionais molares dos padrões comportamentais da cliente realizadas no decorrer da psicoterapia.

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dar sentido à sua vida e a seus sentimentos • Enfraquecer padrões de esquiva experiencial,
por meio deles; promovendo a aceitação, tolerância emocional e
• A dor era também utilizada para se esquivar a capacidade para mudança;
de experiências dolorosas, situações aversivas, • Desenvolver novos repertórios comportamentais
como sair com marido, realizar atividades obri- que fossem mais favoráveis;
gatórias e indesejadas, voltar às suas atividades • Promover um estado de desfusão cognitiva; e
laborais; • Proporcionar o autoconhecimento.
• Como não se permitia expor-se a novas contin-
gências, acabou por ter um repertório comporta- 6. Mudanças Observadas
mental empobrecido, o que dificultava o contato
com novas situações, constituindo-se um círculo Até a elaboração do presente estudo, Joana havia
vicioso; apresentado progressos consideráveis em relação ao
• Os comportamentos de Joana possuíam forte início dos atendimentos. Era capaz de discriminar as
controle instrucional, favorecendo pouca flexibi- contingências que determinavam seus padrões com-
lidade/variabilidade de comportamentos públicos portamentais. O acesso e a compreensão das análises
e privados. Algumas de suas autorregras eram: funcionais moleculares e molares permitiram que en-
“Quem é forte consegue controlar seu sofrimento trasse em contato com as condições que mantinham
e pensamentos negativos. Como sou filha adotiva, seus comportamentos. Agora, ela compreendia que a
sou fraca e não consigo controlá-los”; e maioria de seus comportamentos públicos e, princi-
• Permanecia em uma condição constante de não palmente, comportamentos privados aconteciam em
aceitação do que vivenciava, intolerância emo- decorrência do que havia vivido anteriormente e não
cional em relação a seus sentimentos e um esta- porque ela era uma “inútil”, “acomodada”.
do de fusão cognitiva.
Joana ainda apresentava padrões de fuga e esquiva
5. Objetivos Terapêuticos diante de situações aversivas relacionadas ao casa-
mento. Porém, já compreendia que estas situações
• Permitir que a cliente acessasse as análises fun- funcionavam como estímulos discriminativos para
cionais moleculares e molares, no intuito de suas crises de dor crônica. Verbalizações do tipo:
proporcionar uma melhor compreensão das con- “Preciso organizar minha vida e me fortalecer, para
dições determinantes e mantenedoras de seus me separar dele” eram presentes.
comportamentos públicos e privados e o que es-
tes tinham como consequências; Conseguiu estabelecer um melhor padrão de asser-
• Criar uma comunidade verbal diferente da que tividade, ao falar “não” diante de tarefas que sabia
Joana vivenciava, por meio do acesso a novas que não podia de fato realizar. Quando percebia que
contingências estabelecidas na própria relação a própria dor era um padrão de fuga e esquiva, per-
terapêutica e o contato com contextos sócio-ver- mitia-se vivenciar algumas situações, mesmo sen-
bais diferentes dos contextos da literalidade, ra- tindo-a. Com uma frequência ainda não adequada,
zão e controle; começou a praticar atividade física (caminhada).

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Quadro 3. Etapas da ACT e mudanças observadas no comportamento da cliente (adaptado de Conte, 1999). As metáforas utilizadas podem ser consul-
tadas, por exemplo, emDahl e Lundgren (2006), Hayes e cols. (1999), e Hayes e cols. (2012).

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Passou a procurar mais suas amigas, das quais es- me físico. Trata-se de um processo multidetermi-
tava afastada há algum tempo. Contudo, ainda se nado, sendo necessária a junção de diferentes áreas
comportava de modo a obter validação e aceitação do conhecimento para a sua compreensão mais am-
por parte do outro. Frequentemente, perguntava pla. Dor crônica é frequentemente confundida com
para as amigas se estava incomodando. Estes en- outros diagnósticos, devido ao fato de vir acompa-
contros propiciaram o desenvolvimento de algumas nhada de um conjunto de sintomas comuns a outras
habilidades sociais. doenças.  

Uma das maiores mudanças observadas foi a deci- A ACC sai à frente de outras abordagens psicoterá-
são de retornar às suas atividades laborais. A cliente picas por enfatizar a funcionalidade dos sintomas
entrou com um pedido de recolocação profissional, e não a sua topografia, já que patologias diferen-
já que a atividade de ser professora exigia que ficas- tes podem ter a mesma sintomatologia. Leva em
se muito tempo em pé e a realização de movimen- consideração o fato de os comportamentos serem
tos repetitivos que poderiam piorar seu quadro de multideterminados. Um quadro de dor crônica é de-
dor crônica. O pedido ainda não havia sido atendido terminado não somente por fatores atuais da vida da
quando da redação deste trabalho. pessoa, mas também por fatores históricos filoge-
néticos (base biológica), ontogenéticos e culturais.
A utilização de estratégias da ACT mostrou-se eficien-
te no caso da cliente, pois a conduziu a novos con- A ACC colabora na compreensão do tema por des-
textos sócio-verbais. Eram poucos os momentos em tacar as diferentes relações que podem ser estabele-
que “levava tudo ao pé da letra”, tentava justificar, dar cidas entre organismo e ambiente, o que pode gerar
razões e controlar seus sentimentos e pensamentos. processos de aprendizagem que se relacionam dire-
Joana passou por um processo de aceitação de que ela tamente com a resposta de dor (Hunziker, 2010). A
e os outros podiam falhar, de que não podia ter o con- interação com o meio se dá a partir do significado
trole sobre tudo e todos e, principalmente, que a dor que o organismo dá ao mundo e a si mesmo (Baum,
fazia parte de sua vida. Mesmo com a presença da dor, 1994/1999; Skinner, 1989/1991; Tourinho, 2006).
aprendeu que poderia ter uma boa qualidade de vida, a Dependendo da relação de contingência que se es-
não viver em função de seu estado físico. tabelece entre antecedente-resposta-consequente, a
dor acaba por adquirir funções tais como: estratégia
Algumas das mudanças apresentadas por Joana es- de se relacionar com os outros, dar sentido à sua
tão expostas no Quadro 3, em que se fez uma rela- vida, sentir-se aceita, obter carinho, resolver proble-
ção entre as etapas, metas estabelecidas pela ACT e mas, além de se eximir de várias responsabilidades.
os comportamentos da cliente.
A dor crônica de Joana adquiriu as funções expos-
Considerações Finais tas acima. A cliente apresentava dificuldades que
iam além das relações interpessoais. Tarefas antes
O tema dor crônica é complexo, com diagnóstico simples e rotineiras podiam levá-la a um estado de
essencialmente clínico, dependendo apenas de exa- exaustão. Esta experiência era inaceitável para a

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cliente e incompreensível para as pessoas que esta- deradas reforçamento positivo por proporcionarem
vam à sua volta. O prejuízo funcional advindo desta a Joana o acesso à atenção do outro? Vale lembrar
situação eliciava a sensação de invalidez/inadequa- que, ao longo de toda a sua vida, Joana esteve muito
ção. Ganhos secundários, como obtenção de cuida- privada de reforçadores afetivos.
dos e isenção de algumas responsabilidades, refor-
çavam a queixa de dor. Como apontado por Martins Seus comportamentos de dor foram determinados
e Vandenberghe (2007), isto é o suficiente para se por contingências passadas e atuais. Em sua história,
estabelecer uma fonte de manutenção da dor, ou estiveram presentes padrões estressores e punitivos,
seja, um círculo vicioso. negligência e abuso moral na infância, relações co-
ercitivas, conflitos e sobrecarga familiares, grandes
O acesso às contingências vigentes na história de responsabilidades impostas. Alguns dos padrões
vida da cliente foram possíveis devido às análises comportamentais apresentados pela cliente, como a
funcionais moleculares e molares. Marçal (2005) vitimização, possivelmente já faziam parte de seu
aponta que tão importante quanto conhecer a his- repertório comportamental. Tais padrões podem ter
tória da espécie para compreender a sua formação iniciado uma cascata de eventos que exacerbariam a
biológica, e conhecer a história da humanidade ou sensibilidade a condições aversivas no longo prazo,
das práticas culturais para compreender porque as contribuindo para efeitos persistentes e negativos
sociedades são assim constituídas, é também essen- sobre a saúde física e emocional da cliente.
cial conhecer nossa história de vida para sabermos
porque somos do jeito que somos. Isso nos remete a As contingências às quais a cliente estava exposta
alguns dos pressupostos filosóficos do Behavioris- favoreceram o estabelecimento de padrões como
mo Radical, quando se fala que todo comportamen- forte controle por regras, o que lhe trouxe insensibi-
to é determinado, acontece em um contexto e depen- lidade às contingências e pouca variabilidade com-
de da interação com o meio em que ocorre (Baum, portamental; déficits nas habilidades sociais e bai-
1994/1999; Marçal, 2010; Skinner, 1953/2000). xo repertório de enfrentamento; esquiva emocional
diante de situações aversivas; não equivalência entre
As análises funcionais molares permitiram compre- seus valores e sua forma de se comportar; não acei-
ender contingências que estiveram presentes na sua tação de tudo que vivia e intolerância emocional aos
vida. Por meio das análises funcionais moleculares, seus comportamentos privados. Estes fatores contri-
foi possível o acesso às principais consequências buíram para que Joana vivenciasse contextos sócio-
das respostas emitidas por Joana. Aqui, cabe uma verbais pautados pela literalidade (“levava tudo ao
hipótese a ser investigada em atendimentos futuros: pé da letra”), dar razões (eventos internos eram usa-
os comportamentos de Joana eram realmente puni- dos como justificativas de seus comportamentos) e
dos? Esta dúvida foi gerada por se perceber que, controle (tentava controlar os eventos internos que
mesmo recebendo muitas críticas (o que, em prin- acreditava serem a causa de seus comportamentos).
cípio, é considerado como punição), suas respostas Havia um estado de fusão cognitiva, ou seja, acredi-
se mantinham em alta frequência. As críticas das tava que o que ela era, seu significado como pessoa,
pessoas que estavam à sua volta não seriam consi- era exatamente o que ela pensava sobre si e o que

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os outros verbalizavam sobre ela. A dor crônica não vados pode redirecionar a vida da pessoa. Quando
era algo que fazia parte da vida de Joana, mas era esta deixa de investir tudo na luta contra a dor, a
ela própria. Desta forma, instalou-se um contexto atenção se volta para outras variáveis como par-
favorável para a aplicação dos conceitos e das fer- te do problema. Assim, é possível redefinir outras
ramentas de trabalho da ACT, o que proporcionou fontes de estimulação para a retomada da vida
uma boa intervenção terapêutica, favorecendo me- (Vandenberghe, 2005).
lhor qualidade de vida para a cliente.
Com as intervenções terapêuticas, Joana vem en-
Porém, observou-se que um baixo repertório verbal trando em contato consigo mesma e com sua histó-
e de autoconhecimento prejudicaram a utilização da ria de vida. Compreendeu que mudanças compor-
ACT como abordagem no início do processo tera- tamentais que favoreçam uma melhor qualidade de
pêutico. A cliente apresentava dificuldades em en- vida somente acontecerão se desconstruir contextos
tender as ferramentas utilizadas. As metáforas eram sócio-verbais que mantêm seus problemas. Joana
compreendidas de forma literal, não eram feitas as- ainda continua em atendimento terapêutico, com
sociações entre o que era apresentado e as relações vistas a desenvolver repertório comportamental de
contingenciais que determinavam e mantinham seus enfrentamento de situações aversivas e de contato
comportamentos. Esses fatores tornaram ainda mais com contingências reforçadoras.
relevante a aplicação de vivências e exercícios prá-
ticos, assim como o cuidado com a utilização de in- Referências Bibliográficas
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Recebido em 3 de abril de 2013


Enviado para revisão em 3 de outubro de 2013
Aceito em 19 de novembro de 2013

Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., 2014, Vol. XVI, no. 2, 125 - 147 147

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