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17/05/2023, 15:53 A falácia da glosa do crédito de ICMS sobre produtos intermediários - JOTA

DIREITO TRIBUTÁRIO

A falácia da glosa do crédito de ICMS sobre produtos


intermediários
O direito constitucional tributário passa, o direito administrativo permanece

EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI

Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

Juridicamente, com o advento da Constituição Federal de 1988 (CF88), o ICMS foi


instituído no âmbito de nova ordem constitucional. Neste cenário, a não-cumulatividade do
ICMS é regra expressa e não há qualquer autorização constitucional para sua limitação,
excetuadas as hipóteses de isenção e não-incidência, ex vi do art. 155, § 2°, II da CF88,
determinando que o imposto: “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em
cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

Este artigo é uma homenagem à arguta provocação do Prof. Paulo Ayres Barreto ao texto
da proposta da PEC45 sobre a não-cumulatividade do IBS: o problema não é o texto da
CF88, o problema é a dependência da trajetória arraigada na legislação infraconstitucional.

A prevalência das estruturas administrativas sobre o direito tributário reflete o que


Raymundo Faoro[1] denomina “patrimonialismo de estado português”: em um Estado cujas
exações tributárias são voltadas apenas à satisfação de objetivos estritamente
arrecadatórios, o Direito Tributário é facilmente desvirtuado. Otto Mayer[2], ironizou a
permanência das estruturas do direito administrativo sob uma nova ordem constitucional:
“o direito constitucional passa, o direito administrativo permanece”.

A LC 87/96 veicula o atual universo normativo de possibilidades do direito ao crédito de


ICMS e determina os critérios relevantes para sua solução: se houve Pagamento de ICMS
na Entrada (+PIE), e não se trata de Mercadoria Alheia à Atividade (-MAA), o critério Bem
de Uso e Consumo (BUC) é irrelevante e há direito ao crédito (+C):

(+PIE) . (-MAA) → (+C)

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Não obstante, a não cumulatividade do novo ICMS foi atingida por velhos conceitos
jurídicos carregados pelo Convênio 66/88 que, contaminado pelas estruturas do IC, do IPI
e do ICM, restringiu a sua não-cumulatividade: além de negar o crédito aos bens de uso e
consumo, estabeleceu que apenas as mercadorias utilizadas no processo industrial que
integrarem o produto final na condição de elemento indispensável à sua composição ou
forem nele consumidas é que tinham direito ao crédito do imposto. Somente após 8 anos
de vigência do Convênio 66/88, é que foi instituída a LC 87/96, corrigindo tais distorções e
veiculando regime de crédito físico de ICMS mais amplo: todas as mercadorias não alheias
à atividade passaram a dar direito ao crédito de ICMS, ex vi do art. 20, §1º.

O universo normativo de possibilidades do direito ao crédito de ICMS inaugurado pela LC


87/96 é mais amplo que o universo de possibilidades do Convênio 66/88 pois passou a
permitir o crédito inclusive sobre as mercadorias que não se integram ao produto final ou
não se consomem no processo produtivo: a vigência da LC 87/96 abandona os critérios
erroneamente importados do IC, IPI E ICM.

Contudo, para fazer valer a ampliação do direito ao crédito sobre todas as entradas de
mercadorias não alheias à atividade, as Assembleias Legislativas dos 27 Estados seriam
obrigadas a aumentar, por lei, as alíquotas efetivas do imposto para manutenção dos
mesmos patamares de arrecadação.

Ocorre que a tradição das Administrações Tributárias brasileiras sempre preferiu evitar o
custo político da edição de leis e da transparência[3] revelada pelo aumento das alíquotas,
priorizando a manutenção da cumulatividade do sistema anterior, utilizando os critérios do
já revogado Convênio 66/88 e ignorando as inovações do direito ao crédito da LC 87/96.
Esta mesma lógica está presente nas sucessivas postergações da implantação do “crédito
financeiro”, ex vi do art. 33, I da LC 87/96: legalidade, transparência e cidadania fiscal
continuam sendo desafios para a cultura tributária brasileira.

O fato é que as autoridades não aplicam a LC 87/96: em conformidade com a LC 87/96,


Há pleno direito ao crédito físico de ICMS sobre mercadorias não alheias à atividade. Trata-
se de caso fácil. A solução está no próprio texto da LC 87/96: a aplicação do art. 20, §1º
garante o direito ao crédito de ICMS sobre as entradas de mercadorias empregadas no
processo produtivo.

A NÃO-CUMULATIVIDADE É REGRA EXPRESSA NA


CONSTITUIÇÃO: NÃO HÁ AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL
PARA SUA LIMITAÇÃO
O imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (“ICMS”) decorre de competência
tributária atribuída aos Estados pelo art. 155, II da CF88 e possui como característica
fundamental a não-cumulatividade, disposta no art. 155, § 2°, I da CF88, que garante ao
contribuinte o direito de abater de suas operações o montante do ICMS devido nas
operações anteriores. Trata-se de mecanismo de compensação de créditos, no qual o
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montante do imposto devido na operação anterior representa crédito a ser deduzido do


imposto a ser pago nas operações subsequentes, evitando a incidência de imposto sobre
imposto ou o “efeito cascata”.

O direito ao crédito do ICMS é norma constitucional que prescreve a não-cumulatividade


do ICMS, conforme ensina Geraldo Ataliba[4]: “É a Constituição, meus senhores, que dá a
mim, cidadão que pratico operação mercantil, no Brasil, o direito de me creditar do ICM
relativo às operações anteriores; não é lei nenhuma. Não é a lei complementar que dá; não é
a lei ordinária do Estado, muito menos; não é a doutrina: é a Constituição. (…) Portanto, a lei
não pode diminuir, reduzir, retardar, anular, ignorar um direito que a Constituição deu.”. Se a
regra da não cumulatividade é norma constitucional, qualquer exceção a ela também deve
ser constitucional, conforme também adverte Aires Fernandino Barreto.[5]

A CF88 que instituiu o ICMS no plano jurídico desta nova ordem constitucional,
acompanhado de sua não-cumulatividade, trouxe como únicas hipóteses de exceção a
isenção e a não incidência, que diminuem a área de abrangência azul da não
cumulatividade integral do ICMS. Assim, constitucionalmente

A ESTRUTURA DO ANTIGO IMPOSTO SOBRE O CONSUMO (IC) CONTAMINOU A


APLICAÇÃO DA NÃO-CUMULATIVIDADE E DO DIREITO AO CRÉDITO DO IPI E DO ICM
QUE, POR SUA VEZ, CONTAMINAM ATÉ HOJE O ICMS.

A história da tributação sobre o consumo no Brasil remonta à Constituição Federal de


1946 (CF46) que instituiu o Imposto sobre Consumo (IC), de competência da União, ex vi
do art. 15, inc. II sem mencionar direito ao crédito. Somente com a promulgação da Lei
3.520/1958, cujo art. 5° previa deduzir o IC pago sobre os “artigos sujeitos ao impôsto
utilizados na fabricação do produto final”, passou a ser possível o crédito sobre
determinadas aquisições. Conforme Alcides Jorge Costa[6], foi nesta época que se
introduziu o conceito de “produto intermediário”, o qual originou-se vinculado à própria
noção de não-cumulatividade do imposto.

Alcides Jorge Costa[7] explica que à época do Decreto-Lei 406/68, que regulou o ICM na
esfera nacional, todos os entes federados se espelharam na legislação do IPI para
implementar a regra da não-cumulatividade do ICM, deixando plasmada nas leis estaduais
regras pertinentes apenas ao IPI. Contudo, as regras de crédito para manutenção da não
cumulatividade de um imposto que incide sobre o processo industrial (IPI) tem inúmeras
peculiaridades que POR ÓBVIO não se aplicam a um imposto incidente sobre o comércio e
circulação de mercadorias e serviços (ICM e ICMS): exigir a integração no produto final ou
consumição no processo produtivo é critério típico do IPI, pois aplicável ao processo
produtivo industrial.

Apesar da clara distinção, há confusão na atividade das autoridades fazendárias que: (i)
erraram ao importar os critérios do IC, IPI e ICM na elaboração do Convênio 66/88; e, (ii)
mesmo após a edição da LC 87/96 que veicula o atual universo normativo de
possibilidades do direito ao crédito de ICMS, erram ao fundamentar glosas ao crédito de

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ICMS sobre mercadorias não alheias à atividade com base em critérios normativos
inexistentes na LC 87/96.

A LC 87/96 VEICULA O ATUAL UNIVERSO NORMATIVO DE


POSSIBILIDADES DO DIREITO AO CRÉDITO DE ICMS MAIS
AMPLO DO QUE O ANTIGO CONVÊNIO 66/88 JÁ REVOGADO
A LC 87/96 inaugurou o atual universo normativo de possibilidades do direito ao crédito de
ICMS sobre todas as entradas no estabelecimento do contribuinte, exceto mercadorias (i)
para uso e consumo do estabelecimento ou (ii) alheias à atividade. Comparativamente ao
Convênio 66/88, o direito ao crédito de ICMS foi ampliado pela LC 87/96:

EXCEÇÕES CONVÊNIO 66/88 LC 87/96

Mercadorias Incluiu o direito ao crédito financeiro


para uso e Vedação total ao crédito – sucessivamente postergado 2020
consumo (BUC)

Outras
Permite o crédito somente das Permite o crédito sobre todas
mercadorias integradas ou mercadorias, exceto se alheias à
mercadorias
consumidas atividade (MAA)

Após a LC 87/96, portanto, basta “mercadoria não alheia à atividade” do estabelecimento


para que dê direito ao crédito de ICMS relativo à sua entrada: o universo normativo de
possibilidades do direito ao crédito de ICMS da LC 87/96 é mais amplo que o universo de
possibilidades do Convênio 66/88 pois permite o crédito inclusive sobre as mercadorias
que não se integram ao produto final ou não se consomem no processo produtivo: a
vigência da LC 87/96 abandona os critérios erroneamente importados do IC, IPI E ICM.

É falaciosa a utilização da expressão “bens de uso e consumo” nas autuações para


designar quais produtos conferem ou não o direito ao crédito do ICMS. Até 2020, ou nova
prorrogação, não é a natureza do bem (uso e consumo) que afasta o direito ao crédito de
ICMS, mas sim  inexistência de vínculo da mercadoria com a atividade do contribuinte:
somente os bens de uso e consumo alheios ao processo produtivo é que têm o direito ao
crédito financeiro negado até 2020.

Enfim, vale o registro: o termo “bem de uso e consumo” é ambíguo[8].  É usado em autos de
infração como tentativa de confundir e reunir em uma única categoria os bens de uso e
consumo do processo produtivo que geram crédito físico (mercadorias não alheias à
atividade -MAA) com os bens de uso e consumo do estabelecimento ainda sem direito ao
crédito financeiro adiado para 2020 (mercadorias alheias à atividade +MMA): ocorre
falácia da composição[9], atribui-se ao todo[10] a propriedade de parte, numa tentativa de
ampliar, indevidamente, a abrangência do art. 33, I da LC 87/96 e negar o direito ao crédito
físico do art. 20, §1º da LC 87/96.

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[1]
Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro.

[2]
Mayer, Otto. Derecho Administrativo Alemán, 3 volumes: Editorial Depalma, 1950.

[3]
A restrição infraconstitucional da regra da “não-cumulatividade” fere a TRANSPARÊNCIA exigida pelo
art. 150, § 5º da CF88.

[4]
ATALIBA, Geraldo. ICM na Constituição. In Revista de Direito Tributário n. 57. Ano 15. Julho-Setembro
1991. pp 90-104.

[5]
AIRES BARRETO. Créditos de ICMS – Limites da Lei Complementar. O ICMS, a LC 87/96 e questões
jurídicas atuais. São Paulo: Dialética, 1997.

[6]
Costa, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar, São Paulo: Resenha Tributária,
1978, p. 6-150.(…) a primeira manifestação da regra da não-cumulatividade se deu em 30 de dezembro
de 1958, quando a Lei 3.520, que tratava do antigo Imposto sobre Consumo, incidente sobre o ciclo de
produção industrial, dispõe que, do imposto devido em cada quinzena, fosse deduzido o valor do
imposto que, no mesmo período, houvesse incidido sobre matérias primas e outros produtos
empregados na fabricação e acondicionamento dos produtos tributados.”

[7]
Costa, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária,
1978, p.156.

[8]
Pode designar bens de uso e consumo do processo produtivo ou bens de uso e consumo geral.

[9]
Samuelson, Paul A. Nordhaus. Economia. 19a. ed. p. 587.

[10]
Copi, Irving M. Introdução à Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p.

EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI – Professor e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito
de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e 1º Lugar no Prêmio
Jabuti de literatura pelo melhor livro de direito em 2008

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