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Disponível em https://www.saberatualizado.com.br/2019/03/epigenetica-plasticidade-
fenotipica-e.html
PLASTICIDADE FENOTÍPICA
Plasticidade fenotípica pode ser definida, de forma geral, como a habilidade de
um genótipo produzir mais de um fenótipo quando exposto a diferentes ambientes ou
como uma resposta a mudanças nas condições ambientais. Mas o entendimento moderno
de plasticidade fenotípica não engloba somente processos plásticos na morfologia de um
organismo, mas também aspectos comportamentais e de aprendizado. Essas mudanças
ocorrem ao longo da vida de um indivíduo, e podem ser reversíveis ou irreversíveis. Tanto
uma mudança de coloração da pele/pelagem em um novo ambiente (camuflagem ou
proteção contra radiação UV) e o aumento da musculatura após treinos de hipertrofia -
ambos plasticidades adaptativas - quanto o aprendizado de uma nova língua por uma
criança exposta a uma nova cultura (plasticidade neuronal) são considerados exemplos
de plasticidade fenotípica.
Nesse sentido, dois ou mais indivíduos de uma espécie qualquer, mesmo que
possuam o mesmo genótipo (gêmeos monozigóticos ou clones), podem expressar
diferentes fenótipos ao serem expostos a diferentes fatores ambientais. Mudanças
extremas no fenótipo em diferentes condições ambientais são chamadas de polifenismo,
uma forma extrema de plasticidade fenotípica, como o exemplo exposto abaixo.
A plasticidade fenotípica pode emergir a partir de vários mecanismos bioquímicos
e nem todos esses mecanismos envolvem epigenética. Para citar um exemplo, a
plasticidade fenotípica pode surgir devido a limitações cinéticas associadas a funções
enzimáticas. Em uma planta, enzimas envolvidas na fotossíntese possuem faixas ideais
de temperatura, com os processos fotossintéticos podendo ficar lentos ou rápidos
dependendo da temperatura ambiente. O fator 'temperatura ambiente', portanto, acaba
influenciando no crescimento da planta e em outras características fisiológicas,
independentemente do genótipo ou epigenótipo. Temos também a hipoxia (baixa
concentração de oxigênio gasoso no ambiente), a qual leva à inibição de uma classe de
enzimas nos humanos que requerem oxigênio para suas atividades (domínio JmjC-histona
demetilase), culminando em uma rápida resposta plástica na cromatina (Ref.23). Outro
exemplo é via 'interferência de RNA' (RNAi) (Ref.8), onde sequências longas de RNA
de hélice dupla são enzimaticamente quebradas dando origem a siRNAs. O siRNA -
associado a um complexo proteico - age clivando RNA mensageiro (mRNA), interferindo
nos processos de transcrição e, consequentemente, na expressão de genes.
A plasticidade fenotípica adaptativa é comum na natureza e é superior a soluções
não-plásticas para um grande espectro de condições. Muitos organismos estão expostos
a ambientes que podem variar drasticamente ao longo das suas vidas. A seleção de alelos
que expressam fenótipos mais generalistas e constantes nunca vai garantir a máxima
chance de sobrevivência para os espécimes expostos a condições ambientais muito
oscilantes, porque ou o fenótipo será razoável em termos adaptativos ao longo de todo o
espectro de variação ambiental, ou o fenótipo será ótimo para um ambiente, mas
prejudicial/custoso para outro. Com a plasticidade, um fenótipo adaptativo ótimo pode
emergir (ser engatilhado) sempre que as condições ambientais variarem, garantindo, de
forma contínua, excelente custo-benefício para o organismo.
Citando um exemplo de plasticidade reversível bem conhecido, grande parte dos
humanos, ao serem expostos a muita radiação solar (a qual carrega danosos raios UV)
respondem com um bronzeamento na pele, aumentando a produção de melanina por um
tempo. Esse fenótipo (bronzeamento) ajuda a proteger a pele do UV. Quando a exposição
solar excessiva é cessada, a pele gradualmente perde seu bronzeado, porque este diminui
a taxa de síntese de vitamina D (2) em um ambiente de baixa exposição solar. Assim,
com esse processo de plasticidade fenotípica, a pele sempre mantém um ótimo equilíbrio
entre síntese de vitamina D e proteção contra danos do UV.
Mas nem sempre a plasticidade fenotípica traz benefícios adaptativos, onde
mudanças no fenótipo podem ser neutras ou mal-adaptativas a nível populacional ou
individual. Isso pode ser visto quando limitações nutricionais prejudicam as taxas de
reprodução dentro de uma população, mas modificam morfologicamente e/ou
metabolicamente seus membros visando um aumento no potencial de sobrevivência
individual. Ou seja, o crescimento populacional é prejudicado e os indivíduos podem se
encontrar mais vulneráveis frente a ameaças como predadores, já que o corpo mudou de
forma específica a uma resposta imediata à escassez de alimentos. Ou existe o caso
também em que os custos - gastos energéticos - para manter e/ou ativar as respostas
plásticas sejam muito elevados, não compensando os benefícios em muitas situações.
A probabilidade de que uma resposta plástica seja mal-adaptativa aumenta quando
o ambiente no qual um indivíduo é exposto difere drasticamente daquele no qual seus
ancestrais evoluíram. Isso porque genes que foram selecionados no passado para uma
melhor adaptação e que foram desativados ao longo do curso evolutivo são aqueles que
podem ser ligados novamente devido a mecanismos epigenéticos ou outros ligados à
plasticidade. Sem uma carga genética ancestral disponível no genótipo para um
determinado fator ambiental adverso, fica mais difícil respostas plásticas emergirem para
lidar com o novo problema específico. Nesse sentido, expressões plásticas indesejáveis
podem emergir. Por exemplo, quando ervas alpinas Wahlengergia ceracea e Campanula
thyrsoides são expostas a temperaturas mais altas típicas de baixas altitudes (~25°C), isso
ativa mudanças fenotípicas e fenológicas, mas as quais são acompanhadas por uma
substancial redução na capacidade de adaptação.
Nesse sentido, devido à sua base genética, assim como outros complexos
fenótipos, a plasticidade pode evoluir em resposta a seleções, caso seja adaptativa.
EPIGENÉTICA, PLASTICIDADE GENOTÍPICA E EVOLUÇÃO
Apesar do epigenoma e das expressões plásticas não alterarem as sequências de
DNA/alelos por si só, existem evidências e argumentos teóricos para o envolvimento
direto e indireto desses fatores extra-genômicos no curso evolucionário das espécies.
GIRINOS CARNÍVOROS
Algumas espécies de sapo da família Scaphiopodidae, como a Scaphioppus
holbrookii, nunca naturalmente desenvolvem girinos carnívoros, assim como a maioria
dos sapos. Já outra espécie, a Spea multiplicata, produz uma mistura de girinos carnívoros
ou onívoros dependendo da disponibilidade de alimentos - ou seja, uma clara plasticidade
fenotípica - o que permite uma maior exploração de nichos ecológicos e uma maior
chance de sobrevivência. Porém, girinos da espécie Spea bombifrons que compartilham
o mesmo habitat com os girinos da S. multiplicata são quase todos carnívoros.
Nesse sentido, um estudo publicado no Nature & Ecology (Ref.13) em 2018
avaliou a capacidade de plasticidade dessas três espécies em relação a diferentes dietas.
Variando a proporção de camarões oferecidos junto com alimentos de origem vegetal -
dieta mais ou menos carnívora - os pesquisadores observaram pouca plasticidade no S.
holbrookii mesmo em uma dieta 100% carnívora, onde notou-se o surgimento de um
intestino ligeiramente mais curto (mais adaptado para uma dieta carnívora) e sutis
alterações em partes bucais. Na espécie S. multiplicata, em contraste, foi observado uma
forte plasticidade fenotípica, tanto no formato da cabeça, no intestino e no
comportamento. Quando uma dieta carnívora era oferecida, genes ligados ao
metabolismo de proteínas se tornaram mais ativos, em detrimento de atividade em genes
ligados ao processamento de gorduras e amido. E se dada uma dieta com pouco ou
nenhum camarão (herbívora), todas essas adaptações eram revertidas.
Já o mais notável foi visto na espécie Sp. bombifrons, a qual, independentemente
da dieta oferecida, continuou carnívora, não demonstrando significativa plasticidade
fenotípica. E mais: alguns girinos saíram dos ovos já carnívoros, significando a fixação
desse fenótipo, provavelmente via mutações genéticas adaptativas. Quando a dieta
oferecida era estritamente herbívora, os girinos dessa espécie mostraram grande
dificuldade para reganhar traços fenotípicos apropriados para uma dieta onívora. Girinos
carnívoros se desenvolvem mais rapidamente em ambientes simpátricos, e isso possibilita
a exploração de outros nichos, como poças de água efêmeras (que secam rápido). Essa é
uma forte evidência de que populações de sapo da família Scaphiopodidae estão
evoluindo via acomodação genética, especificamente via assimilação genética.
Nessa mesma linha, um estudo publicado este ano na Proceedings of the Royal
Society B: Biological Sciences (Ref.14), testando a validade da hipótese da PPF, estudou
dois tipos de populações naturais de girinos da espécie S. bombifrons: aquelas convivendo
no mesmo ambiente que os girinos da espécie Sp. multiplicata (simpátricas) e aquelas
isoladas (alopátricas). As populações simpátricas são justamente aquelas onde o fenótipo
carnívoro é o mais frequente, com os indivíduos se alimentando de pequenas crustáceos
ou de outros girinos. Já nas populações alopátricas é onde o fenótipo onívoro é o mais
frequente. As populações das duas espécies só entraram em contato posteriormente - com
a expansão territorial da S. bombifrons -, e, portanto, as populações simpátricas
representam o estado 'derivado' e as populações alopátricas representam o estado
'ancestral'.
Variando a dieta para essas populações em experimentos laboratoriais, os
pesquisadores mostraram que os indivíduos de origem simpátrica expressavam com mais
frequência o fenótipo carnívoro do que os indivíduos de origem alopátrica quando nas
mesmas condições, e cresciam mais sob uma alimentação carnívora (e as populações
onívoras se davam melhor quando a dieta era pouco carnívora). Ambas as observações
apontam um refinamento adaptativo da plasticidade nas populações simpátricas. Além
disso, os girinos de origem simpátrica desenvolviam uma musculatura maxilar maior,
presumivelmente adaptada para uma dieta carnívora. Isso corrobora o estudo de 2018,
mostrando que de uma população ancestral um novo genótipo parece ter evoluído através
da fixação do fenótipo plástico via assimilação genética, aumentando as chances de
sobrevivência dos girinos S. bombifrons simpátricos.
PLASTICIDADE E ESPECIAÇÃO
A plasticidade fenotípica pode também atuar diretamente na especiação, além da
acomodação genética, ao facilitar o isolamento reprodutivo de indivíduos de uma mesma
população, ou entre populações de diferentes subespécies que estão em contato direto
(especiação simpátrica). Em populações simpátricas de uma mesma espécie - ou de
espécies diferentes, mas geneticamente muito próximas -, o alto fluxo de genes muitas
vezes dificulta o processo de especiação. Mas expressão de um fenótipo comportamental
de acasalamento diferenciado pode dificultar o fluxo genético entre diferentes grupos de
indivíduos muito próximo relacionados, facilitando a emergência de diferentes caminhos
evolucionários.
Para exemplificar, um grupo de peixes geneticamente muito próximos que vivem
na região do Caribe - popularmente chamados de Hamlet e pertencentes ao
gênero Hypoplectrus - basicamente se diferenciam entre si apenas pelo padrão de cores.
Mesmo assim, as diferentes espécies dentro desse grupo são mantidos reprodutivamente
isoladas, porque para o acasalamento entre machos e fêmeas o reconhecimento é baseado
fortemente em pistas visuais. Nesse sentido, uma assimilação genética pode oferecer
novos fenótipos que, mesmo sutis, são suficientes para levar indivíduos de uma população
ao isolamento reprodutivo em relação a outras populações da mesma espécie, facilitando
a especiação.
CONCLUSÃO
Por não atuarem alterando as sequências de DNA, os mecanismos epigenéticos e plásticos
foram por muito tempo ignorados como potenciais fatores promovendo os processos
evolutivos.
Aliás, muitos acadêmicos acreditavam que a plasticidade fenotípica era um fator agindo
de forma antagônica aos mecanismos evolutivos, já que os organismos se tornariam mais
flexíveis às mudanças das condições ambientais expressando diferentes fenótipos sem
necessariamente ocorrer mudanças nas frequências de alelo. Porém, as evidências se
acumulando nas últimas décadas mostram que isso passa longe da verdade, e boa parte
da comunidade científica já pede um status teórico ao mecanismo de acomodação
genética.
Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) - um importante cientista no campo biológico
- é amplamente reconhecido por sua proposta de que os organismos se modificavam ao
adquirir traços adaptativos a partir do uso e desuso de características em resposta às
variações das condições ambientais. Seguindo esse raciocínio, girafas possuem longos
pescoços porque estavam tentando alcançar folhas comestíveis em galhos mais altos. Tal
ideia foi eventualmente descartada para dar lugar às mutações aleatórias e subsequente
seleção de variações genéticas adaptativas como o grande pilar de suporte para as
modificações à nível populacional que os organismos experienciavam (3). Agora, com a
emergência da epigenética e plasticidade fenotípica, Lamarck pode voltar a dormir
sossegado em seu túmulo porque sua proposta não parece estar de todo errada.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
1. https://www.nature.com/articles/nrm.2017.135
2. http://www.genetics.org/content/211/2/549
3. https://ghr.nlm.nih.gov/primer/howgeneswork/epigenome
4. https://www.nature.com/articles/s41437-018-0114-x
5. https://www.novusbio.com/research-areas/epigenetics/epigenetic-machinery
6. https://www.nature.com/articles/nature14248
7. https://academic.oup.com/icb/article-abstract/58/6/1098/5112966
8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5542916/
9. http://www.eneuro.org/content/6/1/ENEURO.0252-18.2018#sec-16
10. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0960982218307619
11. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24719220
12. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4929538/
13. https://www.nature.com/articles/s41559-018-0601-8
14. https://doi.org/10.1098/rspb.2018.2754
15. https://www.nature.com/articles/s41467-017-00996-5
16. http://www.g3journal.org/content/8/9/3069.abstract
17. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/329573v1.abstract
18. https://www.sciencemag.org/news/2018/11/cannibalistic-tadpoles-and-
matricidal-worms-point-powerful-new-helper-evolution
19. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29786096
20. https://journals.plos.org/ploscompbiol/article?id=10.1371/journal.pcbi.1006
260
21. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24410266
22. https://www.nature.com/articles/d41586-019-00532-z
23. http://science.sciencemag.org/content/363/6432/1222
24. https://www.liebertpub.com/doi/10.1089/thy.2017.0273