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07/03/2019 Laboratório #1: Como Entender um Filme – Notas sobre a arte do cinema

Laboratório #1: Como Entender


um Filme
os diferentes signi cados de uma obra cinematográ ca

Leandro Costa Follow


Dec 19, 2016 · 6 min read

O signi cado é determinante para a nossa experiência de uma obra


de arte.

O valor maior do cinema reside na comunicação de experiências


humanas, mas um lme não apenas apresenta uma experiência: ele
também sugere interpretações dessa experiência.

Enquanto espectadores, podemos indagar o lme e buscar um


signi cado maior para as situações que ele nos apresenta. Nesse
sentido, o crítico David Bordwell classi ca quatro diferentes tipos de
signi cado que podemos encontrar em um lme. Sintetizo-os abaixo
utilizando exemplos do lme Matrix.

1) Signi cado Referencial.


No lme Matrix, o signi cado referencial pode ser descrito da seguinte
maneira: Em um futuro distante, aproximadamente no ano de 2199, as
máquinas criadas pelos seres humanos no nal do século XX

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desenvolveram-se a tal ponto que devastaram e dominaram o planeta


Terra inteiro, transformando os seres humanos em fonte de energia e
mantendo os seus corpos aprisionados em bolhas onde recebem os
nutrientes necessários para o seu desenvolvimento. Para impedir que se
rebelem, suas mentes foram aprisionadas em uma realidade virtual
compartilhada, chamada de Matrix, um mundo ilusório cuja aparência é
idêntica ao mundo real do nal do século XX.

Há, contudo, seres humanos que se libertaram dessa prisão e organizaram


um movimento de resistência, libertando outros humanos. Eles vivem em
Sião, a última cidade humana do mundo, perto do núcleo da terra, um
lugar onde as máquinas não conseguem entrar. Morfeu, um dos líderes da
resistência, acredita em uma profecia segundo a qual há um “Escolhido”
que libertará o povo humano do domínio das máquinas. Dentro da
Matrix, ele encontra e liberta Neo, um hacker que ele acredita ser o
Escolhido. Já no mundo real, Neo aprende que pode adquirir qualquer
habilidade dentro da Matrix e utilizar sua mente para lutar contra os
agentes (programas sencientes incumbidos de matar os humanos libertos),
com os quais nenhum humano conseguira lutar sem sair morto. Para
libertar Morfeu, Neo resolve testar as habilidades que desenvolveu e acaba
por ser o primeiro humano a vencer um agente.

Como podemos ver, o signi cado referencial funciona quase como uma
sinopse, uma descrição do enredo do lme. Isso acontece porque ele
apresenta elementos bastante tangíveis do mundo de cção criado
pelo lme. A compreensão desse tipo de signi cado depende do
conhecimento desses elementos que o lme mostra: no nosso caso, o
que é uma máquina, o que é inteligência arti cial, computadores,
realidade virtual, etc. É uma compreensão simples, baseada nos níveis
mais básicos do conhecimento perceptivo.

2) Signi cado Explícito


Thomas Anderson, programador de uma empresa de softwares, sente que
há algo errado com a sua vida e vive uma vida paralela (como um famoso
hacker conhecido por Neo), tentando encontrar algum sentido para a sua
angústia existencial. Ele se interessa particularmente pela vida de Morfeu,
indivíduo conhecido como “o mais perigoso dos homens vivos”. Ao seguir
as indicações de Morfeu, Neo acaba descobrindo que vivia em uma
realidade de mentira, a Matrix, um programa de computador construído
pelas máquinas inteligentes que dominaram o mundo com o intuito de
manter aprisionadas as mentes dos seres humanos.

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Ao ser libertado da Matrix e levado para o mundo real, Neo descobre que
ele pode ser “O Escolhido”, um indivíduo que, segundo uma profecia,
libertaria os seres humanos do domínio das máquinas. De fato, no
decorrer da história, ele acaba demonstrando possuir habilidades que os
outros seres humanos não possuem; o que talvez con rme que ele seja o
Escolhido.

Assim como o signi cado referencial, o signi cado explícito diz respeito
a elementos concretos do lme, mas ele não apenas apresenta a
situação em que os personagens estão envolvidos, ele também indica
motivações para as ações e os sentimentos. A identi cação desse tipo de
signi cado depende da análise de todos os elementos do lme para ver
se eles colaboram uns com os outros de maneira coerente.

Geralmente, é esse o signi cado que resume o sentido do lme. No


caso de Matrix, ele poderia se encontrar na frase dita por Morfeu, no
momento em que ele explica a Neo o que é a Matrix e o que aconteceu
com o mundo: “Você nasceu numa prisão que você não pode sentir ou
tocar: uma prisão para a sua mente”. É lógico que só esse signi cado
não é su ciente para, digamos assim, explicar todos os aspectos do
lme. Embora ele possa ser su ciente para determinadas análises
especí cas, ele é apenas uma tradução imperfeita do sentido profundo
do lme, pois há muitos outros níveis de sentido e outros temas que
cam de fora ao fazermos esse tipo de tradução. Por exemplo, há temas
que existem no lme Matrix que não estão considerados nessa frase,
como o amor, a esperança, o sacrifício, a disciplina, a realidade, en m,
uma série de outras coisas que também existem signi cativamente de
maneira explícita no lme.

3) Signi cado Implícito


Para encontrar um sentido para a sua vida, um indivíduo precisa ter a
coragem de fazer escolhas arriscadas e acreditar na sua própria
capacidade de desenvolvimento. Essa coragem é adquirida através da
libertação da mente e da aceitação da realidade. Contudo, libertar a
mente aprisionada e aceitar a realidade não é uma tarefa fácil. O
conhecimento verdadeiro da realidade pode ser altamente destrutível para
o indivíduo e ele precisa ter integridade para aceita-lo e para assumir o
papel que lhe é cabido dentro dessa realidade.

Essa a rmação já é mais abstrata do que as outras e aponta para


sentidos não explícitos. Ela baseia-se em inferências e em sentidos que
atribuímos às situações do lme. Quando fazemos esse tipo de
inferência, podemos dizer que estamos interpretando o lme.

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Segundo David Bordwell, interpretar o lme é uma tarefa muito


perigosa, porque tendemos a interpretar um lme de acordo com
impressões muito pessoais e subjetivas, o que pode impedir que
consideremos o sistema formal de relação entre os elementos do lme
como um todo. Para não corrermos o risco da interpretação incoerente,
precisamos, portanto, sempre testar uma interpretação, colocando-a à
prova através da busca de suas motivações presentes dentro do lme
mesmo. Assim, sempre que quisermos provar um ponto, devemos
encontrar nossas justi cativas no sistema geral do lme.

4) Signi cado Sintomático


Em um mundo em que os humanos dependem completamente da
tecnologia, baseando suas vidas numa realidade virtual compartilhada,
não há mais diferença entre ilusão e realidade. É possível viver uma vida
inteira estando com a mente aprisionada, servindo a propósitos alheios,
sem ter a mínima consciência disso. Nessas circunstâncias, a realidade não
é apenas indistinguível, mas também impenetrável.

À maneira do signi cado implícito, o signi cado sintomático também é


uma a rmação bastante geral e abstrata, que entende os signi cados
implícitos e explícitos como um conjunto de valores sociais. Ele é
sintomático no sentido em que indica um estado particular de coisas,
um estado amplamente social. David Bordwell liga esse signi cado
sintomático à ideia de uma ideologia social, mas ideologia é uma
palavra muito perigosa no contexto das ciências humanas porque,
depois do estruturalismo francês e da análise do discurso de meados do
século XX, qualquer visão de mundo passou a ser identi cada como
ideologia, e o signi cado real da palavra ideologia, o signi cado com o
qual ela nasceu (e sob o qual o fenômeno da ideologia mais se
manifesta hoje em dia no mundo) acabou cando obscurecido.

Portanto, eu pre ro dizer que esse signi cado sintomático não é o


re exo de uma ideologia social, mas apenas de um estado particular
de coisas ou de espírito. O que não signi ca que os lmes não
possuem signi cados ideológicos. Pelo contrário. Hoje há muitos lmes
que são valorizados apenas pelo seu teor ideológico, apenas pela sua
submissão à uma ideia política, ou à uma crença religiosa, ou a
conceitos relacionados com etnia, gênero e classe social. É lógico que
isso é um sequestro, um aviltamento da arte do cinema que, como a
poesia, a pintura e a literatura, deveria ter o status de belo autônomo, o
valor de um objeto desinteressado. Mas esse é outro assunto.

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Aqui, basta sabermos que esses são os quatro principais tipos de


signi cados que podemos encontrar em um lme e que, ao analisar
uma obra cinematográ ca, nunca devemos deixar de testar as nossas
interpretações, isto é, de ver se o que estamos inferindo está em
coerência com todos os elementos que o lme apresenta.

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