O desaparecimento do presidente Samora Machel torna
mais complicada a situação politica na África Austral. Todos os porta-vozes oficiais, inclusive os sul-africanos, destacaram a atuação moderada do líder moçambicano nas crises internacionais que sacodem o continente africano. Só os extremistas africânderes e os revanchistas portugueses, que afluíram à África do Sul após a descolonização da África lusófona, podem dar vazão a seus impulsos suicidas festejando esse dramático acidente. Durante sua visita oficial a Portugal, no ano passado, o presidente moçambicano conquistou a simpatia dos lusitanos, ao mostrar que enterrara as lanças que feriram duramente os soldados portugueses, para fundar relações de respeito e amizade entre os dois povos. A conciliação rapidamente estabelecida entre Portugal e suas antigas colônias, graças ao empenho de personalidades como Samora Machel e o ex- presidente português Ramalho Eanes, deve ser ressaltada, principalmente na América Latina, ondes os rancores pós- coloniais duram décadas. Até bem pouco tempo, os mexicanos não resistiam à tentação de quebrar a cara de todos os espanhóis que encontrassem na rua no aniversário da independência do México. Samora interessava-se de perto pela história brasileira de ontem e de hoje. Pensava que a redemocratização brasileira facilitaria a aproximação entre os dois países e alimentava a esperança de ser o primeiro presidente moçambicano a visitar oficialmente o Brasil. Não era propriamente um democrata. Onde poderia ter-se impregnado do pensamento liberal? Na sociedade colonial salazarista, onde nasceu e cresceu? Aliás, qual foi o país colonial que se tomou independente e fundou sua administração pública seguindo princípios democráticos? Os Estados Unidos, onde a escravidão deixou sequelas não completamente sanadas? O Império do Brasil, que cobriu até 1850 o tráfico negreiro considerado crime de pirataria pelo direito internacional e pela própria legislação nacional? Bernardo Pereira de Vasconcellos, um autêntico pai da pátria, que Petrônio Portella muito justamente considerava como “síntese dos homens públicos que, aliando o saber ao fazer, conceberam e edificaram instituições políticas estáveis”, foi o autor da justificação mais audaciosa jamais dada à pirataria negreira. Num célebre discurso no Parlamento cm 1843, Bernardo não ficou em meias palavras e disse alto o que a maioria da classe dominante brasileira pensava em voz baixa: "Nossa civilização provém da Costa da África ...porque daquele continente veio o trabalhador robusto, o único que...poderia ter produzido, como produziu, as riquezas que proporcionaram a nossos pais recursos para mandar seus filhos estudar nas academias e universidades da Europa, ali adquirindo os conhecimentos de todos os ramos do direito público constitucional que impulsionaram e apressaram a Independência e presidiram a organização consagrada na Constituição e outras leis orgânicas, ao mesmo tempo fortalecendo a liberdade”. Cáspite! Haja peito para deitar uma falação dessas! Otávio Tarquínio de Souza pretendeu que Berardo fazia aqui a apologia da “miscigenação”, apresentando assim uma ideia que Gilberto Freyre sistematizaria um século mais tarde. Equívoco, pois o pronunciamento de Bernardo é de uma lógica cristalina: os africanos, penando na enxada, produziam as riquezas que permitiam a liberdade e a independência dos cidadãos, isto é, da elite brasileira. Na realidade, Bernardo adaptava o argumento de Platão em “As Leis” e de Aristóteles na “Política”: a escravidão é necessária para garantir a liberdade dos membros da “pólis". Mas um abismo separa os filósofos gregos da antiguidade do político mineiro do Primeiro Reinado. Platão e Aristóteles refletiam num universo onde a escravidão era a regra geral e a sociedade sem escravos só aparecia como uma utopia. Ao contrário, Bernardo fala em pleno século XIX, onde a liberdade era a regra e a escravidão a exceção. É essa tentativa de perpetuar a exceção que dá à declaração de Bernardo toda a sua dimensão. Ao lembrar estes fatos, não se está desrespeitosa e inutilmente “açoitando os ossos de nossos antepassados", como alertava Varnhagen. Trata-se apenas de assumir as páginas difíceis, e eventualmente sinistras, da formação da nossa sociedade. No recente entrevero que teve com o presidente Reagan em Washington, o presidente Sarney, aconselhado pelo Itamaraty, achou que dava um bom troco na prepotência americana ao lembrar que “o Brasil nunca cresceu à custa de outros países". Não é bem verdade. Durante a maior parte do século passado, o Brasil cresceu graças ao sacrifício das famílias africanas que geraram, só no século XIX, um milhão e meio de indivíduos, encomendados e comprados por nossos fazendeiros em navios piratas arvorando o "auriverde pendão ...que a brisa do Brasil beija e balança”. Sem o trabalho forçado desses milhões de deportados, nada se faria, nada se transformaria nesse país. Assumindo em 1975 a direção de Moçambique, que juntamente com Angola e o Benim foi o país africano mais saqueado pelos luso-brasileiros, Samora Machel tinha em torno de si muito menos gente preparada para administrar os negócios públicos do que José Bonifácio de Andrada dispunha no Brasil em 1822. Tudo isso deve ser tomado hoje em consideração. Entre a voracidade de tal ou tal empreiteira que abre estradas do outro lado do Atlântico e a realpolitik do Itamaraty, haverá lugar na sociedade brasileira para uma maior compreensão nas nossas relações com os povos africanos. Principalmente com países como Moçambique, com os quais temos uma irrecusável dívida moral a resgatar.
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.) - História Do Brasil Nação 1808-2010. Volume 1 - Crise Colonial e Independência 1808-1830. Rio de Janeiro Objetiva, 2011.
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