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SAMORA

Jornal do Brasil, 1 novembro 1986

Luiz Felipe de Alencastro

O desaparecimento do presidente Samora Machel torna


mais complicada a situação politica na África Austral. Todos
os porta-vozes oficiais, inclusive os sul-africanos, destacaram
a atuação moderada do líder moçambicano nas crises
internacionais que sacodem o continente africano. Só os
extremistas africânderes e os revanchistas portugueses, que
afluíram à África do Sul após a descolonização da África
lusófona, podem dar vazão a seus impulsos suicidas
festejando esse dramático acidente.
Durante sua visita oficial a Portugal, no ano passado, o
presidente moçambicano conquistou a simpatia dos lusitanos,
ao mostrar que enterrara as lanças que feriram duramente os
soldados portugueses, para fundar relações de respeito e
amizade entre os dois povos. A conciliação rapidamente
estabelecida entre Portugal e suas antigas colônias, graças ao
empenho de personalidades como Samora Machel e o ex-
presidente português Ramalho Eanes, deve ser ressaltada,
principalmente na América Latina, ondes os rancores pós-
coloniais duram décadas. Até bem pouco tempo, os mexicanos
não resistiam à tentação de quebrar a cara de todos os
espanhóis que encontrassem na rua no aniversário da
independência do México.
Samora interessava-se de perto pela história brasileira
de ontem e de hoje. Pensava que a redemocratização brasileira
facilitaria a aproximação entre os dois países e alimentava a
esperança de ser o primeiro presidente moçambicano a visitar
oficialmente o Brasil. Não era propriamente um democrata.
Onde poderia ter-se impregnado do pensamento liberal? Na
sociedade colonial salazarista, onde nasceu e cresceu? Aliás,
qual foi o país colonial que se tomou independente e fundou
sua administração pública seguindo princípios
democráticos? Os Estados Unidos, onde a escravidão
deixou sequelas não completamente sanadas? O Império
do Brasil, que cobriu até 1850 o tráfico negreiro
considerado crime de pirataria pelo direito internacional
e pela própria legislação nacional?
Bernardo Pereira de Vasconcellos, um autêntico pai
da pátria, que Petrônio Portella muito justamente
considerava como “síntese dos homens públicos que,
aliando o saber ao fazer, conceberam e edificaram
instituições políticas estáveis”, foi o autor da justificação
mais audaciosa jamais dada à pirataria negreira. Num
célebre discurso no Parlamento cm 1843, Bernardo não
ficou em meias palavras e disse alto o que a maioria da
classe dominante brasileira pensava em voz baixa: "Nossa
civilização provém da Costa da África ...porque daquele
continente veio o trabalhador robusto, o único
que...poderia ter produzido, como produziu, as riquezas
que proporcionaram a nossos pais recursos para mandar
seus filhos estudar nas academias e universidades da
Europa, ali adquirindo os conhecimentos de todos os
ramos do direito público constitucional que
impulsionaram e apressaram a Independência e
presidiram a organização consagrada na Constituição e
outras leis orgânicas, ao mesmo tempo fortalecendo a
liberdade”. Cáspite! Haja peito para deitar uma falação
dessas!
Otávio Tarquínio de Souza pretendeu que Berardo
fazia aqui a apologia da “miscigenação”, apresentando
assim uma ideia que Gilberto Freyre sistematizaria um
século mais tarde. Equívoco, pois o pronunciamento de
Bernardo é de uma lógica cristalina: os africanos,
penando na enxada, produziam as riquezas que
permitiam a liberdade e a independência dos cidadãos,
isto é, da elite brasileira. Na realidade, Bernardo adaptava
o argumento de Platão em “As Leis” e de Aristóteles na
“Política”: a escravidão é necessária para garantir a
liberdade dos membros da “pólis". Mas um abismo separa
os filósofos gregos da antiguidade do político mineiro do
Primeiro Reinado. Platão e Aristóteles refletiam num
universo onde a escravidão era a regra geral e a sociedade
sem escravos só aparecia como uma utopia. Ao contrário,
Bernardo fala em pleno século XIX, onde a liberdade era a
regra e a escravidão a exceção. É essa tentativa de
perpetuar a exceção que dá à declaração de Bernardo
toda a sua dimensão.
Ao lembrar estes fatos, não se está desrespeitosa e
inutilmente “açoitando os ossos de nossos antepassados",
como alertava Varnhagen. Trata-se apenas de assumir as
páginas difíceis, e eventualmente sinistras, da formação
da nossa sociedade. No recente entrevero que teve com
o presidente Reagan em Washington, o presidente Sarney,
aconselhado pelo Itamaraty, achou que dava um bom
troco na prepotência americana ao lembrar que “o Brasil
nunca cresceu à custa de outros países". Não é bem
verdade. Durante a maior parte do século passado, o
Brasil cresceu graças ao sacrifício das famílias africanas
que geraram, só no século XIX, um milhão e meio de
indivíduos, encomendados e comprados por nossos
fazendeiros em navios piratas arvorando o "auriverde
pendão ...que a brisa do Brasil beija e balança”. Sem o
trabalho forçado desses milhões de deportados, nada se
faria, nada se transformaria nesse país. Assumindo em
1975 a direção de Moçambique, que juntamente com
Angola e o Benim foi o país africano mais saqueado pelos
luso-brasileiros, Samora Machel tinha em torno de si
muito menos gente preparada para administrar os
negócios públicos do que José Bonifácio de Andrada
dispunha no Brasil em 1822. Tudo isso deve ser tomado
hoje em consideração. Entre a voracidade de tal ou tal
empreiteira que abre estradas do outro lado do Atlântico
e a realpolitik do Itamaraty, haverá lugar na sociedade
brasileira para uma maior compreensão nas nossas
relações com os povos africanos. Principalmente com
países como Moçambique, com os quais temos uma
irrecusável dívida moral a resgatar.

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