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TEMAS

ESPECIAIS PARA DEFENSORIA


PÚBLICA ESTADUAL

DIREITOS HUMANOS

Jurisprudência de Órgãos e Tribunais Internacionais do


Sistema Regional Interamericano de Proteção

1. Introdução – sistemas regionais

Iniciando-se pelos sistemas regionais, o quadro atual de proteção dos direitos humanos
no mundo pode ser visualizado no esquema abaixo:

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A proteção internacional dos direitos humanos parte da convivência entre um sistema
global e sistemas regionais.

Os sistemas regionais, atualmente, são três: o sistema europeu, o sistema


interamericano e o sistema africano. Nota-se que inexiste um sistema asiático e há um
incipiente sistema árabe.

O mais antigo e desenvolvido é o sistema europeu. Contudo, o mais importante para


nós hoje é o sistema interamericano, no qual estamos inseridos.

Por que existem os sistemas regionais? Quais seriam as vantagens de sua existência, já
que existe o sistema global de proteção dos direitos humanos?

A primeira vantagem é que eles mantêm uma relação de complementaridade, ou seja,


os sistemas regionais complementam o sistema global e podem ir até além do sistema
global no seu âmbito de proteção. Sendo assim, um sistema não substitui o outro, mas
completa. Dessa forma, quando se olha o sistema global e os sistemas regionais, deve-
se ter em mente essa relação de complementaridade entre eles.

Os sistemas regionais também têm a vantagem da facilitação do consenso, porque,

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quando são colocados na mesa Estados que têm afinidades geográficas e culturais, é
muito mais fácil obter um consenso na aprovação de tratado internacional do que
quando se tem países do mundo todo, que são mais díspares, com culturas mais
diversas e concepções bem diferentes de direitos humanos.

A terceira vantagem é o fortalecimento da proteção, porque é como se o sistema global


apresentasse uma proteção básica, isto é, o mínimo para o globo, e os sistemas
regionais providenciassem uma proteção complementar.

Além disso, a existência de sistemas regionais cria para as vítimas mais uma
possibilidade de acesso às instâncias internacionais. Uma mulher, por exemplo, que tem
seus direitos humanos violados, pode tanto acessar o sistema global – o comitê dos
direitos da mulher – quanto pode buscar uma proteção no âmbito do seu sistema
regional. Há essas duas possibilidades, e a mulher pode avaliar qual é o melhor
caminho para fazer cessar a violação ou obter a reparação dos seus danos.

2. Processo perante a Comissão Interamericana de Direitos


Humanos

Antes de adentrarmos aos casos propriamente ditos, importante rememorar-se os


procedimentos perante os órgãos mais importantes do sistema, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(IDH).

O procedimento é chamado de procedimento dos dois informes ou procedimento dos


dois relatórios e se divide nas seguintes fases:

1) Admissibilidade – Quando a Comissão recebe a petição particular ou estatal, deve


analisar se preenche determinados requisitos, previstos na Convenção Americana (o
que gera alguma mistura da atuação da Comissão com base na Carta da Organização
dos Estados Americanos – OEA e Convenção Americana). De acordo com o próprio
Regulamento da Comissão Interamericana, ela deve verificar se houve o prévio
esgotamento dos recursos internos, ou seja, se todos os recursos internos foram
esgotados e se o Estado já examinou todos os recursos que foram apresentados.

Essa fase tem como requisito o prazo de seis meses, isto é, entre a violação e a petição
deve-se observar o prazo de seis meses, contados, portanto, a partir da violação. Além

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disso, deve haver a inexistência de litispendência internacional, o que significa que o
caso levado à Comissão não pode estar sob análise de nenhum outro órgão
internacional.

2) Informações – Se a Comissão admitir a petição particular ou estatal, solicitará


informações ao Estado. Em seguida, são analisadas as informações e, passando pela
fase de admissibilidade, pode-se arquivar depois das informações.

3) Exame – Pode-se, também, prosseguir com o exame das informações.

4) Tentativa de conciliação – A comissão tenta fazer conciliação. Pontua-se que o


Estado brasileiro já participou de conciliações no âmbito da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos.

5) Primeiro informe – Caso não haja conciliação, a Comissão edita o seu primeiro
informe ou primeiro relatório, chamado Relatório 50, que é encaminhado,
reservadamente, aos Estados. Isto é, a Comissão verifica que houve violação de algum
tratado, portanto faz o parecer reconhecendo a existência da violação e encaminha
para os Estados reservadamente.

Depois de três meses, a Comissão verifica se o Estado cumpriu o relatório ou se essa


questão foi submetida à Corte Interamericana, porque o próprio Estado pode ficar
insatisfeito com o relatório e propor uma ação na Corte Interamericana. Ainda, a
própria Comissão pode propor ação perante a Corte.

Observa-se, assim, que podem acontecer quatro coisas depois do primeiro informe:

a) o cumprimento do relatório, caso em que o assunto está encerrado;

b) o Estado, insatisfeito com a declaração da Comissão, propõe uma ação perante a


Corte Interamericana;

c) a própria Comissão observa e resolve propor uma ação perante a Corte;

d) a Comissão edita o segundo relatório/informe.

6) Segundo informe – Esse segundo informe, diferentemente do primeiro, é público.


Salienta-se que há uma discussão se esse relatório é vinculante para os Estados-partes,
ou seja, se os Estados estão obrigados juridicamente a cumprir o segundo informe da

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Comissão.

A própria Corte, no início do funcionamento do sistema interamericano, falou várias


vezes que o segundo informe não é vinculante do ponto de vista jurídico.
Recentemente, a Corte não aduz de forma evidente se é vinculante, porém tem falado o
seguinte: os Estados devem realizar os seus melhores esforços de boa-fé para cumprir o
segundo informe.

A Corte não é explícita sobre a decorrência da natureza jurídica vinculante, mas fala
que, do ponto de vista da boa-fé, os Estados devem realizar os seus melhores esforços
para cumprir o segundo informe.

2.1. Esgotamento dos recursos internos

A Convenção dispõe que é complementar/coadjuvante/subsidiária à proteção dos


direitos humanos nos Estados, que a responsabilidade primária pela proteção dos
direitos humanos é dos Estados, por isso é que há exigência (muito comum no direito
internacional) de esgotamento dos recursos internos.

Contudo, há várias exceções à regra do esgotamento dos recursos internos.

O art. 46, inciso 2º, da Convenção Americana fala que não será exigido o esgotamento
dos recursos internos se:

I – não existir recurso;

II – se o recurso não é eficaz;

III – se o recurso demorar demais para gerar uma decisão.

Nesse sentido, a própria Corte foi desenvolvendo jurisprudencialmente algumas


exceções. Assim, em situações nas quais o recurso não tenha aptidão para resolver a
violação, não se pode exigir o esgotamento dos recursos internos. Dessa forma, a Corte
tem ampliado tais exceções.

Outro ponto interessante é que a Corte tem jurisprudência pacífica quanto a essa
exceção preliminar, haja vista que o esgotamento dos recursos internos tem natureza
de exceção preliminar dos Estados. Desse modo, quando o Estado é requerido na
Comissão, ele apresenta a alegação de não esgotamento dos recursos internos como

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exceção preliminar, aduzindo que a Comissão não pode admitir a petição porque não
houve o esgotamento dos recursos internos.

A Corte interamericana já pacificou que tal exceção deve ser apresentada perante a
Comissão e, se não for apresentada, o Estado não pode apresentá-la perante a Corte
quando esta tiver que conhecer a matéria. Isso se dá com base no princípio do
estoppel, o mesmo que non venire contra factum proprium.

Assim, se o Estado aceitou que a Comissão conhecesse daquele caso, não apresentando
exceção de esgotamento dos recursos internos, não pode depois, quando o caso chega à
Corte, apresentá-la. Sendo assim, ocorre uma preclusão dessa exceção perante a Corte
caso o Estado não tenha apresentado tal exceção à Comissão.

Por fim, tem-se que o ônus de indicar quais recursos faltam ser esgotados é de quem
alega a exceção. Portanto, se o Estado, perante a Comissão ou Corte, alega que não
houve o esgotamento dos recursos internos, deve indicar quais recursos internos
restam à parte para resolver a questão internamente.

3. Corte Interamericana de Direitos Humanos

A Corte é o órgão jurisdicional do sistema – é o tribunal internacional interamericano –


que pode resolver litígios relacionados à aplicação do corpus iuris interamericano,
sendo um órgão apenas da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Por
isso, a Corte somente atua em relação a Estados que são partes da Convenção
Americana.

Sua composição é de sete juízes, eleitos por seis anos, admitida uma reeleição. O
Brasil já teve vários juízes na Corte Interamericana, como Antônio Augusto Cançado
Trindade e Roberto Caldas.

A Corte Interamericana tem competência consultiva e contenciosa. Por meio da


competência consultiva, a Corte Interamericana dá pareceres sobre a interpretação de
tratados de direitos humanos vigentes no continente interamericano. Sendo assim, os
Estados-partes solicitam parecer da Corte sobre interpretação de determinado tratado.

Por exemplo, o parecer sobre a exigência de diploma de jornalista, no qual a Corte


deu parecer dizendo que, no marco da CADH, não há que se exigir registro profissional

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ou diploma para que alguém exerça a profissão de jornalista, o que acabou
influenciando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em relação à sua competência contenciosa, a Corte resolve casos de violações do


corpus iuris interamericano.

Quem tem legitimidade (jus standi) para levar causas até a Corte Interamericana é a
Comissão Interamericana ou o Estado-parte, de modo que indivíduos não possuem
legitimidade perante a Corte.

3.1. Processo contencioso perante a Corte Interamericana de


Direitos Humanos

O professor divide o processo na Corte Interamericana em quatro fases:

1) Fase postulatória – Ocorre quando a Comissão ou o Estado apresenta a sua


demanda perante a Corte, que a examinará e fará a admissibilidade da petição. Além
disso, ouve-se a outra parte. Por exemplo, se for a Comissão, será ouvido o Estado e
pode-se ouvir as vítimas também. Se for o Estado, pode-se ouvir a Comissão e as
vítimas. Portanto, primeiro há esse debate por escrito na Corte Interamericana.

2) Fase probatória – Nessa fase, a Corte Interamericana faz sessões para ouvir
testemunhas e as vítimas; pode colher prova pericial; e admitir amicus curiae, que é um
amigo da corte (alguém que faz contribuições, no âmbito do seu conhecimento
especializado) para possibilitar o melhor julgamento da causa.

3) Fase decisória – Nessa etapa, a Corte Interamericana decidirá se houve violação ou


não ao direito interamericano; se condenará ou não o Estado-parte da convenção.
Interessante notar que as decisões da Corte Interamericana são obrigatórias para os
Estados nos casos em que eles são partes. A Convenção prevê expressamente no art. 68
que as decisões são vinculantes.

4) Fase executória – Nessa fase, a Corte faz a supervisão do cumprimento das suas
sentenças, isto é, a própria Corte faz esse acompanhamento. Quando há
descumprimento, apresenta um relatório à OEA, que pode tomar suas providências.

3.2. Medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos


Humanos

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A Convenção Americana em seu art. 63, inciso 2º, prevê a possibilidade da expedição
de medidas provisórias, que são espécies de liminares ou medidas cautelares da Corte
Interamericana.

Os requisitos para expedição dessas medidas provisórias são:

(a) extrema gravidade na violação. Dessa forma, não é qualquer violação que dá ensejo
à expedição de medidas provisórias;

(b) urgência. Deve ser uma situação que exige uma atuação imediata da Corte
Interamericana;

(c) destinar-se a evitar danos irreparáveis às pessoas.

A própria Corte tem assentado que essas medidas provisórias não têm natureza
puramente cautelar, mas tutelar. Isso significa que as medidas provisórias não têm o
objetivo puro e simples – que se vê nas medidas cautelares – de preservar o objeto do
processo. O objetivo é proteger justamente o direito das pessoas.

Portanto, quando não há tempo para a Corte fazer todo o processo que foi visto há
pouco, ela expede essas medidas provisórias com intuito, realmente, de proteger os
direitos das pessoas e não apenas proteger o processo ou objeto do processo.

As medidas provisórias podem ser expedidas de ofício ou a requerimento da Comissão.


Podendo ser em qualquer fase, mesmo nos casos que não são de conhecimento da
Corte. Nessa hipótese, é a Comissão que deve fazer o pedido da expedição de medidas
provisórias.

O Brasil já recebeu várias medidas provisórias, principalmente em casos relacionados


ao sistema prisional. Em verdade, na atuação da Corte Interamericana, de forma geral,
as medidas provisórias são para casos relacionados ao sistema prisional. No Brasil,
tanto no caso dos presídios de Pedrinhas quanto no caso Urso Branco, houve a
expedição de medidas provisórias da Corte Interamericana para fazer cessar
imediatamente aqueles casos terríveis de violação dos direitos humanos.

3.3. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o controle


de convencionalidade

O controle de convencionalidade é uma doutrina da Corte Interamericana. Trata-se de

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uma inovação desta Corte e significa o exame da compatibilidade de um ato com o
corpus iuris interamericano e a interpretação a ele dada pela Corte Interamericana.

Em outras palavras, o controle de convencionalidade é o exame de compatibilidade de


um determinado ato estatal com o corpus iuris interamericano e a interpretação que
lhe é dada pela Corte Interamericana.

À vista disso, fala-se que o banco de convencionalidade – um conceito análogo ao


bloco de constitucionalidade – são todos os tratados internacionais de direitos
humanos vigentes no continente americano e a interpretação dada pela Corte
Interamericana. Esse é o parâmetro utilizado no controle de convencionalidade.

Seu fundamento está nos arts. 1º e 2º da Corte Interamericana. Registra-se que


não há previsão expressa desse controle na Convenção Americana. No entanto, a
partir da previsão de que os Estados devem adaptar os seus direitos internos à
Convenção Americana e que os Estados têm a obrigação de fazer cessar as violações
etc., a Corte Interamericana construiu esse entendimento.

Dessa forma, no âmbito do controle, a Corte aduz que os juízes estão vinculados aos
seus direitos nacionais/internos, porém, quando um Estado é parte da Convenção
Americana – do sistema interamericano – os juízes devem prestar obediência, também,
ao direito internacional e à interpretação que é dada pela Convenção.

Assim, a Corte diz que todo juiz, antes de aplicar uma norma, além de fazer o controle
de constitucionalidade, se isso for previsto em seu ordenamento interno (se for possível
o controle difuso de constitucionalidade), deve fazer também o controle de
convencionalidade. Portanto, atualmente, quando o juiz aplica uma norma no Brasil, ele
deve, além de verificar se aquela norma é compatível com a Constituição Federal de
1988 (CF/1988), verificar se é compatível com o direito interamericano.

O principal precedente em que essa doutrina foi desenvolvida é o caso Almonacid


Arellano vs. Chile. Nele, a Corte assentou o raciocínio de que os juízes devem fazer esse
exame de compatibilidade dos atos internos com o direito interamericano.

Observa-se que o controle de convencionalidade tem uma dimensão tanto internacional


quanto interna. Na verdade, o controle de convencionalidade é exercido pela Corte
Interamericana, de modo que, quando ela trabalha julgando as ações propostas pela
Comissão Interamericana e pelos Estados, está fazendo também o controle de
convencionalidade, pois verifica se os atos internos dos Estados são compatíveis com o

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direito interamericano.

Entretanto, também há uma dimensão interna, ou seja, as autoridades internas devem


fazer tal controle, devem verificar se os atos que estão sendo aplicados são compatíveis
com o corpus iuris interamericano e a interpretação dada pela Corte.

Em 2011, no caso Gelman vs. Uruguai, a Corte inovou ao dizer que até mesmo as
autoridades administrativas estão obrigadas a fazer o controle de convencionalidade.

Sendo assim, as autoridades administrativas também devem, no limite dos seus direitos
internos, fazer o exame de compatibilidade entre os atos internos e o direito
internacional, entre os tratados internacionais de direitos humanos e a jurisprudência
da Corte Interamericana.

Em 2006, a Corte, no caso dos Trabajadores cesados del Congreso vs. Peru, falou que o
controle de convencionalidade deve ser exercido também ex officio. Sendo assim, o juiz
ou a autoridade administrativa não precisam ser provocados para fazer o controle de
convencionalidade.

4. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos


Humanos

O conhecimento da jurisprudência da Corte Interamericana é indispensável para as


provas de hoje em dia e para a prática jurídica também.

Serão apresentados os casos mais importantes, os que mais caem em concurso e os que
o Brasil foi parte, pois têm uma probabilidade ainda maior de serem cobrados em
provas de concurso.

4.1. Parecer consultivo nº 5/1985

A Costa Rica solicitou parecer sobre a interpretação dos arts. 13 e 29 da CADH em


relação ao registro profissional obrigatório de jornalistas.

Como foi visto, a Corte Interamericana, além da sua competência contenciosa, tem a
competência consultiva, pela qual a Corte expede pareceres e opiniões consultivas a
respeito da interpretação de tratados de direitos humanos.

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No caso em apreço, a Costa Rica pediu parecer sobre a compatibilidade do registro
obrigatório de jornalistas com a liberdade de expressão e de imprensa previstos na
CADH.

Na ocasião, a Corte afirmou que o registro profissional obrigatório de jornalistas, na


medida em que impede o acesso de qualquer pessoa ao uso pleno dos meios de
comunicação social como veículo para se expressar ou para transmitir informação, é
incompatível com o art. 13 da CADH.

Esse caso já foi cobrado em concurso, mas outro aspecto que também o torna muito
importante é que essa questão já foi decidida pelo STF no RE nº 511.961-SP, sendo que,
na ementa do acórdão do STF, esse parecer consultivo é citado. Trata-se, portanto, de
um exemplo de diálogo das Cortes, em que o STF, para tomar sua decisão, observou a
jurisprudência consultiva da Corte Interamericana e aplicou esse entendimento.

O raciocínio, nesta ocasião, é que a profissão de jornalista tem uma peculiaridade: é


muito difícil separar a atividade profissional do exercício da liberdade de expressão e
da liberdade de informação. Dessa maneira, a própria atividade profissional do
jornalista tem como essência essa liberdade. Sendo assim, restringir a atuação de
jornalista seria restringir também, de forma não proporcional e não razoável, a
liberdade de expressão.

4.2. Caso Velásquez vs. Honduras (1988)

Nesse caso, o Estado de Honduras foi acusado de, em 1981, por meio de suas Forças
Armadas, prender violentamente e sem ordem judicial o estudante Velásquez
Rodríguez, submetê-lo a torturas e interrogatórios e, ainda, negar a sua detenção.

Trata-se de um caso de tortura e desaparecimento forçado. Esse precedente é


importante porque a Corte IDH adota uma tese que servirá de base para vários casos
futuros, inclusive, casos relacionados a crimes praticados durante os períodos
autoritários na América Latina.

No julgamento, a Corte reconheceu as violações à vida, à integridade pessoal e à


liberdade pessoal. Afirmou que o desaparecimento forçado de seres humanos é
uma violação múltipla e contínua de muitos direitos constantes da CADH.

Essa primeira tese está dizendo que o desaparecimento forçado constitui violação não
apenas do direito à integridade física e, eventualmente, do direito à vida, mas também

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do direito de acesso à Justiça dos familiares da vítima. Isso se dá porque, quando
ocorre o desaparecimento forçado (o Estado dá fim em uma pessoa e nega que o fez),
os familiares ficam sem possibilidade de buscar a responsabilização, ficam obstados do
acesso à Justiça.

Além do acesso à Justiça, o direito que será construído posteriormente pela Corte IDH é
o direito à verdade. Assim, os familiares do desaparecido ficam obstados tanto de obter
o acesso à Justiça, ou seja, de buscar a responsabilização das pessoas envolvidas no
crime, quanto do direito à verdade, porque ficam sem saber o que aconteceu, onde
estão os restos mortais da pessoa etc.

Essa é a primeira tese, muito importante, firmada pela Corte IDH nesse caso. A outra é
a seguinte: os Estados têm o dever de prevenir, investigar e punir violações de
direitos humanos enunciados na CADH.

A obrigação de prevenir, investigar e punir violações de direitos humanos não tem


previsão expressa na Convenção Americana. Trata-se de uma construção da Corte IDH
com base numa interpretação sistemática da CADH e também na jurisprudência de
outras cortes de direitos humanos.

Essa tese foi muito importante para casos posteriores porque – com base na premissa
de que os Estados têm a obrigação de prevenir, investigar e punir violações dos direitos
humanos – as normas do direito interno, que afastam ou relativizam essa obrigação,
tornam-se nulas perante a CADH no entender da Corte.

4.3. Caso Última Tentação de Cristo (2001)

O Chile foi acusado de impor censura judicial à exibição cinematográfica de “A


Última Tentação de Jesus Cristo”, por meio de decisão que foi confirmada por
sua Suprema Corte.

Esse filme, “A Última Tentação de Jesus Cristo”, de Martin Scorsese, causa muita
polêmica em ambientes religiosos e pessoas cristãs e, com base na Constituição do
Chile (sendo que o caso chegou à Corte Suprema do Chile), foi assentada censura a
esse filme, ou seja, o filme teve sua exibição proibida no Chile por causa da afronta que
causava a valores religiosos.

Nessa oportunidade, a Corte IDH condenou o Chile pela censura prévia, que violou os
direitos de liberdade de pensamento e expressão (art. 13) assegurado na Convenção. A

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Corte ainda determinou ao Chile que alterasse a sua constituição, de forma a eliminar a
censura prévia.

De acordo com as normas internacionais de direitos humanos e até com as normas


constitucionais de diversos países democráticos, obstar que seja exibido um filme
porque fere a crença de muitas pessoas não é o melhor, haja vista que se abre a
oportunidade para que o Estado decida o que pode ser discutido, refletido e expresso
na sociedade. A liberdade de expressão deve ser potencializada nesse caso, isso é
interessante.

Contudo, o mais interessante desse caso é que a Corte IDH determinou que o Chile
modificasse a sua Constituição, o que mostra uma transformação muito grande
nas relações entre o direito internacional e direito interno. Registra-se que o
Chile cumpriu essa sentença e modificou a sua Constituição, retirando a
possibilidade de censura prévia, para compatibilizá-la com a jurisprudência da Corte
IDH e com o direito internacional.

A seguir, têm-se os casos que são chamados de “a série de casos peruanos e


chilenos”.

4.4. Casos Barrios Altos (2001), Almonacid (2006) e La Cantuta


(2006)

Leis do Peru e do Chile anistiaram os agentes do Estado por crimes praticados


durante os regimes Fujimori e Pinochet, respectivamente.

Os casos Barrios Altos, Almonacid e La Cantuta foram de execução


extrajudicial de grande quantidade de pessoas.

A exemplo do caso Barrios Altos, pessoas vinculadas às Forças Armadas entraram em


uma casa na qual estava havendo uma festa para arrecadar fundos e executaram
dezenas de pessoas que lá estavam.

Já no caso La Cantuta, o presidente do Peru – Fujimori – esteve em uma


universidade e nela foi mal recebido. Em seguida, colocou policiais para vigiar a
universidade porque entendeu que ali havia muitos subversivos e, posteriormente,
ocorreu a execução de vários estudantes e um professor nessa universidade.

Todos esses casos foram de execuções extrajudiciais, nas quais indivíduos vinculados às

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Forças Armadas mataram várias pessoas e, em muitos casos, houve desaparecimentos
forçados, ou seja, as pessoas foram enterradas ou tiveram seus corpos escondidos em
algum lugar.

O que aconteceu, tanto no Chile quanto no Peru, foi que Pinochet e Fujimori, quando
estavam no final de seus regimes, providenciaram a aprovação de leis que os
anistiassem de crimes praticados durante seus respectivos períodos de atuação.
Portanto, eles se autoanistiaram, consignado que sairiam do poder, mas queriam a
garantia de que não responderiam por nenhum dos seus crimes.

Quando esses casos foram investigados – Barrios Altos, Almonacid e La Cantuta – as


justiças do Chile e do Peru disseram que os executores daqueles crimes não poderiam
ser processados porque havia o óbice das leis de anistia, tanto no Peru quanto no
Chile.

Com isso, os casos foram arquivados/extintos.

Nesses casos, a Corte IDH afirmou que as autoanistias, excludentes de


responsabilidade por violações graves dos direitos humanos, são inadmissíveis e, ao
impedir o acesso das vítimas e seus familiares à verdade e à Justiça, são violadoras dos
arts. 1º, 2º, 8º e 25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Sendo assim, a Corte assentou uma jurisprudência pacífica de que leis de autoanistia
são incompatíveis com a CADH, porque violam muitos direitos, inclusive, afastam o
direito à proteção judicial das vítimas, o acesso à Justiça e deixam impunes as graves
violações de direitos humanos.

O raciocínio feito é que crimes contra a humanidade não podem ser afastados
com base em leis de autoanistia.

A Corte IDH discute o que são crimes contra a humanidade em vários casos, sendo que
esse conceito de crime contra humanidade vem desde o Tribunal de Nuremberg e
evoluiu com os casos julgados pelas cortes internacionais criminais e, também, com
tratados que foram sendo celebrados desde os anos 1940 e 1950.

De uma forma geral, os crimes contra a humanidade são definidos como aqueles
ataques generalizados e sistemáticos contra a sociedade civil pelo governo. Portanto,
quando governador adota uma política de praticar uma série de atos de violência contra
a população civil, estamos diante de crimes contra a humanidade.

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Isso, sem dúvida, foi o que ocorreu no Peru e no Chile, pois o governo tomou a
iniciativa, estimulou e dirigiu uma série de atos de violência, como torturas, execuções
e desaparecimentos forçados contra a população civil.

Para a Corte IDH, a responsabilidade por esses crimes contra humanidade não pode ser
afastada com base em leis de autoanistia, seriam leis absolutamente nulas em face da
CADH. Isso é muito importante porque mais à frente serão vistos os desdobramentos
dessa jurisprudência, tanto em relação ao Brasil, quanto em relação ao Uruguai.

4.5. Caso Mayagna (sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua (2001)

Trata-se de caso que envolve direitos indígenas. Nele, a Nicarágua foi acusada de não
demarcar as terras da Comunidade Awas Tingni, de não tomar medidas efetivas que
assegurassem os direitos de propriedade da Comunidade em suas terras, de haver
outorgado uma concessão das terras da Comunidade sem seu consentimento e de não
ter garantido um recurso efetivo para responder às reclamações da Comunidade sobre
seus direitos de propriedade.

Nota-se que é um caso que envolve o direito à propriedade coletiva da terra dos
povos indígenas.

A Corte reconheceu o direito dos povos indígenas à propriedade coletiva da terra, como
tradição comunitária e como um direito fundamental e básico à sua cultura, à sua vida
espiritual, à sua integridade e à sua sobrevivência econômica.

Em outras palavras, a Corte assentou que a propriedade coletiva da terra é um direito


dos povos indígenas que decorre da tradição comunitária e do direito fundamental e
básico a sua cultura, vida espiritual, integridade e sobrevivência econômica. Portanto, é
um direito que tem múltiplas bases na CADH.

Isso acontece porque a visão que os indígenas têm sobre a propriedade é muito
diferente da visão que povos não indígenas costumam ter. Eles têm uma visão que
associa a relação com a terra a uma relação espiritual. Também está associado à sua
cultura, à sua integridade e à sobrevivência econômica.

Como a propriedade coletiva da terra é uma decorrência de todos esses direitos e


também está ligada à questão da proteção da tradição dos povos indígenas, a Corte
IDH condenou a Nicarágua por não ter assegurado o direito dos povos indígenas, ter
outorgado a concessão das terras indígenas sem o consentimento deles, e não ter

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providenciado meios para receber as reclamações feitas pelos indígenas.

4.6. Caso Yakye Axa vs. Paraguai (2005)

O Paraguai foi acusado de não garantir o direito de propriedade da Comunidade Yakye


Axa. Esse é mais um caso relacionado às terras indígenas. Mais à frente, será visto que
o Brasil chega a ser condenado em um caso envolvendo também terras indígenas.

Nesse caso, a Corte reafirmou o significado especial das terras ancestrais para
os povos indígenas, inclusive para preservar sua identidade cultural e
transmiti-las para gerações futuras. Entendeu ainda que a identidade cultural é
um componente agregado ao próprio direito à vida lato sensu.

Essa parte, talvez seja a mais interessante desse caso, porque a Corte IDH faz uma
leitura bastante ampla do direito à vida. Isto é, a CADH prevê o direito à vida e, para a
Corte, o direito à identidade cultural está integrado ao direito à vida. Assim, este
direito não é apenas o direito a estar vivo – direito de não ser morto pelo Estado –, mas
um direito também de ter respeitada a identidade cultural e, para os índios, a
identidade cultural está eminentemente ligada à sua relação com as terras ancestrais.

Dessa maneira, nota-se que não foi vista nenhuma condenação do Brasil. Até 2005, o
Brasil tinha passado ileso pela Corte IDH, sendo que ele já tinha reconhecido a
competência da Corte desde dezembro de 1998. Todavia, em 2006, houve a primeira
condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana, como se vê a seguir.

4.7. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil (2006)

Damião Ximenes recebeu maus tratos em uma clínica psiquiátrica, em 1999, chegando
posteriormente a falecer.

Detalhando o caso, Damião Ximenes Lopes era um jovem que tinha problemas
psiquiátricos, razão pela qual sua mãe o levou para ser internado em uma clínica
psiquiátrica vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Quando ela retornou à clínica
para visitá-lo poucos dias após, ele já estava totalmente machucado, tinha sofrido maus-
tratos e alguns momentos depois veio a falecer.

Isto é, no Hospital do SUS, ele sofreu maus-tratos e, em decorrência disso, adveio a sua
morte. Depois do ocorrido, a família dele buscou a responsabilização civil e penal dos
agentes envolvidos nesse crime e após muitos anos não obtiveram resposta alguma.

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Com isso, após haver esgotado os recursos no Brasil, o caso foi levado à Corte IDH.
Nessa ocasião, a Corte reconheceu as violações dos arts. 4º e 5º da CADH,
notadamente pelo fato de o jovem ter um transtorno mental e pela demora da Justiça
brasileira nos processos criminal e cível ajuizados pela família.

Sobre a morosidade da Justiça brasileira, a Corte entendeu que violou o direito ao


acesso à justiça. No final, a Corte determinou que o Brasil deveria reparar moralmente
e materialmente a família Ximenes, por meio do pagamento de uma indenização e
outras medidas não pecuniárias.

O que mais se destaca nesse caso, além da violação à integridade física e à vida de
Damião Ximenes, é a omissão do Estado em providenciar uma resposta a essas
violações, bem como a demora do Estado – tanto que um dos fundamentos da decisão
foi que a Corte entendeu que a demora da Justiça em dar resposta e proteção judicial
aos familiares da vítima violou o direito de acesso à Justiça.

Percebe-se que o direito ao acesso à Justiça, para a Corte, não é apenas o direito de
bater às portas do Poder Judiciário, de apresentar uma petição ou ajuizar uma ação,
mas é de ter uma resposta em prazo razoável.

Essa foi a primeira condenação do Estado brasileiro na Corte IDH e, a partir desse
momento, foram várias as condenações que o Estado brasileiro sofreu.

4.8. Caso Escher vs. Brasil (2009)

Em maio de 1999, uma juíza autorizou, sem fundamentação e fora de sua


competência, a realização de grampos em linhas telefônicas de cooperativas de
trabalhadores ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), cujas gravações foram vazadas para a imprensa.

Nesse caso, ficou demonstrado nos autos que a juíza, deliberadamente, tentou atacar o
MST. Para isso, combinou com um policial militar que a Polícia Militar (PM) fizesse um
requerimento de interceptações telefônicas (ou seja, fora da competência da PM). Com
isso, a juíza, sem fundamentação, deferiu a interceptação na sede do MST, pegou as
partes que comprometeriam os dirigentes e as pessoas desse movimento social e
divulgou para imprensa.

Esse caso também não conseguiu ter uma resposta no direito interno e chegou à Corte
IDH, que entendeu que o Brasil violou os arts. 11 (proteção da vida privada) e 16

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(liberdade de associação), pois a interceptação realizada em detrimento das vítimas não
observou os requisitos do direito interno e foi feita com a intenção de criminalizar os
trabalhadores rurais ligados a movimentos sociais.

Essa foi a segunda condenação do Estado brasileiro.

4.9. Caso Vélez Loor vs. Panamá (2010)

O Panamá foi acusado de prender o equatoriano Vélez Loor em condições desumanas,


processá-lo sem as devidas garantias por delitos relacionados à sua situação migratória
e de não investigar as denúncias de tortura por ele apresentadas.

O caso em tela envolve os direitos relacionados à migração, no qual um cidadão


equatoriano, Vélez Loor, ingressou no Panamá irregularmente – era um migrante
indocumentado/irregular. Chegando lá, ele foi preso somente porque estava com
situação documental irregular e sofreu tortura na prisão, motivo pelo qual apresentou
queixas a respeito das torturas sofridas na sua detenção e nenhuma de suas queixas
recebeu processamento.

Diante isso, o caso foi levado à Corte IDH, que entendeu o que o Panamá violou a CADH
e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Afirmou que é arbitrária
a detenção obrigatória dos migrantes irregulares, sem que as autoridades competentes
verifiquem em cada caso a possibilidade de utilizar medidas menos restritivas que
sejam efetivas.

Para a Corte IDH, a prisão automática de migrante irregular viola a CADH e é


incompatível com os direitos humanos. Na verdade, em cada situação, deve-se verificar
se outras medidas podem ser utilizadas.

Portanto, a prisão automática e obrigatório de imigrantes irregulares é incompatível


com a CADH, de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana.

4.10. Caso Garibaldi vs. Brasil (2010)

O Estado Brasileiro foi acusado de não cumprir a sua obrigação de investigar e punir as
violações dos direitos humanos decorrentes da execução extrajudicial de Sétimo
Garibaldi, militante do MST.

Esta é mais uma ocasião em que o Brasil foi condenado por causa da demora ou da

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ausência de resposta a uma violação dos direitos humanos. Houve, nesse caso, uma
execução extrajudicial que não teve resposta do Estado brasileiro em tempo razoável.

No julgamento, a Corte assentou que o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e


à proteção judicial (arts. 8º e 25) dos familiares de Garibaldi em razão da excessiva
demora na investigação criminal.

Portanto, o Estado brasileiro foi omisso na investigação criminal e na responsabilização


criminal dos envolvidos nesse crime.

4.11. Caso Gomes Lund ou Araguaia vs. Brasil (2010)

É um caso que deu muita repercussão na imprensa e que, até hoje, ainda não foi
solucionado. A relação entre a jurisprudência da Corte IDH com a jurisprudência
interna – que estão em conflito nesse caso – ainda não foi resolvida.

O Estado brasileiro foi acusado de execução extrajudicial de uma pessoa e de detenção


arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido
Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia, como resultado de operações
do Exército Brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a
Guerrilha, no contexto da Ditadura Militar.

Aconteceu que, nos anos 1970, várias pessoas – principalmente jovens – começaram a
organizar uma Guerrilha na região do Araguaia para se opor com armas ao regime
militar. Sendo assim, o exército brasileiro iniciou algumas operações para poder
sufocar aquele movimento armado, de modo que foram feitas algumas campanhas e o
resultado dessas operações foi que várias pessoas desse movimento armado foram
mortas.

Registra-se que elas não foram apenas mortas, foram também enterradas em valas e
tiveram seus restos mortais escondidos no centro do Brasil, no Araguaia. Na Comissão
Interamericana e na Corte Interamericana ficou provada a morte de uma pessoa e o
desaparecimento de várias outras.

Entretanto, nessas incursões do exército brasileiro, esses não foram os únicos eventos
ocorridos. Houve também expropriações, torturas e interrogatórios aos camponeses –
pessoas que moravam lá –, tudo com o fim de identificar e localizar onde estavam os
membros desse movimento armado e para poder ter sucesso a operação militar.

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O Brasil foi acusado e as pessoas envolvidas na operação militar foram processadas na
Justiça do país; foram iniciados inquérito e ações penais, que nunca progrediam porque
se invocava a Lei de Anistia brasileira.

Essa lei foi um pouco diferente das leis de anistia do Peru e do Chile, anteriormente.
Enquanto no Chile e no Peru as leis de anistia foram leis aprovadas pelos regimes
autoritários com a finalidade específica de obstar as ações penais contra os agentes
públicos, no Brasil, a Lei de Anistia foi o resultado de um movimento iniciado para se
anistiar os perseguidos políticos, no caso, os opositores políticos do regime militar.

Porém, quando a Lei foi aprovada, ela adquiriu outro sentido, qual seja: anistiar não
apenas os perseguidos políticos, mas também os agentes públicos. Posteriormente, essa
Lei, interpretada pelo STF, teve a sua constitucionalidade declarada na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153. O STF afirmou que a Lei de
Anistia brasileira era geral, ampla, bilateral (ou seja, alcançava os dois lados).

Com isso, tanto os perseguidos políticos quanto os perseguidores, na visão do STF na


ADPF nº 153, foram anistiados pela Lei brasileira de anistia, que foi aprovada em
1979.

Como foi dito, no Brasil, não foram para frente as investigações e ações penais contra
as pessoas envolvidas na Guerrilha do Araguaia, justamente porque a Lei de Anistia
tinha sido interpretada como ampla, geral e bilateral, o que impedia que os agentes
públicos fossem punidos por crimes praticados durante a ditadura.

Diante disso, o caso chegou à Corte IDH, que concluiu que o Estado brasileiro é
responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas. Com base no direito
internacional e em sua jurisprudência constante, a Corte Interamericana concluiu que
as disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e sanção de
graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a CADH, razão pela qual
não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos do
caso, nem para a identificação e a punição dos responsáveis.

Portanto, no caso Gomes Lund, a Corte IDH afirmou com todas as letras que a Lei
brasileira de anistia é incompatível com a CADH e com o direito internacional dos
direitos humanos.

Consoante foi dito sobre sistema interamericano, as sentenças da Corte IDH, nos casos
em que os Estados são parte, são para eles vinculantes. Dessa forma, quando o Estado

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é condenado pela Corte IDH, ele não tem a opção de descumprir a sentença, bem como
não é obrigado a cumprir apenas as sentenças que ele considere corretas.

Tem-se que os Estados são obrigados a cumprir as condenações com base no princípio
da boa-fé e do pacta sunt servanda, ou seja, se o Estado reconheceu a competência da
Corte IDH para julgar casos contenciosos, se ele é signatário da CADH – diz que as
sentenças são obrigatórias e que os Estados que são condenados devem cumpri-las –
ele não pode, posteriormente, dizer que não cumprirá determinada sentença, porque
não a considera justa ou correta. Isso seria uma violação, inclusive, do princípio do non
venire contra factum proprium, ou princípio do estoppel, que veda atos
contraditórios. Portanto, os Estados devem cumprir as condenações.

Entretanto, no Brasil, existe um problema: uma decisão da nossa Corte Suprema é


contrária à decisão da Corte IDH. Desse modo, na ADPF nº 153 o STF – pouco antes
dessa condenação da Corte Interamericana – teve que julgar se a Lei de Anistia é
compatível com a CF/1988 e o STF consignou que essa Lei é constitucional.

O primeiro problema que se tem é que a Corte IDH, no momento em que o STF julgou a
ADPF nº 153, já tinha uma jurisprudência constante e pacífica no sentido da
inconvencionalidade, ou seja, da incompatibilidade das leis de anistia com a CADH.
Sendo que o STF, nesse caso, simplesmente ignorou a jurisprudência da Corte.

Em suma, o Brasil não havia, ainda, no momento da ADPF nº 153, sido condenado pela
Corte IDH, mas já existia uma jurisprudência pacífica na Corte e, mesmo assim, o STF
simplesmente a ignorou.

Registra-se que o único ministro, nesse julgamento, que faz algumas considerações a
respeito da jurisprudência da Corte IDH é Celso de Mello. Os demais não tomam
conhecimento da Corte. Esse é um problema que existe no STF: o diálogo do
Supremo com a Corte Interamericana é superficial. Nota-se que o STF, às vezes,
cita a Corte IDH apenas para reforçar uma decisão que já foi tomada. Dificilmente, o
STF vai à jurisprudência da Corte para poder aprender, discutir, dialogar e debater.

Na verdade, o STF apenas vai a esta jurisprudência depois que toma a decisão, ocasião
em que, eventualmente, busca as decisões das cortes internacionais – inclusive da
Corte IDH – para reforçar seu argumento. Dificilmente, ao ter que tomar uma decisão,
observa o que dispõe a Corte.

A Corte IDH, aliás, quando julgou o caso Gomes Lund, que foi depois da ADPF nº 153,

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critica o STF exatamente por não ter feito o controle de convencionalidade, isto é, por
não ter considerado a jurisprudência da Corte IDH para tomar sua decisão.

Nota-se que, nesse caso, há um impasse. Tem uma decisão do STF dizendo que a Lei de
Anistia é válida, que crimes contra humanidade, praticados durante o regime militar,
não podem ser investigados, processados e punidos. Lado outro, tem uma sentença
obrigatória da Corte IDH dispondo que a Lei brasileira de anistia é inválida e não pode
obstar a persecução de crimes contra a humanidade, ou seja, aqueles agentes públicos
que praticaram grave violação de direitos humanos – que perseguiram a população civil
– devem ser processados.

Diante dessa controvérsia, muitos textos já foram escritos e muitas reflexões já foram
feitas a respeito desse problema. Uma proposta interessante é a de André de Carvalho
Ramos, membro do Ministério Público Federal, que propõe, para resolver esse impasse,
a teoria do duplo controle.

Essa teoria afirma que os atos internos devem se sujeitar a um controle tanto de
constitucionalidade quanto de convencionalidade. Sendo assim, para que um ato seja
válido, ele deve passar nos dois testes, tanto no de constitucionalidade quanto no de
convencionalidade.

E, para ele, a Lei de Anistia brasileira foi aprovada no teste de constitucionalidade (pois
o STF é quem dá a última palavra em matéria de constitucionalidade), contudo, foi
reprovada no teste de convencionalidade, pois a Corte IDH (que dá a última palavra em
matéria de CADH) disse que a lei brasileira de anistia é incompatível. Portanto, como
foi reprovada nesse teste, não pode ser aplicada – é nula do mesmo jeito.

Provavelmente o STF irá se deparar de novo com o tema, pois há uma ADPF em curso –
que tenta reinterpretar a ADPF nº 153 à luz da jurisprudência da Corte IDH – dizendo
que o STF não se pronunciou especificamente sobre os crimes contra a humanidade.
Dessa forma, essa ADPF busca uma declaração do STF para dizer o seguinte: ainda que
a Lei de Anistia seja válida, como se trata de crimes contra a humanidade, ela não pode
ser aplicada e afastar a responsabilidade dos agentes públicos.

4.12. Caso Gelman vs. Uruguai (2011)

Em 1976, Marcelo Gelman foi executado e María Gelman – sua companheira – foi
trasladada ao Uruguai onde deu à luz a sua filha María Macarena, que foi entregue a
uma família uruguaia. María Gelman encontrava-se desaparecida até a data do

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julgamento.

Esse casal de opositores políticos ao regime militar no Uruguai foi procurado, inclusive,
por uma operação conjunta – a operação Condor – que envolvia autoridades de várias
ditaduras da América Latina, porque essas ditaduras foram mais ou menos
coordenadas.

Agentes dessa operação Condor foram à Buenos Aires, executaram Marcelo Gelman,
pegaram a esposa dele que estava grávida e a levaram para o Uruguai. Ela desapareceu
(provavelmente foi morta e os restos mortais enterrados em algum lugar) e a filha foi
entregue a um casal uruguaio para ser adotada, sendo que ela cresceu sem saber do
seu passado. Somente quando adulta, teve conhecimento da sua história.

A partir disso, o caso chegou à Corte IDH, que fez pronunciamentos muito
interessantes.

O caso Gelman, portanto, é muito rico para se estudar.

O caso de María Macarena foi considerado uma forma particular de desaparecimento


forçado de pessoas.

Observa-se que, até então, a Corte IDH tinha se defrontado com casos de
desaparecimento forçado em que o desaparecido, muito provavelmente, havia sido
executado, ou seja, havia sido morto e os seus restos mortais escondidos em um lugar.

Todavia, nesse caso, María Macarena não havia sido executada, não havia sido morta.

Ela havia sido apagada de outra forma, sendo entregue a um casal, de modo que os pais
tanto de Marcelo Gelman quanto de María Gelman ficaram sem saber onde estava neta.

Essa situação foi considerada um caso de desaparecimento forçado e a Corte


IDH aplicou a Convenção Americana de Desaparecimento Forçado.

Com isso, consignou-se que a referida situação afetou o direito à identidade, que
apesar de não se encontrar expressamente contemplado na Convenção, pode ser
determinado nas circunstâncias do presente caso com base no disposto na
Convenção sobre os Direitos da Criança.

Como María Macarena não teve oportunidade de conhecer o seu passado, a sua

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história, os seus pais, pois isso lhe foi privado pelo Estado, entendeu-se que houve
violação do seu direito à identidade. Esse direito, nessas circunstâncias, não está
previsto na Convenção Americana, mas está na Convenção sobre o Direito da Criança,
de modo que a Corte IDH aplicou essa Convenção.

Ademais, a Corte afirmou que não apenas as “autoanistias” são incompatíveis com a
CADH, pois, mais do que o processo de adoção e da autoridade que emitiu a lei de
anistia, a Corte se atém a sua ratio legis: deixar impunes graves violações ao
Direito Internacional.

Esse é o ponto mais polêmico do caso Gelman porque, conforme foi dito, as ditaduras
militares na América Latina não foram idênticas – cada uma teve um histórico, um
procedimento etc. – embora elas estivessem um tanto coordenadas.

O fim dessas ditaduras também não foi idêntico e as leis de anistia também não.
Enquanto no Peru e no Chile as leis foram de autoanistia, ou seja, os ditadores, ao final
das ditaduras, aprovaram leis de anistia como condição para deixar o poder, no Brasil, a
anistia começou como uma discussão para anistiar os perseguidos políticos e, depois, a
lei acabou abrangendo também, na visão do STF, os agentes políticos – perseguidores.

No Uruguai, por sua vez, foi muito diferente, pois já no regime democrático um
Congresso eleito democraticamente aprovou a lei de anistia, alcançando os fatos
ocorridos durante a ditadura.

Essa lei, aprovada por um Congresso democraticamente eleito, foi submetida a


mecanismos de democracia direta, isto é, o povo aprovou em duas ocasiões essa lei,
haja vista que o povo decidiu que queria anistiar por mecanismos de democracia direta.

Portanto, a Corte IDH se deparou com essa situação, que é bem diferente da situação
do Chile, do Peru e do Brasil, tendo em vista que foi um caso no qual a lei de anistia foi
aprovada já na democracia, por um Congresso eleito e que o povo, diretamente,
afirmou que considerava essa lei legítima e que queria, realmente, anistiar o passado.

Diante disso, a Corte IDH, surpreendentemente, afirmou que a lei de anistia do


Uruguai também era incompatível com a Convenção Americana, porque o
problema não é que a lei é de autoanistia, mas que deixa as graves violações de direitos
humanos sem resposta.

Portanto, o problema das leis de anistias, para a Corte IDH, é que as vítimas e seus

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familiares ficam sem ter uma resposta e que graves violações de direitos humanos
ficam impunes.

Nesse caso, a Corte IDH também afirmou que a democracia direta não tem o poder de
confirmar qualquer conteúdo, isto é, caso vá para mecanismos de democracia direta, se
é possível violar direitos humanos, esse resultado, ainda que chancelado pela soberania
popular, não será legítimo perante o direito internacional, justamente porque a
democracia direta não pode chancelar qualquer conteúdo.

Dessa forma, o simples fato de ter sido aprovado por plebiscito ou referendo não
significa que aquele ato é legítimo perante o direito internacional. Esse foi o
entendimento da Corte IDH. O direito internacional tem os seus próprios princípios e
critérios para examinar se um determinado conteúdo é válido ou não e, nesse caso,
apesar de a população ter dito que a lei era válida, a Corte IDH disse que, perante o
direito internacional, essa lei não era válida. Portanto, a Corte IDH declarou a
inconvencionalidade da lei uruguaia.

A situação ficou um pouco menos complexa porque a própria Corte Constitucional


uruguaia acabou assentando que essa lei era inconstitucional, de modo que ficou mais
fácil para a Corte IDH dizer que a lei era inconvencional.

Trata-se de um caso muito interessante da Corte IDH e que levanta diversos


questionamentos e reflexões sobre o seu papel e sobre o respeito que ela deve manter
em relação às decisões que a população e os Estados tomam.

Repisa-se que, nesse caso, a Corte afirmou que o fato de que a Lei de Caducidade tenha
sido aprovada em um regime democrático e ainda ratificada ou respaldada pela
população em duas ocasiões não lhe concede automaticamente, nem por si só,
legitimidade perante o direito internacional.

Mais um aspecto interessante mencionado pela Corte foi que todos os órgãos estatais,
inclusive seus juízes, são obrigados a exercer ex officio um controle de
convencionalidade, evidentemente no marco de suas respectivas competências e da
normativa processual correspondente.

Isto é, não apenas os juízes devem fazer o controle de convencionalidade, mas todos os
órgãos estatais. O Poder Executivo e o Poder Legislativo também devem fazer o
controle de convencionalidade.

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A partir de agora, serão abordados somente casos recentes – de 2016 em diante – nos
quais o Brasil foi condenado na Corte IDH.

4.13. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016)

A República Federativa do Brasil foi acusada de não prevenir e não responsabilizar os


autores da prática de escravidão contemporânea.

Infelizmente, ainda existem muitos casos de escravidão no país em propriedades rurais


e o Brasil não está tendo capacidade de fiscalizar e reprimir tais casos, de modo que
essa situação chegou à Corte IDH.

Segundo a Corte, restou provado que, na Fazenda Brasil Verde, foram encontradas mais
de cem pessoas que, depois de terem os seus documentos confiscados, eram colocadas
em uma situação degradante, não podiam sair da Fazenda e eram obrigadas a comprar
comida e remédios com o dono da Fazenda.

O caso em apreço era uma situação clássica de escravidão contemporânea, na qual um


sujeito intermediário – chamado o gato – pega pessoas que estão precisando de
trabalho, retirando-as de seus lugares e as leva para uma fazenda. Chegou lá, essas
pessoas têm seus documentos confiscados, são submetidas a situações degradantes –
dormem, se alimentam e bebem água com os animais – possuem jornadas de trabalho
exaustivas e começam, depois de um tempo, a dever aos empregadores. A situação de
débito com os patrões deixa essas pessoas presas a tais circunstâncias.

No final, a Corte condenou o Brasil pela violação de vários dispositivos da Convenção e


afirmou que a escravidão contemporânea é um crime contra a humanidade e, portanto,
imprescritível.

Nesse caso, portanto, a Corte afirmou expressamente que a escravidão contemporânea


é uma modalidade de crime contra humanidade, de modo que há todo um regime para
crimes desse tipo, tal como ser imprescritível, não se aplicar o ne bis in idem e coisa
julgada quando chega à Corte IDH americana, nas hipóteses dos mencionados
institutos afastarem a responsabilidade dos autores.

Como se trata de crime contra humanidade, esses mecanismos do direito interno não
podem afastar a responsabilidade dos autores do crime.

4.14. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil (2017)

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O Estado brasileiro foi condenado por violações relacionadas a duas incursões policiais
na Favela Nova Brasília, nos anos de 1994 e 1995, que resultaram no homicídio de 26
homens e em atos de violência sexual contra três mulheres.

Policiais invadiram algumas vezes a favela, executaram várias pessoas, violentaram


sexualmente algumas mulheres, e a Corte assentou que nas investigações penais sobre
mortes decorrentes de intervenção policial deve ser garantido que o órgão investigador
seja independente dos funcionários envolvidos no incidente.

Nesse caso, aconteceu que a própria PM investigou o que havia ocorrido e tudo ficou
justificado como autos de resistência, isto é, as pessoas tinham sido executadas e
violentadas sexualmente porque haviam resistido à operação militar.

Evidentemente, a violência sexual ficou omitida, mas as mortes foram justificadas com
base em autos de resistência e o procedimento, no âmbito da PM, resultou em
arquivamento, de modo que não se deu andamento à apuração desses crimes.

Diante disso, a Corte IDH falou que não dava para a PM investigar os próprios policiais
militares quando se trata desses crimes, sendo assim, deve ser sempre um órgão
independente a investigar.

Além disso, a Corte reconheceu a demora (como sempre) no desenvolvimento das


investigações, pois foram 15 anos para se investigar o caso, sendo que o resultado, no
Brasil, foi a prescrição.

Em suma, a Corte assentou duas coisas importantes: primeiro, órgão independente


para investigar essas violações e, segundo, quando há demora, ocorre violação
também da Convenção Americana.

4.15. Caso Povo Indígena Xucuru vs. Brasil (2018)

O processo de reconhecimento, titulação e demarcação do território indígena Xucuru


demorou mais de 10 anos (de 1989 a 2001), sendo que a titulação somente foi
executada em 2005 e, até a data do julgamento, não havia sido concluída a retirada de
não indígenas do território.

Sendo assim, o Brasil demorou muito para concluir o processo de demarcação das
terras, sendo que os indígenas já estavam nas terras há muito tempo antes de outubro
de 1988 – que foi o marco utilizado pelo ordenamento para se fixar o direito às terras

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indígenas.

Desse modo, para fazer a demarcação demoraram mais de 10 anos; feita a demarcação,
o Estado brasileiro demorou para titular – registrar em cartório, adotando-se os
procedimentos administrativos – e, quando teve o julgamento, apesar de ser finalizada
a demarcação, não havia sido concluída a desintrusão dos não indígenas – retirada dos
não indígenas dessa terra do povo Xukuru.

Desse modo, a Corte concluiu que a demora do processo e da desintrusão dos não
indígenas foi excessiva e declarou o Brasil responsável pela violação do direito à
garantia judicial de prazo razoável (art. 8, inciso 1º), dos direitos de proteção judicial e
à propriedade coletiva (arts. 25 e 21) que os indígenas têm direito.

Essa é mais uma condenação do Brasil relacionada aos direitos indígenas. Como o
Brasil, até o ano passado, ainda não havia cumprido a condenação no caso Gomes Lund,
o país teve novamente julgada a questão relacionada à sua Lei de Anistia, conforme se
vê a seguir.

4.16. Caso Herzog vs. Brasil (2018)

A Corte reconheceu violações relacionadas à falta de investigação, julgamento e


punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog.

Vladimir Herzog era um jornalista (não era militante, não pegava em armas, não era
como no caso da Guerrilha do Araguaia, na qual se preparava para atacar com armas o
regime militar) que foi “convidado” para ir ao DOPS (Departamento de Ordem Política e
Social) para prestar esclarecimento. Salienta-se que as pessoas eram frequentemente
chamadas para dar esclarecimentos sobre suas atividades, para provar que não eram
subversivas ou que não participavam de partidos de esquerda etc.

Na verdade, a política chamou Vladimir Herzog para ir ao DOPS e alguém falou para
deixar que ele fosse no dia seguinte. Neste dia, ele foi voluntariamente ao
Departamento, onde sofreu tortura da qual resultou a sua morte. Mas a polícia, para
poder disfarçar o que havia acontecido, fez uma encenação de suicídio, considerada
“bizarra”, porque, pela fotografia do seu enforcamento, ele teria se enforcado em um
lugar mais baixo que ele. Foi feito também um laudo manipulado para dizer que não
houve tortura e que ele não foi morto pelos agentes públicos, confirmando a tese do
suicídio.

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Essa questão foi, durante muito tempo, discutida. Houve uma ação na Justiça Federal,
ainda durante a ditadura, na qual um juiz muito corajoso – numa ação declaratória –
afirmou que a morte foi cometida por agentes públicos e que não havia ocorrido
suicídio, invalidando o laudo que afirmava ter sido esta a causa da morte.

Apesar dessa ação declaratória, os responsáveis pela morte de Vladimir Herzog não
foram julgados, justamente com base na Lei de Anistia. Posteriormente, já na
democracia, descobriu-se que um determinado agente público estava envolvido nesse
assassinato. Quando o Ministério Público Federal propôs a ação, o caso foi arquivado.

Depois de um tempo, foi invocada a coisa julgada para que o agente público
responsável não fosse processado.

Pontua-se que foram invocados diversos argumentos para que os responsáveis não
fossem processados, tais como, a Lei de Anistia, coisa julgada – porque o inquérito
havia sido arquivado –, o ne bis in idem e a prescrição.

Com isso, o caso chegou à Corte IDH, que dispôs que houve violação do direito de
conhecer a verdade em detrimento dos familiares do jornalista.

Isso porque a Corte IDH tem o entendimento de que existe o direito à verdade – direito
de saber o que aconteceu no caso de desaparecimento forçado ou de violação dos
direitos humanos – e que essa verdade está muito associada ao processo penal.

Dessa forma, para a Corte IDH, a verdade nessas situações é alcançada por meio da
investigação e apuração criminal do caso.

Sendo assim, a Corte reafirmou que a Lei de Anistia, a prescrição, o ne bis in idem e a
coisa julgada são inaplicáveis aos crimes contra a humanidade.

Isto é, ninguém pode deixar de ser processado por um crime contra humanidade com
base em lei de anistia, em prescrição, em coisa julgada ou em ne bis in idem. Esse é o
entendimento da Corte IDH que foi reafirmado em 2018 no caso em que o Brasil foi
parte.

Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise estatística de incidência


dos temas em provas de concursos públicos.
A autoria dos e-books não se atribui aos professores de videoaulas e podcasts.

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Todos os direitos reservados.

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