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CASO DA REPARAÇÃO DOS PREJUÍZOS SOFRIDOS AO SERVIÇO DAS

NAÇÕES UNIDAS1

Harris, D. J. (2004), Cases and Materials on International Law. London: Sweet


& Maxwell, pp. 131 - 138

A 17 de Setembro de 1947, o Conde Folque Bernadotte, de


nacionalidade sueca, foi assassinado por um grupo de terroristas, na nova
cidade de Jerusalém, então sob controlo israelita. O Conde Bernadotte era o
Negociador Chefe das Nações Unidas, naquela área. Ao decidir sobre que
acção devia ser tomada em relação a sua morte, a Assembleia Geral das
Nações Unidas solicitou o parecer do Tribunal Internacional de Justiça. Israel
foi admitido como membro das Nações Unidas a 11 de Maio de 1949, pouco
depois do Tribunal ter emitido o seu parecer.

Parecer do Tribunal

A primeira questão colocada ao Tribunal é a seguinte:

Em caso de um agente das Nações Unidas sofrer, no exercício das suas


funções, danos em circunstâncias que envolvam a responsabilidade de um
Estado, terão as Nações Unidas, como Organização, a capacidade de
apresentar uma reclamação internacional contra o governo de jure ou de facto
responsável, com a finalidade de obter a devida reparação em relação ao (a)
dano causado às Nações Unidas, (b) à vítima ou seus representantes legais?

Os sujeitos de direito em qualquer sistema jurídico não são


necessariamente idênticos quanto `a sua natureza ou à extensão dos seus
direitos, e a sua natureza depende das necessidades da comunidade. Ao longo
da história, o desenvolvimento do direito internacional foi influenciado pelas
exigências da vida internacional e o aumento progressivo da acção colectiva
dos Estados já resultou em casos de acções intentadas, no plano internacional,
por determinadas entidades que não são Estados. Este desenvolvimento
culminou na instituição, em Junho de 1945, de uma organização internacional
cujos fins e princípios estão definidos na Carta das Nações Unidas. Todavia,
para alcançar estes fins, é indispensável a atribuição da personalidade
internacional.

A Carta não se limitou a fazer com que a Organização por si criada fosse
meramente um centro destinado a harmonizar a acção das nações para a
prossecução desses objectivos comuns (Número 4 do Artigo 1.º). Ela dotou

1
Tradução livre. © Amílcar Mário Quinta. O texto integral deste Caso pode se consultado em
I.C.J. Reports 1949 ou em www.icj-cij.org.
aquele centro de órgãos e conferiu-lhes responsabilidades especiais. Ela
definiu a posição dos Estados Membros em relação `a Organização, ao exigir
que aqueles lhe prestem toda assistência em qualquer acção que ela
empreender (Número 5 do Artigo 2.º) e a aceitar e implementar as decisões do
Conselho de Segurança; autorizando a Assembleia Geral a emitir
recomendações aos Estados Membros; conferindo à Organização capacidade
jurídica e privilégios e imunidades no território de cada um dos seus Estados
Membros; e dispondo sobre a conclusão de acordos entre a Organização e os
seus Membros. A prática - particularmente a conclusão de convenções de que
a Organização é parte - confirma o carácter da Organização, que, em alguns
aspectos, ocupa uma posição distinta da dos seus Membros, e que tem o dever
de recordá-los, se necessário, de algumas obrigações. Deve ser acrescentado
que a Organização é um órgão político com responsabilidades políticas de
carácter importante e que abarcam um vasto campo, designadamente a
manutenção da paz e da segurança internacionais; o desenvolvimento de
relações de amizade entre as nações e realizar a cooperação internacional na
resolução de problemas internacionais de carácter económico, social, cultural
ou humanitário (Artigo 1.º); e, na sua relação com os seus Membros, emprega
meios políticos. A Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações
Unidas, de 1946, cria direitos e deveres entre cada um dos signatários e a
Organização (ver, em particular, a secção 35). É difícil divisar como poderá
essa Convenção operar a não ser no plano internacional e entre partes
detentoras de personalidade internacional.

Na opinião do Tribunal, a Organização foi criada para exercer e gozar - e


está de facto exercendo e gozando - funções e direitos que apenas podem ser
explicados com base na posse de uma ampla medida de personalidade
internacional e na capacidade de operar no plano internacional. Ela é,
presentemente, um tipo supremo de organização internacional e não poderá
desempenhar os propósitos dos seus fundadores se estiver privada de
personalidade internacional. Deve ser reconhecido que os seus Membros, ao
conferir-lhe certas funções, acompanhadas dos respectivos deveres e
responsabilidades, revestiram-na das competências exigidas para que essas
funções sejam exercidas eficientemente.

Deste modo, o Tribunal concluí que a Organização é uma pessoa


internacional. Isto não equivale a dizer que a Organização seja um Estado, o
que decerto não é, ou que a sua personalidade jurídica, os seus direitos ou
deveres sejam os mesmos que os de um Estado. Nem tão pouco isso quer
dizer que ela é um super-Estado, qualquer que seja o significado dessa
expressão.

Nem sequer isto implica que todos os direitos e deveres da Organização


devem situar-se no plano internacional, do mesmo modo que nem todos os
direitos e deveres dos Estados devem situar-se nesse plano. Isto significa que
a Organização é um sujeito de direito internacional, que tem capacidade para
ser titular de direitos e deveres internacionais e que tem capacidade para
exercer estes direitos por via de uma reclamação internacional.

A próxima questão é a de saber se a soma dos direitos internacionais da


Organização compreende o direito de apresentar o tipo de reclamação
internacional descrito na solicitação deste Parecer. Ou seja, uma reclamação
dirigida contra um Estado no sentido de obter a reparação dos prejuízos
causados por danos provocados à um agente da Organização, no decurso do
exercício das suas funções. Enquanto o Estado possuí a totalidade dos direitos
e deveres reconhecidos pelo direito internacional, os direitos e deveres de uma
entidade como a Organização, dependem dos fins e funções previstos,
expressa ou implicitamente, nos seus documentos constitutivos e
desenvolvidos pela prática. As funções da Organização são de tal carácter que
não podiam ser exercidas com eficácia se elas envolvessem a acção
concorrente, no plano internacional, de quarenta e oito ou mais Ministérios das
Relações Exteriores2, e o Tribunal concluí que os Membros dotaram à
Organização da capacidade para intentar uma reclamação internacional,
sempre que se mostre necessário no exercício das suas funções. (Omisso).

(Omisso). Não se pode duvidar que a Organização tenha capacidade


para apresentar uma reclamação internacional contra um dos seus Membros
que lhe tenha causado prejuízos em violação das suas obrigações
internacionais em relação à si. Os prejuízos especificados na alínea a) da
Questão I significam unicamente prejuízos provocados aos interesses da
própria Organização, à sua máquina administrativa, à sua propriedades e bens,
assim como aos interesses de que ela seja guardiã. É claro que a Organização
tem capacidade para intentar uma reclamação por estes danos. Contanto que a
reclamação tenha como fundamento a violação de uma obrigação internacional
por parte de um Membro que a Organização considere culpado, o Membro não
pode alegar que essa obrigação seja regida pelo direito interno, sendo
justificável que a Organização atribua à sua reclamação o carácter de uma
reclamação internacional.

Quando a Organização sofre um dano resultante de uma violação, por


um dos seus Membros, das suas obrigações internacionais, é impossível
divisar como ela poderá obter uma reparação a menos que possua capacidade
para apresentar uma reclamação internacional. Não se pode supor que, neste
caso, todos os Membros da Organização, com excepção do Estado contra o
qual a acção é intentada, devam apresentar uma acção conjunta contra esse
Estado pelos danos sofridos pela Organização.

(Omisso).

Ao tratar das questões de direito resultantes da alínea b) da Questão I


(Omisso). A única questão de direito que ainda deve ser analisada é a de saber
se, ao apresentar uma reclamação internacional desta natureza, a Organização
pode obter “a reparação dos danos causados à … vítima ...”

A regra tradicional segundo a qual a protecção diplomática é exercida


pelo Estado nacional, não pressupõe que se dê uma resposta negativa a alínea
b) da Questão I.

2
Note-se que a ONU é actualmente composta por 193 Estados Membros.
Em primeiro lugar, esta regra aplica-se às reclamações apresentadas
por um Estado. Todavia, aqui, temos um caso diferente e novo que poderá ser
intentado por uma Organização.

Em segundo lugar, mesmo nas relações interestaduais, existem


importantes excepções a esta regra porquanto existem casos em que a
protecção pode ser exercida por um Estado em nome de pessoas que não
possuam a sua nacionalidade.3

Em terceiro lugar, esta regra assenta em dois pressupostos. O primeiro


é o de que o Estado contra o qual é intentada a acção, tenha violado uma
obrigação relativamente ao Estado nacional de um cidadão. A segunda é a de
que só a parte em relação à qual uma obrigação internacional é devida, pode
apresentar uma reclamação em relação a sua violação. É precisamente isso
o que acontece quando a Organização, ao apresentar uma reclamação pelos
danos sofridos pelo seu agente, fá-lo invocando uma violação de uma
obrigação em relação a si. Deste modo, a regra da nacionalidade da
reclamação não oferece motivos para o não reconhecimento de que a
Organização tem o direito de apresentar a reclamação pelo dano mencionado
na alínea b) da Questão I. Ao contrário, o princípio subjacente à esta regra
conduz ao reconhecimento desta capacidade como pertencendo à
Organização, se a Organização invocar, como fundamento da sua reclamação,
a violação de uma obrigação em relação a si.

Nem tão pouco a analogia da regra tradicional da protecção diplomática


de nacionais no estrangeiro, justifica, por si só, uma resposta afirmativa. Não é
possível, pelo uso do conceito de aliança, assimilar o vínculo jurídico existente,
à luz do Artigo 100º da Carta, entre a Organização, por um lado, e o Secretário-
Geral e o pessoal do Secretariado, por outro lado, ao vínculo existente entre o
Estado e os seus nacionais.

O Tribunal é, aqui, confrontado com uma nova situação. A questão que


ela suscita só pode ser resolvida através do reconhecimento de que essa
situação é disciplinada pelas disposições da Carta analisadas à luz dos
princípios do direito internacional. (Omisso).

A Carta não confere expressamente à Organização, a capacidade para


incluir, na sua reclamação de reparação, os danos causados à vítima ou seus
representantes. O Tribunal deve, pois, começar por analisar se as disposições
da Carta relativas às funções da Organização, e a parte desempenhada pelos
seus agentes no desempenho das suas funções, implicam o poder da
Organização conceder aos seus agentes uma protecção limitada que consista
na possibilidade de apresentar, em seu nome, uma reclamação pela reparação

3
Note-se que o Tribunal está provavelmente a referir-se aos casos de pessoas protegidas, de
estrangeiros que integram as forças armadas do Estado e dos estrangeiros membros da
tripulação de um navio comercial do Estado.
dos danos sofridos em tais circunstâncias. Pelo direito internacional, deve
julgar-se que a Organização tem os poderes que, embora não expressamente
estipulados na Carta, lhe são conferidos por implicação necessária na medida
em que são essenciais para o cumprimento dos seus deveres. Este princípio
do direito foi aplicado pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional em
relação à Organização Internacional do Trabalho, no seu Parecer N.º 13 de 23
de Julho de 1926 ... e deve ser aplicado em relação às Nações Unidas.

Tendo em consideração os seus fins e funções já mencionados, a


Organização pode considerar necessário, e de facto considerou necessário,
incumbir aos seus agentes, a realização de missões importantes em partes
conturbadas do mundo. Muitas missões, pela sua própria natureza, colocam os
agentes em risco não usuais e a que não estão expostos as pessoas comuns.
Por esta mesma razão, os danos sofridos pelos seus agentes nestas
circunstâncias, ocorrerão de tal forma que não será justificado que o seu
Estado nacional apresente uma reclamação pela reparação de danos tendo
como fundamento a protecção diplomática ou, em todo caso, poderá não
sentir-se inclinado a fazê-lo. Assim, para assegurar quer um desempenho
eficiente e independente dessas missões, quer ainda o apoio efectivo dos seus
agentes, a Organização deve concede-los uma adequada protecção. (Omisso).

Para que o agente desempenhe as suas funções satisfatoriamente, ele


deve sentir que a sua protecção lhe é garantida pela Organização, e que ele
pode nela confiar. Para assegurar a independência do agente, e,
consequentemente, uma acção independente da própria Organização, é
essencial que no desempenho das suas funções ele não tenha de confiar
noutra protecção que não seja a da Organização (salvo, obviamente, a
protecção directa e imediata que lhe for concedida pelo Estado em cujo
território ele se encontre). Em particular, ele não poderá confiar na protecção
do seu próprio Estado. Se ele tivesse de confiar nesse Estado, então a sua
independência estaria comprometida, contrariando o princípio aplicado pelo
Artigo 100.º da Carta. Por último, é essencial que quer o agente pertença à um
Estado poderoso ou fraco; à um mais ou menos afectado pelas dificuldades da
vida internacional; à um que seja ou não solidário com a missão do agente
ele saiba que no exercício das suas funções goza da protecção da
Organização. Esta garantia é ainda mais necessária quando o agente for
apátrida. (Omisso).

As obrigações assumidas pelos Estados visam permitir que as funções


dos agentes da Organização, não sejam desempenhadas no interesse dos
agentes, mas sim da Organização. Sempre que a Organização solicite uma
indemnização pela violação dessas obrigações, a Organização invoca um
direito próprio, o direito das obrigações assumidas em relação a si serem
respeitados. Nesta base, ela solicita a reparação dos prejuízos sofridos
porquanto é um princípio do direito internacional que a violação de
compromissos envolve a obrigação de prestar uma adequada reparação; tal
como foi declarado pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional na sua
Sentença N.º 8 de 8 de Julho de 1927. (Omisso). Ao exigir uma reparação dos
prejuízos sofridos pelo seu agente, a Organização não está a representar o
agente, mas sim a exercer um direito próprio, o direito de exigir o respeito dos
compromissos assumidos em relação à Organização.

Tendo em conta as considerações precedentes e o direito inquestionável


da Organização em exigir que os seus Membros cumpram as obrigações por si
assumidas no interesse do bom funcionamento da Organização, o Tribunal é
de opinião que em caso de violação dessas obrigações, a Organização tem
capacidade para reclamar uma adequada reparação e, ao avaliar essa
reparação, tem competência para incluir o dano sofrido pela vítima ou seus
representantes.

Persiste, entretanto, a questão de saber se a Organização tem


capacidade de intentar uma reclamação internacional contra o Governo de jure
ou de facto responsável com a finalidade de obter uma reparação dos prejuízos
causados a) às Nações Unidas, b) à vítima ou seus representantes, quando o
Estado contra o qual a acção é apresentada não é membro da Organização.

Ao analisar este aspecto da alínea a) e b) da Questão I, é necessário ter


em conta as razões que levaram o Tribunal a responder-lhe afirmativamente,
no caso em que o Estado contra a qual a acção é apresentada ser Membro da
Organização. Já foi definido que a Organização tem capacidade para
apresentar uma reclamação no plano internacional e que possuí o direito de
uma protecção funcional dos seus agentes. Aqui, uma vez mais, o Tribunal é
competente para assumir que os danos sofridos envolvem a responsabilidade
de um Estado e não é chamado a pronunciar-se sobre as várias formas como
essa responsabilidade pode ser contraída. Consequentemente, a questão é a
de saber se a Organização tem capacidade para apresentar uma reclamação
contra o Estado contra o qual a acção é intentada com o fim de se obter uma
reparação dos referidos danos ou se, pelo contrário, esse Estado, ao não ser
um membro, tem razão em alegar que a Organização está desprovida de
capacidade para apresentar uma reclamação internacional. À este respeito, o
Tribunal é de opinião que cinquenta Estados4, representando a larga maioria
da comunidade internacional, tiveram o poder de, em conformidade com o
direito internacional, criar uma entidade dotada de personalidade internacional
objectiva e não apenas uma personalidade reconhecida apenas por si, aliada à
capacidade para apresentar uma reclamação internacional. (Omisso).

O Tribunal respondeu unanimemente a alínea a) da Questão I e


afirmativamente, por 11 votos contra 4, a alínea b) da Questão I.

A segunda questão é a seguinte:

No caso da resposta à alínea b) do ponto I ser afirmativa, como é que a


acção das Nações Unidas pode ser reconciliada com eventuais direitos que o
Estado de que a vítima é nacional possa ter?
(Omisso).

PS: Em consequência do Parecer emitido pelo TI J, a Assembleia Geral das


4
Os 50 Estados que participaram na Conferência de São Francisco em que foi aprovada a
Carta das Nações Unidas.
Nações Unidas (GA Resn. 365) autorizou o Secretário-Geral a obter, de Israel,
a reparação pela morte do Conde Folque Bernadotte. Em 1950, Israel pagou a
quantia solicitada pelo Secretário-Geral, a título de reparação pelos prejuízos
sofridos pelas Nações Unidas.

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