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Capítulo IV

A REVOLUÇAO MECANICISTA DO SÉCULO XVII GALILEU,


MERSENNE, DESCARTES E PASCAL

Do livro:“História da Idéia de Natureza”, de Robert Lenoble,


Edições 70, Portugal,1969, pág. 257-279

Não é possível, em limites tão estreitos, fazer um apanhado completo da imensa revolução que se
realizou, no século XVII, nas ciências da Natureza. Ora nós nem sequer limitamos o nosso presente
estudo ao único aspecto do desenvolvimento científico desta idéia de Natureza. O século XVII produz,
além disso, a sua obra estética, que é considerável; e, sobretudo, a idéia que os próprios moralistas
fazem da Natureza marca, em relação ao Renascimento, uma originalidade muito maior que a arte, que
se mantém, com efeito, na linha da época precedente. Apenas podemos, pois, assinalar, neste imenso
conjunto, alguns pontos de referência.
No século XVI, o agente motor da evolução das idéias é incontestavelmente o gosto estético. No
século XVII, pelo contrário, este papel principal passa para a ciência. A arte continua, pois, as formas
do Renascimento e, por vezes, muito simplesmente as suas fórmulas. Rafael e Miguel-Ângelo criaram
o gênero; pela primeira vez desde a Antiguidade, o corpo é estudado e representado por ele mesmo,
pela sua beleza própria, independentemente do valor espiritual que recebe da sua união com a alma. Os
progressos da anatomia e da cirurgia, a prática então absolutamente nova da dissecação, habituam não
só e escultor como também o pintor a encarar toda a superfície como a emergência de um volume,
segundo a fórmula que Rodin virá a dar um dia.
Também a música aproveita com as primeiras conquistas da ciência. A antiga harmonia, baseada na
sensação imediata dos acordes, vai em breve ser substituída, com Rameau, pela harmonia mais elaborada
das tonalidades fundamentais, em que a sensação se apóia no conhecimento positivo das relações
numéricas que começa a desprender-se da acústica. Numa palavra, o Renascimento mostrou na Natureza
um imenso organismo cujas leis nada têm a ver com e destino do homem. A arte contenta-se com esta
regra animista: uma simpatia atenta por formas originais, mais de sentir que de conhecer: de nada mais
precisa para progredir. Este animismo. longe de a embaraçar, dá-lhe, pelo contrário, um novo ímpeto e a
arte do século XVII vive neste ímpeto. O progresso científico, longe de a servir, será para ela, mas
somente um século mais tarde, um princípio de decadência, com o racionalismo fora de tempo e o
academismo que dele resulta.
A Natureza, pelo contrário, não havia ainda sido conquistada pela ciência. A louca exuberância que
lhe emprestam os naturalistas do século XVI opunha-se precisamente a esta conquista, mas chega, não
obstante, a hora em que em alguns anos ela vai cair do seu lugar de deusa universal para se tornar,
desgraça nunca até então conhecida uma máquina.
Este acontecimento sensacional poderia receber uma data precisa 1632. Galileu publica os Diálogos
sobre os dois principais sistemas do Mundo e as personagens que discorrem encontram-se no arsenal
de Veneza. O fato de a verdadeira física ter podido brotar de um; discussão de engenheiros: não podemos
imaginar hoje em dia o que esta encenação, aparentemente anódina, tinha de revolucionário.
Desde os Gregos que se aceitava haver, com efeito, um abismo entre a ciência e a arte - aplicando-
se então o termo arte, em primeiro lugar, às técnicas. A ciência (a νόησις) conhece as coisa eternas:
substâncias, essências, movimentos necessários. Contempla Natureza tal como ela é, procurando, na
ordem que ela realiza, um modelo para o homem e uma satisfação estética da inteligência; na tem
nenhuma pretensão, nem sequer nenhum desejo de atuar sobre esta Natureza. As técnicas, pelo
contrário, as artes, manipulam o contingente; não geram uma ciência certa (νόησις), mas
permanecem no domínio das probabilidades, da opinião (πίστισς). Através delas, o homem
aperfeiçoa os seus utensílios, atua sobre as coisas particulares, realiza a sua função de obreiro. A arte
mais útil para os pedreiros, os mercadores e os estrategos é o cálculo, com a ciência da medição;
aquilo que hoje designamos por matemáticas é reservado, não aos artesãos que calculam medidas
empíricas, mas aos filósofos que especulam sobre as virtudes dos números: na prática, e desde a
época romana, este termo aplica-se sobretudo aos astrólogos e, para os que não gostam da astrologia,
como Plínio, aos charlatães.
Não existe, pois, nenhuma medida comum entre a ciência e as artes. Um princípio aceite desde
Cícero proclama que nenhuma arte humana pode imitar a originalidade da Natureza: nulla ars
imitari sollertiam naturae potest (397). Pode, por rezes, conseguir macaquear a Natureza, mas
nunca produzirá um único dos efeitos reais obtidos pela Natureza. E este estado de espírito subiste
ainda inconsciente entre nós: daí, por exemplo, o prestígio dos ,produtos naturais” preferidos aos
produtos de laboratório muito simplesmente porque não saberiam o que fazer com essa aparelhagem
de artesão. Abandonam-no aos boticários e aos alquimistas menosprezados: os princípios da
Natureza não residem nos alambiques, descobrem-se raciocinando sobre a essência “das coisas. A
crer em Plutarco, Arquimedes “nunca se dignou deixar por escrito nenhuma obra sobre a maneira de
construir (as máquinas)”, pois rejeitava “toda essa ciência (de engenheiro) e em geral toda a arte que
tem qualquer préstimo (...), vil, baixa e mercenária”. Não queria manchar a sua glória de sábio: um
professor de física de uma Universidade coraria ao publicar sob o seu nome um manual de cozinha!
A estrutura social corresponde a estes juízos de valor sobre as técnicas: o sábio e um homem livre, o
artesão é, na Antiguidade, um escravo, na Idade Média, um labrego. Este estado de espírito persiste
até ao Renascimento e Descartes, ao evocar as suas memórias da escola, escreverá: “Agradavam-me
sobretudo as matemáticas (...); mas não lhes via ainda a sua verdadeira utilidade e, pensando que
apenas serviam as artes mecânicas, espantava-me que, sendo os seus fundamentos tão firmes, nada se
tivesse edificado de mais nobre sobre elas.”(Discurso do Método, l.a parte.)
1632. Galileu pede a engenheiros que nos descubram o verdadeiro sistema do mundo. Verão que
esta data merece ser fixada: a estrutura da Natureza e, conjuntamente, a estrutura da sociedade vão
sofrer uma remodelação completa; o engenheiro conquista a dignidade de sábio, porque a arte de
fabricar tornou-se o protótipo da ciência. O que comporta uma nova definição do conhecimento, que já
não é contemplação mas utilização, uma nova atitude do homem perante a Natureza: ele deixa de a
olhar como uma criança olha a mãe, tomando-a por modelo; quer conquistá-la, tornar-se “dono e
senhor” dela.”
A partir de então, é ultrapassado esse velho tabu do natural que pressupõe uma diferença essencial
entre a experiência de laboratório e os fenômenos “naturais”, isto é, considerados até aí sagrados. O
homem vai habituar-se aos sacrilégios de Prometeu e de Ícaro: já não teme ser fulminado pelos deuses.
Descartes, Galileu, Gassendi, todos os seus discípulos menores, têm doravante por evidente que
conhecer é fabricar e que a Natureza nada mais faz do que realizar em ponto grande o que nós podemos
obter por pormenores e à nossa escala, graças ao nosso engenho de técnicos. Longe de desprezar as
experiências de laboratório, querem agora multiplicá-las: com elas, dirá Pascal, “vão multiplicar-se
(crescer) os princípios da nossa física”, pois a verdade sobre a Natureza reside nessas experiências e
não nos raciocínios sobre as essências. Não só se deixa de temer a cólera divina por esta violação da
Natureza como se crê que Deus nos deu a missão de trabalhar à sua imagem, de construir o mundo no
nosso pensamento como ele o criou no seu, fornecendo as suas leis. O físico da Idade Média eleva-se a
Deus descobrindo as intenções, as finalidades da Natureza, o físico mecanicista eleva-se a Deus
penetrando o próprio segredo do Engenheiro divino, colocando-se no seu lugar para compreender com
ele a forma como o mundo foi criado. É bem a este desígnio que responde a imensa dedução do mundo
que encontramos, por exemplo, nos Principia philosophiae de Descartes em 1644; encontra-se já
nitidamente expresso no Discurso do Método. Para evitar qualquer discussão, escreve ele, “resolvi-me a
deixar todo este mundo aqui às suas disputas e a falar apenas do que aconteceria num mundo novo, se
Deus criasse agora algures, nos espaços imaginários, matéria bastante para o compor e agitasse
diversamente e sem ordem as diversas partes dessa matéria, de forma a compor um caos tão confuso
que os poetas o pudessem simular e que, seguidamente, não fizesse mais que o seu contributo
ordinário à Natureza e a deixasse agir segundo as leis que estabeleceu” (Discurso do Método, V.a
parte). Inútil é dizer que é exatamente o nosso mundo que Descartes vai encontrar por meio desta
operação: por outras palavras, pôs-se ele mesmo no lugar do engenheiro divino.

Para que esta substituição se tornasse possível, seria preciso que a Natureza perdesse essa
finalidade que os antigos filósofos julgavam encontrar nela, e talvez mais ainda essa espontaneidade
indefinida que os pensadores do Renascimento admiravam. É preciso que ela seja simplesmente uma
máquina. Ora Galileu, que tem por mestres Demócrito e Arquimedes, acabava de escrever que “o
grande livro da Natureza está escrito em linguagem matemática”. Descartes descobre finalmente -
aliás pelos seus próprios meios - a verdadeira utilização das matemáticas, que continuava a ser
desconhecida nas Escolas: uma vez que a Natureza é matemática, as matemáticas são o esqueleto
certo e sólido da física. O matemático deixa de ser o auxiliar vergonhoso do artesão ou do sonhador
astrólogo cujas especulações reencontram a velha magia pitagórica dos números. Pretende-se imitar
Deus e já Santo Agostinho, com as suas recordações de Platão, escrevia que Deus criou o mundo no
número e na medida: Dum Deus calculat, fit mundus. O matemático torna-se, juntamente com o
engenheiro, o protótipo do sábio, o depositário do segredo divino. Ao reduzir a matéria à extensão.
Descartes obtém essa segurança de crer que a Física é a geometria aplicada.
1632. Uma data, mas não uma data única. Com efeito, há que pôr muitas reservas a datar com
precisão um movimento de pensamento tão vasto. De fato, o espetáculo que nos dá neste momento a
evolução da idéia de Natureza não deixa de ser impressionante e parcialmente misterioso. Durante
séculos, sábios e filósofos, pertencessem a que escola pertencessem, discípulos de Platão, de
Aristóteles, de Epicuro ou dos Estóicos, até mesmo dos que situamos hoje em dia entre si sobre os
princípios que crêem encontrar na Natureza, mas acham-se todos de acordo no que toca a procurar
esses princípios numa especulação desinteressada: há que escutar a Natureza, não que se servir dela.,,
E eis que, a partir dos anos de 1620, sábios e filósofos, independentemente da sua inclinação de
espírito, discípulos de Galileu, o filho espiritual de Arquimedes, discípulos do epicurista Gassendi ou
de Descartes, inventor de novos princípios que.quer substituir aos de Aristóteles, sábios prudentes que
pensam apenas na sua técnica, sem se preocuparem sequer com quaisquer princípios, como Mersenne,
Roberval e Pascal; de um extremo ao outro da Europa: italianos como Torricelli, franceses como Viète e
Fermat, holandeses como Stevin, Beekman e Huygens, ingleses como Hobbes e Boyle - todos, a despeito
de todas as divergências de Escolas e das polemicas muitas vezes inflamadas, se encontram de acordo ao
afirmar que a Natureza é uma máquina e que a ciência é a técnica de exploração desta máquina. A
amplitude e, por assim dizer, a instantaneidade deste fenômeno, excluem qualquer explicação através dos
empréstimos ou das influências recíprocas: sobre o essencial, isto é, a necessidade e o fundamento desta
mudança de atitude, os sábios acham-se de acordo ainda antes de se conhecerem - cada um encontra-os
espontaneamente na sua consciência.
A explicação não pode, pois, encontrar-se na cronologia, nem sequer simplesmente na história, mas
numa psicologia estendida aos fenômenos sociais. Tudo se passa como se nos encontrássemos perante
uma crise do inconsciente coletivo: subitamente, o homem ocidental deixou de tomar perante a Natureza
a atitude da criança que escuta: virilizou-se e quer tornar-se “o dono e senhor”. Todas as perspectivas do
conhecimento se acham modificadas: já não se escuta, interroga-se e é forçoso que a Natureza responda.
Kant dirá um dia que há que apoquentá-la; já não se sofre, domina-se; mas, ao mesmo tempo, corre-se o
risco da resposta imprevista: em lugar de se querer o centro do mundo, aceita-se que a Natureza tenha os
seus mecanismos e as suas leis próprias, sem qualquer relação com os nossos desejos afetivos; é preciso
que ela se torne plenamente autônoma, “outra”, para que possamos possuir, e até subjugar esta alteridade
capaz, no futuro, de nos enriquecer pela sua novidade, já no século XVI, Cardan, que mantém, não
obstante, tantas recordações de uma finalidade antropocêntrica, escrevia que faríamos mal em crer que
tudo foi feito para o homem. A mosca, por exemplo, nem ela nem o incômodo que causa lhe são úteis,
mas ela tem a sua razão de ser em si mesma: jacta est propter se (398). Doravante não se julgará mais
poder explicar uma coisa dizendo “para que serve”; a sua existência e o seu mecanismo têm as suas leis
independentes do homem, mas exatamente porque o homem se enriquece captando o que era ao princípio
feito para ele.
Esta interpretação psicológica do aparecimento da física mecanicista parece, todavia, deparar
com uma objeção.' Se as leis da psicologia afetiva são exatas, uma crise desta ordem deve ser
acompanhada por uma espécie de terror e por um grande senti mento de culpabilidade. Ora, no
século XVII, nada trai esse terror. Pelo contrário, tudo se passa no entusiasmo, na alegria pacífica
de uma descoberta venturosa muito mais que nas ânsias de um combate. Sem dúvida, Descartes
escreve que “é verdadeiramente dar batalha” procurar a verdade na ciência, batalhar contra as
coisas e contra os homens ligados ao passado. Sem dúvida, também Mersenne se comove com toda
esta confusão que liquida uma forma de conhecimento para impor uma outra: “Não vos parece”,
escreve ele a Ruarus, “um anúncio do fim do mundo?” Mas o fim do mundo não inquieta Mersenne
e as batalhas empreendidas têm a vitória assegurada de antemão. Louvar-se-á mais tarde, no século
XVIII, o ato de ter entoado o hino ao progresso; mas o hino mais belo ao progresso foi aquele que
as gentes do século XVII cantaram. Injustas por vezes para com os seus predecessores, forjando a
palavra “gótico” para designar o mundo “bárbaro” de que acabam de escapar, sorriem ao seu novo
nascimento, como no dia a seguir à sua gênese a Natureza de Lucrécio se abria aos sopros
vivificantes de Faustinus. Estes dois adolescentes, a Natureza e o homem, são feitos para se
entenderem. O homem entra na Natureza como no que lhe pertence, certo de aí encontrar a sua
ventura.
Mas esse paradoxo de uma crise sem angústia pode obter a sua explicação. Na realidade, o
homem tornado mecanicista e por esse meio senhor da Natureza, conheceu, por assim dizer, uma
angústia retardada. Vê-la-emos aparecer. segundo as melhores leis da psicolo gia, no século XVIII e
ainda não a ultrapassamos por completo. As gentes do século XVII tiveram a sabedoria de a
retardar, isto é, de fazer dela a economia de que haveriam de aproveitar; comeram os figos, mas foi
aos filhos que rebentaram os beiços...
Tal como o século XVIII, o século XVII foi, com efeito, um êxito cio equilíbrio afetivo.
Liquidaram-se guerras religiosas, nos países latinos, a crise da Reforma é ultrapassada; neles - e
também, aliás, nos países protestantes - a unidade social, quebrada com a Cristandade, refaz-se em
redor deste novo centro de atração, a monarquia absoluta. Todavia, o nacionalismo não rompeu
ainda a unidade do saber, nem sequer a unidade da língua. Fala-se Francês em toda a Europa; os
sábios continuam a servir-se do Latim, pelo menos na sua corres pondência com o estrangeiro. A
Natureza, seguindo o papel tradicional que assume, pelo menos desde Lucrécio e Epicuro, fornece o
modelo de uma legalidade e de uma verdade independentes das contingências sociais, e até religiosas.
Resta apenas ela, uma vez que fora dela os grupos humanos se dividem. E ela resta, precisamente,
numa época em que, melhor conhecida pela ciência e mais que nunca amada pelos artistas, retém uma
maior - atenção e capta uma maior parte da atividade e do pensamento do homem. Desta forma
vemos instaurar-se, pouco a pouco, no lugar da Cristandade mutilada, uma “Europa sábia”, prelúdio
da Aufklarung do século seguinte. Esse traço é patente, por exemplo, na correspondência universal
que o P., Mersenne troca com todos os sábios da Europa. Depois de ter tentado, nos primeiros anos da
sua atividade, separar os eleitos e os réprobos segundo a sua fidelidade à Igreja, a República cristã,
como ele diz, vai apagar-se a pouco e pouco perante a única comunidade que se mantém possível: a
dos sábios. A Natureza, através da ciência e da arte, refaz uma unidade perdida na fé. Traz, pois, à
afetividade um reconforto que apazigua os temores imediatos e permite a esperança.
Mas, além disso, os filósofos do século XVII tomaram as suas precauções. Executaram uma
revolução, mas crêem poder limitar o seu âmbito, o que lhes permite manter intacta a maior parte dos
valores essenciais.
Os historiadores do século XIX, que procuravam em toda a parte “grandes antepassados” para a
sua democracia anti-religiosa, tiveram muito trabalho para suspeitar da sinceridade da sua fé,
religiosa e monárquica. Segundo eles, a ciência nova devia derrubar todo o antigo modo de pensar, os
seus primeiros artesãos desejavam secretamente essa subversão integral e os seus protestos de
prudência seriam pura simulação.
Ora, mais uma vez, esta lógica não se impunha, ou, em todo o caso, os filósofos do século XVII
tentaram evitá-la. E esta reação corresponde também à lógica das coisas. É raro um homem adotar em
toda a sua extensão a lógica de um sistema; aliás, na maioria das vezes, ela só se revela pouco e
pouco. Quando vê este perigo, é normal que se tente precaver contra ele. Finalmente, nada prova que
a ciência nova, e até a filosofia nova, deviam inevitavelmente desembocar no emprego que delas se
viria a fazer mais tarde.
Bacon é chanceler da Inglaterra. Prega a revolução nas ciências, mas um homem bem colocado
pode, sem deixar de ser sincero, recusar-se a cortar o ramo no qual se assenta. Descartes e os sábios
franceses acabam de escapar às guerras religiosas; conhecem as perturbações da fronda, mau presságio
de um progresso possível da desordem. A ciência tem necessidade de calma: viva a monarquia forte o
bastante para nos permitir trabalhar tranqüilamente! Se nem Bacon nem Descartes passam por místicos,
pelo menos nada permite duvidar da sua sinceridade religiosa: um mantém profissionalmente, por assim
dizer, a tradição inglesa; o outro, como veremos, não só tem necessidade de uma teologia para
fundamentar a sua física, como, nas suas relações com protestantes como a Rainha Cristina da Suécia e
a princesa Isabel, nunca o vemos esboçar, sobre o dogma, a mínima tentativa de compromisso. E
quando a rainha Cristina se converter ao catolicismo, atribuirá a Descartes a origem da sua conversão.
Estes filósofos colocaram, com efeito. cuidadosamente ao abrigo dos movimentos a religião e a
política. O caso de Bacon explica-se tanto pelas suas funções como pela habilidade do pragmatismo
inglês em não confundir os gêneros. Quanto a Descartes, a sua doutrina das duas substâncias, a
extensão e o pensamento, proibe-lhe procurar nas leis da extensão regras para o pensamento, isto é, para
a alma. Teria considerado um arcaísmo a menor tentativa para chegar, a coberto da ciência mecanicista,
a um sistema teocósmico como o de Dante, ou a um dos que, ainda no seu tempo, elaboravam atrasados
do Renascimento como Campanella. A ética é a execução das virtualidades da alma, digamos, no
sentido mais vasto, das idéias inatas. A política é assunto de prudência; pressupõe, em primeiro lugar,
um conhecimento exato das “paixões da alma,, que são, com efeito, atos do corpo; mas estas paixões, há
que utilizá-las seguidamente e regulá-las de acordo com o bem; a ética é, pois, desta vez, experiência de
pensamento e nunca ciência da extensão. Hobbes será o primeiro a começar a querer tirar uma moral e
uma `política do Mecanicismo; Descartes lê-o e estremece de horror e escreve que julga as máximas do
De cive “muito perigosas, muito más e dignas de censura (...)” . Foi poupado a ver as inúmeras “morais
científicas” que o século XIX - e a nossa época - afirmarão decorrer de uma ciência que o invoca. Para
ele, a Natureza, tornada máquina, já não tem de tomar posição de soberana de virtude.
Mas, além do mais, falta muito para que o século XVII, seguindo o exemplo de Lucrécio, pretenda
arrebatar a Natureza a Deus. O problema não é, aliás, o mesmo. Lucrecio lutava contra o paganismo
medroso do seu tempo; os sábios do Grande Século são as testemunhas do renascimento religioso
assinalado pelos grandes nomes de São Francisco de Sales, São Vicente de Paula, Bérulle, Olier,
Bossuet, Fénelon, pelo primeiro impulso missionário. Reagindo contra o rigor protestante, estes autores
espirituais pretendem reconciliar o homem e a Natureza com Deus. Quando surge a crise jansenista,
precisar-se-á cada vez mais a recusa do pensamento católico em ver, na Natureza, uma irremediável
mácula. Existe em São Francisco de Sales e em Fénelon um amor muito sincero pela Natureza, ainda
que o possamos achar por vezes um pouco afetado nas suas fórmulas. Bérulle encoraja Descartes.
Bossuet torna-se seu discípulo, antes de denunciar “a grande batalha que vai desencadear-se contra o
Cristianismo” em nome de Descartes, julga ele - na realidade, por vezes, a coberto de Descartes - por
filósofos que, assim que se virem com as mãos livres, se apressarão a relegar Descartes para o meio dos
autores do tempo passado. Longe de se fechar à ciência, a religião consente em tentar com ela a
aventura de uma revolução da física; a graça debruça-se sobre a Natureza para que ela sirva a salvação.
Desta forma, vemos Bacon e Descartes concederem-se, através do próprio Deus, credenciais para a
conquista do mundo. A conclusão do Novum Organum anuncia, um canto de triunfo, urna nova
redenção. No Paraíso terrestre, Deus dera já ao homem o domínio sobre a Natureza. Eis, com efeito,
sabemo-lo, o que significava o poder dado a Adão de “dar nome” aos animais. Mas a queda fê-lo descer
dessa alta posição, entravou o desígnio de Deus. O drama do Calvário justificou-nos, mas cabe-nos a
nós reconquistar, através dos nossos esforços, o domínio sobre as coisas, consequência natural da
justificação, mas que a virtude não basta para assegurar. A ciência torna-se, assim, auxiliar da graça:
“O homem”, escreve Bacon, “ao cair do seu estado de inocência, deixou-se destronar da sua soberania
sobre as criaturas. Pode recuperar em parte ambas as coisas nesta vida: a inocência através da religião e
da fé, a soberania aqui em baixo através das artes (as técnicas) e da ciência” (400). Da mesma forma,
para Descartes, neste mundo, que é na sua essência mecanismo. extensão, geometria, Deus instalou o
homem, feito à sua imagem, como o representante de uma outra essência, infinitamente mais digna que
a primeira: o pensamento. A alma serve-se do corpo como o piloto do seu navio, para o dirigir; e a
bordo da nave do mundo, por si vazio de intenção e de finalidade, o homem é o piloto através do qual o
mundo pode servir o plano de Deus. Mas para isso há que aprender a manejá-lo. A ciência verdadeira,
que nos permite de alguma forma, compreender a obra criadora e nos dá entrada no segredo divino,
torna-se assim, além do mais, um meio de louvar o Criador: edificar uma ciência verdadeira é, como ele
repete com frequência. trabalhar para a causa de Deus. Finalmente, a lei de caridade impõe-nos que
venhamos em auxílio do trabalho dos homens e que o aliviemos por meio da invenção de máquinas.
Quando Descartes hesitava ainda em publicar, na famosa reunião do final do ano de 1628 em casa do
Núncio do Papa, o cardeal de Bérulle exortou-o a comunicar ao público idéias que podem servir de
maneira tão eficaz a religião, e o próprio Descartes escreve em 1637: “No momento em que adquiri
algumas noções gerais tocantes à física e que (...) notei onde nos podiam conduzir (...) acreditei que não
podia mantê-las ocultas, sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, dentro das
nossas possibilidades, o bem geral de todos os homens. “ (Discurso do Método, VI parte) E também o
Pe Mersenne, com a sua ingenuidade habitual, nos explica como podemos, quanto a ele, santificar-nos
através de uma física, compreendendo melhor a grandeza do criador e ajudando os nossos semelhantes:
“As ciências achar-se-iam privadas de um grande ornamento e privadas de uma grande utilidade se nos
faltasse a prática: e há que confessar que Deus quer que o imitemos, na produção exterior que ele faz
(...): pois cada ciência é uma dádiva de Deus, que ele não nos concede a fim de ficar ocioso para
contentamento único do espírito do teórico, mas a fim de que exerçamos para utilidade dos outros, pelo
amor e em honra daquele que é o primeiro e soberano autor”(401). Ele representa o mundo como um
imenso problema de física, cujas soluções encontraremos no Céu. E é para as conhecer um dia que
devemos procurar a nossa salvação e viver virtuosamente nesta terra (402). Enfim, numa palavra, é um
ato de virtude conhecer através da ciência a ordem exata dos fenômenos, porque por meio deste
conhecimento imitamos o Engenheiro divino, que se deu igualmente ao prazer de instalar esta máquina:
Daí decorre que podemos merecer a vida eterna pelo prazer que temos em contemplar todas as riquezas
e as diversidades que se encontram no mundo, se todavia o referimos ao de Deus e se o conformarmos
àquele do qual o nosso é a imagem (403).
Por outro lado, esta penhora da Natureza é apresentada em toda a parte como a prova da acessão do
homem à sua maturidade. Num texto célebre, a que Pascal replicará mas que todos os homens desta
época subscreverão, Bacon proclamara que, ao contrário do que se acreditava tradicionalmente, os
sábios da Antiguidade não são relativamente a nós “os Antigos”, isto é, os pais e os mestres veneráveis,
mas crianças: “A velhice do mundo é o próprio tempo em que vivemos e não aquele em que viviam os
Antigos e que era a sua juventude”. Eles eram “os mais novos do universo”; o homem conquistou
depois, em nós, a sua maturidade: “desta forma, se o nosso século, conhecendo melhor as suas forças,
tivesse a coragem de as pôr à prova e a vontade de as aumentar exercendo-as, teríamos ocasião de
esperar dele coisas maiores que da Antiguidade, onde procuramos os nossos modelos, pois sendo o
mundo mais idoso, a massa das experiências e das observações aumentou infinitamente.
O homem ,desse século”, como diz Bacon, apresenta-nos, pois, o espetáculo de uma adolescência
venturosa. Acaba de conquistar a Natureza, toma consciência da sua maturidade, mas nada o inquieta,
pois Deus quis este crescimento e abre-lhe de coração aberto “as portas da Natureza”. Em Lucrécio, o
domínio do mundo é um roubo feito aos deuses; no século XVIII, veremos ressurgir este sentimento de
culpabilidade, com a oposição entre a religião e a ciência. Livremo-nos de transportar este esquema
clássico para o século XVII: fecharíamos os olhos à história e ao exemplo tão raro que ela nos oferece
então de um crescimento do homem feito na paz e de acordo com Deus. Vimos que o século XVII
(reencontrou o equilíbrio afetivo do século XVII, em que ciência e religião caminhavam já lado a lado.
Mas o século XVII marca uma fase, uma vez que a ciência deixa de ser teoria pura, mas também, e até
antes do mais, todo o domínio eficaz da Natureza: no século XVII, Prometeu tornou-se o lugar-tenente
do Deus.
Também pela. primeira vez, uma visão mecanicista da Natureza faz-se passar por uma aliada da
teologia. Vimos como Epicuro e Lucrécio haviam expulsado as causas finalistas para desviar o
homem da obsessão dos sinais providenciais: a Natureza de Platão e de Aristóteles conduzia o
homem a Deus através do espetáculo da finalidade; a Natureza mecanicista dos Antigos expulsava os
deuses. Mas o novo mecanicismo não só não é o ateu como serve a religião: De que maneira?
Descartes, único filósofo no campo dos sábios mecanicistas, explica-no-lo em pormenor. Até
então, o homem continuava subordinado à Natureza, uma vez que ela podia torná-lo crente ou ateu,
segundo a maneira como era compreendida. Mas agora, por meio de um desenvolvimento lógico das
conseqüências do Mecanicismo, a Natureza, substância material, nada mais tem a ensinar ao homem
sobre o destino da sua alma: ela e ele já não se encontram de modo algum no mesmo plano. Essa é a
razão pela qual as três provas que ele nos dá da existência de Deus são tiradas da consideração do
homem, da substância pensante. Nem sequer temos necessidade de pensar na Natureza; mais, essas
provas são formuladas antes mesmo que ele tenha adquirido sobre o mundo qualquer certeza e
quando pode ainda ver nele uma simples ficção. E, contudo, é a partir desse momento que ele
encontrou Deus: “de tal forma”, escreve ele, “que, se ainda existem homens que não estejam
completamente persuadidos da existência de Deus e da sua alma pela razões que apresentei, quero
que saibam que todas as outras coisas, das quais se julgam porventura mais seguros, como ter um
corpo e existirem astros e uma Terra e coisas semelhantes, são menos certas. ” (Discurso do Método,
IV parte)
Antes de se tornar físico, o homem é já teólogo. Entre ele e Deus, por serem “substância
pensante”, infinitamente superiores à matéria, estabelece-se, pois, uma intimidade que lhes
permitirá, de certa forma, voltarem os dois ao mundo. O mundo, na religião de Descar tes, não tem, a
princípio, mais importância que na religião de Epicuro, que também pensava numa espécie de
conivência do homem com os deuses, perfeitamente liberta dos acasos da Natureza. Só que
Descartes é apaixonadamente físico. A crítica do conhecimento, na sua época, fez bastantes
progressos para ser possível deixar de ter confiança nos ειδολα de Epicuro e nas formas
substanciais da Escola: o pragmatismo científico da nossa época começa a sua carreira; crê-se
comumente que a nossa física não é uma descrição da Natureza, mas uma transposição, em função
dos nossos sentidos e dos nossos princípios. Mersennne não gosta menos da ciência que o seu amigo
Descartes, mas não crê de todo que ela nos faça compreender a Natureza, dá-nos apenas um meio de a
utilizar: “Não duvido”, escreve ele, “que possamos ver o contrário do que dizemos aqui em matéria de
Filosofia, quando o véu for descerrado e a luz do céu nos esclarecer, mas há que ter paciência
enquanto vivemos neste mundo, pois discorremos agora como agrada a Deus e segundo a luz que nos
dispensou (...) vidimus nuns per speculum, in aenigmate (405). Ora Descartes gosta demasiado da
física para aceitar este pragmatismo. Mas, se nos quisermos persuadir de que a nossa ciência nos
revela verdadeiramente os princípios das coisas, não temos outro meio senão o de recorrer a Deus:
absolutamente perfeito, ele não pode enganar-nos; é certo que não temos qualquer direito a uma
ciência exata mas, ao pensar neste Deus soberanamente verídico, autor das nossas almas bem como da
Natureza, adquirimos, escreve ele, uma certeza moral e até ,mais que moral , 4"da conformidade da
nossa ciência da Natureza com a própria Natureza. Desta forma, a metafísica cartesiana não se
encontra já “no extremo” da física, como uma conclusão a tirar do espetáculo da Natureza, está “no
princípio” da física, como o preâmbulo necessário que justifica a nossa fé na ciência. Pascal foi
injusto para com Descartes ao escrever que Descartes ,teria pretendido passar sem Deus”, mas teve,
no entanto, de recorrer a ele para dar ao mundo o piparote inicial; Descartes não só retoma a tradição
escolástica da criação contínua, como tem necessidade de Deus para crer na ciência: cada fase da
nossa descoberta da Natureza, para ter valor de verdade, deve ser sustentada do interior por Deus,
única garantia que temos do acordo entre o nosso pensamento e as coisas.

Aliás, sejam eles pragmatistas como Mersenne ou metafísicos como Descartes, todos os sábios
mecanicistas concebem então a Natureza como um imenso brinquedo formado por Deus para dar ao
homem a ocasião de lhe descobrir as molas- ou mesmo muito simplesmente a ocasião de fabricar
modelos mecânicos que produzam os mesmos resultados. Há que observar, com efeito - e não creio que
alguma vez se tenha, contudo, feito esta observação - que no advento da ciência mecanicista, que
assinala o início da conquista efetiva da Natureza, já não se encontram em parte alguma os hinos à
Natureza que estávamos habituados a encontrar em todos os sábios da época anterior, de Platão a
Dante e aos naturalistas do Renascimento. Voltaremos a encontrá-los no século XVIII, mas durante
mais de meio século os sábios esqueceram-se de dedilhar a lira dos poetas. A Natureza é um
brinquedo mecânico. é-se seduzido a conhecê-la porque é útil e também porque é muito divertido.
Mas este jogo do espírito suscita um entusiasmo de intelectual, nada dos vôos do artista. Da mesma
forma que distinguiu a sua causa da da metafísica, a ciência separa-se da arte. É ainda Mersenne
que nos permite tomar o tom do espírito novo: ,0 mundo de inn mosquito ,,, escreve, ,,encerra
sozinho e contém mais marax ilhas que tudo o que a arte dos homens pode fazer e representar: de
sorte que, se pudéssemos comprar a visão de todas as molas que estão neste pequeno animal, ou
aprender a arte de fazer autômatos e máquinas que tivessem tantos movimentos como ele, tudo o
que o mundo alguma vez produziu em frutos, em ouro e em prata não bastaria para o preço justo da
simples visão das ditas molas” - "''. Eis a orientação nova da ciência da Natureza: o século XVIII
será o século dos autômatos.

Tendo recebido de Deus a missão de utilizar este esplêndido joguete que é a Natureza, o homem
vai com efeito, comportar-se para com ela como um engenheiro que já não tem de gerir nela qualquer
valor.
Em primeiro lugar, os astros vão perder a sua incorruptibilidade, último vestígio da sua divindade
perdida. Em 1573, Tvcho Brahe anuncia o nascimento de uma estrela: em 1610. Galileu, no seu
Sidereus nuncius, publica todo um feixe de descobertas mais escandalosas ainda, que a luneta
astronômicas acabava de tornar possíveis: a Lua, cuja perfeita pureza Dante ainda defendia contra os
primeiros cépticos, mostrava as suas montanhas e os seus vales, a Via Láctea dissolvia-se numa
poeira de estrelas e, na superfície do Sol, distinguiam-se manchas.
Em vão o P.e Schneider começou por querer explicar estas manchas supondo que se tratava do
efeito de planetas que se intercalavam entre o Sol e a Terra, ou ainda de erros de óptica resultantes de
defeitos nos vidros da luneta: os céus haviam perdido a sua quintessência. Ao mesmo tempo,
perdiam também o seu movimento perfeito: se bem que Galileu nunca a tenha adotado, a descoberta
de Kepler abria o seu caminho - os planetas não descrevem círculos, mas elipses.

Alguns anos mais tarde, toda a máquina cósmica ia mudar de aspecto. A hipótese de Copérnico
continuava a ser um jogo de escrita matemática. A descoberta, igualmente anunciada no Siderens
nuncius, dos satélites de Júpiter, conferia uma probabilidade singular à idéia de um sistema solar.
Faltavam ainda as provas de heliocentrismo e Galileu contribuía apenas com provas falsas. Todavia a
sua mecânica, através das teorias novas do movimento e da gravidade, ia transformar a hipótese
matemática de Copérnico numa teoria física tão sedutora que, com ou sem prova válida e por
diversos caminhos, todos os sábios a adotavam em menos de trinta nos. Ela exigia uma tal reforma
de todas as idéias aceites que não é de espantar que, até ao final do século XVII, o grande público
não se tenha afeito a esta descoberta. Ainda em 1671, no seu manual intitulado Le Prince instruit ou
le Philosophe, um defensor atrasado das idéias antigas, o velho cônego Bézian Arroy, zomba dos
astrônomos ao novo estilo. Copérnico “dá-lhe vontade de rir ,,. Uma vez que os astros são archotes
acesos para iluminar a Terra, não será mais razoável, para explicar o seu movimento, crer que se
desloquem em redor da câmara que iluminam do que fazer girar a câmara em redor das tochas}°"?
Podemos rir hoje, não de Copérnico, mas das pilhérias do cônego; e, no entanto, há que ter em conta
que elas representavam, então, a opinião do bom senso ou, pelo menos, do senso comum. Com
efeito, que nos ensina a experiência? A Terra é uma massa enorme, pesada, inabalável: em redor dela
vemos desfilar os astros, brilhantes, incorruptíveis, imponderáveis. A astronomia tradicional mais
não faz que sistematizar estes dados sensíveis. Pedem-nos que desloquemos o centro de gravidade do
universo, que tornemos a Terra leve e o Sol, e mesmo os astros em geral, muito mais pesados que
ela. Onde estão as provas? Para tornar esta hipótese simplesmente verosímil, há que ter assimilado a
fundo a nova mecânica de Galileu, isto é, um conjunto de teoremas e de princípios que perma nece,
nesta época, domínio reservado aos sábios. Além do mais, para impor o heliocentrismo, são precisas
provas e e o que procura. Os doutos se não estão de acordo: Descartes rejeita as provas de Galileu e a
explicação de Descartes vale o que vale o seu sistema da matéria subtil e dos turbilhões. Dizíamos que a
Bíblia não fundou o geocentrismo; da mesma forma, nem sempre é por razões religiosas, longe disso,
que há quem se decida por ou contra Galileu. Religiosos como Mersenne e Boulliau são heliocentristas.
heréticos ou perfeitos libertinos como Bermer mantinham-se fiéis a Ptolomeu ""'. Até ao último terço do
século XVIII, o grande público mantém-se calado em relação a estas polêmicas, tal como hoje em dia o
comum dos mortais aguarda que os príncipes da ciência se ponham de acordo sobre as linhas essenciais
da relatividade. É certo que o novo sistema fazia perder ao homem algumas das suas ilusões; mas, na
maré crescente do cartesianismo, esta decepção não valia nada perante o orgulho com que “o junco
pensante” podia contemplar a Natureza lançada aos seus pés.

Vemos a prova disso na indiferença com que encara agora esse velho problema outrora tão
ardentemente discutido: o mundo é ou não infinito? Aliás, a palavra mudou de sentido mais uma vez.
Para os Gregos, o infinito, o ápeiron, é a desordem, o indeterminado, o caos. O mundo é perfeito, dizem
então os filósofos e, como é perfeito, é limitado - detém-se na esfera das estrelas. Mas, com o
cristianismo, o infinito tornara-se um atributo positivo,~o sinal de perfeição. Pois quando Giordano
Bruno, no século XVI, apresenta uma doutrina da infinidade do mundo, entende sustentar através dela
que o mundo é o Todo, que se basta a si mesmo e encerra o próprio Deus na sua riqueza imanente.
Volve, pois, contra ele todos os filósofos ortodoxos, entre os quais Mersenne que escreve especialmente
contra ele a Impiété des Déistes (1624). NI as doravante sabemos que já não é possível confundir a
extensão e o pensamento, o mundo e Deus. O infinito em dimensões não implica nem perfeição nem
imperfeição. O mundo físico pode ser infinito tal como o espaço de Euclides, que forma, aliás, a sua
substância. A partir de então voltamos a encontrar, não só a posição tomista que limitava o mundo em
dimensões ao mesmo tempo que não achava irracional a sua duração infinita, como também a posição
dos velhos teólogos agostinianos que, no século XIII, censuravam os aristotélicos por imporem barreiras
ao poder de Deus, limitando a criação a um mundo finito "".

Numa palavra, tornara-se indiferente dizer que o mundo é finito ou infinito. Descartes, para
evitar qualquer pergunta embaraçante (pois as polêmicas anteriores tinham enchido a discussão de
equívocos), escreve prudentemente que o mundo é “indefinido”. Mas, alguns anos mais tarde, um
discípulo entusiasta, que atribui sem qualquer escrúpulo ao Pe Malebranche a paternidade da sua
própria obra, pretende exprimir o verdadeiro pensamento do filósofo ao afirmar que só um mundo
infinito (em dimensões, portanto) é digno da Onipotência do Criador. Vemos, na nova viragem feita
por esta polêmica, que o homem havia definitivamente separado a causa da Natureza - e, logo, a
religião -das vicissitudes da Natureza.
Finalmente a própria vida. essa força exaltante em que Lucrécio encontrava, para o entusiasmo
religioso da sua alma, um sucedâneo dos deuses ausentes, a vida, que no Renascimento tinha de novo
igualado no favor dos filósofos a fidelidade a um Deus transcen dente, a grande responsável das
imagens animistas do hilozoísmo desde os Gregos, entrava por sua vez no quadro: o mundo não era
senão uma grande máquina; o animal e a planta, autômatos. A doutrina dos animais - máquinas, isto
é, a teoria mecanicista da vida, não é, como muitas vezes se julga, uma fantasia apenas de Descartes.
Ela situa-se no centro de toda a filosofia mecanicista; e, por exemplo, encontramo-la já muito
claramente exposta nos Traitez de Ia voix et des chants de Mersenne, publicados em 1663 e
seguidamente integrados na sua Harmonie Universelle, que aparece em dois tomos, em 1636 e 1637.
Os bichos não sabem o que sentem, “de forma que se pode dizer que não agem mas que são agitados,
e que os objetos fazem uma tal impressão nos seus sentidos que lhes e necessário segui-la como as
rodas de um relógio seguem os pesos ou a mola que os faz andar '.-Entre o vitalismo do
Renascimento, que dá às coisas sensibilidade e pensamento, o Mecanicismo da “filosofia nova” que,
fora da alma humana, não vê senão inércia, não existe, com efeito, compromisso possível. Ao
estender a explicação mecanicista à vida orgânica e ao instinto, esta filosofia nova vencia o
adversário nos seus últimos redutos. E certo que esta vitória comportava uma parte de bluff, pois
ainda hoje não temos a certeza de que a vida seja um fenómeno de inércia e duvidamos até
fortemente de tal. Mas o bluff mecanicista assinalou. não obstante, progressos decisivos. Em
primeiro lugar, haja o que houver com a vida, a física não sofreu nunca a tentação de recorrer às
explicações vitalistas; neste ponto, a incursão mecanicista num território contestado assegurou-lhe a
livre fruição do que lhe era devido. Depois, o método mecanicista, independentemente de toda a
dogmática sobre os princípios, fez da biologia, ainda inexistente no século xvt, uma ciência rigorosa;
a medicina pasteuriana e, nos nossos dias, as teorias cromossômicas da hereditariedade, marcam duas
fases decisivas dos progressos obtidos por este método. Finalmente, a filosofia do homem já não tem
de se modelar pelas aventuras do Cosmos e a vida do corpo por utilizá-la, já não pro curará mais ria
conformação e na disposição dos órgãos analogias que possam comandar os comportamentos da
alma, como sustentava com obstinação a velha doutrina da correspondência do Microcosmo e do
Macrocosmo, Hoje, em obras de astrologia ou de radiestesia metafí sica, esta velha doutrina impõe
ainda os seus sonhos, ilustrados por esquemas e desenhos simbólicos: estes regressos ofensivos do
passado nada podem já contra a nossa ciência.

Talvez nunca antes na história, o homem e a Natureza tenham separado tão radicalmente os seus
destinos com uma exceção: Epicuro. Contudo, o homem não se sente só. Dissemos que desta
provação de desmame da Natureza no século XVII, e saiu sem qualquer angústia porque a religião
continuava a ser suficientemente forte para povoar a sua solidão. Epicuro elevava a sua alma a
deuses distantes, para além das contingências do mundo. Ao contrário, mais do que em qualquer
outra época do cristianismo, o cristão desta época conheceu “o Deus sensível ao coração”, como diz
Pascal, e adquiriu uma nova razão para amar Deus ao aperceber-se de que, através do domínio das
coisas, Deus lhe deu este mundo como herança. - Os deuses de Epicuro mostravam-se menos
generosos. A teologia protestante já não tem necessidade da Natureza mas, com a escola francesa de
espiritualidade do século XVII, a teologia católica aprende também a passar sem ela. Não há dúvida
de que Bossuet, o maior teólogo da Escola, pede ainda à Natureza que o eleve a Deus, e Fénelon
abusará das causas finais. Mas esta armadura filosófica que, aliás, tem nesta época um pouco o efeito
de uma sobrevivência, dá lugar às reflexões morais: é nele mesmo, no seu espírito e no seu
coração,que o homem encontra Deus. São Francisco de Sales, que é em quem encontramos talvez
mais nitidamente um sentimento da Natureza, é acima de tudo também um moralista. Dirige-se à
Natureza, muito, menos para lhe pedir que o eleve a Deus do que para rebuscar nela analogias que lhe
permitam ilustrar, representar as suas reflexões. E a Natureza de que ele fala - quando compara a alma
que se nutre do seu Deus e se torna desta forma toda branca à lebre dos Alpes que é branca porque
come neve; ou quando mostra a graça enfraquecida pelo pecado como o imã que deixa de atrair o ferro
quando foi esfregado com alho- encontrou-a nos livros, lendo Teofrasto ou Plínio. Já nada tem a ver
com a Natureza do biólogo nem do físico. De maneira bastante ingênua, “um teólogo sábio” como
Mersenne protesta contra esta acumulação de erros livrescos, que fazem agora sorrir o sábio e o levam
a duvidar do espírito crítico do teólogo`.

E também o artista tende a tornar-se um sábio da nova escola. Dissemos que a veia animista
indispensável a uma concepção estética da Natureza começa a princípio por não se ressentir
excessivamente com a vizinhança de uma Natureza física morta na alma. Mas, com o tempo, a técnica
da perspectiva e das tonalidades imporá a sua fixidez geométrica Assim se formará “o academismo”,
em que a lei substitui a iniciativa e a percepção original. já em Rubens existe muita beleza “fabricada,,;
com Mignard, o virtuosismo torna-se um fim em si. O risco é sem dúvida de todos os tempos e, já no
século XIV, a perfeição da técnica havia esgotado a arquitetura gótica nas subtilezas acrobáticas do
flamejante. Será preciso recordar o famoso protesto de La Fontaine contra a doutrina dos animais-
máquinas:

Que estes castores não sejam mais que um corpo vazio de espírito,

E coisa que nunca me poderão obrigar a acreditar.

Sem dúvida que é preciso falar dele, uma vez que se encontra em todas as memórias. Mas, quando
se gosta muito de La Fontaine, maravilhoso fabulista do bom senso, da ternura, da bonomia maliciosa e
versejador incomparável, gosta-se de o vingar de tantos equívocos acumulados em torno dele. Fez-se
dele um moralista, quando nunca foi moralista -nem sequer epicurista - um autor para crianças, quando
nunca se ocupou de crianças - nem sequer do seu filho - um amante da Natureza, quando instala nas
suas fábulas os animais hieráticos de Esopo, de Fedro e do Romance da Raposa, que raciocinam num
mundo em que a Natureza não tem qualquer lugar. Releiam La Fontaine de caneta na mão e
transcrevam todos os versos em que aparece um sentimento original da Natureza: bastar-lhe-á uma
página e não chegarão a preenchê-la!

Em resumo, no século XVII, o homem toma, perante a Natureza, a atitude de um filho


emancipado e a segurança de um jovem senhor. Não lhe pede uma ordem dos valores. Tal como a
sua teologia, a sua política pode passar sem ela. Bossuet procura o seu princípio “na Escritura
Sagrada,,; Descartes começa a entrever o que poderia ser uma mecânica social, aliás bastante
distinta da que Hobbes imagina já'',; ninguém pede já à ordem das esferas celestes modelos de
política nacional ou européia. A arte, finalmente, mantém com a Natureza o mínimo de contacto
afetivo sem o qual morreria. “Instinto e razão ,,, escreve Pascal, “marcas de duas naturezas”;
doravante a alma humana não surge como a coroação de uma hierarquia que, através da alma
vegetativa e sensitiva dos aristotélicos e até da “semente petrífica” dos filósofos do Renascimento,
mergulha na Natureza; não tem verdadeiramente medida comum com este mundo: o pensamento
não tira nada da extensão, a sua natura é distinta da Natura cósmica.; E compreende-se, nesta
perspectiva, a famosa distinção pascaliana das três ordens: ,Todos os corpos, o firmamento, as
estrelas, a Terra e os seus reinos não valem o menor dos espíritos; pois ele conhece tudo isso e a
si mesmo; e os corpos nada. Todos os corpos reunidos e todos os espíritos reunidos, e todas as
suas produções, não valem o menor movimento de caridade. Pois esse é de uma ordem mais
elevada"''. ,, Se estas idéias se tornaram clássicas, nesta época eram uma novidade e até uma
novidade revolucionária.
E, no entanto, este mesmo Pascal, cuja espiritualidade se move com tanto à vontade, quase
temos a tentação de dizer, com prazer, na Natureza mecanizada, vai ser o primeiro a sentir o que
virá a ser a angústia moderna. “O silêncio eterno desses espaços infinitos atemoriza-me.” (Frag.
296). Falamos já de como este grito era novo. Pela primeira vez, com efeito, o céu deixa de estar
limitado pela esfera das estrelas; pela primeira vez os astros calaram-se,
Os contemporâneos de Pascal só pensam em divertir-se com o belo utensílio que lhes caiu nas
mãos. E o próprio Deus que supostamente lhes dá a autorização, para não dizer que lhes prescreve
o direito. A impressão que tiramos de um longo contacto com eles é que este mundo físico e
biológico os divertiu prodigiosamente. Até 1650, antes de se impor a moda dos graves tratados
científicos, encontramos as primeiras observações ou descobertas dos sábios nos títulos - ou nos
subtítulos - que repetem à porfia: “Questões inusitadas”, “Questões curiosas”, “Divertimentos dos
sábios”, “Onde cada um encontrará recreio e contentamento” e outras fórmulas análogas. Não
esqueçamos que acabamos de sair de uma época em que o físico estuda aquilo a que se chama a “magia
natural” e ainda no século XIX se vendia na Europa, sob o nome de “caixas de física”, material de
prestidigitador; em Paris, no Boulevard Saint-Germain, um mágico especializado nestes artigos usa
como insígnia “Academia de magia”. Muito mais que a obra dos metafísicos que ensinavam então a
Fís ica de Aristóteles, os sábios do século XVII eram os herdeiros felizes e inventivos desses
produtores de prodígios. Mais, nas Pass ions de l’âm e, Descartes propõe-se completar o nosso
domínio sobre o mundo por um domínio igual desta outra mecânica que é em nós a sensibilidade.
Substitui as perguntas ansiosas do moralista inquieto com os riscos do pecado pela tranqüilidade
,
objetiva” do técnico a contas com um problema de equilíbrio das forças. A Natureza íntima, isto é,
tudo o que em nós é sofrido e não voluntário, perde, por sua vez, o mistério: podemos agora encarar os
seus acontecimentos, “como o fazemos com os das comédias”. E jogando assim com a nossa
afetividade, com o mesmo à vontade com que jogamos com as forças do mundo físico, podemos
experimentar contentamento, prazer e, diz ele textualmente, “recreio” .

Ora é esta calma que Pascal não compreende; este jogo perante a Natureza parece-lhe carregado de
perigo. “De que serve ao homem ganhar o universo, se acaba por perder a sua alma! ,, E Pascal escreve:
“Descartes inútil e incerto” (frag. 78). Incerto, porque o mundo não tem a lógica que Descartes imagina
e não tem esta lógica porque, ao contrário do que pensa Descartes, Deus não garantiu a verdade da
nossa ciência, como se na nossa ciência das coisas pudéssemos encon trar uma verdade qualquer que
nos permitisse deleitar-nos neste mundo, mas permitiu-nos simplesmente descobrir uma seqüência de
receitas práticas para utilizar as coisas. Descartes inútil porque, vazia de toda a verdade, a ciência não
conduz a Deus, mas apenas ao mundo. “E, ainda que tal fosse verdadeiro, não estimamos que toda a
filosofia valha uma hora de esforço” (frag. 79). Por outras palavras: o nosso poder sobre o mundo não
irá constituir para a alma um perigo novo, maior ainda que o das paixões? Ou ainda: a paixão da
ciência, de uma ciência das coisas que não falam de Deus, não será a mais perigosa de todas?

Descartes vira o perigo. Ao pedir à metafísica da veracidade divina para fundamentar a física,
quisera prevenir os sábios, já no seu tempo muito numerosos e, em primeiro lugar, o seu amigo
Mersenne, para que não se abandonassem sem refletir à descoberta finalmente possível da Natureza
física. O conhecimento que temos dela depende inteiramente do espírito e a metafísica serie de
base à física, mas é bem verdade que depressa se esquecerá este aviso.
Mais inquieto ainda, Pascal apressa-se, pois, a alargar o fosso que separa doravante o homem e
o seu destino de uma Natureza que deixou de ter analogia com os verdadeiros problemas humanos:
A única ciência contra o senso comum e a natureza dos homens é a única que sempre subsistiu
entre os homens. A única religião contra a natureza, contra o senso comum, contra os nossos
prazeres, é a única que sempre existiu. A Natureza do físico já não fala de Deus: o homem tem de
procurar o seu caminho noutro lugar.
E eis levantado todo o problema moderno. Dissemos da paciência com que a Igreja retomou
incessantemente o trabalho que consiste em pôr de acordo o homem e a Natureza, e daí a sua
condenação do pessimismo protestante; do seu cuidado em manter sempre aberta a via de uma
“demonstração natural” da existência de Deus. Mas, a partir do século XVII e fora da Igreja, a
Natureza, o velho Cosmos divino ou chantre de Deus, por um lado, e o homem que o problema
religioso não deixa de atormentar, por outro lado, iam com efeito enveredar por vias divergentes.
Mecanizada, a Natureza torna-se uma simples possibilidade de exploração técnica, em breve levada
ao máximo pela indústria nascente e logo invasora. O homem trocou o seu modelo, a sua senhora,
por uma ferramenta. Esta ferramenta é-lhe entregue sem uma nota a explicar o seu modo de
emprego. O homem, a princípio divertido, não vai tardar a apavorar-se com o seu poder e com o
vazio que criou desta forma em redor dele.

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