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POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL, MARCOS LEGAIS E CONCEITUAIS: os

caminhos e descaminhos para o acesso universal

Amanda de Souza Rodrigues1


Edna Maria Goulart Joazeiro 2

RESUMO: O artigo objetiva a análise conceitual, legal e


assistencial da Política de Saúde Mental no Brasil, observando
a construção histórica dos direitos das pessoas com transtorno
mental. Analisa ainda como as normas inclusivas
desconstruíram o paradigma e inseriram, com base na dignidade
humana, a visão de igualdade entre os membros da sociedade.
Portanto, diante da necessidade de Políticas Públicas que
implementem direitos constituídos em lei, evidencia-se o
possível retrocesso da Política de Saúde Mental no Brasil. Foi
utilizada a metodologia indutiva bibliográfica para evidenciar a
historicidade dos direitos da pessoa com deficiência.
Palavras-chave: Saúde Pública; Leis; Saúde Mental;
Transtorno Mental.

ABSTRACT: The article aims at the conceptual, legal and


assistance analysis of the Mental Health Policy in Brazil,
observing the historical construction of the rights of people with
mental disorders. It also analyzes how inclusive norms
deconstructed the paradigm and inserted, based on human
dignity, the vision of equality among the members of society.
Therefore, given the need for Public Policies that implement
rights constituted by law, it is evident the possible retrocession of
Mental Health Policy in Brazil. The bibliographic inductive
methodology was used to highlight the historicity of the rights of
the disabled person.
Keywords: Public health; Laws; Mental health; Mental Disorder.
.

1 INTRODUÇÃO

O trabalho analisa a trajetória histórica do arcabouço legal, conceitual e assistencial


no âmbito da Política de Saúde Mental no Brasil, no que tange ao direito da pessoa com

1-Pós-graduanda do Mestrado de Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. E-mail:


amandarodrigues98@hotmail.com
2- Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
da Universidade Federal do Piauí. Linha Identidade, Cultura e Processos Sociais, UFPI. Teresina, Piauí,
Brasil. E-mail: emgoulart@ uol.com.br
transtorno mental e a respectiva produção do cuidado desse segmento populacional. O
caminho traçado foi o da discussão conceitual e legal que marcam essa trajetória histórica e
que, gradualmente, se consolidou num percurso que se distancia da perspectiva do tratar
mediante isolamento e repressão (AMARANTE, 1995; VASCONCELOS, 2008; ACIOLY,
2009) para o paradigma do tratar em liberdade em dispositivos comunitários substitutivos ao
hospital psiquiátrico.
Numa perspectiva mundial, destacamos que a Organização Mundial de Saúde
(OMS), no seu relatório, ao traçar o panorama geral da Saúde Mental do Mundo, apresenta
dez recomendações para a ação nesse campo de cuidado, são elas: 1. proporcionar
tratamento em cuidados primários; 2. disponibilizar medicamentos psicotrópicos; 3.
proporcionar cuidados na comunidade; 4. educar o público; 5. envolver a comunidade, as
famílias e os usuários; 6. estabelecer políticas, programas e legislação nacionais; 7. Preparar
recursos humanos; 8. estabelecer vínculos com outros setores; 9. monitorizar a saúde mental
na comunidade e, por último, a 10 recomendação consiste no destaque da importância do
apoio à pesquisa nesse campo de cuidado à saúde (OMS, 2001, p. XV-XIX).
Se analisarmos a Política de Saúde do Sistema Único de Saúde, no que tange à
Saúde Mental no Brasil, ele responde aos ditames da sexta recomendação relativa ao
estabelecimento das políticas, programas e de legislação nacionais, na importante Lei
10.216/01, conhecida como Lei Antimanicomial e nas legislações que sucederam e
aperfeiçoaram o novo paradigma do tratar em liberdade.
Diante da presença marcante da desigualdade social no Brasil, é importante destacar
que esse aparato legal, a despeito de ser essencial para a construção da política de Saúde e
de Saúde Mental a ser implementada, mas não é suficiente para garantir por si só o acesso
da pessoa com transtorno mental aos direitos instituídos, sendo necessárias a
complementariedade das Políticas Públicas capazes de dar efetividade aos seus resultados.
Pereira (2011, p.163) assinala que, nas sociedades contemporâneas, a associação entre
políticas públicas, política social, necessidades sociais e direitos de cidadania tornou-se uma
recorrente tendência intelectual e política.
A autora analisa política social na perspectiva de Titmuss (1991), ou seja, ela “não
se dá no vácuo e nem é desfalcada de relações. O seu trato (intelectual e político) imprescinde
do exame da sociedade como um todo no conjunto de variados aspectos sociais, econômicos
e políticos”. (PEREIRA, 2014, p. 24).
2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO MUNDIAL

Consoante o Relatório da OMS, no período Medieval, as pessoas com transtornos


mentais eram jogadas em fogueiras ou isoladas do convívio com os demais em grandes
instituições. Este modelo configurou, tempos depois, o caráter asilar de aprisionamento e de
restrição que perdurou durante anos. O supracitado Relatório apresenta três fundamentos que
marcaram a modificação do paradigma da atenção à Saúde Mental: os avanços da
psicofarmacologia, a incorporação à saúde de componentes sociais e mentais e a
disseminação mundial dos Direitos Humanos. Estes, para, Ramos (2017, p. 20), “consistem
em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na
liberdade, igualdade e dignidade”.
Amarante (1995) afirma que após 2ª Guerra Mundial surgiram as Declarações e os
Tratados Internacionais de Direitos Humanos, a exemplo da Declaração Universal de Direitos
Humanos (1948), que enfatizou a igualdade entre os homens como fundamento da liberdade
e foi, para Ramos (2017, p. 26), “o marco da universalização dos direitos humanos”. Em 1990,
na Declaração de Caracas, os países da América Latina comprometeram-se em reestruturar
a assistência psiquiátrica fundada na característica asilar e reforçar a garantia dos direitos
humanos das pessoas com transtornos mentais, inclusive durante o tratamento, reforçando a
atenção primária de saúde como estratégia para a promoção de modelos alternativos
centrados na comunidade.
Apesar da expressa previsão dessas garantias no escopo da legislação brasileira, o
acesso aos direitos não é assegurado a todos. Coadunando com este pensamento, Bobbio
(2004, p.17) afirma que, mais importante do que enumerar ou fundamentar direitos, é
descobrir “qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados”, ressaltando a importância das políticas
públicas para implementar tais direitos adquiridos.

2 PERSPECTIVA BRASILEIRA DE POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL

Na perspectiva brasileira, Requião (2015, p.97) analisa que, o Primeiro Hospital


Psiquiátrico brasileiro surgiu em 1852, porém, não havia “nenhuma preocupação com o
tratamento do louco, mas tão somente com a sua exclusão do meio social onde se situava
como elemento perturbador”, reforçando a ideia de exclusão da pessoa com transtorno mental
que perdurou no Brasil até o século passado.
Nessa esteira, o que prevaleceu foi o encarceramento das pessoas com transtornos
mentais em manicômios, com a hospitalização e o asilamento do doente mental, pois
acreditava-se que se eles permanecessem no convívio social poderiam oferecer riscos à
segurança pública, à moral e aos bons costumes sociais. Os doentes mentais eram isolados
e cada vez mais excluídos do convívio com a sociedade e com os próprios familiares. Assim,
a prioridade era o isolamento e não o tratamento destas pessoas.
Coadunando com este pensamento, Gonçalves (2008) preleciona:

[...] O hospício constituiu-se como um local de isolamento e contenção dos


internos. A proposta terapêutica era o tratamento moral, compreendido como
isolamento e vigilância dos doentes, organização do espaço terapêutico e
distribuição do tempo. Quanto à instituição, caracterizava-se por seu
fechamento em relação ao mundo externo (GONÇALVES, 2008, p. 20).
.
Ventura e Brito (2012) afirmam que enquanto diversos países já questionavam os
sistemas de assistência psiquiátrica e criticavam o modelo hospiciocêntrico, no Brasil, apenas
na segunda metade da década de 1970 emergiram críticas às políticas de saúde de Estado
por meio da elaboração de propostas que constituíram o movimento da Reforma Sanitária. Ao
longo desse processo, começaram a surgir denúncias contra o abandono, as violências e os
maus-tratos a que estavam submetidos os pacientes internados nos hospícios do país que
ensejaram a Reforma Psiquiátrica.
Em 1978, formou-se o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que
uma década depois transformou-se no movimento de luta antimanicomial que tinha como
objetivo a inclusão do paciente com algum tipo de transtorno na sociedade. Priorizando,
priorizando o bem-estar do paciente, sem discriminação nem segregação, modificando o
modelo hospiciocêntrico e buscando a inclusão de serviços públicos que atendessem à
comunidade em diversas áreas de atuação no amparo à pessoa com transtorno mental. Rosa
(2008) afirma que a Reforma Psiquiátrica foi um conjunto de transformações de práticas,
saberes, valores culturais e sociais na área da saúde mental.
Em 1988, a Constituição Federal consagrou o princípio da dignidade humana no Brasil.
Moraes (2006, p. 16) assinala que dignidade da pessoa humana “traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo
estatuto jurídico deve assegurar”. Araújo e Joazeiro (2019) afirmam que a Constituição de
1988 representa uma importante transformação na extensão dos direitos sociais, ao
transformar a saúde em direito de cidadania, criando um sistema público, universal e
descentralizado de saúde.
Nesse sentido, passou-se a entender a saúde como um direito do indivíduo,
garantindo-o o livre acesso ao tratamento de saúde e o dever do Estado nesta prestação, a
exemplo do que prevê os artigos 196 e 198 da CF/88, in verbis:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de
acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade. (BRASIL, 2019).

A partir da Constituição de 1988, e amparado pelas leis 8.080/90 e 8.142/90, o


Sistema Único de Saúde - SUS foi criado como política pública do Estado. Para Fleury (2009)
a perspectiva conceitual do SUS funda-se em um modelo de atenção universal e nessa ótica
a autora o caracteriza pela:

Universalidade na cobertura, o reconhecimento dos direitos sociais, a


afirmação do dever do Estado, a subordinação das práticas privadas à
regulação em função da relevância pública das ações e serviços nestas áreas,
uma perspectiva publicista de cogestão governo/sociedade, um arranjo
organizacional descentralizado (FLEURY, 2009, p. 745-746)

BRITO et al. (2017) analisam a modificação na Saúde Mental do Brasil com a


instituição de um Sistema Único de Saúde que funciona como uma rede de serviços à
disposição da população, com foco em ações preventivas, buscando a integralidade do
atendimento. Fato este que modificou o modelo excludente de atenção às pessoas com
transtorno mental que negligenciava parte da população ao não considerar saúde dever do
Estado.
Em 2001, a Lei Federal Nº 10.216 definiu a proteção dos direitos das pessoas com
transtorno mental e redirecionou o modelo assistencial de Saúde Mental. A Lei
Antimanicomial, consoante, Joazeiro, Araújo e Rosa (2017, p. 74) foi a responsável pela
ruptura do paradigma da pessoa com transtorno mental e objetivou “o processo de
enfraquecimento do papel dos Hospitais Psiquiátricos e a expansão de criação de
equipamentos comunitários e descentralizados”.
Note-se, portanto, a expectativa de inserção da pessoa com transtorno mental na
rede de atenção à saúde, com todo o tratamento que precisar, sendo recepcionado desde os
mecanismos mais básicos, até o nível hospitalar, quando necessário fosse, nos termos do art.
6º da supramencionada lei,
Amarante e Diaz (2017) analisam que:

Formulada como uma política pública do Estado, a reforma psiquiátrica


brasileira é respaldada pela Lei nº 10.216 e pelas diversas portarias
implantadas pelo Ministério da Saúde. O projeto em expansão constitui-se pelo
modelo comunitário com seus diversos dispositivos institucionais: os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS) como ordenadores da rede; o programa De
Volta para Casa, que reinsere usuários de longa permanência internados em
hospitais psiquiátricos na sociedade; os leitos psiquiátricos em hospital geral;
a construção de uma política pública intersetorial para álcool e drogas, e
também para crianças e adolescentes; a articulação com a rede básica de
saúde; e a consequente redução dos leitos nos hospitais psiquiátricos.
(AMARANTE e DIAZ, 2017, p.85)

Diante do redirecionamento do modelo assistencial necessitou-se de uma estrutura


de assistência que coadunasse com o novo modelo. Requião (2015) afirma que “rompeu-se
com o padrão do sistema asilar, o que abriu as portas para o fortalecimento de programas
como o dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), regulamentados através da Portaria Nº
336/2002, do Ministério da Saúde”. A referida Portaria, segundo Amarante e Nunes (2018) é
um marco importante das políticas de saúde mental no SUS ao redefinir os CAPS em relação
à sua organização, ao porte, à especificidade da clientela atendida. Passaram a existir CAPS
I, CAPS II, CAPS III, CAPSi (infantil ou infanto-juvenil) e CAPSad (álcool e drogas).
Com a Portaria nº 4.279/2010 foram criadas 5 redes temáticas: a Rede Cegonha; a
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); a Rede de Atenção às pessoas com Doenças
Crônicas; a Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência; a Rede de Urgência e Emergência
Araújo e Joazeiro (2019) ressaltam que objetivo dessa Rede de Atenção é articular o acesso
aos serviços de diferentes tipos, por meio de arranjos que garantam a integralidade da
assistência à saúde, ao mesmo tempo em que possibilita ao profissional uma melhor
compreensão do SUS e da assistência desenvolvida cotidianamente na sua perspectiva de
integralidade, universalidade e equidade, contribuindo assim para o fortalecimento do SUS
como política pública.
Outro passo importante nas Políticas Públicas de Saúde Mental foi a Portaria nº
3.088/2011 que institui a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS. Esta, para Amarante e
Nunes (2018), possibilita uma nova dimensão ao conjunto das ações em saúde mental no
SUS, cujos objetivos principais foram definidos, sendo eles: a ampliação do acesso à atenção
psicossocial da população, em seus diferentes níveis de complexidade; promoção do acesso
das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso do crack,
álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção; e garantia da articulação e
integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por
meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências.
Joazeiro, Araújo e Rosa (2017) afirmam que essas novas formas de produção de
cuidado no campo da Saúde Mental, e principalmente o CAPS em suas diversas modalidades,
atuando dentro da RAPS, fortalecem o cuidado no âmbito da Saúde Mental. Santos et al.
(2018) analisam que essas mudanças substituíram gradualmente o modelo hospitalocêntrico,
que tinha características excludentes e opressivas, perfazendo, assim, um sistema de
assistência, utilizando os princípios do Sistema Único de Saúde. Desta forma, priorizou a
atenção à pessoa com transtorno mental e refutou as formas culturalmente validadas de
compreensão da loucura.
Apesar das diversas políticas de saúde supramencionadas que buscam modificar o
paradigma da exclusão e do preconceito da pessoa com transtorno mental, são necessárias
ações intersetoriais para garantir a integralidade do atendimento, assim como para fortalecer
as ações interdisciplinares que remetem à reação dialética onde “nenhuma das partes ganha
sentido e consciência se isolada ou separada das demais e das suas circunstâncias”
(PEREIRA, 2014, p. 33). Outrossim, apesar das históricas conquistas de direitos, a falta de
planejamento e preparo para a execução prejudica o acesso das pessoas com transtorno
mental à saúde que lhes é garantida pela Constituição de 1988.
Paim (2018), analisa que o Brasil não assegura condições objetivas para a
sustentabilidade econômica e científico-tecnológica do SUS através dos poderes executivo,
legislativo e judiciário. O autor ressalta a desvalorização dos trabalhadores de saúde que
ocorre por meio da terceirização e da precarização do trabalho problemas de gestão como a
falta de profissionalização apesar da garantia Constitucional da saúde como direito de todos
e dever estatal:
“A insuficiência da infraestrutura pública, a falta de planejamento ascendente,
as dificuldades com a montagem de redes na regionalização e os impasses
para a mudança dos modelos de atenção e das práticas de saúde também
comprometem o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
Verifica-se a reprodução do modelo médico hegemônico, centrado mais na
doença que na saúde, no tratamento que na prevenção ou promoção, no
hospital e nos serviços especializados, e menos na comunidade, no território e
na atenção básica”. (PAIM, 2018, p.1725)

Bravo, Pelaez e Pinheiro (2018, p.16) afirmam que na atualidade há um retrocesso


nas conquistas alcançadas pela Reforma Psiquiátrica no país, uma vez que o Governo
Temer, através da Portaria n. 3.588/2017 (BRASIL, 2017) empreendeu mudanças na Política
de Saúde Mental alterando a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mudanças estas “que
apontam para o fortalecimento das internações em hospitais psiquiátricos e criação de leitos
em hospitais gerais e serviços ambulatoriais, por meio de ampliação de recursos para tais
fins” . Afirmam os autores que essa proposta foi aprovada pela CIT em 21 de dezembro de
2017, sem que pesquisadores, representantes do controle social ou a sociedade fossem
consultados sobre a temática.
Araújo e Joazeiro (2019, p. 37) mencionam a Nota Técnica nº11/2019 como uma
modificação do atual governo que vai de encontro às mudanças instituídas no governo
anterior, ou seja, retrocedendo as Políticas de Saúde, principalmente ao que foi preconizado
pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. “As alterações advindas dessa Nota Técnica (2019),
demostram o difícil retrocesso no caminho que o cuidado em Saúde Mental já vinha trilhando
quando as Comunidades Terapêuticas foram inseridas na RAPS e passaram a receber
financiamento federal”. Nesse sentido, a expansão dos Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRTs) configura-se como um dos pontos significativos da Nova Política Nacional de Saúde
Mental, assim como:
Nas novas ações do Ministério da Saúde, as SRTs também passam a acolher
pacientes com transtornos mentais em outras situações de vulnerabilidade,
como por exemplo, aqueles que vivem nas ruas e também os que são egressos
de unidades prisionais comuns. (NOTA TÉCNICA, 2019, p. 4).

É possível ainda destacar, dentre outras questões que desconstroem a Política de


Saúde Mental, a indicação de ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e comunidades
terapêuticas, dentro da Rede de Atenção Psicossocial, algo inclusive que goza de estímulo à
expansão por parte do governo, e que incentiva o retorno à lógica manicomial; assim como,
o financiamento pelo Ministério da Saúde para a compra de aparelhos de choque. Conforme
a Nota Técnica do Ministério da Saúde:

Quando se trata de oferta de tratamento efetivo aos pacientes com transtornos


mentais, há que se buscar oferecer no SUS a disponibilização do melhor
aparato terapêutico para a população. Como exemplo, há a
Eletroconvulsoterapia (ECT), cujo aparelho passou a compor a lista do Sistema
de Informação e Gerenciamento de Equipamentos e Materiais (SIGEM) do
Fundo Nacional de Saúde, desse modo, o Ministério da Saúde passa a
financiar a compra desse tipo de equipamento para o tratamento de pacientes
que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a
outras abordagens terapêuticas (NOTA TÉCNICA, 2019, p. 6).

Araújo e Joazeiro (2019) ressaltam que o atual quadro conjuntural de avanço do


conservadorismo, de redução de recursos para as políticas sociais públicas, bem como o
conjunto das ações que desestabilizam os fundamentos do SUS, adotadas pelo atual governo,
constituem na atualidade um dos grandes desafios para os que acreditam que saúde não é
mercadoria e que a vida humana não tem preço.
Nessa perspectiva, o retrocesso é inaceitável diante da necessidade de acesso da
população às políticas existentes, reforçando a ideia de que o direito adquirido precisa de
Políticas Públicas capazes de efetivá-lo em resposta às demandas da sociedade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Muitas sofrem em silêncio. Além do sofrimento e da falta de cuidados, encontram-


se as fronteiras do estigma, da vergonha, da exclusão e, mais frequentemente do que
desejaríamos reconhecer, da morte” (OMS, 2001, p. XII). A percepção do tratar a pessoa com
transtorno mental com repressão e isolamento foi alterada diante da comprova exigência de
valorizar a especificidade dessa parcela da sociedade, reconhecendo-os como sujeitos de
direitos e deveres. Conquistas estas apontada pela Reforma Sanitária e pela Reforma
Psiquiátrica no que tange o cuidado da pessoa com transtorno mental.
Porém, hoje, os históricos avanços das Políticas de Saúde estão ameaçados, em
virtude do olhar que reduz a uma dimensão de mercado a avaliação de uma política, ignorando
as dimensões tecnológicas e sociais de sofrimento psíquico com profunda relação de
interdependência e interpenetração recíproca do viver em uma sociedade desigual e marcada
por múltiplas formas do existir, cercada de vulnerabilidade.
A perspectiva é a perda de conquistas históricas que afeta as pessoas com transtorno
mental, seus familiares e a população de modo geral que precisa do SUS para garantir o
mínimo acesso à defesa da vida. Por isso, assinalamos a fundamental importância de que a
sociedade, gestores e a população usuária das Políticas de Saúde e de Assistência Social
participem do processo de fortalecimento do SUS para que possamos, um dia, consolidar a
Reforma Sanitária na sua dimensão mundial de proteção à saúde e à vida.
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