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Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio

Anna Freud:
uma desenvolvimentista
quase esquecida
Anna Freud:
an almost forgotten
developmentalist
Marcos Roberto Fontoni
Leopoldo Fulgencio

Resumo
Anna Freud é classicamente reconhecida, na história da psicanálise como a filha de Freud que
analisou O ego e os mecanismos de defesa, responsável por contribuir com a perspectiva teóri-
co-clínica denominada psicologia do ego. No entanto, pouca atenção foi dada (e ela foi mesmo
negligenciada) ao restante de sua obra, especialmente no que se refere ao imenso trabalho de
consolidação da teoria do desenvolvimento da sexualidade como uma teoria plena do desen-
volvimento. Neste artigo, elencamos alguns pontos da obra da autora que vão muito além da-
quilo que ela propõe sobre os mecanismos de defesa, incluindo aqui sua contribuição à teoria
psicanalítica do desenvolvimento, bem como suas ideias a respeito de questões mais gerais
como a posição da psicanálise no meio científico, o uso da observação direta como método de
investigação na psicanálise, seu pioneirismo na construção de um instrumento de avaliação
e diagnóstico com base psicanalítica, o uso da psicanálise como método de prevenção e suas
observações a respeito do desenvolvimento perturbado ou interrompido.

Palavras-chave: Psicanálise, Anna Freud, Desenvolvimento, Criança.

Introdução os de Helen Bee, Ruth Feldman, etc.) vere-


Como sabemos, Sigmund Freud foi pionei- mos que a psicanálise é reduzida à apresen-
ro na apresentação de uma teoria do desen- tação das perspectivas de Freud e Erickson.
volvimento – a teoria do desenvolvimento E ainda assim, essa apresentação é tomada
psicossexual, o que tem sido reconhecido e como meramente didática. Nesse sentido,
reiterado em diversos manuais dedicados à também podemos notar a ausência de par-
apresentação do campo atual das teorias do ticipação de psicanalistas em eventos da psi-
desenvolvimento. Após ele, muitos autores cologia do desenvolvimento, o que eviden-
da psicanálise também fizeram suas contri- cia um distanciamento desses dois campos.
buições neste campo, como Erik Erickson, Portanto, aplicar a psicanálise a pesquisas a
Renné Spitz, Margareth Mahler, Anna Freud respeito do desenvolvimento infantil não é
e muitos outros. só útil, já que a psicanálise tem uma vasta
Apesar disso, se observarmos os diversos bibliografia sobre este tema, como também
manuais do desenvolvimento infantil (como necessário para reduzir esse distanciamento.

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Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida

Mas essa aproximação não deve ser so- Anna Freud


mente teórica, haja vista que a psicanálise Anna é uma das pioneiras no campo da psi-
enfrenta no campo científico como um todo, canálise infantil. Ela foi responsável por ex-
já há algum tempo, críticas por seu modelo pandir a teoria deixada por seu pai – a qual
de teorização especulativo e que muitas ve- ela mesma criticou por ter deixado uma série
zes não atende às exigências da Medicina ba- de lacunas, como a pouca precisão no que se
seada em evidências (Fontoni, 2015). refere aos fenômenos que caracterizam o de-
Muitas dessas críticas derivam da insis- senvolvimento do impulso agressivo, já que,
tência na manutenção de conceitos mesmo para ela, o que existia era uma mera correla-
após estudos confirmarem sua inaplicabili- ção das expressões agressivas (morder, cus-
dade, o que, por sua vez, é fruto de um mo- pir, agredir, prepotência) com as fases libidi-
vimento ortodoxo que em muitos casos con- nais (Freud, 1976).
sidera uma “afronta a Freud” questionar suas A partir dessa consideração, Anna Freud
proposições (Imbasciati, 2011). propôs um modelo de avaliação mais abran-
A esse respeito, Mark Solms (2005, p. 536, gente que pudesse abarcar o desenvolvimen-
tradução nossa), autor que trabalha na inter- to desde as atitudes
face entre psicanálise e neurociências, diz:
[...] dependentes, irracionais, determinadas
[...] pesquisas autocríticas [self-critical resear- pelo id e o objeto, no sentido de um crescente
ch] ou mesmo pesquisas que utilizam o mé- domínio, pelo ego, do seu [da criança] mun-
todo analítico têm sido pouco realizadas em do interno e externo (Freud, 1976, p. 60).
psicanálise, especialmente desde a morte de
Freud. Nesse sentido, a psicanálise pós-guer- Assim, atitudes menos avançadas como
ra tendeu principalmente a se caracterizar o mamar no seio, o sujar as fraldas, o ego-
como uma regurgitação da teoria existente e centrismo, etc. teriam um determinado
cogitação sobre postulados perenes [peren- encaminhamento na saúde, (mamar de
nial conundrums]. forma racional, controle dos esfíncteres e
empatia consecutivamente) demonstran-
Nesse contexto, a pesquisa da qual resulta do o desenvolvimento saudável do ego.
este artigo buscou apontar interfaces entre a A autora ainda destaca a importância do
psicanálise e a psicologia do desenvolvimen- ambiente no processo de desenvolvimento,
to, e possibilitar sua aplicação a experimen- já que, para ela, esses avanços são sempre
tos empíricos. Nessa empreitada, o ponto de o resultado da interação entre impulso e
partida dentro da psicanálise foi o trabalho ego/superego com a reação às influências
de Anna Freud, uma autora que geralmente ambientais.
é lembrada apenas como a filha de Freud que Tal modelo procura compreender e des-
escreveu O ego e os mecanismos de defesa. crever o desenvolvimento considerando uma
Como veremos ao longo deste artigo, diversidade de perspectivas ou “linhas do
Anna deu contribuições que vão muito além desenvolvimento”. O desenvolvimento po-
das defesas do ego, especialmente para a deria ser compreendido e avaliado a partir
compreensão do desenvolvimento infantil de diversos aspectos, e cada linha seria um
no contexto familiar e institucional. Além aspecto diferente observado na evolução da
disso, serão apresentados alguns pontos das criança, como a alimentação, a relação com
obras completas da autora, que totalizam oito pares, a higiene, etc.
volumes, nos quais ela toca, mesmo que bre- Assim, foram propostas cinco linhas que
vemente, em pontos que são alvo de preocu- organizam o desenvolvimento psíquico:
pação na sociedade psicanalítica atualmente. (1) da mamada à alimentação racional;

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(2) do se molhar e se sujar ao controle dos para muitas outras conquistas” (Freud, 1981,
esfíncteres; p. 129, tradução nossa).
(3) da irresponsabilidade à responsabili-
dade no controle corpóreo; O interesse de Anna pela educação das
(4) do egocentrismo ao companheirismo; crianças é um fio condutor na construção
(5) do corpo a o brinquedo e do brincar dessas linhas, pois a autora procurou desta-
ao trabalho; car nelas as características que precisam es-
(6) do caminho percorrido da extrema tar presentes para que a criança esteja apta
dependência do recém-nascido à autocon- a frequentar a escola. A preocupação da au-
fiança emocional – que é a diretriz prototípi- tora era de que não se forçasse as crianças a
ca das cinco linhas. situações para as quais seu nível de desen-
Nesse sentido, cada linha do desenvol- volvimento emocional ainda não fosse su-
vimento é um indício do quão avançada a ficiente.
criança está em termos de dependência e au- Para exemplificar essa ideia, Anna com-
tossuficiência emocional. para o desenvolvimento emocional ao mo-
Apesar de ter proposto essas cinco linhas, mento de desmame do bebê. Ela diz que con-
Anna Freud (1965, p. 77, tradução nossa) selhos do tipo “você deve estimular seu filho
ressalta que “[...] há muitos outros exemplos a interagir com outras crianças” ou “mães e
de linhas do desenvolvimento” e que esse é filhos devem ficar juntos o máximo possível,
um modelo ao qual podem ser agregadas não os separe”, seria o mesmo que aconse-
outras linhas que dizem respeito a outros as- lhar que se desmame o bebê de seis meses e o
pectos do desenvolvimento infantil. alimente com um bife (Freud, 1969, p. 348,
Segundo a autora, até o momento da tradução nossa).
publicação do oitavo volume de suas obras Embora não tivesse especificado as ida-
completas, nenhum autor havia ainda aceita- des para os acontecimentos em cada linha do
do o desafio de fazer uma contribuição nesse desenvolvimento e estivesse ciente da escas-
sentido. sez dos dados que existiam até então, e ainda
Então, Anna Freud dá alguns outros soubesse que qualquer tentativa nesse senti-
exemplos de linhas: do esbarra na limitação que generalizações
desse tipo trazem a um campo propenso à
[...] dos caminhos físicos para os caminhos variação de indivíduo para indivíduo, Anna
mentais de descarga; dos objetos animados Freud se arrisca a demarcar três períodos no
para os inanimados, da irresponsabilidade desenvolvimento infantil.
para a culpa (Freud, 1981, p. 65, tradução • O primeiro período é o que se inicia no
nossa). nascimento e vai até os 12 meses de vida.
Esse momento é caracterizado pela vivência
E acrescenta: do mundo entre apenas dois corpos – mãe
e bebê. A partir dessa interação, ressalta a
[...] o caminho que leva ao desenvolvimento autora, três linhas do desenvolvimento têm
do processo secundário; a distinção entre re- maior destaque: distinção entre soma e psi-
alidade interna e externa; o desenvolvimento que, entre o corpo do bebê e o da mãe e entre
da habilidade de descarregar excitações men- self e objeto.
tais via mente [e não via corpo]; a capacidade • O segundo período se estende até o fi-
de controlar impulsos; o aparecimento da no- nal dos estágios pré-edípicos (4-5 anos). Os
ção de tempo; o caminho do modo egocêntri- desenvolvimentos com maior destaque nes-
co [infantil] ao modo mais objetivo [adulto] se período são os referentes à motilidade, às
de perceber o mundo, assim como a estrada funções fisiológicas, ao controle dos impul-

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sos, ao processo secundário e à constância de em que a criança é desmamada; depois dis-


objeto. so, o momento em que ela começa a poder
• No terceiro período, o desenvolvimento se alimentar sozinha e depois passa a se ali-
das linhas é mais estável, não tão susceptível mentar com talheres de maneira gradual até
a retrocessos ou diferenças no avanço de cada adquirir maestria nessa tarefa.
uma delas. As respostas neuróticas a confli- Quanto à linha do controle dos esfíncteres,
tos, quando tudo vai bem, são substituídas há três períodos com seus respectivos mar-
por respostas adaptativas (Freud, 1981). cos ou características: o primeiro se estende
Esses períodos são a base do sentido cro- até os 24 meses no qual o bebê e a criança
nológico dos acontecimentos descritos nas pequena têm total liberdade para se sujarem;
linhas do desenvolvimento, e que cada uma depois, dos 24 aos 30 meses, há o surgimento
delas apresenta marcos específicos para cada dos fenômenos da fase anal – como brincar
aspecto do desenvolvimento infantil. com as fezes ou substâncias pastosas, com
As linhas do desenvolvimento formula- a comida, massinha, etc. Segundo Anna, se
das por Anna Freud descrevem uma série essas atitudes forem toleradas pelo ambiente
de fases pelas quais o desenvolvimento deve e se regras de limpeza e higiene não forem
seguir até que o indivíduo conquiste capaci- forçadas à criança, permitindo-lhe exercitar
dades que lhe permitam viver em sociedade, essas tendências anais, o controle dos esfínc-
se relacionar, trabalhar, etc. Além das fases, teres se dará naturalmente (Freud, 1974).
também é possível identificar os fenômenos Por fim, então, num terceiro momento, dos
que marcam (marcos) a passagem de uma 30 aos 48 meses, a criança deve finalmente
fase para a seguinte. A seguir, apresentare- adotar de maneira irrestrita as exigências
mos um quadro geral desses marcos. ambientais quanto à limpeza, bem como
Inicialmente, tendo em vista que Anna atingir o pleno controle dos esfíncteres.
partiu das ideias de seu pai para formular A linha da irresponsabilidade à respon-
sua teoria, podemos considerar os marcos sabilidade no controle corpóreo teria como
presentes na teoria do desenvolvimento da marcos o surgimento da capacidade da
libido. A partir da observação de crianças criança de dirigir sua agressividade para o
institucionalizadas, Anna resume as mudan- meio externo. Inicialmente isso ocorre de
ças que ocorrem na passagem de uma fase maneira que desconsidera a responsabilida-
para a outra dizendo que de da criança sobre suas próprias atitudes
para então, com o desenvolvimento, a crian-
[...] era possível distinguir claramente entre ça ser capaz de perceber que seus atos têm
as fases libidinais a partir do comportamento um efeito sobre o mundo e de se responsabi-
da criança em relação à mãe ou seu substitu- lizar por eles.
to. [Primeiro como] uma dependência ávida A linha do egocentrismo ao companhei-
(oral); uma possessividade invasiva e ator- rismo descreve as etapas que o indivíduo
mentadora (anal); [e] uma atitude protetora percorre para passar de um relacionamen-
em relação ao objeto de amor (fálico) (Freud, to apenas a dois corpos (mãe e bebê) para
1973a, p. 150). a construção de laços sociais, amizades, etc.
Para Anna, na verdade, no início, o interesse
Com relação aos marcos apontados nas li- do bebê pela mãe nem se daria por um in-
nhas do desenvolvimento citaremos aqui al- teresse nela como pessoa, mas simplesmente
guns exemplos. Na linha que diz respeito ao como um objeto que atende às suas deman-
processo de aquisição da capacidade para se das instintuais.
alimentar de maneira autônoma, podemos A linha do corpo ao brinquedo e do brin-
identificar os marcos relativos ao momento quedo ao trabalho descreve o caminho per-

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corrido para a chegada de dois marcos: a aplicados contra as ansiedades provindas do


capacidade de brincar e a capacidade para próprio desenvolvimento do ego, devem, na
trabalhar. Os marcos nesse percurso seriam, saúde, ser superados no início do período da
no início, a utilização do corpo da mãe e do latência, no qual o ego se fortalece e as an-
próprio corpo como objetos para brincar; siedades diminuem. Quando os mecanismos
depois haveria a adoção de uma categoria de de defesa são aplicados em demasia, devido
brinquedos utilizados especialmente como a ansiedades muito fortes, o desenvolvimen-
fonte de conforto (como um objeto macio – to do ego é afetado e tende a ter deficiências
pano, urso, etc.). permanentes (Freud, 1973a).
Segundo Anna, esses brinquedos são “[...] Além da expansão da teoria freudiana,
usados para conforto, como uma alternati- Anna ainda se mostrou preocupada com as-
va para sentimentos amáveis e agressivos” pectos à frente de seu tempo e pertinentes na
(Freud, 1969, p. 330, tradução nossa). Aqui, atualidade, como:
a autora coloca a “passagem pelos objetos (1) a ideia de que a observação direta
transicionais” (Freud, 1974, p. 64, tradução pode ser um método para crescimento da
nossa), conceito emprestado de Winnicott teoria psicanalítica;
(1975), como o fenômeno que descreve o (2) a necessidade de se avaliar o desenvol-
que são tais brinquedos macios utilizados vimento socioemocional (DSE);
para conforto. Por fim, surgem as brincadei- (3) a utilização da psicanálise como um
ras construtivas. meio para prevenção de psicopatologias;
Além das linhas propostas por Anna, e (4) a posição da psicanálise no meio cien-
como ela mesma incentivou que fosse feito, tífico; e
identificamos a descrição dos mecanismos (5) o desenvolvimento perturbado ou in-
de defesa como um meio para avaliar o avan- terrompido.
ço no desenvolvimento. Isso parte do princí- A seguir detalharemos um pouco cada
pio de que a aquisição de novas capacidades um desses pontos.
pelo ego não está livre de consequente sofri-
mento. Contribuição da observação
A capacidade de entrar em contato com direta à psicanálise
a realidade, por exemplo, traz consigo a per- Com base no trabalho de seu pai, Anna re-
cepção de que o mundo exterior é cheio de conhece que descobertas importantes para
ameaças, frustrações, etc. Então, assim que a análise de crianças foram feitas a partir da
essas capacidades são adquiridas, a criança análise de adultos por meio do método de re-
tenta se livrar delas. A realidade externa pas- construção.
sa a ser obstruída por meio do mecanismo Porém, para a autora, essas descobertas
de “negação” [denial]. Para se livrar das me- não são suficientes para oferecer uma com-
mórias e da consciência dos representantes preensão total da infância. Para tanto, acre-
das urgências, do Id faz-se uso da “repressão” dita que a observação direta de crianças é a
[repression]; substitui forças não bem-vindas ferramenta de maior significância.
por seus opostos [reaction formation]; subs- O problema do método reconstrutivo,
titui fatos dolorosos pela fantasia [escape into complementa Anna (Freud, 1971, p. 24, tra-
fantasy life]; atribui ao outro as qualidades dução nossa), é que
que não gosta em si mesmo [projection]; e se
apropria do que gosta nos outros [introjec- [...] há o perigo de que o analista fique dema-
tion] (Freud, 1973a). siadamente apegado às observações do fun-
Os retrocessos no desenvolvimento do cionamento regressivo que é induzido e pro-
ego, causados pelos mecanismos de defesa movido pela situação analítica, se esquecendo

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que essas manifestações regressivas incluem [...] mais [...] do que essas escalas do desen-
inevitavelmente aquisições mais tardias. volvimento que são válidas somente para
partes isoladas da personalidade da criança,
Uma das possibilidades apontadas por não para sua totalidade (Freud, 1965, p. 63,
Anna Freud na observação direta é inferir os tradução nossa).
conteúdos inconscientes da criança a partir
de seus comportamentos. Em sua época, destaca a autora, havia al-
Nas palavras da autora, guns testes que avaliavam isoladamente a in-
teligência (ex.: Gesel), a personalidade (ex.:
[...] muitas das ações e preocupações da Rorschach) e alguns que se utilizavam da
criança [...], quando observadas, podem ser imaginação para investigar aspectos emocio-
traduzidas em suas contrapartes inconscien- nais (ex.: testes projetivos).
tes das quais são derivadas (Freud, 1965, p. Entretanto, esses testes
18, tradução nossa).
[...] eram apenas atalhos em investigações que
Esse tipo de pesquisa, que utiliza a ob- não faziam nada mais do que fornecer dados
servação direta, se mostra especialmente simples e elucidar aspectos circunscritos da
importante na atualidade, devido à barreira vida emocional da criança (Freud, 1973a, p.
que a psicanálise enfrenta no meio científico 459, tradução nossa).
(como falamos anteriormente).
Tal fato não permitiria que o investigador
A necessidade de avaliar o DSE obtivesse um quadro amplo do desenvolvi-
e de estabelecer um diagnóstico mento infantil que compreendesse toda a
A ideia de que as psicopatologias têm sua complexidade de sua personalidade.
raiz na infância é comum na psicanálise, e A fim de sanar esse problema, Anna cons-
Anna Freud não escapava a tal fato. Além trói o perfil diagnóstico, um instrumento
disso, a autora adotou uma posição refe- composto de diversos itens a respeito do
rente à questão de quais crianças deveriam histórico, quadro atual, desenvolvimento
ser submetidas à psicanálise: se todas ou instintual e egoico, o avanço no desenvolvi-
apenas aquelas que apresentassem trans- mento (conforme estabelecido nas linhas do
tornos. desenvolvimento), pontos de fixação e re-
Anna adota a segunda posição, a qual é gressão, conflitos presentes e suas possíveis
contrária, por exemplo, àquela adotada por origens, entre outros aspectos.
Melanie Klein – o que acaba sendo um dos Por meio desse instrumento, Anna era
pontos levantados nas discussões controver- capaz de avaliar a presença de agentes pato-
sas. Mas, assumindo que somente as crianças gênicos junto a diversos dados ambientais e
com algum transtorno deveriam ser subme- constitucionais e, assim, determinar sua im-
tidas a tratamento, surgiu a questão do crité- portância para cada caso.
rio a ser seguido para definir se há ou não tal Anna também destaca alguns quesitos
necessidade. que devem ser considerados nessa avaliação:
Assim, ela chega à ideia de que seria ne- Sofrimento: Alguns quadros de neurose
cessário lançar mão de instrumentos ou tes- infantil são fruto de sofrimento mais para
tes nessa investigação. Porém, as ferramen- os pais do que para a criança. Por exemplo,
tas para identificar os agentes patogênicos quando a criança se alimenta mal, faz xixi na
existentes até então eram consideradas pela cama ou faz birras, isso não traz sofrimento a
autora demasiadamente parciais, já que, para ela necessariamente – mas certamente faz so-
ela, era necessário frer quem cuida dela. Dessa maneira, o sofri-

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mento neurótico não deve ser tomado como seu desenvolvimento. Pode-se considerar
critério para decidir se uma criança precisa aqui, por exemplo, as várias fases de apego
ou não de tratamento (Freud, 1973a). que a criança apresenta em relação à mãe,
Natureza do distúrbio: de causas inter- sua capacidade para transferir seu interesse
nas ou externas. A esse respeito a autora en- no relacionamento com a mãe para relacio-
fatiza a diferença de uma criança na qual os namentos com outras pessoas, etc.
conflitos podem ser extinguidos a partir de Alterações no desenvolvimento normal
uma mudança na maneira como o ambiente constituem o terceiro fator, e distúrbios nes-
cuida dela e de uma criança que necessita de se quesito, em especial, apontam para neces-
análise. Como exemplo, Anna Freud (1981, sidade de intervenção imediata. Tais distúr-
p. 55) diz: bios poderiam ser uma parada na evolução
do desenvolvimento, ou seja,
Há crianças que não comem porque têm bri-
gas com suas mães. Esse é um conflito ex- [...] se manter fixado a algum estágio do de-
terno. Remova a criança de sua mãe [...] e o senvolvimento antes que o processo de matu-
distúrbio desaparecerá. Mas há crianças que ração tenha sido concluído (Freud, 1973a, p.
não comem porque acreditam que o que es- 17, tradução nossa).
tão comendo está vivo e elas não querem as-
sassiná-los. Devido às diferenças destacadas nos que-
sitos anteriores, é impraticável a aplicação
Assim, a ideia é que, no segundo caso, a direta dos mesmos critérios que se utiliza na
análise seria indicada. avaliação da neurose no adulto à avaliação
Desvios nas capacidades normais: To- da criança. Então, a autora sugere que a ava-
mando como ponto de partida o adulto, liação do grau de neurose de uma criança se
além dos fatores subjetivos, há dois fatores dê não pelo dano causado às suas atividades
objetivos que devem ser considerados ao se ou atitudes, mas de acordo com o grau que
avaliar a neurose: a capacidade para ter rela- a patologia impede que a criança se desen-
ções amorosas e sexuais e a capacidade para volva.
trabalhar. Já no caso da criança, o correlato Um dos aspectos que pode ter seu desen-
dessas duas capacidades não é muito claro. volvimento impedido é o curso natural da li-
Como a vida sexual da criança é reprimida, bido. Entretanto, deve-se observar se um en-
o correlato então poderia ser o interesse que trave nesse aspecto é na verdade temporário
a criança demonstra no mundo exterior e a e passível de recuperação espontânea. A neu-
gratificação que obtém através desse conta- rose infantil pode ser considerada transitória
to em oposição ao narcisismo e os modos de desde que o desenvolvimento da libido não
gratificação autoeróticos. Já sobre o trabalho, tenha sua progressão alterada ou restringida
Anna Freud o relaciona com a capacidade pelo quadro.
para brincar. O brincar mais saudável é o Nesse caso, a neurose desaparecerá na
brincar construtivo em oposição ao brincar medida em que o fluxo do desenvolvimento
repetitivo, monótono ou excessivamente fo- libidinal seja forte o suficiente para desfa-
cado no jogo imaginativo. Mais adiante em zer regressões ou fixações. Com base nisso,
seu trabalho, Anna destaca também outro Anna Freud se coloca contra a ideia de que
ponto que pode ser incluído nesse segundo o tratamento deva ser aplicado de maneira
quesito, que é a maneira como a criança se profilática para remover os pontos de fixa-
relaciona com os objetos de amor. Isso diz ção, mas apenas quando há pouca ou nenhu-
respeito a como se espera que a criança lide ma esperança de cura espontânea (Freud,
com a mãe, o pai e os pares em cada fase de 1973a).

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Psicanálise e prevenção Ainda assim, seria possível avançar nesse


Saber o que se espera em cada momento do campo.
desenvolvimento infantil e quais são as ne- Segundo Anna,
cessidades da criança tem o papel de guiar o
ambiente de maneira que ele ofereça e per- [...] a predição ou a prevenção de problemas
mita que a criança tenha essas necessidades leva inevitavelmente ao estudo do processo
e modos de funcionar suportados e permiti- mental normal, em oposição ao estudo do
dos. Os primeiros exemplos disso na psica- processo mental patológico (Freud, 1965, p.
nálise dizem respeito a diversos distúrbios, 54, tradução nossa).
por exemplo:
• quando se formulou as ideias de que a O analista poderia avaliar o desenvolvi-
origem da histeria está nas proibições da in- mento e decidir se há indicação para trata-
fância, a psicanálise contribuiu para a ado- mento, através do estudo da normalidade no
ção de técnicas de educação infantil mais desenvolvimento infantil,
permissivas quanto às atitudes de sexualida-
de pré-genital infantil; [...] com a sequência das fases libidinais e
• quando a agressividade recebeu status uma lista das funções do ego como pano de
de um instinto básico, deu-se mais espaço e fundo de sua mente (Freud, 1965, p. 55, tra-
tolerância para as atitudes violentas e hostis dução nossa).
da criança;
• quando se reconheceu que na fase anal Essa avaliação do desenvolvimento é uma
residiam problemas que poderiam levar a atitude profilática na medida em que indi-
patologias, o treino do banheiro passou a ser ca processos patológicos mesmo antes de se
conduzido de maneira menos apressada e manifestarem. Essa postura tem sido ado-
mais compreensiva; tada em diversos estudos na atualidade que
• desordens alimentares desaparece- têm como base a psicanálise – como o estudo
ram depois que o manejo de crianças foi que levou à formulação do instrumento In-
conduzido de acordo com as necessidades dicadores Clínicos de Risco para o Desenvol-
orais; vimento Infantil - IRDI (Kupfer et al., 2009)
• dificuldades do sono foram minimiza- e outro no qual se utilizou técnicas psicana-
das depois que atividades autoeróticas como líticas para intervir precocemente em bebês
masturbação e chupar o dedo, foram menos que apresentavam algum sinal compatível
reprimidas (Freud, 1965). com autismo (Campanário et al., 2018).
Apesar de todos os avanços que a psicaná-
lise trouxe na técnica de cuidados com crian- A psicanálise no meio científico
ças, isso não foi suficiente para colocá-la no Anna Freud demonstra sua preocupação
hall de técnicas preventivas. com a relação da psicanálise com a psicologia
Segundo Anna Freud (1965, p. 8, tradu- acadêmica em um texto derivado de sua fala
ção nossa), no simpósio de psicologia genética realizado
na Clark University, em 1950. Ela inicia sua
[...] é verdade que as crianças que cresceram fala abordando os aspectos históricos dessa
sob sua [da psicanálise] influência foram dife- relação, como ela se desenvolveu e como se
rentes em alguns aspectos das gerações ante- encontrava em sua época.
riores; mas elas não eram mais livres de ansie- Naquele período, mais do que na própria
dades ou conflitos, e assim não eram também Europa, havia, para surpresa de Freud, diz
menos propensas a neurose ou outros trans- Anna, uma presença massiva da psicanáli-
tornos mentais. se nos EUA. Apesar disso, a autora ressalta

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que, já desde meados de 1909, a psicanálise notáveis são o Teste de Rorschach e o Teste
se via isolada das outras ciências, sendo jul- de Apercepção Temática (TAT).
gada como não científica, fantástica e indig- Todo esse movimento em direção ao
na de investimento por parte de acadêmicos diálogo com outras ciências e, especial-
“sérios” (Freud, 1973a, p. 110, tradução nos- mente, a ideia de que o inconsciente pode-
sa). ria ser acessado por outros meios além dos
Entretanto, isso não prejudicou o desen- psicanalíticos, deu abertura para pesquisas
volvimento da psicanálise, pois os analistas em busca de confirmação da teoria psica-
continuaram suas pesquisas e seu trabalho nalítica. Apesar disso, Anna ressalta que há
sem se preocuparem em convencer alguém limitações para a aplicação da psicanálise
de fora de que aquilo seria válido. Isso tam- à psicologia acadêmica. Entre essas está o
bém fez com que, ao trabalhar como um gru- fato de que a investigação do inconsciente
po totalmente fechado, desenvolvessem uma em um ambiente controlado não reproduz
linguagem científica própria (Freud, 1973a, ou não considera todos os mecanismos
p. 110, tradução nossa). que podem estar atuantes em determinado
Esse cenário começou a mudar nos anos fenômeno.
seguintes, com a abertura da psiquiatria para Diz a autora:
a aplicação dos conceitos psicanalíticos a pa-
cientes graves e, mais adiante, com a aplica- O desapontamento, raiva, fúria, desespero ou
ção da psicanálise na educação de crianças. indiferença que uma criança pode mostrar
Depois disso, a psicanálise se ligou a diversas frente a um brinquedo retirado não realmen-
outras áreas como a sociologia, antropologia, te nos permite predizer como essa mesma
criminologia, psicologia acadêmica, etc. Em criança reagirá quando defrontada com a per-
algumas dessas áreas, como a medicina, o da de um objeto de amor importante. Como
ganho foi apenas para essa área, porém em situações complexas da vida não podem ser
outras, como a sociologia e antropologia, a reproduzidas no laboratório, parece, até en-
psicanálise foi expandida, por exemplo, com tão, não haver possibilidade para o acadêmi-
as descobertas a respeito do comportamento co se aproximar desses fenômenos (Freud,
de grupo. 1973a, p. 120, tradução nossa).
Todo esse processo de ligação com outras
ciências fez com que a psicanálise emergisse Por fim, apesar desses avanços na dire-
gradualmente de seu isolamento, o que a le- ção do diálogo entre as diversas psicologias,
vou a desenvolver também uma linguagem Anna ressalta ainda o problema da lingua-
que pudesse ser compreendida pela socie- gem.
dade científica no geral. A isso se seguiu um
período em que os primeiros trabalhos de Segundo ela,
correlação entre a psicanálise e outras áreas
se multiplicassem. Os objetivos desses traba- [...] para retraduzir uma ciência nos termos
lhos incluíam, entre outros, “uma mera revi- da outra, a terminologia acadêmica se man-
são de publicações ao intercâmbio e mistura tém vaga e difícil de digerir para o analista
de ideias” (Freud, 1973a, p. 111, tradução (Freud, 1973a, p. 122, tradução nossa).
nossa).
A possibilidade de acessar o inconsciente, A autora levanta esse problema colocan-
como revelado por Freud, também se des- do em perspectiva opiniões de vários auto-
dobrou nessa interface entre a psicanálise e res e exemplos de conceitos freudianos que
outras psicologias, dando origem aos testes foram, ou podem, ser usados erroneamente
projetivos, dos quais os representantes mais em pesquisas experimentais. Para ela, então,

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Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida

um dos cuidados a se tomar nesse sentido O desenvolvimento


é não tomar termos psicanalíticos como si- perturbado ou interrompido
nônimos ou com o mesmo significado que Mesmo sendo o desenvolvimento saudá-
em outras áreas da ciência. Para saber mais vel o foco de Anna Freud, também deu sua
sobre a questão da transposição da barreira contribuição no campo das psicopatologias,
da linguagem na comunicação entre siste- bem como das discrepâncias entre suas ob-
mas teóricos díspares, veja-se Fulgêncio e servações e a teoria vigente. Segundo a auto-
Barreta, (2017). ra, espera-se que o desenvolvimento ocorra
Essa discussão prossegue com Anna de maneira concomitante entre as diversas
Freud se baseando nas ideias de Hartmann linhas, porém é possível que haja regressão
de que a psicanálise em si mesma é consti- de algum aspecto.
tuída por um aspecto dinâmico e outro ge- Por exemplo,
nético. Essa distinção seria importante nesse
cenário porque determinado aspecto seria [...] o treino do banheiro não é adquirido de
mais importante dependendo do contexto uma vez, mas leva muitas idas e vindas em
ao qual a psicanálise seria aplicada. De acor- uma série interminável de sucessos, relapsos,
do com essa distinção, o aspecto dinâmico é acidentes, etc. (Freud, 1965, p. 99, tradução
o que se ocupa do comportamento humano nossa).
em determinadas situações, já o genético
se ocupa das origens desse comportamento Além disso, as regressões podem ocorrer
(Freud, 1973a). devido a fatores estressantes como o cansa-
Como dito, dependendo do campo que ço ao final de um dia na escola. Nesse caso,
se apropria das ideias psicanalíticas, um crianças que, por exemplo, apresentaram
desses aspectos recebe mais foco do que o uma forma de brincar construtiva, podem,
outro. Por exemplo, na psiquiatria, ao me- no final do dia, voltar a formas de brincar
nos até o surgimento do DSM III (edição na dominadas pelos impulsos, com bagunça e
qual houve uma “expurga” psicanalítica do agressividade. Essas observações de Anna
DSM, retirando conceitos que diziam res- são importantes porque relativizam os acon-
peito a essa teoria), os conceitos dinâmicos tecimentos no desenvolvimento infantil. Isso
faziam parte da investigação médica. En- é um aspecto essencial, por exemplo, para
quanto isso, em outras áreas como a educa- avaliar a necessidade ou não de intervenção
ção e análise infantil, a teoria sobre as ori- terapêutica.
gens recebia mais destaque (Freud, 1973a). Quanto às discrepâncias com a teoria
Em nossa pesquisa, a questão da origem vigente, Anna observou nas crianças insti-
é o que mais nos interessa e, nesse senti- tucionalizadas alguns exemplos de variação
do, Anna Freud (Freud, 1973a, p. 131, no momento esperado para aparecimento de
tradução nossa) aponta que a investigação determinados fenômenos – como a inveja do
genética psicanalítica contribui no estabe- pênis. A explicação da autora seria que essas
lecimento de três aspectos do desenvolvi- crianças institucionalizadas estão expostas
mento: mais precocemente à evidência da diferença
[1] a sequência de estágios do desenvolvi- entre os sexos, o que anteciparia o apareci-
mento instintual, libidinal e agressivo; mento de fenômenos ligados a essa consta-
[2] a sequência de fases no desenvolvi- tação.
mento do ego e superego; e, ao menos de As diferenças no desenvolvimento de
forma aproximada, crianças institucionalizadas, especificamente
[3] uma terceira sequência das sucessivas aquelas com as quais Anna teve contato na
interações entre essas duas linhas”. clínica Hampstead, foram elencadas pela au-

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Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio

tora de maneira sistemática dentro de quatro criados em casa é a vivacidade e a melhor


aspectos: resposta social que apresentam. Além disso,
• controle muscular; o bebê criado em casa é mais ativo na explo-
• desenvolvimento da fala; ração do ambiente, por exemplo, no interesse
• treino do banheiro; e em alcançar objetos e no brincar ativo. Tam-
• alimentação. bém demonstra maior interesse em observar
As diferenças encontradas foram quanti- e seguir os movimentos das pessoas ao redor
tativas. O controle muscular e a alimentação e é mais responsivo ao entrar e sair de pes-
se desenvolveram mais rapidamente na insti- soas no ambiente.
tuição, enquanto a fala e o treino do banhei- A hipótese de Anna Freud sobre o interes-
ro ficaram atrasados quando a mãe não está se do bebê nas pessoas que chegam e saem,
presente. Mesmo assim, todas as crianças, é que isso se deve ao fato de que a reduzi-
independentemente do contexto observado, da quantidade de pessoas em seu círculo de
vão alcançar excelência em todos esses as- convívio as torna conhecidas para ele e, as-
pectos (Freud, 1973b). sim, dizem respeito a ele de algum modo. De
Esse cenário, entretanto, não se mantém maneira oposta, na instituição, o bebê não é
no que diz respeito ao desenvolvimento capaz de reconhecer as várias pessoas devido
emocional. Obviamente todas as crianças, à sua limitada capacidade em internalizar e
independentemente do contexto, têm as diferenciar tantas personalidades diferentes
mesmas necessidades emocionais. Assim, se- (Freud, 1973b).
gundo a autora, uma importante necessidade Além disso, Anna Freud exemplifica o de-
instintual que diz respeito ao apego à figura senvolvimento socioemocional por meio do
materna “fica mais ou menos não satisfeita” fenômeno da imitação que, segundo ela, de-
(Freud, 1973b, p. 560, tradução nossa) no veria iniciar por volta do oitavo mês de vida,
contexto institucional. mas que sofre atraso no bebê instituciona-
A autora observou que o desenvolvimen- lizado. De acordo com Anna, para que esse
to no primeiro semestre de vida das crianças fenômeno ocorra, é necessário que o bebê
institucionalizadas se mostra, na maioria das tenha contato frequente e próximo com um
vezes, melhor do que as que vivem com a fa- adulto e que tal contato não seja “[...] divi-
mília. Segundo Anna, isso acontece, porque dido entre vários adultos como é o caso da
na instituição as crianças tinham uma gama instituição” (Freud, 1973b, p. 546, tradução
nutricional maior, com mudanças na dieta nossa).
sempre que necessário e mais higiene tanto Para Anna Freud, essa defasagem a partir
nos cuidados quanto na preparação dos ali- do segundo semestre de vida se dá porque
mentos. Ainda assim, a autora destaca que a nesse período as necessidades emocionais do
alimentação pelo seio materno é melhor do bebê se tornam tão importantes quanto suas
que por mamadeira. necessidades corporais. Isto é, até o sexto
A esse respeito, ela diz que mês, as necessidades emocionais poderiam
ser supridas nas interações durante a ali-
[...] os melhores resultados são encontra- mentação, banho, etc., mas após esse perío-
dos em bebês que são alimentados por suas do cresce a necessidade de interações mais
próprias mães na clínica (Freud, 1973b, p. complexas que vão além desses momentos
545, tradução nossa). de cuidado corporal.
Por outro lado, o contato com pares é esti-
Entretanto, esse cenário muda a partir do mulado mais cedo na instituição. No contex-
segundo semestre. O aspecto gritante que to residencial, esse contato só se dá após a re-
diferencia os bebês da instituição daqueles lação mãe-criança estar bem estabelecida. A

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Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida

relação com irmãos no contexto residencial Abstract


só se daria na medida em que estes se apre- Anna Freud is classically recognized, in the
sentassem como ajudantes ou parceiros para history of psychoanalysis, as the daughter of
brincadeiras, e os afetos seriam sempre me- Freud who analyzed The Ego and the Defense
diados pela relação da criança com os pais. Mechanisms, who was responsible for contri-
Nesse sentido, os afetos direcionados aos ir- butions to a theoretical-clinical perspective
mãos seriam mais caracterizados por ciúme called ego psychology. But, little attention was
e ódio gerados pela rivalidade em relação à paid (and she was even neglected) to the rest
conquista do amor dos pais (Freud, 1973b). of her work, especially with regard to the im-
mense work of consolidating of the sexuality
Conclusão development theory as a full theory of devel-
Apresentamos de maneira sintética alguns opment. In this article, we list some points of
dos pontos mais importantes para o desen- the author’s work that go far beyond what she
volvimento de nossa pesquisa a respeito do proposes about defense mechanisms, includ-
desenvolvimento socioemocional infantil ing her contribution to the psychoanalytic
na psicanálise, com foco na obra de Anna theory of development, as well as her ideas
Freud. on more general issues such as the position
Essa autora, como apresentado, contri- of psychoanalysis as a science, the use of di-
buiu com ideias que vão muito além do ego rect observation as a method of investigation
e seus mecanismos de defesa. Tais contribui- in psychoanalysis, her pioneering spirit in the
ções merecem ser alvo de escrutínio e reno- construction of an instrument of assessment
vação. Renovação, por exemplo, por meio and diagnosis based on psychoanalysis, the
de sua aplicação a pesquisas empíricas, nas use of psychoanalysis as a method of preven-
quais possamos verificar sua utilidade nos tion and her observations regarding disturbed
dias atuais – momento no qual temos uma or interrupted development.
infinidade de outras abordagens, instrumen-
tos e perspectivas para compreender o de- Keywords: Psychoanalysis, Anna Freud, De-
senvolvimento infantil. velopment, Child.
Retomar autores clássicos, e por vezes
negligenciados, é também um instrumen-
to para análise crítica do material que está
disponível na atualidade e que embasa as
diferentes metodologias de pesquisa. Assim,
ao considerar o que Anna Freud observou
no comportamento infantil e agregou à sua
teoria do desenvolvimento, podemos, por
exemplo, questionar se os métodos atuais
também estão ou não considerando tais
comportamentos e vice-versa.
Apesar da amplitude das contribuições de
Anna, não é expressiva, ao menos em terri-
tório nacional, a visibilidade de suas ideias
(exceto no que diz respeito aos mecanismos
de defesa, como já dito). Espera-se que o
presente artigo seja um estímulo para outros
pesquisadores conheçam e reconheçam o le-
gado da autora.

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Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio

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Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida

Sobre os autores Endereço para correspondência


Marcos Roberto Fontoni
Psicólogo, Pós graduado em Neuropsicologia no Marcos Roberto Fontoni
Contexto Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da E-mail: fontonimr@gmail.com
Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (HCFMUSP). Leopoldo Fulgencio
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP, E-mail: lfulgencio@usp.br
com bolsa FAPESP.
Fellow do Research Training Program da
International Psychoanalytic Association.
Especialização em andamento em Formação em
Psicanálise Winnicottiana, Sociedade Brasileira de
Psicanálise Winnicottiana, SBPW, Brasil.
Doutorando do programa de Psiquiatria e Psicologia
Médica da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP).

Leopoldo Fulgencio
Graduado em Psicologia pela Universidade de São
Paulo (USP).
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
tendo feito estágio de doutorado (bolsa sandwich,
com orientação de Pierre Fédida) no Laboratoire de
Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse,
Université de Paris 7 Denis Diderot (de 1995-1997).
Pós-Doutorado em Psicologia Clínica na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor Associado (Livre Docente, 2018) no
Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), no Departamento de Psicologia
da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da
Personalidade.
Coordenador do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Educação e do Desenvolvimento do
IPUSP.
Foi professor do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (de 2007 a 2014).
Foi Secretário Executivo (1999-2002), Editor
Adjunto (2003-2005) e Editor Científico (2006-
2009) da Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza
Humana.
Foi coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia e
Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-
Graduação em Filosofia) na gestão de 2004 a 2006.
Foi coordenador do Grupo de trabalho “Psicanálise,
Subjetivação e Cultura Contemporânea” da ANPEPP
(Associação nacional de Pós-Graduação em
Psicologia) de 2014 a 2017. (IJP, 2020).
Recebeu o Prêmio Jabuti (2015), na categoria
Psicanálise, Psicologia e Comportamento, com o
segundo lugar pelo livro A Fabricação do Humano
(2014).

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