Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Anna Freud:
uma desenvolvimentista
quase esquecida
Anna Freud:
an almost forgotten
developmentalist
Marcos Roberto Fontoni
Leopoldo Fulgencio
Resumo
Anna Freud é classicamente reconhecida, na história da psicanálise como a filha de Freud que
analisou O ego e os mecanismos de defesa, responsável por contribuir com a perspectiva teóri-
co-clínica denominada psicologia do ego. No entanto, pouca atenção foi dada (e ela foi mesmo
negligenciada) ao restante de sua obra, especialmente no que se refere ao imenso trabalho de
consolidação da teoria do desenvolvimento da sexualidade como uma teoria plena do desen-
volvimento. Neste artigo, elencamos alguns pontos da obra da autora que vão muito além da-
quilo que ela propõe sobre os mecanismos de defesa, incluindo aqui sua contribuição à teoria
psicanalítica do desenvolvimento, bem como suas ideias a respeito de questões mais gerais
como a posição da psicanálise no meio científico, o uso da observação direta como método de
investigação na psicanálise, seu pioneirismo na construção de um instrumento de avaliação
e diagnóstico com base psicanalítica, o uso da psicanálise como método de prevenção e suas
observações a respeito do desenvolvimento perturbado ou interrompido.
(2) do se molhar e se sujar ao controle dos para muitas outras conquistas” (Freud, 1981,
esfíncteres; p. 129, tradução nossa).
(3) da irresponsabilidade à responsabili-
dade no controle corpóreo; O interesse de Anna pela educação das
(4) do egocentrismo ao companheirismo; crianças é um fio condutor na construção
(5) do corpo a o brinquedo e do brincar dessas linhas, pois a autora procurou desta-
ao trabalho; car nelas as características que precisam es-
(6) do caminho percorrido da extrema tar presentes para que a criança esteja apta
dependência do recém-nascido à autocon- a frequentar a escola. A preocupação da au-
fiança emocional – que é a diretriz prototípi- tora era de que não se forçasse as crianças a
ca das cinco linhas. situações para as quais seu nível de desen-
Nesse sentido, cada linha do desenvol- volvimento emocional ainda não fosse su-
vimento é um indício do quão avançada a ficiente.
criança está em termos de dependência e au- Para exemplificar essa ideia, Anna com-
tossuficiência emocional. para o desenvolvimento emocional ao mo-
Apesar de ter proposto essas cinco linhas, mento de desmame do bebê. Ela diz que con-
Anna Freud (1965, p. 77, tradução nossa) selhos do tipo “você deve estimular seu filho
ressalta que “[...] há muitos outros exemplos a interagir com outras crianças” ou “mães e
de linhas do desenvolvimento” e que esse é filhos devem ficar juntos o máximo possível,
um modelo ao qual podem ser agregadas não os separe”, seria o mesmo que aconse-
outras linhas que dizem respeito a outros as- lhar que se desmame o bebê de seis meses e o
pectos do desenvolvimento infantil. alimente com um bife (Freud, 1969, p. 348,
Segundo a autora, até o momento da tradução nossa).
publicação do oitavo volume de suas obras Embora não tivesse especificado as ida-
completas, nenhum autor havia ainda aceita- des para os acontecimentos em cada linha do
do o desafio de fazer uma contribuição nesse desenvolvimento e estivesse ciente da escas-
sentido. sez dos dados que existiam até então, e ainda
Então, Anna Freud dá alguns outros soubesse que qualquer tentativa nesse senti-
exemplos de linhas: do esbarra na limitação que generalizações
desse tipo trazem a um campo propenso à
[...] dos caminhos físicos para os caminhos variação de indivíduo para indivíduo, Anna
mentais de descarga; dos objetos animados Freud se arrisca a demarcar três períodos no
para os inanimados, da irresponsabilidade desenvolvimento infantil.
para a culpa (Freud, 1981, p. 65, tradução • O primeiro período é o que se inicia no
nossa). nascimento e vai até os 12 meses de vida.
Esse momento é caracterizado pela vivência
E acrescenta: do mundo entre apenas dois corpos – mãe
e bebê. A partir dessa interação, ressalta a
[...] o caminho que leva ao desenvolvimento autora, três linhas do desenvolvimento têm
do processo secundário; a distinção entre re- maior destaque: distinção entre soma e psi-
alidade interna e externa; o desenvolvimento que, entre o corpo do bebê e o da mãe e entre
da habilidade de descarregar excitações men- self e objeto.
tais via mente [e não via corpo]; a capacidade • O segundo período se estende até o fi-
de controlar impulsos; o aparecimento da no- nal dos estágios pré-edípicos (4-5 anos). Os
ção de tempo; o caminho do modo egocêntri- desenvolvimentos com maior destaque nes-
co [infantil] ao modo mais objetivo [adulto] se período são os referentes à motilidade, às
de perceber o mundo, assim como a estrada funções fisiológicas, ao controle dos impul-
que essas manifestações regressivas incluem [...] mais [...] do que essas escalas do desen-
inevitavelmente aquisições mais tardias. volvimento que são válidas somente para
partes isoladas da personalidade da criança,
Uma das possibilidades apontadas por não para sua totalidade (Freud, 1965, p. 63,
Anna Freud na observação direta é inferir os tradução nossa).
conteúdos inconscientes da criança a partir
de seus comportamentos. Em sua época, destaca a autora, havia al-
Nas palavras da autora, guns testes que avaliavam isoladamente a in-
teligência (ex.: Gesel), a personalidade (ex.:
[...] muitas das ações e preocupações da Rorschach) e alguns que se utilizavam da
criança [...], quando observadas, podem ser imaginação para investigar aspectos emocio-
traduzidas em suas contrapartes inconscien- nais (ex.: testes projetivos).
tes das quais são derivadas (Freud, 1965, p. Entretanto, esses testes
18, tradução nossa).
[...] eram apenas atalhos em investigações que
Esse tipo de pesquisa, que utiliza a ob- não faziam nada mais do que fornecer dados
servação direta, se mostra especialmente simples e elucidar aspectos circunscritos da
importante na atualidade, devido à barreira vida emocional da criança (Freud, 1973a, p.
que a psicanálise enfrenta no meio científico 459, tradução nossa).
(como falamos anteriormente).
Tal fato não permitiria que o investigador
A necessidade de avaliar o DSE obtivesse um quadro amplo do desenvolvi-
e de estabelecer um diagnóstico mento infantil que compreendesse toda a
A ideia de que as psicopatologias têm sua complexidade de sua personalidade.
raiz na infância é comum na psicanálise, e A fim de sanar esse problema, Anna cons-
Anna Freud não escapava a tal fato. Além trói o perfil diagnóstico, um instrumento
disso, a autora adotou uma posição refe- composto de diversos itens a respeito do
rente à questão de quais crianças deveriam histórico, quadro atual, desenvolvimento
ser submetidas à psicanálise: se todas ou instintual e egoico, o avanço no desenvolvi-
apenas aquelas que apresentassem trans- mento (conforme estabelecido nas linhas do
tornos. desenvolvimento), pontos de fixação e re-
Anna adota a segunda posição, a qual é gressão, conflitos presentes e suas possíveis
contrária, por exemplo, àquela adotada por origens, entre outros aspectos.
Melanie Klein – o que acaba sendo um dos Por meio desse instrumento, Anna era
pontos levantados nas discussões controver- capaz de avaliar a presença de agentes pato-
sas. Mas, assumindo que somente as crianças gênicos junto a diversos dados ambientais e
com algum transtorno deveriam ser subme- constitucionais e, assim, determinar sua im-
tidas a tratamento, surgiu a questão do crité- portância para cada caso.
rio a ser seguido para definir se há ou não tal Anna também destaca alguns quesitos
necessidade. que devem ser considerados nessa avaliação:
Assim, ela chega à ideia de que seria ne- Sofrimento: Alguns quadros de neurose
cessário lançar mão de instrumentos ou tes- infantil são fruto de sofrimento mais para
tes nessa investigação. Porém, as ferramen- os pais do que para a criança. Por exemplo,
tas para identificar os agentes patogênicos quando a criança se alimenta mal, faz xixi na
existentes até então eram consideradas pela cama ou faz birras, isso não traz sofrimento a
autora demasiadamente parciais, já que, para ela necessariamente – mas certamente faz so-
ela, era necessário frer quem cuida dela. Dessa maneira, o sofri-
mento neurótico não deve ser tomado como seu desenvolvimento. Pode-se considerar
critério para decidir se uma criança precisa aqui, por exemplo, as várias fases de apego
ou não de tratamento (Freud, 1973a). que a criança apresenta em relação à mãe,
Natureza do distúrbio: de causas inter- sua capacidade para transferir seu interesse
nas ou externas. A esse respeito a autora en- no relacionamento com a mãe para relacio-
fatiza a diferença de uma criança na qual os namentos com outras pessoas, etc.
conflitos podem ser extinguidos a partir de Alterações no desenvolvimento normal
uma mudança na maneira como o ambiente constituem o terceiro fator, e distúrbios nes-
cuida dela e de uma criança que necessita de se quesito, em especial, apontam para neces-
análise. Como exemplo, Anna Freud (1981, sidade de intervenção imediata. Tais distúr-
p. 55) diz: bios poderiam ser uma parada na evolução
do desenvolvimento, ou seja,
Há crianças que não comem porque têm bri-
gas com suas mães. Esse é um conflito ex- [...] se manter fixado a algum estágio do de-
terno. Remova a criança de sua mãe [...] e o senvolvimento antes que o processo de matu-
distúrbio desaparecerá. Mas há crianças que ração tenha sido concluído (Freud, 1973a, p.
não comem porque acreditam que o que es- 17, tradução nossa).
tão comendo está vivo e elas não querem as-
sassiná-los. Devido às diferenças destacadas nos que-
sitos anteriores, é impraticável a aplicação
Assim, a ideia é que, no segundo caso, a direta dos mesmos critérios que se utiliza na
análise seria indicada. avaliação da neurose no adulto à avaliação
Desvios nas capacidades normais: To- da criança. Então, a autora sugere que a ava-
mando como ponto de partida o adulto, liação do grau de neurose de uma criança se
além dos fatores subjetivos, há dois fatores dê não pelo dano causado às suas atividades
objetivos que devem ser considerados ao se ou atitudes, mas de acordo com o grau que
avaliar a neurose: a capacidade para ter rela- a patologia impede que a criança se desen-
ções amorosas e sexuais e a capacidade para volva.
trabalhar. Já no caso da criança, o correlato Um dos aspectos que pode ter seu desen-
dessas duas capacidades não é muito claro. volvimento impedido é o curso natural da li-
Como a vida sexual da criança é reprimida, bido. Entretanto, deve-se observar se um en-
o correlato então poderia ser o interesse que trave nesse aspecto é na verdade temporário
a criança demonstra no mundo exterior e a e passível de recuperação espontânea. A neu-
gratificação que obtém através desse conta- rose infantil pode ser considerada transitória
to em oposição ao narcisismo e os modos de desde que o desenvolvimento da libido não
gratificação autoeróticos. Já sobre o trabalho, tenha sua progressão alterada ou restringida
Anna Freud o relaciona com a capacidade pelo quadro.
para brincar. O brincar mais saudável é o Nesse caso, a neurose desaparecerá na
brincar construtivo em oposição ao brincar medida em que o fluxo do desenvolvimento
repetitivo, monótono ou excessivamente fo- libidinal seja forte o suficiente para desfa-
cado no jogo imaginativo. Mais adiante em zer regressões ou fixações. Com base nisso,
seu trabalho, Anna destaca também outro Anna Freud se coloca contra a ideia de que
ponto que pode ser incluído nesse segundo o tratamento deva ser aplicado de maneira
quesito, que é a maneira como a criança se profilática para remover os pontos de fixa-
relaciona com os objetos de amor. Isso diz ção, mas apenas quando há pouca ou nenhu-
respeito a como se espera que a criança lide ma esperança de cura espontânea (Freud,
com a mãe, o pai e os pares em cada fase de 1973a).
que, já desde meados de 1909, a psicanálise notáveis são o Teste de Rorschach e o Teste
se via isolada das outras ciências, sendo jul- de Apercepção Temática (TAT).
gada como não científica, fantástica e indig- Todo esse movimento em direção ao
na de investimento por parte de acadêmicos diálogo com outras ciências e, especial-
“sérios” (Freud, 1973a, p. 110, tradução nos- mente, a ideia de que o inconsciente pode-
sa). ria ser acessado por outros meios além dos
Entretanto, isso não prejudicou o desen- psicanalíticos, deu abertura para pesquisas
volvimento da psicanálise, pois os analistas em busca de confirmação da teoria psica-
continuaram suas pesquisas e seu trabalho nalítica. Apesar disso, Anna ressalta que há
sem se preocuparem em convencer alguém limitações para a aplicação da psicanálise
de fora de que aquilo seria válido. Isso tam- à psicologia acadêmica. Entre essas está o
bém fez com que, ao trabalhar como um gru- fato de que a investigação do inconsciente
po totalmente fechado, desenvolvessem uma em um ambiente controlado não reproduz
linguagem científica própria (Freud, 1973a, ou não considera todos os mecanismos
p. 110, tradução nossa). que podem estar atuantes em determinado
Esse cenário começou a mudar nos anos fenômeno.
seguintes, com a abertura da psiquiatria para Diz a autora:
a aplicação dos conceitos psicanalíticos a pa-
cientes graves e, mais adiante, com a aplica- O desapontamento, raiva, fúria, desespero ou
ção da psicanálise na educação de crianças. indiferença que uma criança pode mostrar
Depois disso, a psicanálise se ligou a diversas frente a um brinquedo retirado não realmen-
outras áreas como a sociologia, antropologia, te nos permite predizer como essa mesma
criminologia, psicologia acadêmica, etc. Em criança reagirá quando defrontada com a per-
algumas dessas áreas, como a medicina, o da de um objeto de amor importante. Como
ganho foi apenas para essa área, porém em situações complexas da vida não podem ser
outras, como a sociologia e antropologia, a reproduzidas no laboratório, parece, até en-
psicanálise foi expandida, por exemplo, com tão, não haver possibilidade para o acadêmi-
as descobertas a respeito do comportamento co se aproximar desses fenômenos (Freud,
de grupo. 1973a, p. 120, tradução nossa).
Todo esse processo de ligação com outras
ciências fez com que a psicanálise emergisse Por fim, apesar desses avanços na dire-
gradualmente de seu isolamento, o que a le- ção do diálogo entre as diversas psicologias,
vou a desenvolver também uma linguagem Anna ressalta ainda o problema da lingua-
que pudesse ser compreendida pela socie- gem.
dade científica no geral. A isso se seguiu um
período em que os primeiros trabalhos de Segundo ela,
correlação entre a psicanálise e outras áreas
se multiplicassem. Os objetivos desses traba- [...] para retraduzir uma ciência nos termos
lhos incluíam, entre outros, “uma mera revi- da outra, a terminologia acadêmica se man-
são de publicações ao intercâmbio e mistura tém vaga e difícil de digerir para o analista
de ideias” (Freud, 1973a, p. 111, tradução (Freud, 1973a, p. 122, tradução nossa).
nossa).
A possibilidade de acessar o inconsciente, A autora levanta esse problema colocan-
como revelado por Freud, também se des- do em perspectiva opiniões de vários auto-
dobrou nessa interface entre a psicanálise e res e exemplos de conceitos freudianos que
outras psicologias, dando origem aos testes foram, ou podem, ser usados erroneamente
projetivos, dos quais os representantes mais em pesquisas experimentais. Para ela, então,
Leopoldo Fulgencio
Graduado em Psicologia pela Universidade de São
Paulo (USP).
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
tendo feito estágio de doutorado (bolsa sandwich,
com orientação de Pierre Fédida) no Laboratoire de
Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse,
Université de Paris 7 Denis Diderot (de 1995-1997).
Pós-Doutorado em Psicologia Clínica na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor Associado (Livre Docente, 2018) no
Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), no Departamento de Psicologia
da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da
Personalidade.
Coordenador do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Educação e do Desenvolvimento do
IPUSP.
Foi professor do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (de 2007 a 2014).
Foi Secretário Executivo (1999-2002), Editor
Adjunto (2003-2005) e Editor Científico (2006-
2009) da Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza
Humana.
Foi coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia e
Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-
Graduação em Filosofia) na gestão de 2004 a 2006.
Foi coordenador do Grupo de trabalho “Psicanálise,
Subjetivação e Cultura Contemporânea” da ANPEPP
(Associação nacional de Pós-Graduação em
Psicologia) de 2014 a 2017. (IJP, 2020).
Recebeu o Prêmio Jabuti (2015), na categoria
Psicanálise, Psicologia e Comportamento, com o
segundo lugar pelo livro A Fabricação do Humano
(2014).