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03/02/2021 ConJur - A dispensa de inventário e o pagamento direto (Parte 1)

DIREITO CIVIL ATUAL

A dispensa de inventário e o pagamento direto


(Parte 1)
1 de fevereiro de 2021, 10h28

Por Carlos E. Elias de Oliveira

1) Introdução
Honra-nos trazer o presente debate a este formidável espaço da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (RDCC).

Neste artigo, cuidaremos de um assunto importantíssimo para o


quotidiano de quem lida com Direito Sucessório: o pagamento
direto, assim entendidos os valores pagos diretamente a herdeiros
independentemente de procedimento judicial ou extrajudicial de
inventário ou de arrolamento.

Morta uma pessoa, a regra geral é que a transmissão dos seus bens
aos herdeiros deverá ocorrer por meio de um desses
"burocráticos" procedimentos judiciais ou extrajudiciais, salvo quando a lei autorizar o
pagamento direto. Focaremos aqui as hipóteses de pagamento direto da Lei nº 6.858/1980, que
prevê esse pagamento direto para alguns casos de verbas trabalhistas, tributárias e de
investimento.

O objetivo é explicar essa figura e discutir um ponto relavantíssimo: o cônjuge e os demais


herdeiros podem reivindicar a sua meação e o seu quinhão na hipótese de pagamento direto?

Em outras palavras, as hipóteses de pagamento direto fundadas na Lei nº 6.858/1980


caracterizam ou não uma sucessão irregular [1] e elas devem ou não respeitar a meação do
viúvo sobre os créditos do de cujus? Ou elas representam apenas regras de caráter
procedimental que não exoneram o beneficiário de, no pertinente feito de inventário, fazer as
devidas compensações para a repartição igualitária da herança com os demais herdeiros e para
entregar a meação do viúvo?
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Antecipamos nossa posição: o pagamento direto na forma da lei acima tem caráter apenas
procedimental, e não de direito material, pois seu objetivo foi apenas o de desburocratizar o
acesso de herdeiros a valores deixados pelo de cujus. Logo, essas hipóteses não afastam o
dever de respeitar a meação do cônjuge nem o quinhão de outros herdeiros. Não se trata aí de
sucessão irregular ou anômala, portanto.

2) Regra geral
Verbas trabalhistas, tributárias e de investimento na forma da Lei nº 6.858/1980 podem ser
objeto de pagamento direto, ou seja, não dependem de prévio procedimento judicial ou
extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Dizem-no tanto o referido diploma quanto o
artigo 666 do CPC [2].

Explica-se.

É permitido que, independentemente de inventário ou de arrolamento, os dependentes


habilitados perante o INSS ou o órgão público competente (no caso de regime especial de
previdência) ou, à sua falta, os sucessores (na forma da lei civil) indicados em alvará recebam,
independentemente de procedimento de inventário ou de arrolamento, as verbas trabalhistas,
de FGTS ou de PIS-Pasep do falecido. É o artigo 1º, caput, da Lei nº 6.858/1980.

Trata-se do que, na prática forense, designa-se de "pagamento direto", pois é feito aos
"herdeiros" sem necessidade de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de
arrolamento.

Esse pagamento direto é também permitido para valores devidos a título de restituição de
Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como para valores de até 500 OTNs em
aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexistam outros bens a inventariar).
É o artigo 2º, caput, da Lei nº 6.858/1980.

Na prática, isso significa que, se alguém morrer deixando, como herdeiro, um filho de idade
inferior a 21 anos que estava habilitado como dependente do falecido no INSS [3], esse jovem
poderá receber os valores supracitados (verbas trabalhistas, previdenciárias, tributárias e de
aplicações financeiras) que pertenciam ao seu pai independentemente de prévio processo de
inventário ou de arrolamento. Basta-lhe fazer o pedido administrativo.

O devedor (empregador, poder público e bancos) poderá pagar esses valores diretamente a
esse filho sem exigir prévia inventário, arrolamento ou adjudicação.

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Se o falecido aguardava o desfecho de alguma reclamação trabalhista para receber suas verbas
trabalhistas, o filho dependente supracitado poderá requerer ao juízo trabalhista que lhe
expeça alvará de levantamento sem necessidade de inventário.

2) Quem pode pedir o pagamento direto?


Nas hipóteses dos créditos especiais citados na Lei nº 6.858/1980, podem pedir o pagamento
direto:

a) Os dependentes habilitados perante o órgão de previdência (INSS ou, no caso de regime


especial de previdência, o órgão público pertinente);

b) Os demais sucessores, desde que autorizados por alvará expedido por juiz que os tenha
reconhecido como tal com base na legislação civil.

Se o dependente não estiver formalmente habilitado, a Justiça Trabalhista flexibiliza a regra e


admite que o dependente pleiteie o pagamento direto com base na Lei nº 6.858/1980 mediante
comprovação do seu enquadramento entre os dependentes legais na forma da legislação
previdenciária ou estatutária. A propósito, assim já decidiram o TST (RR-10959-
59.2014.5.15.0046, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 26/06/2020) e
o STJ (REsp 1289346/DF, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 20/06/2012).

3) Levantamento de valores tributários e de investimento até 500 OTNs


Não havendo outros bens a inventariar, é cabível o pagamento direto aos dependentes
habilitados no ente previdenciário das verbas tributários e de investimento mencionadas no
artigo 2º da Lei nº 6.858/1980 até o limite do valor de 500 OTNs, caso em que o valor
sobejante deverá sujeitar-se ao procedimento de inventário e arrolamento. O STJ já decidiu
assim em caso de valores de restituição de imposto de renda (REsp 1085140/SP, 4ª Turma,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 17/06/2011 [4]).

Continuaremos aprofundando o assunto na próxima semana.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil
Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata,
Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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[1] A sucessão irregular ou anômala é entendida como aquela que é regida por normas
próprias e que, portanto, não segue os arts. 1.829 e seguinte do CC. A título de exemplo,
podemos citar: (1) a transmissão dos direitos autorais para o domínio público no caso de o
autor falecido não ter deixado herdeiros (artigo 45, I, da Lei nº 9.610/1998); (2) o direito de
acrescer em favor dos demais coautores na hipótese de um deles falecer sem deixar herdeiros
(artigo 42, parágrafo único, da Lei nº 9.610/1998); (3) o artigo 18, § 2º, do Decreto-Lei nº
3.438/1941 proíbe que sucessão em favor de cônjuge estrangeiro em terreno de marinha; (4) o
artigo 520 do CC estabelece que o direito de preferência não se transmite aos herdeiros, o que
representa um exemplo de sucessão irregular ou anômala, porque prevê regra sucessória
diversa da prevista para a sucessão legítima; (5) o artigo 1º, § 2º, da Lei nº 6.858/1998
estabelece que, na hipótese de inexistir dependente ou sucessores, as verbas trabalhistas, de
FGTS e de PIS-PASEP deverão ser revertidas respectivamente em favor do Fundo de
Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de
Participação PIS-PASEP; (6) o artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 6.858/1998 fixa que, se
não houver dependente ou sucessor, deverão ser revertidas ao Fundo de Previdência e
Assistência Social os valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros
tributos) bem como os valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas
bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar).

[2] "Artigo 666 - Independerá de inventário ou de arrolamento o pagamento dos valores


previstos na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980".

[3] Para filhos, a presunção absoluta de dependência perante o INSS e, no caso de regime
especial de previdência, perante os órgãos públicos federais é para filhos de até 21 anos (artigo
16, I, da Lei nº 8.213/1991 e artigo 197, parágrafo único, I, da Lei nº 8.112/1990).

[4] No caso, o STJ manteve o deferimento do pedido de alvará judicial, conforme este excerto
do relatório do voto do relator:
"Silvandira Stopa Rodrigues ajuizou pedido de alvará judicial perante a 3ª Vara de Família e
Sucessões do Foro Regional de Santana/SP, pleiteando o levantamento de parte da restituição
de imposto de renda de seu falecido marido. Noticiou ainda que não há outros bens ou direitos
a inventariar, e também que, do casamento, advieram quatro filhos, sendo que três
renunciaram as partes que lhes tocariam no imposto retido. Assim, pleiteou a autora o
levantamento de 50% devidos a ela, a título de meação, mais 4/5 do remanescente em razão da
renúncia".

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03/02/2021 ConJur - A dispensa de inventário e o pagamento direto (Parte 1)

Carlos E. Elias de Oliveira é advogado, parecerista, professor de Direito Civil, Notarial e de


Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB) e em outras instituições, consultor
legislativo do Senado Federal em Direito Civil, ex-advogado da União e ex-assessor de
ministro STJ.

Revista Consultor Jurídico, 1 de fevereiro de 2021, 10h28

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