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Breve análise sobre o toyotismo:

modelo japonês de produção

MARLI DELMÔNICO DE ARAÚJO FUTATA*

Resumo: O texto apresenta e analisa a origem e as características do modelo de


produção japonês denominado toyotismo e discute as relações de trabalho e o
processo produtivo que perpassa essa forma de acumulação. Apresenta também as
experiências que a autora vivenciou como trabalhadora subcontratada em fábricas
do Japão, entre 1995 e 1997, nas quais foi submetida às relações de trabalho
derivadas deste sistema de produção. Conclui que o toyotismo representa uma
ofensiva aos trabalhadores, uma vez que se instalou como um processo apenas
preocupado em resgatar o domínio e o poder de acumulação do capital,
aprofundando a precarização das condições de trabalho e, consequentemente, dos
modos de viver.
Brief analysis on toyotism: japanese model of production
Palavras-chave: Toyotismo; Mundo do trabalho; Japão; Século XX.
Abstract: The text presents and analyzes the origin and characteristics of the
Japanese production model called toyotism and discusses the labor relations and
the productive process that permeates this form of accumulation. It also presents
the experiences the author had as a subcontracted worker in factories in Japan,
between 1995 and 1997, in which she was subjected to the labor relations derived
from this production system. It concludes that toyotism represents an offensive to
workers, once it was installed as a process concerned only with rescuing
dominance and the power of capital accumulation, deepening the precariousness of
working conditions and, consequently, of ways of living.
Key words: Toyotism; World of work; Japan; 20th century.

*
MARLI DELMÔNICO DE ARAÚJO FUTATA é aluna não-regular do Mestrado em
Educação – Universidade Estadual de Maringá – PR.

1
A crise do final dos anos 1960 e início de A concorrência intercapitalista e a
1970, que se estende até os dias atuais, necessidade de marcar o domínio do
como afirma Antunes (1999) está controle das lutas sociais, oriundas do
relacionada, fundamentalmente, à crise da trabalho, através das transformações do
estrutura do capital, que na tentativa de modelo de produção, fazem com que o
recuperação de seu ciclo reprodutivo e mundo do trabalho sofra transformações
resgate de seu processo de dominação, em sua estrutura produtiva, sindical e
deflagra intensas transformações no política. Nos países de desenvolvimento
próprio processo produtivo, pelas vias de tecnológico acelerado, a acumulação de
novas formas de acumulação. capital se fortificou, as mudanças
Nesse sentido um novo movimento tecnológicas foram inseridas no mundo
político é criado quando bases da direita da produção fabril, provocando intensas
tomam para si os discursos que até então modificações, e é possível afirmar que,
eram considerados de esquerda. Essa “[...] a classe-que-vive-do-trabalho sofreu
nova tendência é denominada por grupos a mais aguda crise deste século, que
que estudam o materialismo histórico, de atingiu não só a sua materialidade, mas
Nova Direita. Embutidos nesse novo teve profundas repercussões na sua
movimento político é possível verificar a subjetividade e, no íntimo inter-
existência de uma vertente conservadora relacionamento destes níveis, afetou a sua
e uma vertente neoliberal. A Nova forma de ser” (ANTUNES, 1999, p. 15).
Direita, e sua vertente neoliberal1, são as Harvey (2003) afirma que essas
formas encontradas para redefinir as transformações surgem com a intensa
bases do processo de acumulação recessão iniciada em 1973 quando a crise
capitalista. estrutural do capitalismo, gerada pela
Esse movimento político traz consigo crise do padrão de acumulação
postulados como, estado mínimo, livre taylorista/fordista, faz com que o capital
iniciativa, consideram todas as atividades mergulhe num processo de reestruturação
como mercadorias, inclusive a educação, para restaurar o seu domínio. Nesse
e ressaltam a incapacidade que a mesma momento, instaura-se uma guerra entre os
apresenta de insuficiência quanto à países considerados grandes potências,
produção de bens para o mercado. As pela acumulação de capital, e a
tentativas de resolver os problemas competitividade passa a ser a arma mais
gerados pela crise do capitalismo, que importante. O modelo de produção
fazem gerar esse movimento, são industrial fundamentado no princípio
responsáveis por modificações taylorista/fordista, de produção em
importantes no campo do trabalho, como massa, perde a exclusividade e iniciam
a introdução de novas tecnologias e tentativas para superá-lo. Nesse contexto
aumento da exploração da classe assistimos a uma nova fase de
operária. expropriação da mão-de-obra, – a
chamada acumulação flexível –, a partir
do modelo de produção criado pelos
japoneses, o toyotismo, e junto com ela a
1
“Será considerada neoliberal toda ação estatal degradação das condições de trabalho,
que contribua para o desmonte das políticas de dos direitos trabalhistas e,
incentivo à independência econômica nacional, de consequentemente, dos trabalhadores.
promoção do bem-estar-social (Welfare State), de
instauração de pleno emprego (Keynesianismo) e
de mediação dos conflitos socioeconômicos”
(SAES, 2001, p. 82).

2
Ao término dos anos 1960, a empresa Taichi Ohno (1912-1990), iniciaram um
japonesa Toyota já estava totalmente processo de desenvolvimento de
inserida nos princípios da produção mudanças na produção. Introduziram
flexível e este modelo era divulgado técnicas onde fosse possível alterar as
dentro e fora do Japão. Os fundamentos máquinas rapidamente durante a
ideológicos e organizacionais deste produção, para ampliar a oferta e a
modelo passaram a sustentar as práticas variedade de produtos, pois para eles era
empresariais como modelo de onde se concentrava a maior fonte de
administração e, com a mundialização do lucro. Obtiveram excelentes resultados
capital, na década de 1980, o toyotismo com essa ideia e ela passou a ser a
tornou-se a ideologia universal da essência do modelo japonês de produção.
produção sistêmica do capital (ALVES, O espaço para armazenamento da
2001). produção era outro obstáculo para os
Toyotismo: origem e características japoneses, por isso as mercadorias
deveriam ter giro rápido, e a eliminação
Nos anos 1950, relata Wood Jr. (1992), o
de estoques, ainda que parecesse
engenheiro japonês Eiji Toyoda (1913-
impossível, estava nos projetos de
2013) passou alguns meses em Detroit
Toyoda. A partir de então, regras
conhecendo a indústria automobilística
criteriosas foram incorporadas
americana, sistema dirigido pela linha
gradativamente à produção,
fordista de produção, onde o fluxo
caracterizando o que passou chamar
normal era produzir primeiro e vender
toyotismo (ou Ohnismo devido aos
depois quando já dispunham de grandes
nomes de seus fundadores Toyoda e
estoques. Toyoda ficou impressionado
Ohno). Partiram do princípio de que
com as gigantescas fábricas, a quantidade
qualquer elemento que não agregasse
de estoques, o tamanho dos espaços
valor ao produto deveria ser eliminado,
disponíveis nas fábricas e o alto número
pois era considerado desperdício.
de funcionários. Para ele, naqueles
Classificaram o desperdício em sete tipos
moldes, seu país, arrasado por um
principais: tempo que se perdia para
período pós-guerra, não teria condições
consertos ou refugo, produção maior do
de desenvolver uma forma semelhante de
que o necessário ou antes do tempo
produção. Toyoda relatou isso quando
necessário, operações desnecessárias no
escreveu à sede de sua empresa dizendo
processo de manufatura, transporte,
que ia ser necessário uma nova forma de
estoque, movimento humano e espera.
organização do trabalho, mais flexível e
que exigisse menor concentração de Desse modo, projetaram um modelo de
estoques, pois sabia que o Japão possuía produção composto por: automatização,
um mercado pequeno, capital e matéria- just-in-time, trabalho em equipe,
prima escassos, “[...] a compra de administração por estresse, flexibilização
tecnologia no exterior era impossível e a da mão-de-obra, gestão participativa,
possibilidade de exportação era remota” controle de qualidade e subcontratação.
(WOOD JR., 1992, p.12). Gounet (2000) nos ajuda a entender tais
conceitos. A automatização é considerada
Para conseguir competir então, nos
o primeiro elemento desse modelo. Trata-
grandes mercados, a Toyota precisaria
se da utilização de máquinas capazes de
modificar e simplificar o sistema da
parar automaticamente quando surgem
empresa americana Ford. Na procura de
problemas. Assim o trabalhador que até
soluções para esse encaminhamento,
então era treinado para desenvolver seu
Toyoda e seu especialista em produção,

3
trabalho em uma única máquina pode se para armazenar estoques, sejam eles
responsabilizar por várias, o que matérias-primas, peças intermediárias ao
diminuiria a quantidade de trabalhadores processo produtivo ou mercadorias já
necessários numa linha de montagem. A produzidas; e da escassez de recursos
autora teve experiência de trabalho numa para manter a produção parada. Consiste
dessas linhas, como relata a seguir: É em detectar a demanda e a produção de
uma fábrica de máquinas copiadoras e a bens em função da necessidade
tarefa que consiste em prender inúmeros específica, ao contrário do fordismo3.
fios, fixar quatro mil parafusos por dia Assim, toda demanda tem que ser
(45 em cada máquina dependendo do produzida após ter sido efetivada sua
modelo), além de fixar gavetas e laterais2. venda, mantendo um fluxo de produção
O tempo exigido para a realização da contínuo. Para isso criam-se os sistemas
atividade é de quatro a cinco minutos, visuais de informação, ou kanban
dependendo do modelo. No interior da (かんばん)4, por meio deles é possível
fábrica, robôs transitam pelo imenso informar a quantidade de peças
espaço levando os “esqueletos das necessárias para o dia.
máquinas” de um posto a outro. Um
O trabalho em equipe é outra estratégia
sensor faz com que ele pare no local
usada pela Toyota para racionalizar a
devido. Também são eles que repõem as
utilização de mão-de-obra. A ideia
peças solicitadas, pelos operários, por
consiste em agrupar os trabalhadores em
meio de um painel eletrônico, de modo
equipes, com a orientação de um líder.
que, “[...] por todos os lados sirenes
Este trabalha junto com os demais
piscam e os ruídos ensurdecedores da
operários, com a função de coordenar o
estrutura de metal em funcionamento
grupo e substituir qualquer um que venha
misturam-se com a música sintética [...]
A primeira impressão chega a lembrar um faltar. Enquanto no fordismo cada
sofisticado parque de diversões, a trabalhador é responsável por uma parte
da produção, e após realizá-la passa
segunda impressão sugere a imagem do
inferno” (OCADA, 2004, p. 172). adiante para que outro trabalhador realize
a parte que lhe cabe, no toyotismo vemos
Um dos elementos de maior destaque
dentro do modelo toyotista é o chamado 3
De acordo com o modelo de produção fordista,
just-in-time (na hora certa). Foi inserido, estabelecido por Henry Ford, era necessário
pela primeira vez, na Toyota japonesa, primeiro produzir em massa, estocar e somente
em meados da década de 1970 por depois vender.
Taichii Ohno. Surgiu da necessidade de 4
かんばん – Kanban. Este sistema, utilizado,
criar uma alternativa aos poucos espaços pela primeira vez, pela Toyota japonesa,
constitui-se de um conjunto de cartões que indica
a quantidade necessária de matéria-prima ou de
2
As peças utilizadas para montar a máquina são peças intermediárias a serem produzidas para se
cortantes, por isso o uso de luvas é obrigatório. suprir a célula seguinte (cliente). O kanban, tal
Todavia é necessário cortar os dedos polegares e qual, introduzido pela Toyota japonesa,
indicadores das luvas, para que seja possível diferencia-se do sistema de cartões de
apanhar os parafusos com agilidade. Desta informações que acompanham a produção nos
maneira, temos muitos cortes nos dedos e isto moldes industriais tradicionais: enquanto estes se
causa muita dor e, junto com o rigoroso inverno baseiam em um planejamento a priori da
da época, prende-nos os movimentos. Para que a produção, empurrando-a desde o estoque até o
dor não prejudique o desempenho durante o setor de vendas, o kanban funciona como
trabalho, usamos pomada analgésica e enfaixamos chamada para a quantidade a ser produzida pelas
mãos e braços antes de dormir, desta maneira, no unidades anteriores, fazendo com que a produção
dia seguinte estamos recuperados para mais um seja acionada do fim para o início (CATTANI,
dia de trabalho desgastante. 2002).

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eliminado esse tempo entre um grupo, ainda que neste grupo todos
trabalhador e outro, considerado tempo encontrem-se nas mesmas condições,
morto e que não agrega valor à produção. como observa-se no relato da autora. O
Na cadeia de montagem quem se trabalho consiste em produzir fechaduras
movimenta é o produto em fase de para carros. Doze mulheres, brasileiras e
produção, por meio de robôs ou de japonesas, em pé, uma ao lado da outra,
esteiras, assim são eliminados muitos cada uma desenvolve uma parte da
segundos que seriam gastos para que um produção e é responsável pelo controle de
trabalhador levasse o produto de um qualidade dessa mesma parte. No final da
posto de trabalho a outro. Além disso, linha, uma brasileira reexamina todas as
cada trabalhador deve descobrir outros peças e imediatamente comunica
tempos mortos a fim de diminuir cada qualquer defeito dando um grito. Por
vez mais o tempo de produção. De modo exemplo, ao encontrar algum defeito na
que: peça, em voz bem alta (até mesmo para
[...] o que el obrero realizaba em 60 que sua voz ultrapasse o barulho das
segundos, a hora lo tiene que hacer máquinas) diz o nome da operária
em 50 segundos [...] Pero este tipo de responsável pela parte defeituosa e
racionalización alcanza límites completa dizendo: kizú (キズ), ou seja,
cuando se eleva la producción. Una risco ou defeito. Isso irrita as
fábrica en los EEUU consiguió trabalhadoras pois, não raro, surgem
producir 100 coches por hora, lo que defeitos que somente são visíveis aos
reducía las tareas a 36 segundos. Pero olhos dela que parece sentir prazer em
es mucho más duro racionalizar el gritar o dia todo, e algumas vezes,
trabajo, o sea encontrar segundos de
coincide de ser a mesma pessoa a ser
tiempos inútiles, en 36 segundos que
en 1 minuto o en un lapso de tiempo
chamada atenção o dia inteiro.
aun mas largo. Por eso Toyota define As condições de estresse a que são
las tareas en cuadrilla. Esto significa submetidos os trabalhadores, no modelo
que la racionalización no se hace toyotista de produção, são destacadas por
sobre el minuto que trabaja el obrero Gounet (1998) ao exemplificar o
en un coche, pero sobre los 10
funcionamento dos trabalhos em grupos.
minutos que la cuadrilla de diez
hombres tienen para realizar las
De acordo com as vendas é estabelecido
operaciones al coche. Es éste um objetivo de produção para cada dúzia
principio de racionalizacion que se de trabalhadores, para os quais Ohno
encuentra a la base de la introducción disponibiliza apenas noventa por cento
del teamwork donde Toyota dos recursos que ele deveria normalmente
(GOUNET, 1998, p. 2). oferecer e desafia os operários a atingir a
A racionalização é a fábrica mínima, ou produção necessária. Estes, por sua vez,
seja, com efetivo mínimo. Ao reduzir o discutem entre si e descobrem maneiras
tempo de dez para nove minutos, de vencer o desafio. Porém, quando
sobrecarrega-se os trabalhadores e pensam ter vencido, Ohno retira
eliminam-se postos de trabalho. O novamente a porcentagem de recursos, e
objetivo não consiste então, em diminuir assim sucessivamente. “Isso para mostrar
trabalho e sim, reduzir trabalhadores. O que se trata de um sistema permanente.
trabalho em equipe representa, na Na Toyota, os trabalhadores chamam a
verdade, a pressão que cada trabalhador isso de sistema Oh! No! (do inglês Oh!
sofre para desempenhar sua função com Não!) Conhecendo o rigor deste sistema
qualidade, sob pena de ser rejeitado pelo de produção,

5
[...] os trabalhadores vêm trabalhar Nesse sentido, Fábio Ocada (2004)
doentes. No Japão, isso se destaca que:
desenvolve no quadro do trabalho em
grupo: o ausente não é substituído e o A realidade social adquire o simples
time deve se desembaraçar sem ele aspecto de relações sociais de compra
[...] aquele que não se sente bem vem e venda de uma força de trabalho
para a empresa ainda assim, para destituída de qualquer forma de
evitar sobrecarregar seus colegas. Em subjetividade e concebida como um
certos casos, esses últimos foram corpo social assexuado, da mesma
procurar o doente para trazê-lo para a forma todas as motivações culturais e
cadeia de montagem. Essa cadeia de valorativas que orientam as condutas
caça aos doentes é introduzida de dos atores sociais são reduzidas ao
forma geral na indústria automotiva determinismo de uma causalidade
mundial (GOUNET, 2000, p. 103). econômica (OCADA, 2004, p. 165).

Esse sistema foi vivenciado pela Esse nível de estresse também decorre de
pesquisadora e além desse, muitos outros uma necessidade dos trabalhadores de
como por exemplo a gestão pelas estarem sempre preparados para produzir
lâmpadas. Coloridas e instaladas bem ao o que pede a demanda, uma vez que a
alto, na direção da cabeça dos produção é feita sob encomenda. Desta
trabalhadores, maneira devem adaptar-se imediatamente
para a nova produção no decorrer do dia.
[...] a gestão pelas lâmpadas permite Também é necessário que o trabalhador
à direção da empresa ver como se esteja disponível para incorporar à sua
passa concretamente a produção nas
rotina de trabalho árdua e desgastante,
oficinas [...] parecem as das
sinaleiras: verde significa que tudo muitas horas de trabalho, caso seja
está bem na seção; laranja indica que necessário, para suprir a demanda.
há um problema de sobrecarga; A flexibilização da mão-de-obra passa a
vermelho obriga a parar a cadeia, ser outro requisito essencial para o
porque os trabalhadores não podem
trabalhador inserido no sistema toyotista.
mais segurar o ritmo. Se poderia crer
que, enquanto todos os
É preciso ser polivalente para assumir
departamentos estão no verde, a qualquer posto que se faça necessário.
direção está satisfeita e que seu Baseado neste princípio de
objetivo foi atingido. Mas não é multifuncionalidade foi deflagrada nas
assim. Em realidade, é preciso que as últimas décadas a teoria das
lâmpadas oscilem continuamente competências, onde o indivíduo precisa
entre o verde e o laranja. Dessa desenvolver uma série de capacidades
forma, a direção está segura de que para se inserir ou se manter no mercado
os trabalhadores estão ocupados ao de trabalho.
máximo (GOUNET, 2000, p.103).
Para atingir os objetivos do padrão
Desta maneira, os trabalhadores estão toyotista é implantado um processo de
sempre sob pressão. O trabalho qualificação da mão-de-obra por meio da
representa uma completa servidão. O educação objetivando alcançar um de
operário já não dispõe de tempo para o seus princípios fundamentais: a
lazer e para a vida familiar, pois o único eliminação do desperdício. Para os
tempo livre é utilizado para repouso e japoneses, a função da escola deve ser
recuperação. Os acidentes de trabalho iniciar o indivíduo neste princípio sempre
passam a ser constantes e verifica-se exigindo dele qualidade total. Isso surge
também um alto índice de suicídios. com a implantação do toyotismo, a partir

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da necessidade de utilização adequada da envolvimento manipulatório, próprio
matéria-prima de elevado valor. É preciso da sociabilidade moldada
um índice zero de desperdício para o contemporaneamente pelo sistema
sucesso da produção, ou seja, a maior produtor de mercadorias
lucratividade possível. Esta preocupação (ANTUNES, 1999, p. 16).
com a qualidade total, fez o país Obviamente, afirma Harvey (2003), a
desenvolver um produto de alto padrão e organização do trabalho necessita se
se inserir no competitivo mercado dos desmantelar, pois a acumulação flexível
países centrais. de capital representa um confronto direto
Sob a gestão participativa, outro princípio com a rigidez fordista, se apoia na
do modelo toyotista, os trabalhadores são flexibilidade dos processos de trabalho e
motivados a se sentir como parceiros da não pode conviver com um sistema
empresa (fato que gerou, nos últimos jurídico que regula rigidamente a
tempos, a substituição de empregado para exploração da força de trabalho humana,
colaborador). Assumem um posto de por legislação trabalhista. Desse modo, a
liderança frente a um grupo (líderes subcontratação passa a ser uma cruel
coordenadores da linha de montagem, por estratégia no modelo japonês de
exemplo) e, com a ilusão de serem produção. Para as funções essenciais são
promovidos, passam a responder pela selecionados trabalhadores efetivos e as
marcha da produção, ao mesmo tempo demais funções são deixadas para o
que executam o processo de controle de pessoal subcontratado e a estes, reserva-
qualidade. É uma sobrecarga de trabalho se salários mais baixos, carga horária
e responsabilidades, contudo, aos olhos maior, serviços desqualificados e nenhum
do trabalhador, é sinal de valorização e vínculo empregatício ou direito
destaque entre os demais colegas. Essa trabalhista.
possível promoção estimula a No Japão, segundo Sasaki (1999), esta
competitividade e resulta no aumento da estratégia é bem-vinda às pequenas
produção, entretanto, acirra o empresas que possuem muita dificuldade
individualismo e solapa a organização de em preencher suas vagas. Os japoneses,
trabalhadores. Assim, a estratégia da sobretudo os mais jovens e com formação
gestão participativa traz consigo a superior, recusam o trabalho na fábrica
tentativa, bem-sucedida, de eliminação da devido à ausência de perspectivas de
ação sindical, como esclarece Antunes: ascensão profissional e pelas condições
Vivem-se formas transitórias de precárias a que são submetidos os
produção, cujos desdobramentos são trabalhadores. Assim, “[...] as pequenas
também agudos, no que diz respeito empresas começaram a contar com os
aos direitos do trabalho. Estes são trabalhadores estrangeiros [...]. A falta de
desregulamentados, são mão-de-obra no Japão fez com que as
flexibilizados, de modo a dotar o empresas começassem a clamar por
capital do instrumental necessário modificações na política imigratória e a
para adequar-se a sua nova fase. procurar trabalhadores fora do Japão”
Direitos e conquistas históricas dos (SASAKI, 1999, p. 258). Esta situação
trabalhadores são substituídos e
provocou o aumento de estrangeiros
eliminados do mundo da produção.
Diminui-se ou mescla-se,
ilegais no país e demandou maior rigor na
dependendo da intensidade, o política de imigração. A partir deste
despotismo taylorista, pela contexto, houve mais abertura ao
participação dentro da ordem e do imigrante latino, em especial o brasileiro,
universo da empresa, pelo por ser onde está localizada a maior

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colônia japonesa fora do Japão, fechaduras para carros. Ao chegar à
considerado um fator que poderia fábrica recebeu o uniforme e foi levada à
diminuir o choque cultural. linha de montagem. Não houve nenhum
treinamento, apenas orientações de como
Assim, o Brasil, no final da década de
realizar a tarefa. A produção exigida era
1980 e início de 1990, foi marcado pela
de novecentos e cinquenta peças por dia.
massificação do movimento dekasségui
As dificuldades eram grandes, pois
(出稼ぎ)5. A posse de Fernando Collor de
jamais havia executado tal função. Nesta
Mello, como presidente em 1990, e as
fábrica, foram necessários dez meses de
medidas econômicas empreendidas por
árduo trabalho para conseguir pagar todas
sua equipe, provocaram uma grande
as dívidas contraídas com a empreiteira,
instabilidade no país e alavancaram a
resgatar os documentos e procurar uma
migração internacional. É nesse contexto
fábrica com maior carga horária de
em que a autora chega ao Japão e
trabalho. Isto mesmo! A maioria dos
vivencia, como operária subcontratada, o
trabalhadores estrangeiros anseia por uma
trabalho em linhas de produção de
carga horária de, ao menos, doze horas
produtos automobilísticos e tecnológicos.
diárias, uma vez que, para muitos, quanto
Foram dois anos de experiência por meio
antes puder retornar ao seu país, melhor!
da qual foi possível vivenciar a aplicação
Assim, um nomadismo se instaura e
do modelo japonês de produção, sob a
solidificar amizades é outra dificuldade o
ótica do trabalhador.
que contribui para aumentar um processo
As dificuldades se mostraram desde a de solidão crônica.
chegada. Um outro mundo, literalmente,
Na busca por mais carga horária de
surgia. Dificuldades na comunicação, na
trabalho, a autora conseguiu uma vaga
alimentação e, em especial, na adaptação
para trabalhar em uma fábrica que
ao trabalho na fábrica, que se tratava de
produzia planos de base para placas
uma novidade. O fato de ter o passaporte
eletrônicas, os chamados kibans (基板).
e a passagem de retorno retidos pela
Uma verdadeira maratona envolvia o
empreiteira, causou uma ansiedade e uma
ritual matinal. Após um trajeto de quatro
insegurança que se somaram às
quilômetros, de bicicleta, chegava-se à
adversidades da situação. Após
fábrica. Era necessário trocar a roupa
transtornos de várias ordens, a autora foi
pelo primeiro uniforme, com exceção do
indicada a uma fábrica que produzia
calçado. Em seguida, atravessar o pátio
da fábrica e alcançar o local onde era
5
出稼ぎ, dekasségui, significa trabalhar fora de preciso trocar o calçado e vestir-se com o
casa. “No Japão, referia-se aos trabalhadores que uniforme definitivo. Este ritual era
saíam temporariamente de suas regiões de origem,
sobretudo aqueles provenientes do norte e
repetido na hora do almoço e antes de ir
nordeste do Japão, e iam em direção a outras mais embora. A atividade realizada era a
desenvolvidas durante o rigoroso inverno que inspeção de qualidade do produto ou
interrompia suas produções agrícolas no campo. kensa (検査). A atividade era tão
Esse mesmo termo é, então, aplicado aqui aos mecânica que apesar do pouco
descendentes de japoneses [...] nascidos fora do
Japão, não se restringindo apenas aos brasileiros,
conhecimento da língua japonesa e de
que vão trabalhar no Japão, a princípio informática, a autora foi capaz de realizá-
temporariamente, em busca de melhores ganhos la sem maiores problemas. Num aparente
salariais, executando trabalhos de baixa paradoxo, o operário deveria produzir
qualificação, caracterizados pelos japoneses como uma peça eletrônica de complexa
‘3K’- kitanay (sujo), kiken (perigoso) e kitsui
(penoso) – que eram recusados por eles”
elaboração e altamente qualificada, mas
(SASAKI, 1999, p. 243). sem pensar o seu trabalho. “O processo

8
de trabalho não dependia da mediação de poder de acumulação do capital,
sua interpretação para que tivesse aprofundando a precarização das
sequência. Seu corpo fora transformado condições de trabalho e,
num instrumento dos movimentos consequentemente, dos modos de viver.
automáticos da linha de produção”
(MARTINS, 1993, p. 18).
Referências
Após essa experiência como operária
ALVES, G. Toyotismo e neocorporativismo no
subcontratada, em diferentes fábricas e sindicalismo do século XXI. In: Outubro, v. 2, n.
setores, foi possível constatar que a única 5, p. 47-58, 2001.
diferença entre os trabalhadores, ainda
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre
que isso seja despercebido para muitos as metamorfoses e a centralidade do mundo do
deles, são as mercadorias que produzem. trabalho. São Paulo: Cortez, 1999.
Não fosse assim, não haveria diferença de
CATTANI, A. (Org.). Dicionário crítico sobre
uma fábrica para outra. Em todas que a trabalho e tecnologia. Petrópolis: Vozes, 2002.
autora teve oportunidade de trabalhar ou
GOUNET, T. El toyotismo o el incremento de la
apenas conhecer, como era de se esperar, explotación. Disponível em:
as atividades sempre seguiam a mesma <http://www.wpb.be/icm/98es/98es11.htm-23k.>.
linha, extremamente repetitivas e Acesso em 21.06.2004.
exaustivas, onde o trabalho se encontrava GOUNET, T. Fim do trabalho, fim do emprego?
totalmente alienado. Nesse sentido é In: CARRION, R. K. M. e VIZENTINI, P. F. A
possível concordar com Antunes (1999) crise do capitalismo globalizado na virada do
ao afirmar que não se pode atribuir ao milênio. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
toyotismo um caráter de novo modelo de HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São
organização e de produção, nem ao Paulo: Loyola, 2003.
menos é possível considerá-lo como um MARTINS, J. de S. A aparição do demônio na
avanço do sistema taylorista/fordista, e: fábrica, no meio da produção. Tempo Social, v. 5,
n. 1/2, p. 1-29,1993.
[...] a questão que nos parece mais
pertinente é aquela que interroga em OCADA, F. K. Trabalho, sofrimento e migração
que medida a produção capitalista internacional: o caso dos brasileiros no Japão. In:
realizada pelo modelo toyotista se ANTUNES, R. e SILVA, M. A. M. O avesso do
trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
diferencia essencialmente ou não das
várias formas existentes de fordismo. SAES, D. A política neoliberal e o campo político
[...] a diminuição entre elaboração e conservador no Brasil atual. In: ____. República
execução, entre concepção e do Capital: capitalismo e processo político no
produção, que constantemente se Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 81-105.
atribui ao toyotismo, só é possível SASAKI, E. M. Movimento Dekassegui. A
porque se realiza no universo estrito experiência migratória e identitária dos brasileiros
e rigorosamente concebido do descendentes de japoneses no Japão. In: REIS, R.
sistema produtor de mercadorias, do R., SALES, T. (orgs.). Cenas do Brasil Migrante.
processo de criação e valorização do São Paulo: Boitempo, 1999, p. 243-274.
capital (ANTUNES, 1999, p. 33). WOOD JR, T. Fordismo, Toyotismo e Volvismo.
Os caminhos da indústria em busca do tempo
De tal forma, é possível concluir que o perdido. In: Revista de Administração de
toyotismo representou uma grande Empresas, n. 32, set/out de 1992. Disponível em:
ofensiva aos trabalhadores, uma vez que https://www.scielo.br/pdf/rae/v32n4/a02v32n4.pd
se instalou como um processo apenas f. Acesso em 21.06.2004.
preocupado em resgatar o domínio e o

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