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REVISÃO DE LITERATURA
Souza RA. Análise crítica do papel da obturação no tratamento endodôntico. J Brasileiro de Endodontia 2006; 6(23) 29-39.
INTRODUÇÃO
A terapia endodôntica já passou por alguns momentos em termos de classificação das suas
etapas. Já se disse que ela se dividia em três fases: instrumentação, desinfecção e obturação.
Em um outro momento, construiu-se a imagem clássica da pirâmide, em cuja base estava o
acesso, na porção intermediária o preparo e no vértice a obturação. Por sua vez, Souza (2003a)
considerou que, na verdade, existem dois momentos distintos no tratamento endodôntico: um
em que se prepara o canal, onde se incluem acesso, instrumentação, irrigação e medicação
intracanal, e o outro em que se o obtura, constituindo desta forma as duas etapas que com-
põem a terapia endodôntica: preparo e obturação.
Ao lado dessa preocupação de se classificar os passos do tratamento endodôntico, sempre
esteve uma outra que é a de se atribuir a cada um deles a igualdade em termos de importância,
isto é, nenhuma das etapas é mais importante do que a outra.
Entretanto, desde o trabalho de Ingle (1956) a etapa da obturação passou a merecer grande
destaque, chegando mesmo a ser considerada como a mais importante da terapia endodôntica
*Professor de Endodontia da Escola Bahiana de Odontologia da Fundação para Desenvolvimento das Ciências (FDC);
Coordenador dos Cursos de Especialização e Aperfeiçoamento em Endodontia da EAP da ABO Bahia; Av. Paulo VI,
2038/504, Ed. Villa Marta, Itaigara – 41.810-001, Salvador, BA; E-mail: ronaldoasouza@lognet.com.br
(De Deus, 1992; Soares, Rocha, os passos do tratamento de possuir os mecanismos próprios
1993; Nguyen, 1994; Leonardo, canal e por isso a sua imagem para desempenhar esse papel,
Leal, 1998; Soares, Goldberg, final, expressa pela obturação tal qual qualquer outro tecido
2001; Clintom, Himel, 2001). na radiografia periapical, tem conjuntivo do organismo, como
Tendo em vista que alguns auto- sido o único meio para determi- também pela ocupação física
res consideram que a reparação nar a qualidade do tratamento. do espaço do canal radicular.
apical pode ocorrer mesmo na A obturação se tornou, assim, O tratamento endodôntico
presença de microorganismos, a estética do endodontista. Em implica na remoção da polpa,
desde que o canal esteja cor- vista disso, não é difícil compre- isto é, remove-se a “proteção”
retamente obturado (Sampaio, ender porque esta etapa do tra- do sistema de canais. É eviden-
1985), o objetivo principal da tamento endodôntico tem sido te que, vazio, o canal se torna
Endodontia passou a ser o ve- motivo de grande ansiedade mais vulnerável à contaminação
damento hermético. no momento da sua execução ou recontaminação. A obtura-
Essa concepção está inti- e porque tem gerado o surgi- ção tem a finalidade de proteger
mamente associada à idéia de mento de inúmeras técnicas este espaço. Portanto, de uma
enclausuramento das bactérias. com essa finalidade. maneira bem simples, o trata-
Para esses autores, mesmo É interessante observar, mento endodôntico consiste em
que eventuais microorganismos porém, que, apesar do grande remover o tecido pulpar, vivo ou
tenham escapado da ação desejo de se conseguir o veda- não, eliminar eventuais invaso-
do preparo do canal, tendo mento hermético e da insistên- res, o que constitui o preparo do
a obturação por um lado e o cia na ênfase que sempre se deu canal, e, por fim, “reocupar” o
cemento pelo outro, portanto, a esse tema, parece não haver espaço do canal, etapa consti-
enclausurados e afastados de na literatura trabalhos que com- tuída pela obturação. Assim, a
qualquer fonte de nutrição, o seu provem a sua ocorrência. obturação tem um objetivo bem
destino seria a morte, razão pela Além desse aspecto, tem- definido que é o de ocupar o
qual a obturação passou a ser o se atribuido à obturação outros espaço anteriormente ocupado
fator determinante do sucesso. papéis, como por exemplo, o de pela polpa, visando com isso
Segundo Leonardo, Leal (1998), exercer ação antimicrobiana e in- manter a proteção do sistema
os trabalhos mostram que os dutora de reparo, particularmente de canais contra as invasões.
insucessos estão intimamente pelas características do cimento. Para vedarmos comple-
relacionados a canais mal obtu- Em vista disso, torna-se necessá- tamente o canal, é lógico que
rados, o que justifica a tendência ria uma reflexão sobre esse tema, teríamos que obturá-lo com-
de se dar maior ênfase e mesmo que é o objetivo deste artigo. pletamente, ou seja, em toda a
importância superior a esta fase sua extensão, no entanto, vários
do tratamento endodôntico, pois LIMITE APICAL trabalhos mostram que isso mui-
dela depende o êxito final. DA OBTURAÇÃO tas vezes significa estar fora do
Como decorrência disso, O sistema de canais con- canal, razão pela qual a maio-
surgiu uma outra razão, de or- tém no seu interior um tecido ria dos autores concorda em
dem prática, que se incorporou conjuntivo, a polpa dental, que estabelecê-la aquém do ápice
a essa tendência. Ao longo dos possui entre as suas funções, radiográfico. O quanto aquém
anos, o profissional da Endo- a de proporcionar ao dente tem sido o grande problema.
dontia passou a ser conceituado proteção contra a invasão de Percebe-se na literatura uma
pela imagem radiográfica das elementos estranhos, como os grande diversidade de medidas
suas obturações. Não se sabe, microorganismos. Isto é possí- sugeridas, variando a depender
e talvez não haja como sabê-lo, vel pelo fato de ser a polpa um do autor e das condições clínicas
como foram executados todos tecido conjuntivo e como tal da polpa. Isto deve significar
que, a despeito da importância é, ou, pelo menos deveria ser, o tanto, nada faz crer que a preci-
do vedamento hermético colo- preenchimento de todo o espaço são que não existe nos primeiros
cada pela literatura, não se sabe criado pelo preparo do canal. O seja atingida no segundo.
qual é o limite apical no qual o travamento do cone pode ajudar Contudo, o maior obstáculo
canal deve ser obturado. nesta tarefa, porém, constitui um para a linha de raciocínio do
equívoco injustificável transfor- travamento como sinônimo de
TRAVAMENTO DO CONE
má-lo no passo mais importante vedamento parece residir nas
DE GUTA PERCHA da obturação. dificuldades técnicas decorrentes
Considerando-se que de Deve ser lembrado que, da complexidade anatômica do
nada adiantaria atingir o limite apesar do grande avanço tec- sistema de canais. O processo de
apical estabelecido se o cone nológico, ainda não se conse- convergência apical na apicogê-
não obliterasse completamente a guiu dar precisão de calibre aos nese não se dá da mesma forma
luz do canal, uma outra questão instrumentos e materiais. A lima nos dois planos, mesiodistal (M-
que tem sido colocada como #40 deve possuir em D0 diâ- D) e vestíbulo-palatino/lingual
fundamental para se obter êxito, metro de 0.40mm, porém isso (V-P/L). Isto faz com que muitas
diz respeito ao travamento do não significa que em todas elas vezes o cone trave no primeiro
cone principal de guta percha. o diâmetro seja exatamente este. plano e não no segundo (Souza,
Ao mesmo tempo em que ele Frequentemente, elas apresentam 2003a). Como é sabido, as difi-
se tornou um sinônimo de veda- diferenças nessas medidas. culdades de natureza anatômica
mento, tornou-se também um Um outro aspecto a se con- se acentuam de forma marcante
procedimento obrigatório. siderar é que a capacidade de nos canais curvos. Nestes canais,
Assim, um problema re- desgaste das limas varia em segundo Weine et al. (1975),
conhecidamente tridimensional função de cada profissional e a despeito do instrumento ou
passou a ser encarado de uma também no mesmo profissional, da técnica, após o preparo, a
maneira extremamente bidimen- a depender das suas condições, porção mais constrita não é o
sional e, de uma certa forma, por exemplo, emocionais, que ápice, mas na curva ou próximo
tornou-se uma obsessão entre são variáveis a cada momento. dela, o que não permitiria um
alguns profissionais da Endo- Naturalmente, isso se faz refletir travamento no local desejado.
dontia, a ponto de se perderem em diferentes níveis de amplia- Ainda que técnicas mais recen-
minutos preciosos no momento ção proporcionados pelo mesmo tes tenham amenizado de forma
da obturação, na tentativa de instrumento, o que, por sua vez, significativa esse problema, elas
se atingir esse objetivo. Não é tem reflexos na escolha e adap- ainda não constituem a realidade
incomum observar-se o clínico tação do cone principal de guta da grande maioria dos profissio-
optar pelo travamento do cone percha, haja visto que nesse mo- nais, portanto, para estes, ainda
ligeiramente aquém do compri- mento se manifesta a imprecisão pode ser válida a colocação dos
mento de trabalho, ao invés de instrumental/material, desta vez, referidos autores.
obturar no limite correto, porque entre as limas e os cones, relação Deve-se finalmente con-
neste ele não consegue o “trava- ainda longe de ser precisa. siderar que, ainda que alguns
mento perfeito”. Mais recentemente, foi cria- profissionais não estejam prepa-
Criou-se assim um compro- da uma régua calibradora para rados para entender isso, como
misso tão forte com o travamento auxiliar nessa tarefa, o que, para qualquer outro ato cirúrgico, o
do cone que ele passou a ser muitos, resolveu o problema. Se preparo do canal é altamente
a grande meta alcançada pelo isto pode ajudar, não resolve, dependente não só dos predica-
Endodontista no momento da pela simples razão de que a dos técnicos de quem o executa,
obturação. O primeiro passo e indústria que faz a lima e o cone como também da inspiração no
grande objetivo da obturação é a mesma que faz a régua, por- momento em que se o executa.
Certamente, a percepção tátil al., 1992; Smith, Steiman, 1994; fecção das soluções irrigadoras
sofre variações em função desses Yared, Bou Dagher, 1995). Se- e da medicação intracanal no
aspectos, o que se faz refletir em gundo Sleder et al. (1991), todos sistema de canais. Por apresentar
“diferentes” travamentos perfei- os cimentos obturadores apresen- solubilidade (Pashley, 1992), ela
tos, fato este que se acentua de tam algum grau de solubilidade acentua a infiltração apical (Sou-
um profissional para outro. nos fluidos teciduais e a interface za, 1999; Souza, Silva, 2001),
Analisando a questão do que se cria em função disso é que expondo todo este conteúdo aos
travamento do cone, Souza et deve ser a responsável pela falha tecidos periapicais. Não há como
al. (2003b) não conseguiram do tratamento. pensar em selamento biológico
encontrar diferença significante Atribuindo à solubilização como um fator de resolução da
na qualidade do selamento api- do cimento, Souza (2003b) infiltração apical porque, nessas
cal entre canais obturados com e demonstrou o aumento da in- condições, simplesmente não
sem travamento do cone. filtração com o decorrer do ocorrerá selamento biológico.
tempo, ratificando a afirmativa Durante muitos anos, os
MATERIAIS OBTURADORES cimentos obturadores à base de
de Yared, Bou Dagher (1995)
A unanimidade em torno da de que quanto maior o período óxido de zinco-eugenol foram
guta percha como material obtu- de observação na pesquisa com extensivamente utilizados. Hoje
rador é bem clara na literatura. corante, maior a infiltração. existem outros, porém, os com
Todas as técnicas consistentes Alguns profissionais acre- hidróxido de cálcio passaram a
de obturação têm como ponto ditam que esta maior infiltração ocupar lugar de destaque. Gra-
básico o seu uso, razão pela qual em função do tempo, não repre- ças à presença desta substância,
não será discutida neste texto. sentaria um problema porque, a estes cimentos, particularmente,
Ao contrário, existem algu- antes que este surgisse, o sela- ao Sealapex, têm sido atribuidas
mas situações paradoxais com mento biológico selaria o canal. propriedades interessantes, como
relação aos cimentos obtura- Este pensamento é inteiramente biocompatibilidade, maior ação
dores. Uma delas parece ser o equivocado, haja visto que in- antimicrobiana e ação indutora
fato de que uma das exigências tensa infiltração decorrente da de mineralização. Graças a isso,
feitas a estes materiais é a de que solubilização do cimento pode este cimento tem sido amplamen-
eles sejam insolúveis aos fluidos ocorrer já com sessenta dias te indicado.
orgânicos, pois só assim, a con- (Souza, 2003b), enquanto que o Há praticamente um con-
dição de vedamento hermético selamento biológico pode neces- senso na literatura a respeito
poderia ser alcançada. Todavia, sitar de anos para ocorrer (Souza, das vantagens do Sealapex,
ao mesmo tempo, diante da 1998; Souza, 2003a). Aliado a principalmente no que se refere
possibilidade de extravasamentos isto está o fato de que poucos aos aspectos biológicos (Holland
e da frequência com que eles profissionais adotam como rotina et al., 2001), todavia, segundo
ocorrem, essa condição impedi- a remoção da camada residual Leonardo (1992) e Leonardo
ria a sua eliminação dos tecidos (smear layer), cuja composição et al., (1994), o cimento CRCS
periapicais, razão pela qual a inclui raspas de dentina, frag- (também com hidróxido de cál-
sua solubilidade passa a ser de- mentos de tecido pulpar, tecido cio) demonstrou maior biocom-
sejada. Assim, dois dos requisitos necrótico, bactérias e toxinas patibilidade do que o Sealapex.
para que o cimento obturador bacterianas. Em função desta Em outro trabalho, pela avalia-
alcance a condição de ideal sua constituição, por si só ela já çäo da citotoxicidade por meio
são antagônicos. Independente representa uma fonte de infecção da alteraçäo morfológica dos
dessas questões, porém, todos os e, por outro lado, ao diminuir a macrófagos frente aos cimentos
cimentos são solúveis (Sleder et permeabilidade dentinária, difi- endodônticos, Leonardo (1996)
al., 1991; Limkangwalmongkol et culta a ação de limpeza e desin- demonstrou que, em ordem
crescente, os mais citotóxicos mais utilizada para a obturação limpar e modelar e à obturação
foram Fill Canal, CRCS, Sealer dos canais (Cailleteau, Mulla- obturar. Se o objetivo do preparo
26, Apexit e Sealapex. ney, 1997; Silveira et al., 2001). é limpar e dar uma forma ao
Graças à presença do hidró- Segundo Jurcak et al. (1992), canal, as técnicas, o instrumental
xido de cálcio nesses cimentos, pesa contra ela, entretanto, a e as substâncias que serão esco-
também a eles é atribuida uma dificuldade em promover uma lhidas, para isso deverão apre-
maior ação antimicrobiana, obturação homogênea, pelo sentar características voltadas a
porém, trabalhos comparando fato de que não há uma perfeita esses aspectos. Da mesma forma
esta ação por parte do Sealer união entre os cones de guta e tão óbvio quanto, as técnicas,
26, Sealapex e Apexit, todos com percha e cimento e, por sua vez, substâncias e materiais que serão
hidróxido de cálcio, com a do Fill entre esse conjunto e a parede do escolhidos para a obturação de-
Canal (à base de óxido de zinco e canal. Por esta razão surgiram as verão ter as suas características
eugenol) demonstraram a supe- técnicas de obturação com guta voltadas a aquilo que é o objetivo
rioridade deste último (Siqueira, percha plastificada. da obturação: preenchimento de
Gonçalves, 1996). Estas técnicas surgiram prin- espaço físico.
Se há controvérsias nos tó- cipalmente em nome da obtu- Apesar do vedamento her-
picos relatados, também naquele ração tridimensional, tendo em mético ter sido colocado como a
que representa o objetivo princi- vista que, plastificada, a guta per- grande razão para o sucesso em
pal da obturação, o selamento, cha penetraria em todos os com- Endodontia, a literatura não tem
não há ainda uma definição. ponentes do sistema de canais sido capaz de demonstrar a sua
Neste sentido, a análise estatísti- (Schilder, 1967). Vários foram os ocorrência. Em contrapartida, à
ca dos resultados de Holland et trabalhos feitos comparando as demonstração de que a perco-
al., (1996) permitiu agrupar os diversas técnicas. Em todos foram lação apical é um fato, alguns
cimentos obturadores, do melhor analisadas questões como tempo passaram a considerar o quanto
para o pior, da seguinte forma: de trabalho, facilidade ou dificul- de infiltração seria tolerável para
1) Sealapex, Apexit e Sealer 26; dade de execução, qualidade do que se pudesse obter êxito em En-
2) CRCS; 3) Oxido de zinco e selamento proporcionado, etc. dodontia (Krell & Madison, 1985;
eugenol, com diferenças esta- Os resultados encontrados na Barbosaet al., 2003). Não parece
tisticamente significantes entre literatura não permitem chegar sensato esse tipo de raciocínio.
os 3 grupos. Por outro lado, a nenhum tipo de conclusão que Não há como se pretender ava-
em avaliação feita em dois mo- possa apontar para qualquer liar a relação entre a quantidade
mentos, 2 e 32 semanas, Sleder uma delas como a melhor. Deve- “permitida” de infiltração e as
et al. (1991) não observaram se ter em mente, no entanto, que, chances de sucesso. As possibi-
diferença significante entre o ci- apesar da grande quantidade lidades são infinitas.
mento Tubliseal (à base de óxido de técnicas de obturação que Não existe relação entre o
de zinco-eugenol) e o Sealapex. existe hoje, não se atingiu ainda limite no qual o canal é obturado
Todavia, há quem considere que, o objetivo para o qual todas e o sucesso (Souza, 1998; Souza,
por ser mais solúvel, a infiltração foram criadas: o vedamento 2003a). Não se deve imaginar
é maior com o Sealapex (Ono, hermético. Em outras palavras, que obturar a 1 ou 2mm seja o
Matsumoto, 1998; Siqueira todas permitem infiltração (Dalat, fator determinante para se atingir
et al., 1999). Spangberg, 1994). o sucesso, pois não é a extensão
desse espaço que determina isso
TÉCNICAS DE OBTURAÇÃO DISCUSSÃO e sim as condições em que ele
Apesar de muitas já terem Os passos e objetivos do se encontra. Se observarmos a
sido preconizadas, a técnica da tratamento endodôntico estão literatura, veremos que, na pol-
condensação lateral ainda é a bem definidos. Cabe ao preparo pa viva, as taxas de sucesso são
elevadas quando os canais são car melhor o sucesso e o fracasso O autor deixa bem claro, contu-
obturados de 0,25 a 3mm (Pai- em Endodontia. do, que o desejo não é propor
va, Antoniazzi, 1985; De Deus, Excetuando-se o tratamento mudanças nos limites apicais da
1992; Leonardo, Leal, 1998; endodôntico por finalidade pro- obturação e muito menos deixar
Clintom, Himel, 2001). Em tética, são as alterações pulpares o canal vazio. Não faz sentido
Endodontia, além de constituir e/ou periradiculares que justifi- deixar um canal vazio. Quem
uma grande extensão, de 0,25 cam a terapia endodôntica. É a prepara bem torna mais fácil a
a 3mmm há uma infinidade de presença da dor causada pela obturação. A intenção é demons-
medidas, portanto, não pode ser pulpite sintomática, da fístula, trar a importância do preparo do
isso que define o sucesso. do exsudato persistente, da lesão canal, não somente no sentido
Na polpa necrosada, apesar periapical, enfim, da doença pul- da modelagem, mas, sobretudo,
do rigor do limite apical da obtu- par, que faz com que o paciente da limpeza. A obturação tem as-
ração, sem perceber, os autores necessite dessa terapia. sim resguardado o seu princípio
relatam a ocorrência de reparo Sendo assim, é necessário filosófico que é o de ocupação
diante das mais diversas medi- que se entenda que o endo- do espaço físico do canal.
das. Da mesma forma, também dontista “entra” no canal para Existem algumas formas de
pregando esse mesmo rigor, al- remover a causa da patologia e se mostrar a falta de relação en-
guns ministradores de cursos não não para obturá-lo. Em nenhuma tre a necessidade de vedamento
perceberam que projetam casos outra área da Medicina há qual- apical hermético e o sucesso em
clínicos demonstrando a ocorrên- quer outra preocupação que não Endodontia e uma delas é o tra-
cia de reparo com obturações, seja com a remoção da causa tamento de dentes com rizogêne-
apresentando diferentes distân- da doença. se incompleta. Na apicificação,
cias do ápice. Os endodontistas Apesar da insistência em o fechamento apical, comprova-
saem desses cursos concordando se colocar a obturação como ção do êxito da terapia, ocorre
literalmente com a necessidade o fator mais importante para se antes de se fazer a obturação
de obtenção de medidas precisas alcançar o sucesso, é o preparo do canal (Souza, 2003a). É bom
para as suas obturações, quando do canal que desempenha este lembrar que durante toda a tera-
eles próprios possuem inúmeros papel, pois é ele que promove a pia, até que ocorra o selamento
casos nos seus consultórios em remoção da causa do problema biológico, os fluidos teciduais
que as obturações não apresen- existente, é ele que elimina a periapicais penetram continu-
tam as mesmas distâncias do doença pulpar. Isto parece ter amente no canal e em grande
ápice e, mesmo assim, obtiveram sido demonstrado por Souza quantidade pela ampla abertura
êxito. Estabeleceu-se esta con- (1998). Trabalhando em canais do ápice, o que, pela literatura,
cepção da obturação há cerca com necrose pulpar e lesão pe- não permitiria o reparo, pois, es-
de cinquenta anos, todos somos riapical, este autor realizou todos ses fluidos, entrando em processo
orientados a enxergar dessa ma- os procedimentos de preparo do de estagnação e degradação,
neira e isto tem feito com que não canal (instrumentação, irrigação, produziriam substâncias tóxicas
se perceba aquilo que parece limpeza de forame, medicação para os tecidos periradiculares.
óbvio. Considerando-se que as intracanal), porém, intencio- Uma outra forma de mostrar
diferentes metodologias aplica- nalmente, obturou aquém dos isso é por meio dos canais late-
das na avaliação da qualidade limites clássicos preconizados e rais. Sabe-se que esses canais,
da obturação demonstram ao o reparo se deu em todos eles. quando presentes em situações
longo do tempo que não existe O mesmo procedimento, mas de necrose pulpar, levam ao
vedamento hermético, talvez seja desta vez deixando os canais surgimento e manutenção de
a hora de se buscar outras linhas vazios, sem obturação, também lesões laterais, que desaparecem
de raciocínio que possam expli- levou ao reparo (Souza, 2003a). algum tempo depois da sua ob-
turação. Até pouco tempo, esta das alterações pulpares promo- racterística adicional, como por
obturação se dava às custas do vidas pela cárie. A compreensão exemplo, materiais obturadores
cimento, porém, hoje ela ocorre desse aspecto, certamente, tem que, além de selar, contribuam
também pela guta percha plasti- contribuido de maneira decisiva com o processo de reparo.
ficada. Sendo um ou outro, não para as colocações mais recentes Estima-se que se enqua-
se pode esperar pela ocorrência de alguns autores no sentido de dram nessa categoria os cimen-
de vedamento hermético; o que talvez o selamento coronário tos endodônticos com hidróxido
cimento solubiliza e a guta per- seja mais importante do que o de cálcio. Ao elevarem o pH do
cha aquecida contrai ao voltar apical (Ray, Trope, 1995; Walton, ambiente, estes cimentos pode-
à temperatura normal. Muitos Johnson, 1997). riam ativar mecanismos como a
endodontistas tiveram grande O trabalho de Souza (1998) fosfatase alcalina, uma enzima
alegria diante da constatação já mostrava isso. No tratamento intimamente associada ao pro-
radiográfica da obturação de ca- de canais com lesão periapical, cesso de mineralização, e assim
nais laterais. Talvez não tenham onde o preparo foi feito em toda induzir ao reparo. O potencial
percebido e correlacionado que, a extensão do canal, mas a ob- de indução de mineralização
tempos depois, aquele cimento turação intencionalmente aquém do Sealapex, um cimento com
preenchendo todo o canal late- (até 6mm aquém), houve reparo hidróxido de cálcio, sem dúvida,
ral e que tanto prazer visual lhes em todos eles. Entre esses casos, constitui-se em uma característica
proporcionara praticamente de- um já estava sendo acompanha- bastante interessante, pois, ao in-
sapareceu, como reflexo da sua do há onze anos, portanto, tinha duzir mais fácil e rapidamente ao
solubilização. Mesmo assim, o sido tratado, com esse objetivo, selamento biológico, o processo
reparo ocorreu. no final da década de 1980. de reparo se dá de forma mais
Em condições normais, a re- Entre outras coisas, esse autor previsível (Holland et al., 1998).
gião periapical não possui micro- desejava mostrar que, não sendo Considerando-se, entretanto,
organismos, contudo, a cavidade a infiltração apical a causa das que um dos requisitos exigidos
bucal é povoada por milhões lesões periapicais, haja visto que dos materiais obturadores é a
deles. É interessante notar que, ela acontecia nos casos obtura- sua insolubilidade, característi-
apesar disso, as preocupações dos aquém e mesmo assim havia ca esta que os torna seladores
sempre se voltaram ao veda- reparo, certamente a preocupa- mais eficientes, a solubilidade
mento hermético apical e não ção deveria se voltar para a in- do cimento, necessária para a
coronário. De acordo com Nair filtração coronária, afinal, como dissociação iônica do hidróxido
(1999*), se, de fato, a anacorese dito acima, principalmente por de cálcio, deve alterar essa ca-
é um fenômeno com o qual meio da cárie, os microorganis- pacidade, o que permitiria uma
se deve contar em Endodontia, mos chegam à cavidade pulpar maior infiltração de fluidos teci-
não está comprovada a sua via coronária. Souza (2003a) duais para o interior dos canais.
ocorrência, portanto, talvez não confirma que não há mais por- Surge então uma questão que
se deva incluí-la entre as causas que ter nenhuma dúvida de que constitui um aspecto importante
das alterações periapicais, ou, o selamento coronário é mais nessa discussão: até que ponto é
se tanto, a sua participação seria importante do que o apical. válido o uso de um cimento com
ínfima nesse processo. Por outro Os objetivos do tratamento essa característica se, para isto,
lado, sabe-se que é da cavidade endodôntico, portanto, estão ele precisa ser solúvel? Partindo
bucal que chegam ao sistema de bem definidos: o preparo limpa da premissa de que o objetivo
canais os microorganismos que e a obturação sela. Isto não quer maior da obturação é promo-
o infectam, por meio das altera- dizer, entretanto, que não será ver um selamento impermeável,
ções periodontais e, sobretudo, bem-vinda qualquer outra ca- talvez não se deva preconizar
*P. N. Ramachandran Nair, comunicação pessoal, Congresso Internacional de Endodontia, Goiânia, Goiás, 1999.
um cimento que, sob qualquer condições de ser obturado. Isto é biocompatível, tenha ele ou
outro pretexto, não responda a deveria significar que ele está não hidróxido de cálcio na sua
essa condição. Ao se admitir o limpo, livre de resíduos e/ou composição. Os cimentos que
vedamento hermético como a sujeira, inclusive, microorganis- possuem esta substância podem
razão do sucesso, talvez não se mos. Segundo Souza (1998), apresentar uma maior biocom-
deva indicar um cimento com nessas condições, não se pode patibilidade, porém, isso não
essa característica. Entre outras responsabilizar a infiltração de os torna biocompatíveis. Como
que existem na Endodontia, esta fluidos teciduais pelo insucesso. tudo mais parece ser, o conceito
parece ser uma contradição à Por um lado temos a ques- de biocompatibilidade também
qual se fecharam os olhos e que tão da infiltração apical que, em é relativo. O clínico precisa en-
merece maior atenção. tese, deve ser maior com o Sea- tender que, em contato com os
O vedamento apical her- lapex, por ser mais solúvel (Ono, tecidos periradiculares, todos os
mético, desejo de todo endo- Matsumoto, 1998; Siqueira et al., cimentos são irritantes, inclusive
dontista, não existe (Souza, 1999), do que com um cimento à o Sealapex (Leonardo, 1992; Le-
2003a). A percolação apical é base de óxido de zinco e eugenol onardo et al., 1994; Leonardo,
um fato (Limkangwalmongko et e por outro, temos a sua maior 1996). Em qualquer situação,
al., 1992; Dalat, Spangberg, biocompatibilidade associada ao o extravasamento de material
1994; Smith, Steiman, 1994; seu potencial osteogênico. Como obturador não é um procedi-
Souza, 1999; Oliver, Abbott, não acreditamos ser a infiltração mento biologicamente aceitável.
2001; Souza, Silva, 2001; apical de fluidos teciduais respon- Quando isto ocorre, poderemos
Souza, 2003a; Souza et al., sável pelo fracasso em Endodontia ter agressões em níveis diferentes,
2003b). Sendo assim, todos os e achamos que é muito bem-vindo mas elas existirão com qualquer
tratamentos endodônticos esta- um material que, além de ser que seja o cimento extravasado.
riam fadados ao insucesso, pois, mais biocompatível, apresenta Segundo Serper et al. (1998),
havendo infiltração apical de potencial de indução de minerali- todos os cimentos testados, en-
líquidos teciduais, eles entrariam zação, na escolha de um cimento tre os quais Sealapex e CRCS,
em um processo de estagnação, obturador a nossa recomendação são neurotóxicos. Talvez seja
decomposição e produziriam seria o Sealapex. necessário definir melhor para o
substâncias tóxicas para os te- No entanto, deve ser res- clínico o que é biocompatível. Os
cidos periapicais (Ingle, 1956; salvado que ao lado das carac- cimentos obturadores não são
Nguyen, 1994; Ingle, Bakland, terísticas acima consideradas, biocompatíveis e sim uns mais
1994; Leonardo, Leal, 1998; um detalhe também deve ser biocompatíveis do que outros.
Soares, Goldberg, 2001). To- observado. Alguns clínicos têm Estrela et al. (1996) não en-
davia, o percentual de sucesso relatado dificuldades em controlar contraram diferença significativa
no tratamento de canais com o tempo de presa desse cimento, na dor pós-operatória de casos
polpa viva é elevado. Sabe-se o que lhes tem trazido problemas obturados com Sealapex e Fill
que nesses casos os microor- no momento da obturação. Um Canal (cimento à base de óxido
ganismos não estão presentes, cimento que pode endurecer antes de zinco e eugenol) tratados em
porém, mesmo no tratamento da conclusão da obturação, cer- uma e duas sessões. Por sua vez,
de canais com polpa necrosada tamente oferece grandes chances Holland et al. (1998), em estudo
bem conduzido, ainda que com de interferir de forma decisiva na em cães, demonstraram que as
lesão periapical, o índice de su- qualidade dessa obturação. condições favoráveis ao reparo
cesso é elevado. Em ambas as Um outro aspecto que deve não foram alteradas pela obtu-
situações há infiltração apical. ser considerado refere-se à ração feita com cimento à base
Após o preparo do canal, biocompatibilidade. Talvez deva de óxido de zinco e eugenol,
pressupõe-se que ele esteja em ser dito que nenhum cimento relatando inclusive considerável
sido o mais utilizado. Além disso, passar por uma boa instrumenta- bactérias. Esta, parece óbvio, cabe
a incorporação cada vez maior ção, irrigação efetiva e medicação ao preparo, por meio da ação
do EDTA à terapia endodôntica, intracanal apropriada, conforme conjunta da instrumentação, irri-
pela sua comprovada capacidade descrito anteriormente, microor- gação e medicação intracanal.
de melhorar consideravelmente o ganismos ainda tiverem resistido, Poderíamos então dizer que,
processo de limpeza. A medicação não conseguimos enxergar como por meio desta conjunção das
intracanal, por meio do hidróxido os materiais obturadores podem ações mecânica e química, o
de cálcio, complementa de forma eliminá-los. Mesmo que apresen- preparo exerce um papel mais
decisiva esse controle da infecção tem alguma característica neste voltado ao aspecto biológico
do sistema de canais. sentido, é muito pouco provável de, eliminando a causa da pa-
Após estes três momentos que seja superior ao que se con- tologia pulpar e/ou periradicular,
que se somam no combate siste- segue com o preparo do canal. criar as condições para que o
mático e efetivo aos microorga- Como não concordamos com organismo promova o reparo e
nismos, o canal deve estar pronto a idéia do enclausuramento das que a obturação, apesar do seu
para ser obturado. Pronto para bactérias pela obturação nos ter- reconhecido papel biológico de
ser obturado significa modelado mos em que ele é proposto, não favorecimento do processo de
e limpo, livre de resíduos e/ou esperamos dela esse papel. reparo por dificultar a ocorrência
sujeira, inclusive, microorganis- Parece-nos, portanto, uma da infecção ou reinfecção, seria
mos. Cabe à obturação preservar inversão de papéis atribuir à ob- mais caracterizada pelo aspecto
esse ambiente da melhor maneira turação uma função que não é físico, que é o preenchimento do
possível. Se, nesse momento, após dela, como por exemplo, matar espaço do canal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que foi exposto, apesar do que tem relatado a literatura, a conclusão a que se pode chegar
é que o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico é o preparo do canal. O papel da
obturação é, por meio da ocupação de espaço físico, auxiliar este processo protegendo o sistema
de canais radiculares e os tecidos periradiculares.
Souza RA. A critical view on the role of root canal filling in endodontic treatment. J Brasileiro de Endodontia 2006; 6(23) 29-39.
Endodontic treatment is constituted of some phases and, despite it has been said that root canal filling is
as important as any other one, it has been given special enphasis to root canal filling in literature. Some
authors say it is the most important phase of root canal treatment and the major reason for success.
The fact of well obturated canals has failed and the bad ones has succeded did not changed this feeling
and has not led to a reconsideration of the real role of obturation. The aim of this article is to do a critical
analysis over this theme, considering all the aspects that compounds this moment of root canal therapy.
It can be concluded that root canal preparation is the most important phase of endodontic treatment.
The role of root canal obturation, through filling of physical space, is to protect the root canal sistem
and periradicular tissues.
REFERÊNCIAS
Barbosa HG, Holland R, Souza V. Infiltração marginal coronária em canais radiculares após preparo para pino: influência do tipo de cimento
obturador e de um plug de cimento temporário. JBE 2003; 4(14):208-12.
Cailleteau JG, Mullaney TP. Prevalence of teaching apical patency and various instrumentation techniques in united states dental school. J Endod
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Clintom K, Himel VT. Comparison of a warm gutta-percha obturation technique and lateral condensation. J Endod 2001; 27(11):692-5.
Dalat DM, Spangberg LSW. Comparison of apical leakage in root canals obturated with various gutta-percha techniques using a dye vacuum tracing