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Lei da Pandemia
Título: Continuando os Comentários à “Lei da
Pandemia” (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 -
RJET): Análise dos Novos Artigos
Autoria: Pablo Stolze Gagliano e Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Leitura crítica: Giani Vendramel De Oliveira

Material Complementar

Sumário

1. Introdução
2. Reuniões em Pessoas Jurídicas de Direito Privado (art. 4º)
3. Revisão e resolução contratual em razão da pandemia (arts. 6º e 7º) e Locação
predial urbana (art. 9º)
3.1. Caso Fortuito e retroatividade (art. 6º)
3.2. Imprevisibilidade (art. 7º)
3.3. Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º)

1. Introdução

Em texto anterior1, havíamos comentado, com detalhamento, todos os artigos


de interesse para o Direito Civil e para o Direito Processual Civil na “Lei da Pandemia”
(Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020), também chamada de Lei do RJET (Regime
Jurídico Emergencial e Transitório).

Na ocasião, deixamos de tratar dos artigos que haviam sido vetados pelo
Presidente da República para aguardarmos se o Congresso Nacional rejeitaria ou não
os respectivos vetos.

E o Congresso Nacional o fez parcialmente2. Derrubou o veto presidencial aos


arts. 4º, 6º e 7º (caput e §§ 1º e 2º) e ao caput do art. 9º da referida Lei3.

1
STOLZE, Pablo; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de
10 de junho de 2020 – RJET). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46412/comentarios-a-lei-da-
pandemia-lei-n-14-010-de-10-de-junho-de-2020-rjet. Publicado em junho de 2020.
2
Não se pode deixar de aplaudir aqui a Rede de Direito Civil Contemporâneo na pessoa do Professor Otávio
Luiz Rodrigues Júnior, que, com abnegação, esteve presente insistentemente no Parlamento esclarecendo a
relevância desse diploma para a comunidade jurídica. No mesmo sentido, o Instituto Brasileiro de Direito
Contratual (IBDCont) se posicionou contra o veto presidencial por meio de Nota Técnica, de 12 de junho de
2020, subscrita pelos professores Flávio Tartuce, Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Júnior, José Fernando
Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar.
3
O veto ao parágrafo único do art. 9º da Lei da Pandemia foi mantido.
Com a entrada em vigor desses dispositivos, passamos, neste artigo, a analisá-
los, de modo que, em conjunto com o nosso texto anterior, o leitor terá acesso a um
comentário detalhado de toda a “Lei da Pandemia”45.

2. Reuniões em Pessoas Jurídicas de Direito Privado (art. 4º)


Quadro 1: Art. 4º

Texto do Dispositivo

Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado referidas nos incisos I a III do art. 44
do Código Civil deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias
presenciais até 30 de outubro de 2020, durante a vigência desta Lei, observadas as
determinações sanitárias das autoridades locais.

Elaborado pelo autor.

Natureza Declaratória do Dispositivo

Há leis que não chegam propriamente a inovar o ordenamento jurídico. É o caso


das leis que positivam regras que, mesmo sem texto expresso, já eram admitidas pela
doutrina e pela jurisprudência. Nesses casos, o legislador, por meio da autoridade do
texto legal, consolida a orientação doutrinária e jurisprudencial e, assim, impede
divergências. Trata-se de leis com “natureza declaratória”6.

O dispositivo em pauta engrossa a lista dos exemplos de leis de natureza


declaratória. Ele apenas positiva o que a comunidade jurídica majoritariamente já
entendia, ou seja, que as determinações locais de restrições de circulação ou de

4
No canal “Direito Civil Brasileiro” no YouTube (sob a Coordenação do Professor Rodrigo Toscano), estão
disponíveis os vídeos dos oito painéis Ciclo de Palestras “A Lei 14.010 (RJET) comentada artigo por artigo” com
a participação de grandes juristas que trataram de todos os dispositivos da Lei da Pandemia (inclusive os que
haviam sido vetados). Recomendamos ao amigo leitor visitar esse canal (Disponível:
https://www.youtube.com/watch?v=djSqK-uSQpU).
5
Colhemos ainda o ensejo para agradecer ao professor e amigo Salomão Viana pela revisão do texto.
6
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas da
nova Lei e Análise detalhada das mudanças no Direito Civil e no Registros Públicos. Disponível em:
http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados/. Elaborado em 21 de setembro de 2019.
aglomeração presencial de pessoas também coíbem a realização de assembleias e
reuniões de pessoas jurídicas.

Portanto, o dispositivo analisado deve ser interpretado no sentido de que, se


houver determinação ou norma local restringindo a aglomeração de pessoas, as
reuniões e as assembleias de pessoas jurídicas só podem ocorrer em conformidade
com essas limitações.

Se, todavia, inexistirem restrições por lei, decreto ou ato administrativo local,
emanado da autoridade competente, nada impedirá a realização de conclaves
presenciais das pessoas jurídicas.

Pessoas Jurídicas não citadas no ART. 4º da Lei da Pandemia

Apesar da sua natureza declaratória, o art. 4º da Lei da Pandemia criou um ponto


de “estresse hermenêutico” ao deixar de abranger as organizações religiosas e os
partidos políticos.

Com efeito, o preceito apenas alude a três tipos de pessoas jurídicas (associações
, sociedades e fundações - art. 44, I a III do CC), o que poderia dar ensejo à
interpretação de que outros tipos de pessoas jurídicas (partidos políticos e
organização religiosa) e entes despersonalizados (ex.: fundos de investimento)
estariam autorizados a aglomerar seus membros em reuniões ou em assembleias
mesmo se houver norma local proibitiva.

Nada mais enganoso!

A proibição de aglomeração, de acordo com a diretriz da norma local, tem de ser


observada por todas as pessoas jurídicas.

Diante disso, indaga-se: por que o legislador não listou todas as pessoas jurídicas
no art. 4º da Lei da Pandemia?

A ausência da EIRELI (art. 44, VI, CC) é compreensível, por se tratar de ente
unipessoal. Mas e as demais pessoas?

A explicação aparentemente centra-se na confusão que a redação dúbia do


dispositivo causou entre os Deputados e os Senadores durante a fase do processo
legislativo.

Muitos parlamentares estavam a entender que o dispositivo se endereçava não


apenas aos conclaves dos membros da pessoa jurídica, mas também a eventuais
encontros de não membros, tudo porque o preceito aludia não apenas a
“assembleias”, mas também a “reuniões”.

Isso levou os parlamentares a excluírem as organizações religiosas e os partidos


políticos do texto inicialmente proposto.

O motivo da exclusão é o de que o dispositivo poderia dar a entender que os


templos religiosos (igrejas, mesquitas, terreiros etc.) não poderiam realizar “reuniões”
com seus fiéis e que os partidos políticos não poderiam realizar protestos
eventualmente necessários7. Os parlamentares temiam que o preceito ferisse o
exercício da liberdade religiosa e política.

Sob essa ótica, vemo-nos compelidos a concordar que o dispositivo em pauta


merecia ser vetado, pois, além de desnecessário (por conta de sua natureza
declaratória), consagrou uma redação capaz de criar confusão.

Seja como for, esclareça-se que, quando o dispositivo menciona o verbete


“reuniões”, na verdade, ele se refere a conclaves de membros da própria pessoa
jurídica para a deliberação de questões estritamente relacionadas ao seu
funcionamento, tudo com respeito ao quorum de votação previsto na lei ou no ato
constitutivo (ex.: deliberar sobre venda de imóveis), e não aos “serviços” prestados
ao público (ex.: cerimônias religiosas feitas com os fiéis).

De qualquer forma, independentemente da existência ou não do dispositivo,


todas as pessoas jurídicas, inclusive partidos e organizações religiosas, devem, por
certo, observar, em respeito ao resguardo da saúde pública, as normas locais
restritivas referentes a aglomerações no exercício da sua atividade perante terceiros.

Situação após 30 de outubro

Outra tentação a que está exposto o leitor ao ler o dúbio texto do art. 4º da Lei
da Pandemia é a de entender que, como o referido dispositivo limitou a observância
das normas locais de restrição de aglomeração de pessoa até 30 de outubro de 2020,
as pessoas jurídicas teriam salvo-conduto para desrespeitar as normas locais após
essa data.

Ledo engano!

7
A propósito, a professora Karina Fritz, na sua rica coluna “German Report”, noticiou que, na Alemanha, o
Tribunal Constitucional garantiu o direito de manifestação mesmo em tempo de pandemia (FRITZ, Karina.
Tribunal Constitucional alemão garante direito de manifestação mesmo em tempos de
coronavírus. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/325145/tribunal-
constitucional-alemao-garante-direito-de-manifestacao-mesmo-em-tempos-de-coronavirus. Publicado em: 22
de abril de 2020).
A observância das leis locais pelas pessoas jurídicas existe independentemente
do art. 4º da Lei da Pandemia, que, como já dito, tem natureza declaratória.

30 de outubro ou 31 de dezembro?

O caput do art. 7º da Lei nº 14.030/20208 guarda aparente antinomia com o art.


4º da Lei da Pandemia. Aquele fixa 31 de dezembro de 2020 como marco final para
as restrições à realização de reuniões e de assembleias presenciais, ao passo que este
último elege a data de 30 de outubro de 2020.

O art. 4º da Lei da Pandemia entrou em vigor posteriormente ao caput do art.


7º da Lei nº 14.030/2020, de maneira que este último preceito poderia ser tido por
revogado.

Logo, prevalece o prazo de 30 de outubro de 2020 como marco final.

Isso, porém, não resultará em nenhuma consequência prática, pois, conforme já


realçado, as pessoas jurídicas têm de respeitar as normas locais que estabelecem
restrição de aglomeração de pessoas independentemente de qualquer lei federal.

Fique claro que não houve revogação do parágrafo único do art. 7º da Lei nº Lei
nº 14.030/2020, que prorroga, por sete meses, os prazos de assembleias e de
mandatos de dirigentes de associações, fundações e de sociedades (que não sejam
limitadas, anônimas ou cooperativas9), além de ratificar a autorização de virtualização
das assembleias na forma do art. 5º da Lei da Pandemia.

Como realizar as assembleias e as reuniões?

Havendo restrições locais à realização de conclaves presenciais, as pessoas


jurídicas deverão se valer da via digital.

Não importa se há autorização no contrato social ou no estatuto social, pois, ao


menos até 30 de outubro de 2020, as reuniões e as assembleias virtuais de pessoas
jurídicas estão autorizadas pelo art. 5º da Lei da Pandemia (que tivemos a

8
Art. 7º As associações, as fundações e as demais sociedades não abrangidas pelo disposto nos arts. 1º, 4º
e 5º desta Lei deverão observar as restrições à realização de reuniões e de assembleias presenciais até 31 de
dezembro de 2020, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais.
Parágrafo único. Aplicam-se às pessoas jurídicas de direito privado mencionadas no caput deste artigo:
I – a extensão, em até 7 (sete) meses, dos prazos para realização de assembleia geral e de duração do mandato
de dirigentes, no que couber;
II – o disposto no art. 5º da Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020.
9
Para sociedades anônimas, limitadas e cooperativas, a prorrogação de prazos de assembleias e de mandatos
foi disciplinada pelos arts. 1º ao 6º da Lei nº 14.030/2020.
oportunidade de comentar minuciosamente em nosso artigo anterior10, ao qual
reportamos o amigo leitor).

Nos casos de cooperativas, sociedades anônimas e sociedades limitadas, a


autorização de assembleias virtuais não foi submetida a nenhum prazo final e ocorrerá
na forma de ato infralegal a ser editado, tudo conforme os seguintes dispositivos
acrescidos pela Lei nº 14.030/2020:

a) o novo art. 43-A da Lei do Cooperativismo (Lei nº 5.764/1971);

b) o novel parágrafo único do art. 121 e os §§ 2º e 2º-A do art. 124 da Lei de


Sociedade Anônima (Lei nº 6.404/1976); e

c) o novo art. 1.080-A do Código Civil.

3. Revisão e resolução contratual em razão da pandemia (arts. 6º e 7º) e


Locação predial urbana (art. 9º)

3.1. Caso Fortuito e retroatividade (art. 6º)

Quadro 2: Art. 6º

Texto do Dispositivo

Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas


execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão
efeitos jurídicos retroativos.
Elaborado pelo autor.

Alcance da norma

O dispositivo possui natureza declaratória, porque positiva o que a doutrina e a


jurisprudência majoritária já entendiam, tudo com o objetivo de garantir segurança
jurídica e prevenir divergências.

10
STOLZE, Pablo; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010,
de 10 de junho de 2020 – RJET). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46412/comentarios-a-lei-da-
pandemia-lei-n-14-010-de-10-de-junho-de-2020-rjet. Publicado em junho de 2020.
O preceito deixa claro que os transtornos causados pela pandemia nos contratos,
ainda que possam ser caracterizados como caso fortuito ou força maior, não podem
ser invocados para atingir situações jurídicas anteriores à própria pandemia.

Em outras palavras, os transtornos da pandemia não poderiam justificar


problemas ocorridos anteriormente, durante a execução contratual.

Por exemplo, num contrato de locação, se o inquilino deixou de pagar o aluguel


de novembro de 2019, ele não poderá, em hipótese alguma, invocar a pandemia que
só atingiu o Brasil a partir de fevereiro de 2020 como um evento fortuito ou de força
maior. Assim, não haveria como ele exculpar-se em relação àquela prestação
inadimplida ou isentar-se de continuar suportando os encargos moratórios
respectivos.

Por fim, é recomendável lembrar não se poder afirmar que a pandemia


repercutiu, necessariamente, em toda e qualquer relação contratual.

A pandemia gerou, sem dúvida, várias repercussões negativas (e ainda poderá


acarretar outras), como: desvalorização monetária, restrição de circulação de
pessoas, fechamento de estabelecimentos, desabastecimento de determinados
produtos etc.

Esses vários desdobramentos, por serem oriundos de uma circunstância


absolutamente inesperada, surpreenderam os sujeitos de várias relações contratuais.

Podemos citar exemplos baseados em casos concretos: (1) muitas lojas ficaram
proibidas de funcionar por medidas de isolamento e de quarentena, e, assim, ficaram
sem chance de obter faturamento para pagar o aluguel; (2) vários profissionais
autônomos ficaram sem cliente algum durante o período de isolamento e de
quarentena e, assim, ficaram sem dinheiro para pagar aluguel; (3) empresários que
haviam se comprometido a pagar uma dívida não conseguiram honrar seu
compromisso por haverem sido surpreendidos pela crise econômica causada pela
pandemia etc.

Esse cenário excepcional gerou, para usar as palavras do art. 6º da Lei do RJET,
várias “consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) na
execução dos contratos”.

Dentre esses cenários possíveis, destacamos:

(1) a impossibilidade absoluta (fortuita) do cumprimento da obrigação,


conduzindo à resolução contratual;

(2) desequilíbrio da base contratual, com onerosidade para uma das partes,
conduzindo à resolução ou à revisão contratual (aplicação da teoria da
imprevisão – art. 317 e arts. 478 a 480, CC - ou a aplicação da teoria da
onerosidade excessiva – art. 6º, V, do CDC)11;

(3) a exceção de inseguridade (art. 477 do CC).

Quanto à primeira consequência, a depender do tipo de contrato12, justifica-se


a dissolução contratual, sem imputação de responsabilidade civil13 (art. 393, caput,
do CC). É o caso do contrato firmado com agência de turismo, cujo objeto era a venda
de pacote de lua-de-mel em abril ou maio de 2020, em plena “janela pandêmica”.

No tocante às segunda e terceira consequências, não sendo o caso de resolução,


a pandemia é fato superveniente que pode ocasionar a revisão do contrato, dado o
impacto na sua base econômica objetiva.

À luz do art. 6º da Lei da Pandemia, essas supracitadas consequências jurídicas


decorrentes da pandemia não devem ser aplicadas com “efeitos jurídicos retroativos”.
Aliás, mesmo sem esse dispositivo, tal deveria ter sido observado, porque o preceito
apenas positiva a doutrina e a jurisprudência anterior.

A propósito, há vários artigos doutrinários publicados por respeitados


doutrinadores esclarecendo essas consequências jurídicas. Citamos, ilustrativamente,
alguns deles em nota de rodapé14.

11
Leia-se, ainda, a respeito da “frustração do fim do contrato”: Professor Giovanni Nanni: NANNI, Giovanni
Ettore. Frustração do fim do contrato: análise de seu perfil conceitual. In: Revista Brasileira de Direito Civil
- RBDCivil, Belo Horizonte, v. 23, jan./mar. 2020, pp. 39-56 (Disponível em:
https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/download/437/344).
12
Vários contratos não sofreram impactos com a pandemia, como o contrato de serviço de internet (que
aumentou seu faturamento com as medidas de quarentena e de isolamento decorrentes de pandemia). Nesses
casos, não há falar em caso fortuito ou força maior, conceitos que dependem da vinculação com o caso
concreto. O professor Salomão Resedá faz oportuna exortação contra a banalização do conceito de força maior
neste artigo: RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil
para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse
direito? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323958/todos-querem-
apertar-o-botao-vermelho-do-art-393-do-codigo-civil-para-se-ejetar-do-contrato-em-razao-da-covid-19-mas-a-
pergunta-que-se-faz-e-todos-possuem-esse-direito. Publicado em 8 de abril de 2020.
13
Sobre isso, chamamos a atenção para este artigo do Professor Marcelo Matos Amaro da Silveira: SILVEIRA,
Marcelo Matos Amaro da. Encargos moratórios, coronavírus e a boa-fé objetiva. Disponível em:
https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/823561131/encargos-moratorios-coronavirus-e-a-boa-fe-
objetiva. Elaborado em 22 de março de 2020.
14
Muitos artigos tratam das várias alternativas jurídicas para sustentar a revisão ou a resolução contratual,
como estes: (1) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de
contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/321885/o-coronavirus-a-quebra-antecipada-nao-culposa-de-contratos-
e-a-revisao-contratual-o-teste-da-vontade-presumivel. Acesso em 17 de março de 2020; (2) TARTUCE, Flávio.
O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e
solidariedade. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322919/o-
coronavirus-e-os-contratos-extincao-revisao-e-conservacao-boa-fe-bom-senso-e-solidariedade. Acesso em 27
de março de 2020; (3) SIMÃO, José Fernando. "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força
maior e pensem na base do negócio. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-
3.2. Imprevisibilidade (art. 7º)
Quadro 3: Art. 7º

Texto do Dispositivo

Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317,
478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a
desvalorização ou substituição do padrão monetário.
§ 1° As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de
1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.
§ 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às
relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas
exclusivamente entre empresas ou empresários.

Elaborado pelo autor.

Alcance da Norma

O preceito positiva a doutrina e a jurisprudência já pacificadas acerca da


inviabilidade de considerar oscilações cambiais e monetárias como fatos imprevisíveis
autorizadores da resolução ou revisão contratual.

contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covid-19--esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-
negocio .Acesso em 7 de abril de 2020; (4) SIMÃO, José Fernando. Pandemia e locação – algumas
reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário
com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325272/pandemia-e-locacao-algumas-reflexoes-
necessarias-apos-a-concessao-de-liminares-pelo-poder-judiciario-um-dialogo-necessario-com-aline-de-
miranda-valverde-terra-e-fabio-azevedo. Acesso em 24 de abril de 2020; (5) FROTA, Pablo Malheiros da Cunha;
BARROSO, Ramiro Freitas de Alencar. Impactos nos compromissos de compra e venda em
incorporação imobiliária. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/opiniao-impactos-
compromissos-compra-venda-imobiliaria. Acesso em: 24 de março de 2020; (6) SCHREIBER, Anderson.
Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar
antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-
contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-
ou-revisional. Acesso em 23 de março de 2020; (7) SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia.
Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-
novo-coronavirus. Acesso em: 25 de março de 2020.
De fato, os arts. 317, 478, 479 e 480 do CC consagram a teoria da imprevisão,
à luz da qual é cabível a revisão ou a resolução de um contrato se estiverem presentes
os seguintes requisitos: (1) fato superveniente, imprevisível e extraordinário; (2)
prestação manifestamente onerosa; e (3) extrema vantagem para a outra parte.

O art. 7º apenas faz um oportuno esclarecimento acerca do alcance do requisito


do “fato imprevisível”, excluindo daí as oscilações monetárias ou cambiais. Ele tem,
portanto, a natureza de uma norma interpretativa.

À semelhança do que já foi dito quanto ao art. 6º, o art. 7º - apesar de não ser
aplicável a contratos anteriores em virtude da vedação à retroatividade mínima diante
de ato jurídico perfeito - tem a importante finalidade de servir de guia interpretativo
de modo a evitar insegurança jurídica.

A derrubada do veto a esse dispositivo foi muito oportuna por deixar aos juristas
um vetor uniformizador na aplicação do Direito.

Em verdade, o art. 7º é mera positivação da jurisprudência anterior. A intenção


do legislador não foi inovar nem mudar a jurisprudência. Isso é reforçado por uma
interpretação histórica, pois o parecer da Senadora Simone Tebet, durante o processo
legislativo da Lei do RJET no Senado, foi expresso nesse sentido ao justificar o texto
do art. 7º com estas palavras, in verbis15:
O art.7º não inovou quanto à jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça e das cortes brasileiras desde a década de 1930, após o surgimento
dos primeiros casos de revisão contratual em virtude da quebra da Bolsa de
1929. São acórdãos como este: “o REsp 87226/DF, rel. Min. Costa Leite, 3.ª
T., j. 21.05.1996, DJ 05.08.1996: “Civil. Teoria da imprevisão. A escalada
inflacionaria não é um fator imprevisível, tanto mais quando avençada pelas
partes a incidência de correção monetária. Precedentes. Recurso não
conhecido”.”
Invoco a autoridade do ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior
Tribunal de Justiça, em seu artigo “Revisão judicial de contratos: diálogo entre
a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, publicado na
Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1, p. 27 – 39, out – dez, 2014:

“Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil adotam


marcos teóricos diferentes para justificar uma eventual intervenção judicial
para a revisão ou resolução dos contratos. Essa diferenciação de fundamentos
não é um expediente de puro interesse acadêmico. Ela conserva grande
utilidade prática e impede a inadequada aplicação dos dispositivos de ambos
os códigos, além de restringir os efeitos da insegurança jurídica, tão danosa
à economia dos contratos. Esse tema presta-se, de modo especialmente
fecundo, ao diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, o que se tem
demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais.

15
Parecer disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=8085183&ts=1585934134399&disposition=inline. Acesso em 3 de abril de 2020.
(...) Parece ser mais adequado definir a imprevisão pelo que ela não é,
admitindo-a como um filtro para se restringir as possibilidades de o juiz
intervir no contrato. Trata-se de entendimento doutrinário e que se baseia em
pesquisa jurisprudencial, que revelou a existência de um grupo de fenômenos
macroeconômicos que os tribunais, ao longo do século XX, definiram como
previsíveis, como a inflação, a mudança de moeda e o aumento da taxa de
juros.”

Mais do que prestigiar a doutrina e a jurisprudência, o art.7º transmite


duas mensagens à sociedade e ao mercado: caso ocorram os fenômenos nele
descritos, que hoje não estão presentes na Economia, mas poderão ocorrer,
como se deu em 1999 na crise cambial daquele ano, as partes iguais e
paritárias não poderão alegar que esses fatos eram imprevisíveis. A outra
mensagem é a de que, para consumidores e locatários, partes vulneráveis,
não será exigido esse requisito, o que protege como maior eficiência esse
segmento da sociedade. É nessa mesma linha que o ministro Dias Toffoli já
defendeu no texto “Revisão contratual e boa-fé: confronto inevitável?”,
publicado em Temas atuais e polêmicos na Justiça Federal. Salvador:
JusPODIVM, 2018, p. 189-203.

Ademais, o art. 7º não poderia ser aplicado para contratos anteriores em razão
da vedação à retroatividade (ainda que mínima) diante de atos jurídicos perfeitos.
Ele, no entanto, por ser a positivação de doutrina e jurisprudência majoritárias
anteriores, pode servir de guia interpretativo.

Outro ponto ainda deve ser destacado.

O art. 7º corretamente ressalva os contratos consumeristas. De fato, a teoria da


imprevisão consagrada nos arts. 317, 478, 479 e 480 do CC não se aplica aos
contratos de consumo, pois, para esses, o art. 6º, inciso V, do CDC adotou a teoria
do rompimento da base objetiva do contrato, à luz da qual a resolução ou a revisão
do contrato consumerista se satisfaz com estes dois requisitos: (1) fato superveniente;
e (2) prestação manifestamente onerosa ao consumidor. Em relação de consumo, não
há necessidade de o fato ser imprevisível, portanto. Nessa linha, também se utiliza a
expressão, no Direito do Consumidor, “teoria da onerosidade excessiva”. Desse modo,
inflação ou variação cambial podem, em contratos de consumo, ensejar a revisão ou
a resolução contratual se acarretarem onerosidade excessiva ao consumidor.

Por fim, o art. 7º não abrange hipóteses de hiperinflação ou de


hiperdesvalorização cambial, assim entendidos aqueles casos que fogem
demasiadamente da previsibilidade esperada do homem comum. O art. 7º da Lei do
RJET apenas exclui do campo semântico da imprevisibilidade a inflação e a
desvalorização cambial, e não a hiperinflação nem a hiperdesvalorização cambial.
Essas hipóteses caracterizam-se como fatos imprevisíveis para efeito de aplicação da
teoria da imprevisão prevista no Código Civil. Por exemplo, ninguém espera que, por
força da pandemia, haja inflação a ponto de uma prestação mensal de R$ 1.000,00
sujeita a índice de correção monetária seja, “da noite para o dia”, catapultada para a
cifra de um milhão de reais. Nesses casos, não há uma inflação, e sim uma
hiperinflação, a qual poderá ser considerada fato imprevisível para efeito de revisão
ou resolução contratuais com fulcro na Teoria da Imprevisão (arts. 317 e 478 do CC).

Situação da locação predial urbana

Cabe fazer uma advertência em contratos de locação predial urbana regida pela
Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), pois o § 1º do art. 7º da Lei do RJET ressalva
esses tipos de contratos. Há certa imprecisão redacional nesse dispositivo, o que pode
ser corrigida pela via da interpretação.

É que a Lei nº 8.245/91, que trata das locações de imóveis urbanos, não contém
regras específicas para revisão contratual por fatos supervenientes e imprevisíveis que
tornem manifestamente desproporcional a prestação. No regime jurídico específico
das locações de imóveis urbanos, a revisão contratual se funda no próprio CC (arts.
317, 478, 479 e 478 do CC).

Além da atualização monetária anual do aluguel (que sequer pode ser


considerada como uma revisão contratual por ser, na verdade, cumprimento de
cláusula contratual), a única revisão contratual tratada na Lei do Inquilinato com
alguma conexão com o tema em pauta não diz respeito a fatos imprevisíveis, e sim a
um fato absolutamente previsível: a oscilação positiva ou negativa do valor de
mercado do aluguel ao longo do tempo.

A Lei do Inquilinato prevê o direito de o locador ou o inquilino, após três anos,


por meio de uma ação revisional, pleitear o alinhamento do valor pactuado do aluguel
ao atual valor de mercado (arts. 19, 54-A, § 1º, 68 e seguintes da Lei do Inquilinato).
Esse direito à revisão não depende de a variação do valor de mercado do aluguel
haver decorrido de um fato imprevisível ou não, de modo que o caput do art. 7º da
Lei do RJET (que trata apenas da definição de fato imprevisível) é irrelevante para
esse efeito.

Daí se segue que há certa imprecisão redacional no § 1º do art. 7º da Lei do


RJET ao fazer alusão a supostas “regras sobre revisão contratual previstas (...) na Lei
nº 8.245, de 18 de outubro de 1991”.

Essa imprecisão, porém, não obscurece o real sentido do preceito, que é o de


estabelecer que, em contratos de locação, para os quais é aplicável a teoria da
imprevisão prevista no CC, a desvalorização da moeda por inflação, variação cambial
ou substituição da moeda (como decorrência da Covid-19) pode ser considerada um
fato imprevisível e, portanto, pode ensejar a revisão ou a resolução do contrato de
locação.
Em outras palavras, o § 1º do art. 7º apenas quis excepcionar a interpretação
legal prevista no seu caput para os contratos de locação e de consumo.

Portanto, se o aluguel se tornar muito oneroso para o inquilino em razão de uma


inflação extraordinária causada pela Covid-19, é cabível a resolução ou revisão
contratual com base na teoria da imprevisão do Código Civil.

Realmente, é digno de elogios o § 1º do art. 7º da Lei do RJET, pois, à


semelhança do que sucede com os consumidores, o inquilino também é, em geral,
parte vulnerável no contrato de locação e, por isso, deve ser protegido de correções
monetárias que tornem o aluguel manifestamente desproporcional.

Por fim, entendemos que a regra acima também pode beneficiar o locador. Se
eventualmente o valor do aluguel se tornar insignificante diante de uma
desvalorização monetária ou cambial, ele também poderá pleitear a resolução ou a
revisão contratual. Em tal caso, o juiz deve preferir a revisão do contrato à sua
resolução, diante do princípio da conservação do negócio jurídico.

Breve reflexão quanto ao §2º DO ART. 7º

Em nossa visão, trata-se de norma desconectada da própria natureza


emergencial e transitória da “Lei da Pandemia”.

A norma não inova, na medida em que salienta a aplicação do Código Civil para
relações civis e empresariais.

3.3. Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º)


Quadro 4: Art. 9º

Texto do Dispositivo

Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de
despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245,
de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas
a partir de 20 de março de 2020. (VETADO)
Elaborado pelo autor.

Do alcance limitado do ART. 9º


O art. 9º não proíbe o despejo liminar de um modo geral, senão em certas
hipóteses.

Em razão das medidas adotadas para conter a propagação da pandemia no


Brasil, passou a haver dificuldade operacional na locação de imóveis, pois os
proprietários (ou seus corretores) passaram a evitar contatos presenciais com
interessados por conta do risco de contaminação viral. Permitir o despejo nesse
período poderia levar o inquilino a ficar sem um lugar para morar, pois seria difícil
conseguir outro imóvel para alugar nesse período.

Ademais, admitir o despejo, sem restrição, acabaria por prejudicar as medidas


de isolamento social determinadas pelos governos locais nesse período de pandemia.

Acresça-se a isso que a crise financeira causada pelo coronavírus atingiu também
muitos inquilinos, subtraindo-lhes a capacidade de honrar o valor dos aluguéis.

Essa dura realidade acometeu vários países no mundo.

Nesse contexto, a Alemanha foi bem intervencionista e proibiu o despejo por


inadimplemento de aluguéis entre abril e junho de 2020, visto que o inquilino ganhou
o direito de adiar o pagamento dessas parcelas até dois anos depois do fim desse
prazo, ou seja, até 30 de junho de 202216.

A Argentina seguiu caminho similar, vedando o despejo e assegurando o direito


ao parcelamento, em seis parcelas mensais iguais, de aluguéis vencidos entre 29 de
março e 30 de setembro, desde que se tratasse de locações socialmente sensíveis, a
exemplo daquelas que representam a única moradia do inquilino17.

Alguns Estados norte-americanos, como o de Nova Iorque18 e o da Flórida19,


também vedaram o despejo.

16
Vide: (1) FRITZ, Karina. Alemanha aprova pacote de mudanças legislativas contra a crise do
coronavírus. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322781/alemanha-aprova-pacote-de-
mudancas-legislativas-contra-a-crise-do-coronavirus. Publicado em 26 de março de 2020; (2) BARBERS, Gregor.
Changes in tenancy law as a result of the Covid-19 pandemic. Disponível em:
https://www.noerr.com/en/newsroom/news/changes-in-tenancy-law-as-a-result-of-the-covid-19-pandemic.
Publicado em 2 de abril de 2020.
17
Trata-se do Decreto nº 320/2020, do Presidente da Argentina (Disponível em:
https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/227247/20200329. Acesso em 14 de maio de 2020).
18
Disponível em: https://www1.nyc.gov/content/tenantprotection/pages/covid19-home-quarantine. Acesso
em 8 de junho de 2020.
19
Até 2 de junho de 2020, está proibido o despejo na Flórida, conforme Ordem Executiva 20-94 e a Ordem
Executiva 20-121, do Governador da Flórida (Disponível em: https://www.flgov.com/wp-
content/uploads/orders/2020/EO_20-121.pdf e https://www.flgov.com/wp-
content/uploads/orders/2020/EO_20-94.pdf.
Na Inglaterra, também se restringiu o despejo, suspendendo, por 90 dias, a
tramitação dos processos de despejo20.

Não se trata de uma solução simples, pois também há um grande número de


locadores que necessita da renda do seu único imóvel locado para sobreviver.

Talvez por isso, o art. 9º da Lei do RJET preferiu ser mais contido, proibindo a
tutela liminar em situação específica: o despejo concedido no início da ação sem
citação prévia da outra parte ("inaudita altera pars”) e com caução de três aluguéis,
em algumas hipóteses listadas no § 1º do art. 59 da Lei de Inquilinato.

As situações do § 1º do art. 59 da Lei do Inquilinato que não mais autorizam a


liminar, até 30 de outubro de 2020, nos termos do dispositivo ora analisado, são as
seguintes:

a) por inadimplemento de aluguéis, desde que haja uma destas situações:


a.1) o locador não dispor de nenhuma garantia, como uma fiança (art. 59,
§ 1º, IX, Lei do Inquilinato) ou

a.2) acordo escrito com duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o
prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do
instrumento (art. 59, § 1º, I);
b) por extinção do contrato de trabalho do inquilino, nos casos de locação
profissional, ou seja, de locação vinculada ao emprego do inquilino (59, § 1º,
II);
c) por haver sublocatário no imóvel após a extinção do contrato de locação (art.
59, § 1º, V,);
d) pelo término do prazo notificatório previsto no parágrafo único do art. 40,
sem apresentação de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do
contrato (art.59, VII);
e) pelo fim do prazo do contrato de locação comercial, com ação proposta nos
trinta dias seguintes ao fim desse prazo ou de notificação resilitória (art. 59,
VIII).

Como se vê, trata-se de hipóteses não tão frequentes.

A maior parte das ações de despejo decorrem de inadimplemento de aluguéis


em contratos de locação com garantias (fiança, por exemplo), hipóteses essas que já
não admitiam a tutela provisória "inaudita altera pars" do art. 59, § 1º, da Lei do
Inquilinato. O que fez o legislador foi proibir a tutela provisória também para as
locações sem garantia, nas hipóteses pouco usuais listadas acima.

20
Disponível em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2020/7/contents. Acesso em 13 de abril de 2020.
É ou não cabível proibir despejo em outras hipóteses?

Em que pese o art. 9º da Lei do RJET se limitar a alguns casos específicos de


liminar de despejo, indaga-se: o juiz pode ou não proibir outros despejos (como o
decorrente de um cumprimento provisório de sentença) com base no ordenamento
jurídico atual, valendo-se, por exemplo, de princípios como o da dignidade da pessoa
humana?

O tema comporta reflexão e, certamente, discussões.

Entendemos que, em geral, como o art. 9º da Lei do RJET se restringe a proibir


a tutela provisória "inaudita altera pars" em apenas algumas hipóteses do art. 59, §
1º, da Lei de Inquilinato, o juiz deve abster-se de alargar, com base em princípios, a
vedação de despejo.

Afinal, o Judiciário precisa atentar para a opção construída pelo Legislativo, sob
pena de incorrer em indevido ativismo judicial. O legislador, na sua competência
constitucional dentro do arranjo democrático brasileiro, deu concreção aos valores
constitucionais, de modo que não é adequado que o juiz se afaste dessa opção
legislativa por mera preferência pessoal.

De fato, pelo que se extrai do processo legislativo, o legislador preferiu ser


contido em matéria de despejo, porque, embora o inquilino esteja em situação
sensível nesse período excepcional da pandemia, também muitos locadores estão
combalidos financeiramente, especialmente aqueles que dependem do aluguel como
sua única fonte de sobrevivência. O legislador buscou equilibrar, na balança da
Justiça, os infortúnios das duas partes.

Mas o Direito não é uma ciência exata.

Em situações justificadas e excepcionais, como aquela em que o inquilino esteja


submetido a um delicado tratamento de saúde, o juiz poderia cogitar admitir,
fundamentadamente, uma interpretação mais "elástica" da norma legal.

Caberá ao juiz a tarefa árdua de “manusear cristais” ao enfrentar os vários casos


concretos que deverão aportar no Judiciário.

Direito ao parcelamento ou À moratória

O legislador expressamente não quis estabelecer nenhum direito ao


parcelamento ou à moratória de aluguéis durante o período da pandemia. E isso pode
ser constatado ao se observar o próprio processo legislativo da Lei do RJET.

Quando nasceu o Projeto de Lei do RJET (Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, do


Senador Anastasia), havia previsão expressa do direito do inquilino de suspender o
pagamento dos alugueis devidos entre março e outubro de 2020 e de parcelá-lo em
cinco vezes21.

O Plenário do Senado, porém, por meio do parecer da Senadora Simone Tebet,


excluiu esse dispositivo sob o argumento de que não conviria conceder uma moratória
ampla e irrestrita a todos os inquilinos, especialmente porque o ordenamento jurídico
já dispõe de ferramentas para, a depender do caso concreto, permitir que o juiz revise
o contrato e até prorrogue o pagamento de aluguéis. Veja este excerto do parecer da
Senadora Tebet22:
A proposição poderia ter adotado o caminho da moratória geral dos
contratos, dilatando prazos e restringindo direitos dos credores. Esse caminho
não foi adotado porque o Direito brasileiro, tanto no Código Civil quanto no
Código de Defesa do Consumidor, já possui mecanismos muito eficientes para
permitir a revisão judicial dos contratos. O projeto orienta-se para impedir que
haja uma ampla judicialização por uso indevido da pandemia como uma cláusula
geral de liberação dos deveres das partes. Medidas protetivas no âmbito de
contratos de serviços regulados (transportes, telecomunicações, gás, energia
elétrica e água) podem e devem ser adotadas, mas é fundamental que as
agências reguladoras liderem esse processo, dada a existência de inúmeras
implicações no equilíbrio econômico-financeiro de tais ajustes.
(...)
O art. 10 merece ser suprimido por prever uma presunção absoluta de que
os inquilinos não terão condição de pagar os aluguéis e por desconsiderar que
há casos de locadores que sobrevivem apenas dessas rendas. O ideal é deixar
para as negociações privadas esse assunto, com a lembrança de que o
ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do
caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos arts. 317 e 478 do Código
Civil, ou de dispositivos específicos da Lei do Inquilinato.

Ainda que assim não fosse, caso a Lei do RJET houvesse previsto uma moratória
geral ou um direito ao parcelamento, haveria forte obstáculo jurídico a que essa
disposição legal fosse aplicada a contratos de locações celebrados anteriormente à
entrada em vigor da lei emergencial. É que aí haveria uma norma de Direito Material,
que, como se sabe, não pode atingir nem mesmo efeitos futuros de ato jurídico
perfeito pretérito: é vedada a retroatividade mínima diante desse óbice
constitucional23.

21
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=8081773&ts=1586188345382&disposition=inline.
22
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=8088980&ts=1586188350305&disposition=inline.
23
A propósito da retroatividade mínima diante de atos jurídicos perfeito, reportamo-nos a este artigo:
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Retroatividade das leis: a situação das leis emergenciais
em tempos de pandemia. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Elaborado em
17 de junho de 2020.
Portanto, a possibilidade ou não de se conceder uma moratória ou um
parcelamento de aluguéis ao inquilino deverá ser analisada em cada caso concreto
pelo juiz, valendo-se das ferramentas já disponíveis no ordenamento jurídico, como a
teoria da imprevisão, a quebra da base objetiva do contrato, a frustração do fim do
contrato etc.

E, nesse contexto, uma solução bem ponderável foi aventada pelos professores
Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício Bunazar, os quais, por meio de uma
sugestão de redação ao projeto de lei que gerou a Lei do RJET24, cogitaram a
possibilidade de aplicar, por analogia, em favor do inquilino, o direito previsto no art.
916 do Código de Processo Civil (CPC).

Esse dispositivo garante ao executado o direito a, após o pagamento de uma


“entrada” de 30%, parcelar o restante em seis parcelas com correção monetária e
juros de 1% a.m.

Entendemos que, a depender do caso concreto, os juízes poderiam aplicar essa


solução do art. 916 do CPC como uma forma de revisão contratual a fim de garantir
ao inquilino que foi atingido pelos transtornos econômicos causados pela pandemia
um alívio razoável para honrar a sua dívida.

Manutenção ao veto do parágrafo único

Observe, nosso estimado leitor, que o parlamento brasileiro, a despeito de haver


derrubado o veto ao caput do art. 9º ora estudado, manteve o do seu parágrafo único.

De acordo com o texto normativo do parágrafo vetado, o disposto no caput do


art. 9º seria aplicado apenas às ações de despejo ajuizadas a partir de 20 de março
de 2020.

Com a manutenção do veto, as hipóteses de vedação à tutela provisória na ação


de despejo, previstas no caput do art. 9º ora estudado, deverão ser observadas
mesmo em face de demandas propostas antes de 20 de março de 2020.

Imprimiu-se, com isso, por via oblíqua, maior alcance temporal à norma
constante no art. 9º da Lei do RJET.

Todavia, caso a tutela provisória já haja sido apreciada - o que é provável,


mormente tendo em vista demandas anteriores a 20 de março -, não se pode
pretender aplicar retroativamente a nova regra limitativa do art. 9º da Lei do RJET.

24
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; BUNAZAR, Maurício. Da necessidade de uma norma
emergencial sobre locação imobiliária em tempos de pandemia. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/326483/da-necessidade-de-uma-norma-
emergencial-sobre-locacao-imobiliaria-em-tempos-de-pandemia. Acesso em 11 de maio de 2020.

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