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INADIMPLEMENTO ABSOLUTO DAS OBRIGAÇÕES

(Pablo Stolze)

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS: O CICLO VITAL DA OBRIGAÇÃO


Conforme já vimos durante todo o estudo da matéria, a obrigação — entendida como a relação
jurídica patrimonial que vincula o credor ao devedor — é um liame economicamente funcional, por
meio do qual se efetiva a circulação de bens e direitos no comércio jurídico.
De tal forma, dada a sua dinâmica essencial, a relação obrigacional obedece a um ciclo que se
encerra com a sua extinção, que se dá, geralmente, por meio do pagamento.
Entretanto, pode ocorrer que a obrigação não seja cumprida, em razão de atuação culposa ou de fato
não imputável ao devedor.
Se o descumprimento decorreu de desídia, negligência ou, mais gravemente, por dolo do devedor,
estaremos diante de uma situação de inadimplemento culposo no cumprimento da obrigação, que
determinará o consequente dever de indenizar a parte prejudicada.
Por outro lado, se a inexecução obrigacional derivou de fato não imputável ao devedor, enquadrável
na categoria de caso fortuito ou força maior, configurar-se-á o inadimplemento fortuito da obrigação,
sem consequências indenizatórias para qualquer das partes.
Em algumas situações, todavia, a própria lei admite que a ocorrência de evento fortuito não exclui a
obrigação de indenizar. Uma delas, analisada logo abaixo, ocorre quando a própria parte assume a
responsabilidade de responder pelos prejuízos, mesmo tendo havido caso fortuito ou força maior (art.
393 do CC-02). Também em caso de mora poderá o devedor responsabilizar-se nos mesmos termos
(art. 399 do CC-02), se retardar, por sua culpa, o cumprimento da obrigação.
Obviamente, o inadimplemento não se opera com os mesmos matizes sempre, variando de acordo
com a natureza da prestação descumprida
Assim, nas obrigações de dar, opera-se o descumprimento quando o devedor recusa a entrega,
devolução ou restituição da coisa. Nas obrigações de fazer, quando se deixa de cumprir a atividade
devida.
Finalmente, quanto às obrigações negativas, a própria lei dispõe que “o devedor é havido por
inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster” (art. 390 do CC-02). É o
caso do sujeito que, obrigando-se a não levantar o muro, realiza a construção, tornando-se
inadimplente a partir da data em que realizou a obra.

2. O INADIMPLEMENTO CULPOSO DA OBRIGAÇÃO


O desfecho normalmente esperado de uma obrigação dá-se por meio de seu adimplemento
(cumprimento) voluntário, já estudado quando tratamos da teoria do pagamento. Entretanto, pode
ocorrer que a obrigação se frustre por culpa do devedor, que deixa de realizar a prestação pactuada,
impondo-se-lhe o dever de indenizar a parte prejudicada.
Nesse sentido o art. 389 do CC-02 dispõe, expressamente, que:
“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e
atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de
advogado”
O inadimplemento tratado pela norma do art. 389 é o denominado absoluto, ou seja, aquele que
impossibilita o credor de receber a prestação devida (ex.: a destruição do cereal que seria entregue
pelo devedor), seja de maneira total, seja parcialmente (quando há pluralidade de objetos e apenas
parte deles se inviabiliza), convertendo-se a obrigação, na falta de tutela jurídica específica, em
obrigação de indenizar.
Posto isso, retornando ao estudo do inadimplemento culposo absoluto, cumpre-nos advertir que o
referido art. 389 do Código Civil de 2002 é visto pela doutrina como a base legal da responsabilidade
civil contratual, sendo que a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana repousaria em outras
paragens (art. 186 do CC-02).
Ora, quando um sujeito, guiando imprudentemente o seu veículo, chocasse contra um muro,
causando danos ao proprietário desse imóvel, fica claro que também descumpriu uma obrigação
anterior, embora de natureza eminentemente legal (“não causar dano a outrem”).
Por isso se diz que, nesse caso, inexistindo um vínculo contratual anterior entre o causador do dano
e a vítima, aquele deverá indenizar segundo os princípios da responsabilidade civil extracontratual ou
aquiliana, previstos em nossa legislação em vigor. Afinal, o ato ilícito também gera o dever de
indenizar.
Quem infringe dever jurídico lato sensu fica obrigado a reparar o dano causado. Esse dever passível
de violação pode ter, assim, como fonte, tanto uma obrigação imposta por um dever geral do direito
ou pela própria lei quanto por um negócio jurídico preexistente. O primeiro caso caracteriza a
responsabilidade civil aquiliana, enquanto o segundo, a responsabilidade civil contratual.
E quais as diferenças básicas entre essas duas formas de responsabilização?
Três elementos diferenciadores podem ser destacados, a saber, a necessária preexistência de uma
relação jurídica entre lesionado e lesionante; o ônus da prova quanto à culpa; e a diferença quanto à
capacidade.
Com efeito, para caracterizar a responsabilidade civil contratual, faz-se mister que a vítima e o autor
do dano já tenham se aproximado anteriormente e se vinculado para o cumprimento de uma ou mais
prestações, sendo a culpa contratual a violação de um dever de adimplir, que constitui justamente o
objeto do negócio jurídico, ao passo que, na culpa aquiliana, viola-se um dever necessariamente
negativo, ou seja, a obrigação de não causar dano a ninguém.
Justamente por tal circunstância é que, na responsabilidade civil aquiliana, a culpa deve ser sempre
provada pela vítima, enquanto, na responsabilidade contratual, ela é, de regra, presumida5,
invertendo-se o ônus da prova, cabendo à vítima comprovar, apenas, que a obrigação não foi
cumprida, restando ao devedor o onus probandi, por exemplo, de que não agiu com culpa ou que
ocorreu alguma hipótese excludente do elo de causalidade.

3. INADIMPLEMENTO FORTUITO DA OBRIGAÇÃO


O descumprimento da obrigação também pode decorrer de fato não imputável ao devedor. Diz-se,
nesse caso, ter havido inadimplemento fortuito da obrigação, ou seja, não resultante de atuação
dolosa ou culposa do devedor, que, por isso, não estará obrigado a indenizar.
Fatos da natureza ou atos de terceiro poderão prejudicar o pagamento, sem a participação do
devedor, que estaria diante de um caso fortuito ou de força maior. Imagine que o sujeito se obrigou a
prestar um serviço, e, no dia convencionado, é vítima de um sequestro. Não poderá, em tal hipótese,
em virtude de evento não imputável à sua vontade, cumprir a obrigação avençada.
Mas, nesse ponto de nosso raciocínio, uma pergunta se impõe: afinal de contas, estando essa
espécie de inadimplemento diretamente ligada à ideia de “evento fortuito”, o que se entende por caso
fortuito ou de força maior?
A doutrina não é unânime a respeito dessa intrigante questão.
Segundo MARIA HELENA DINIZ,
“na força maior conhece-se o motivo ou a causa que dá origem ao acontecimento, pois se trata de
um fato da natureza, como, p. ex., um raio que provoca um incêndio, inundação que danifica produtos
ou intercepta as vias de comunicação, impedindo a entrega da mercadoria prometida, ou um
terremoto que ocasiona grandes prejuízos etc.”. Já “no caso fortuito, o acidente que acarreta o dano
advém de causa desconhecida, como o cabo elétrico aéreo que se rompe e cai sobre fios telefônicos,
causando incêndio, explosão de caldeira de usina, e provocando morte”7.
SILVIO RODRIGUES lembra que
“a sinonímia entre as expressões caso fortuito e força maior, por muitos sustentada, tem sido por
outros repelida, estabelecendo, os vários escritores que participam desta última posição, critério
variado para distinguir uma da outra. Dentre as distinções conhecidas, Agostinho Alvim dá notícia de
uma que a doutrina moderna vem estabelecendo e que apresenta, efetivamente, real interesse
teórico. Segundo a referida concepção, o caso fortuito constitui um impedimento relacionado com a
pessoa do devedor ou com a sua empresa, enquanto a força maior advém de um acontecimento
externo”.
Para demonstrar que os doutrinadores, de fato, não adotam critério único para a definição dos termos
caso fortuito e força maior, vale conferir o pensamento do ilustrado ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO:
“Pelo que acabamos de perceber, caso fortuito é o acontecimento provindo da natureza, sem
qualquer intervenção da vontade humana...”. A força maior, por sua vez, “é o fato do terceiro, ou do
credor; é a atuação humana, não do devedor, que impossibilita o cumprimento obrigacional”.
Sem pretender pôr fim à controvérsia, visto que seria inadmissível a pretensão, entendemos que a
característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecida
(um terremoto ou uma erupção vulcânica, por exemplo); ao passo que o caso fortuito, por sua vez,
tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Nesta
última hipótese, portanto, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte
incauta, impossibilitando o cumprimento de uma obrigação (um atropelamento, um roubo).
Advertimos, outrossim, que as situações da vida real podem tornar muito difícil a diferenciação entre
caso fortuito ou força maior, razão por que, a despeito de nos posicionarmos acerca do tema,
diferenciando os institutos, não consideramos grave erro a identificação dos conceitos no caso
concreto.
Ademais, para o direito obrigacional, quer tenha havido caso fortuito, quer tenha havido força maior,
a consequência, em regra, é a mesma: extingue-se a obrigação, sem qualquer consequência para as
partes.
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não
era possível evitar ou impedir”
Por tudo isso, podemos concluir que apenas o inadimplemento absoluto com fundamento na culpa
do devedor impõe o dever de indenizar (pagar as perdas e danos), gerando, por conseguinte, para o
devedor inadimplente, a responsabilidade civil por seu comportamento ilícito.

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