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Fonte: http://www.odialetico.hd1.com.br/thiago/filoadm.

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Debate: Filosofia e Administração:


é possível algum ponto de encontro?

Paulo Ghiraldelli Jr. (Ghiraldelli 2003© )

Vamos às imagens comuns. O filósofo pensa. O administrador planeja. O filósofo


contempla. O administrador age. A filosofia quer as essências, o administrador lida com
as aparências. A filosofia quer fornecer um knowledge. O administrador precisa de um
know how. O filósofo pode ser monástico. O administrador pode ser um prostituto. A
filosofia pára. O administrador anda. A filosofia anda, como Aristóteles ensinava, ou
seja, caminhando. O administrador senta, como um executivo faz ¾ em sua mesa ele
decide o mundo. Quando um filósofo é caçado, ele pode virar mártir e, ao ser
assassinado, ganha a imortalidade. Quando um administrador é caçado ele, não raro, vai
cair no anonimato, depois no alcoolismo e, enfim, nas mãos de uma amante que vai tirar
aquilo que a esposa esqueceu de tirar.

Disse um filósofo certa vez que a natureza é boa e a sociedade é que corrompe o
homem. Esse filósofo poderia ter sido Rousseau. Disse um teórico da administração
certa vez que a sociedade corrompe o homem e que a disciplina da fábrica o torna
novamente útil para a sociedade. Esse teórico poderia ter sido Taylor.

A filosofia lida com ontologia (teoria do ser), epistemologia (teoria do conhecimento),


estética (teoria do belo) e ética (teoria do dever moral). A administração lida com
homens, mulheres, famílias, sexo, drogas e rock and roll. A filosofia pode ser radical, de
modo a incorporar mesmo o Marquês de Sade como filósofo ¾ o libertinismo não deixa
de ser uma filosofia. A administração não pode ser radical, embora o Marquês de Sade
tenha posto regras para o funcionamento do Castelo Libertino que deixariam Taylor e
Fayol com complexo de inferioridade.

A filosofia, quando prega a solidariedade, muitas vezes carrega junto a hipocrisia. A


administração, quando prega a hipocrisia, realiza o que se pode fazer em termos de
solidariedade em empresas.

Vamos agora às imagens que podem deixar de ser comuns. O administrador é antes de
tudo um legislador. Ora, segundo Nietzsche, este é o papel do filósofo: colocar novos
valores no mundo, teses normativas. Contrariamente aos que viam a filosofia como
contemplativa, John Dewey de um lado e Karl Marx de outro advogaram o papel
intervencionista da filosofia. John Dewey, em favor do que pode haver de bom na
administração de empresas, disse que preferia que os filósofos agissem menos como
padres e mais como advogados e engenheiros. Pois o padre, uma vez que acredita em
uma teleologia, já sabe tudo o que tem de dizer para todo e qualquer problema.
Engenheiros e advogados, tendo de resolver caso por caso, são obrigados a ouvir,
pensar, refletir e solucionar caso por caso. Se é assim, o filósofo de John Dewey estaria
mais próximo do administrador do que da figura comum de filósofo. Marx, por sua vez,
advogou que as revoluções até o tempo dele tinham sido feitas mais ou menos
espontaneamente, mas que a partir dele elas seriam mais planejadas. De fato, até mesmo
nas revoluções mais espontâneas, nos nossos tempos, houve alguém que administrou
perdas e danos, vidas e mortes.

É certo que a maioria dos administradores são imbecis. Os filósofos, apesar de serem
filósofos, uma boa parte deles é mais imbecil que a parte imbecil dos administradores.
Onde são imbecis? O filósofos são imbecis quando pensam que ao pensarem não estão
administrando ¾ no mínimo estão tentando uma auto-administração. Os
administradores são imbecis quando administram acreditando que não filosofam ¾ no
mínimo estão filosofando coletivamente: uma empresa filosofa na medida em que
define para muitas vidas "o que é que é e o que é que não é" ¾ às vezes uma empresa
faz mais ontologia que Heidegger!

A filosofia é hoje, contra muitos do que pregaram seus fundadores, um saber técnico,
uma capacidade especial de pensar problemas especiais. Quem lidaria, preferivelmente
sem dogmas, com a questão de se podemos ou não desligar os aparelhos de alguém em
coma ¾ a eutanásia ¾ senão o filósofo? Quem arcaria com a responsabilidade da
tomada de decisão de colocar uma regra desse tipo em prática senão os administradores
de uma nação e, por conseguinte, os administradores dos hospitais? Quem lidaria,
preferivelmente sem dogmas, sobre que tipo de conhecimento é válido, verdadeiro,
senão o filósofo? Quem arcaria com a responsabilidade de disseminar ou não um tipo de
conhecimento dito válido senão os administradores de uma nação e, por conseguinte, os
administradores das escolas? Isso repete a regra que diz que o filósofo pensa e o
administrador age? Não! Segundo Hegel, a Coruja de Minerva só levanta voo ao
entardecer. Se a Coruja de Minerva é a Sabedoria, a Razão, então o que Hegel disse é
que a Razão vem depois do fato, e não antes. Talvez o administrador pense a aja antes
de tudo, e o filósofo, então, venha correndo apenas para dizer que deveria mesmo ter
sido assim ou que não deveria nunca ter sido assim, que haviam outras opções.

A Escola de Frankfurt criou contra a administração de empresas a maior indisposição


que os filósofos poderiam ter contra os administradores. Pois foi a Escola de Frankfurt
¾ a dos filósofos Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros ¾ a que disseminou pelo
mundo, no século XX, como expressão pejorativa, a idéia de "sociedade administrada"
ou sociedade da "total administração". Por tal coisa, eles entendiam que, quando há
administração há rotina e coisificação (reificação). Ou seja, o que é vivo começa a
adotar um comportamento maquinal, próximo do que é o não-vivo (as coisas, as
máquinas e os defuntos), e o não-vivo passa a ser visto, nas consciências das pessoas,
como o que é o vivo, e são vistos como efetivamente colocando o mundo em marcha,
fazendo as coisas funcionarem (fetichismo, quando na consciência das pessoas o que é
coisa ganha vida). Esse fenômeno, que Marx e os frankfurtianos chamaram de
reificação e fetichismo, é banal hoje em dia. Há os administradores de empresas de
marketing que criaram o "ranking do silicone". Uma mulher se torna mais atrativa (para
alguns e, depois, para muitos) quanto mais seu corpo é artificial, morto, siliconado. A
mulher de carne, osso e alma perde vida. Isso chega ao ponto da beleza ser dirigida à
coisa, ao morto e não ao vivo. O administrador de uma fábrica de brinquedos talvez
tenha vencido Marx quando ele colocou na boca popular a frase: "ela é tão bonita que
parece uma boneca". A boneca, o morto, passa a qualificar o vivo, a mulher bonita. A
mesma vitória de Taylor sobre todos, quando alguém elogia outro dizendo: "aquele cara
funciona como uma máquina". Ou o similar para a mulher: "é um avião", dizíamos nos
anos oitenta, é uma "locomotiva", dissemos nos anos 70, "está turbinada", falamos ao
ver uma mulher com peitos de silicone hoje em dia. Essa "sociedade administrada",
como os frankfurtianos denominaram a sociedade moderna industrial (fosse ela
capitalista ou socialista), seria o locus privilegiado desse tipo de comportamento. Ainda
que indiretamente, os administradores, seriam parte integrante do que haveria de
pensante na "sociedade administrada". Eles seriam, de fato, os filósofos dessa
sociedade. Eles seriam o responsável pela desumanização do que seria, porventura, o
humano que haveria em nós.

Talvez os frankfurtianos estivessem certos. E descartar a interpretação deles seria


burrice. Mas houve também aqueles filósofos que não viram os administradores como
merecedores da culpa de todo o inferno que poderia haver na Terra. A Escola dos
Pragmatistas fez uma pergunta diferente da dos filósofos da Escola de Frankfurt. Eles
disseram: para uma sociedade ser feliz, não deveríamos discutir, sempre, as vantagens e
desvantagens de tal e qual comportamento em vez de condenarmos, à primeira vista, um
determinado comportamento? Até que ponto o homem que gosta do que chama-se
reificação é ele próprio reificado? Até que ponto a estética do silicone tem como único
amante um homem mau? Até que ponto quem consome o sexo mais objetificado é um
estuprador em potencial? Até que ponto uma menina que quer se mostrar usando
silicone, piercing e outros adereços está desnaturalizando o corpo de modo que o que há
de morto, ao substituir o vivo, denote que ela quer que a estética induza uma ética da
maldade?

A Escola dos Pragmatistas ensinou algo mais do que a verdade contida na teses da
Escola de Frankfurt. Ensinou que os administradores de seus corpos, de suas empresas
particulares, podem criar uma nova estética em função de uma nova ética e essa nova
ética não necessariamente gera uma moral da intolerância, da violência e da maldade.
Se isso é verdade, então, nossa sociedade substituiu os filósofos por administradores,
sim, mas ainda não se deu conta que esses administradores são novos e bons filósofos.

Essa relação entre a indução que a estética produz na ética talvez fosse o melhor tema
para se começar a falar em "filosofia na administração de empresas – pontos comuns e
pontos divergentes". Se assim for, há muito o que se discutir entre Frankfurtianos e
Pragmatistas, e há muito o que fazer daqui para a frente na academia.

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Para aprofundamento no tema leiam:

Ghiraldelli Jr., P. O corpo de Ulisses. São Paulo: Editora Escuta, 1995.

Ghiraldelli Jr. P. Introdução à filosofia. São Paulo-Baurueri: Manole, 2003.

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