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Caso Clínico / Case Report

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Revisitando a Síndrome de Cotard: Ilustração de Dois


Casos Clínicos Psiquiátricos
Revisiting Cotard’s Syndrome: Illustration of Two Psychiatric
Clinical Cases
Lídia Sousa*, Sónia Oliveira*, Lucinda Bastos*

RESUMO mesmo a pôr em causa a própria existên-


Introdução: A Síndrome de Cotard (SC) é cia do mundo externo. Ilustramos o caso de
uma Síndrome neuropsiquiátrica rara e gra- uma doente de 66 anos com o diagnóstico
ve, cuja característica central é a existência de perturbação afetiva bipolar, admitida no
de delírios niilistas. Tem surgido controvérsia contexto de um episódio depressivo grave
relativamente ao quadro clínico que Jules Co- com sintomas psicóticos, compatível com o
tard descreveu e recentemente têm sido feitas tipo II da SC, e o caso de um jovem de 22
tentativas, não só para clarificar a terminolo- anos admitido por um primeiro surto psicó-
gia utilizada, mas também para definir dife- tico com características esquizomorfas, que
rentes subtipos desta síndrome e explorar as apresentava delírios niilistas configurando
suas bases biológicas. uma SC tipo I.
Objetivos: Rever sumariamente a termino- Palavras-Chave: Síndrome de Cotard; Termi-
logia, etiologia, epidemiologia e diagnósticos nologia; Etiologia; Epidemiologia; Diagnósti-
diferenciais desta síndrome, a propósito da co Diferencial.
descrição de dois casos clínicos.
Métodos: Pesquisa bibliográfica através das ABSTRACT
bases de dados eletrónicas Medline e Gallica Background: Cotard’s Syndrome (CS) is a
(Biblioteca Nacional de França), consulta de rare and severe neuropsychiatric condition
registos clínicos e entrevistas diretas com os in which the central feature is the existence
doentes. of nihilistic delusions. Controversy has en-
Resultados e Conclusões: Tipicamente os sued about the precise clinical picture Jules
doentes diagnosticados com SC verbalizam Cotard meant to describe and attempts have
a ideia delirante de que estão mortos ou been made, more recently, not only to clar-
prestes a morrer. Podem, no entanto, ne- ify the terminology, but also to define dif-
gar apenas a existência de partes do corpo ferent types of this syndrome and explore its
ou do funcionamento de órgãos, ou chegar biological basis.

* Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental, Hospital De Santa Maria, CHLN EPE.  lidiasousa99@gmail.com.
Recebido / Received: 26.12.2014 - Aceite / Accepted: 27.10.2015.

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Aims: We intend to briefly review the termi- lorsque le délire hypocondriaque vient s’y
nology, etiology, epidemiology and differ- ajouter ; dans ces cas le pronostic est beau-
ential diagnosis of this syndrome, based on coup plus grave”1. Propunha que um estado
two clinical cases. depressivo grave e ansiedade mórbida seriam
Methods: Bibliographic search conducted o terreno que permitiria o desenvolvimento de
through the electronic databases Medline delírios estruturados de conteúdo hipocondría-
and Gallica (French National Library), con- co. Ilustrou o seu ponto de vista com um caso
sultation of clinical records and direct inter- paradigmático que leu à Société Médico-Psy-
views with the patients. chologique em Paris, no mesmo ano – “Mlle
Results and Conclusions: Typically the X affirme qu` elle n`a plus ni cerveaux, ni
patients diagnosed with CS manifest the de- nerves, ni poitrine, ni estomac, ni boyaux;
lusional idea that they are dying or already il ne lui reste plus que la peau et les os du
dead. However, it is also possible that they corps désorganisé… elle n´a pas d´âme,
deny the existence of only some parts of their dieu n´ existe pas, le diable non plus… elle
own body, or the functioning of some or- n´a pas besoin de manger pour vivre, elle ne
gans, and they may even sometimes deny the pourra mourir de mort naturelle”1.
existence of the external world. We illustrate Dois anos mais tarde, referiu-se ao mesmo
the case of a 66-year-old woman, diagnosed quadro clínico usando pela primeira vez o
with bipolar affective disorder, admitted in termo délires des négations – “Je hasarde
the context of a severe depressive episode le nom délire des négations pour désign-
with psychotic symptoms, compatible with er l´état des malades chez lesquels la dis-
CS type II and the case of a young male aged position négative est protée au plus haut
22, admitted due to a first psychotic episode dégrée”. Referiu-se também pela primeira
with schizophrenia like characteristics, pre- vez a este quadro como constituindo uma en-
senting with nihilistic delusions compatible tidade clínica individualizada – “Je voudrais
with CS type I. montrer que, conjointement à ce délire, il
existe de nombreux symptômes étroitement
Key-Words: Cotard`s Syndrome; Terminolo- associés entre eux, de maniéré á constituer
gy; Etiology; Epidemiology; Differential Di- une véritable maladie, distincte par ses car-
agnosis actères et son évolution”2.
No seu trabalho descreveu um tipo particu-
INTRODUÇÃO lar de formação delirante, que reportou num
Em 1880 Jules Cotard (1840-1889) descreveu número considerável de doentes melancó-
um quadro clínico que acreditava correspon- licos, especialmente nos que demonstra-
der a um novo subtipo de depressão – “la vam ansiedade mórbida. Segundo ele, estes
mélancolie anxieuse grave”, “la mélancolie doentes apresentavam uma atitude sistemá-
anxieuse commune est une forme symp- tica de negação, acompanhada de ideias de
tomatique fréquente…il n’est pas la même culpa, ruína e condenação. Acusavam-se a

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eles próprios como sendo inúteis, fonte de entidade clínica mas uma síndrome – um
infelicidade para a família, fonte de conta- cluster de sintomas que poderia também ser
minação infeciosa ou de má sorte para os encontrado em outras doenças do foro mental
que entrassem em contacto com eles. Consi- para além da depressão e em que a ansiedade
deravam-se também, por vezes, na ruína eco- seria uma característica central3.
nómica e prestes a serem condenados pelos Jules Séglas (1897) foi quem popularizou o
seus crimes. Seria também muito comum a termo SC, mas propunha a interpretação de
ideia de impossibilidade de cura ou diminui- que o quadro descrito por Cotard poderia cor-
ção do seu sofrimento. A atitude de negação responder a uma forma grave de depressão
podia manifestar-se desde formas mais leves, ansiosa4.
como a negação da existência ou funciona- Anos mais tarde, Perris (1955) manifestou a
mento de certos órgãos, até à crença de estar opinião de que Cotard teria descrito apenas
morto, negação da sua existência, ou mesmo um sintoma isolado, um delírio hipocondría-
chegar ao extremo da negação da existência co que acompanhava as depressões ansiosas.
do mundo externo. Num subgrupo de doentes Atribuía-lhe ainda assim um significado es-
a ideia de negação adquiria uma forma tam- pecial, pois considerava este delírio como um
bém curiosa em que, em lugar de afirmarem fator de mau prognóstico e como sintoma do-
estar mortos ou a morrer, negavam a possibi- minante dos casos clínicos5.
lidade de morrer. Alguns casos acompanha- De Martis (1956) defendeu que o quadro que
vam-se ainda de alucinações olfativas, sendo Cotard tinha descrito corresponderia, de facto,
que os doentes referiam emitir um mau chei- a uma entidade clínica diferente das outras
ro que frequentemente atribuíam ao corpo psicoses descritas até então, uma vez que os
em decomposição e que acreditavam que to- delírios niilistas eram estruturados desde o iní-
das as pessoas sentiam2. cio e os doentes tinham uma evolução crónica
Após a morte de Cotard gerou-se um in- pouco alterada pelo tratamento. Considerava
tenso debate sobre o que este teria de facto ainda que a melancolia apenas desencadearia
descrito, com vários autores a defenderem estes delírios em doentes já predispostos6.
diferentes interpretações, nomeadamente Também polémica foi a tradução do termo
que teria descrito uma entidade clínica in- délires des négations, inicialmente proposto
dependente, um novo subtipo de depressão por Cotard, como nihilistic delusions (delí-
ou apenas um sintoma isolado. Destacamos rios niilistas), que foi considerada demasiado
algumas das opiniões que consideramos redutora7. De facto, o termo francês tinha um
historicamente relevantes, contudo a visão significado mais abrangente, aproximando-
sindromática parece-nos a mais consensual -se mais de uma síndrome, podendo envolver
atualmente. sintomas da esfera intelectual, emocional e
O epónimo Síndrome de Cotard (SC) só foi in- volitiva8. Apesar disto, ainda há autores que
troduzido em 1893 por Emil Régis que defen- usam o termo SC para referir-se unicamente
deu que Cotard não teria descrito uma nova à ideia delirante de estar morto, apesar de esta

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nem ser necessária para o diagnóstico da sín­ Em termos de distribuição etária, esta síndro-
drome7. me parece afetar principalmente doentes de
Estudos epidemiológicos recentes, que admi- meia-idade ou idosos10,11, sendo que são ra-
tem a visão sindromática, mostram que a SC é ras as descrições de casos em adolescentes ou
mais frequentemente encontrada em doentes adultos jovens12.
com o diagnóstico de perturbação depressiva, Grande parte dos doentes chega aos cuidados
perturbação afetiva bipolar ou esquizofrenia, de saúde num estado avançado, com lentifica-
embora também tenha sido relatada em doen- ção psicomotora grave e disfunções biológicas,
tes com patologias orgânicas como neurosí- sendo frequentemente relatada a necessidade
filis, epilepsia, acidentes vasculares cerebrais, de electroconvulsivoterapia (ECT)13. Relativa-
tumores do lobo parietal, doença de Parkinson mente ao tratamento farmacológico, a utili-
ou esclerose múltipla9. zação de diferentes combinações que incluem
Numa revisão de 100 casos com o diagnóstico benzodiazepinas, antipsicóticos e antidepressi-
de SC, conduzida por Berrios e Luke, não foi vos têm sido reportadas, sem que seja possível
encontrada diferença de incidência entre se- estabelecer uma abordagem consensual, pa-
xos. Em cerca de 89% dos sujeitos foi reporta- recendo-nos razoável que seja efetuada uma
da depressão. Os delírios niilistas mais comuns análise caso a caso visando um diagnóstico
eram relativos ao corpo (86%) ou à sua exis- nosológico de base.
tência (69%). Os sentimentos de culpa (63%) No que concerne à génese dos delírios típicos
e a ansiedade (65%) eram também relativa- desta síndrome, Cotard propôs inicialmente
mente frequentes, seguindo-se em frequência que estes poderiam ter origem na interpreta-
os delírios hipocondríacos (58%) e os delírios ção delirante de sensações patológicas, típicas
de imortalidade (55%)10. dos doentes com melancolia ansiosa1. Mais
No referido estudo foi realizada uma análise tarde, defendeu que estes delírios poderiam
fatorial das características clínicas dos doen- resultar de uma “perda das imagens mentais”,
tes, a qual permitiu identificar três grupos uma incapacidade para evocar representações
distintos: doentes com depressão psicótica, mentais de objetos não acessíveis aos órgãos
que apresentavam sintomas de depressão dos sentidos. Poucos anos antes da sua morte,
melancólica e raros delírios niilistas; doentes acrescentou à sua teoria que o fenómeno pri-
sem propensão para depressão ou outra pa- mário na base estes delírios seria uma redução
tologia psiquiátrica, podendo constituir um da energia motora, que por sua vez conduziria
SC puro, e que os autores designaram SC tipo quer à referida perda das imagens mentais,
I, cuja nosologia está mais próxima de uma quer à lentificação psicomotora do doente 14.
doença psicótica (funcional ou orgânica) do Mais recentemente foi proposto como explica-
que afetiva; e doentes que demonstravam an- ção para os delírios niilistas o modelo de dois
siedade, sintomatologia depressiva e alucina- fatores. Este preconiza que os doentes com SC
ções auditivas, grupo misto, que designaram podem sofrer de uma perda de experiências
de SC tipo II10. emocionais acompanhada de sentimentos

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de vazio e/ou ter uma capacidade de proces- ra com a personalidade. No entanto, os doen-
samento afetivo das experiências percetuais tes com sentimentos de despersonalização/
reduzida ou qualitativamente anormal. O desrealização têm preservação da capacidade
segundo fator deste modelo relaciona-se com de julgamento e do teste da realidade, ao con-
vieses atribucionais e envolve uma incapaci- trário dos doentes com SC.
dade de avaliar corretamente possíveis cren- Muito pouca evidência foi descrita relativa-
ças, frequentemente com uma tendência ex- mente às bases biológicas dos delírios típicos
cessiva para a atribuição interna nos doentes desta síndrome. Alterações estruturais, me-
com SC15,16. Por outro lado, quando adotado tabólicas e tóxicas têm sido frequentemente
um estilo atribucional externo para interpre- associadas18, assim como alterações do fluxo
tar as mesmas experiências emocionais anor- sanguíneo cerebral regional19, mas uma rela-
mais, o doente desenvolveria um delírio de ção de causalidade nunca foi perfeitamente es-
Capgras, em que os familiares/conhecidos são tabelecida. As lesões que têm sido identificadas
tidos como impostores16. No entanto, este mo- são aparentemente inespecíficas e estudos de
delo não explica porque é que alguns doentes vários recetores cerebrais também não foram
negam apenas a existência de partes do corpo conclusivos. Foi proposto um envolvimento do
e não do Self ou negam a existência de objetos sistema dopaminérgico, embora também ain-
ou pessoas no espaço extra pessoal. Também da não tenha sido possível demonstrar uma
não permite explicar a manifestação simultâ- relação de causalidade neurobiológica18.
nea de delírios típicos da SC e da síndrome de A negação da existência de partes normais do
Capgras observada em alguns casos17. corpo é um sinal de disfunção do lobo parietal,
Em termos de diagnóstico diferencial é crucial que ocorre também em lesões da região dorso-
numa primeira fase distinguir a SC da asoma- lateral do lobo frontal, giro cingulado, tálamo
tognosia, sintoma neurológico que consiste e neocortex (caudado e putamen). Pelo facto
na perda da capacidade de autorreconheci- de nos doentes com SC serem observadas algu-
mento de partes do próprio corpo, geralmente mas alterações, embora inespecíficas, nas re-
associada a lesões cerebrais focais ou doença giões frontal e frontoparietal, foi sugerido um
neurológica já conhecida. No caso da asoma- possível envolvimento destas áreas na génese
tognosia, o lado esquerdo é preferencialmente dos delírios20.
afetado, sendo que na SC a sintomatologia é
geralmente bilateral. Considera-se então ade- Caso Clínico 1
quado a realização sistemática de um exame Mulher de 66 anos, raça caucasiana, viúva,
de imagem para exclusão de patologia orgâni- vive com companheiro, tem o 6º ano de es-
ca. Poderá também ser difícil fazer a distinção colaridade, reformada de funções adminis-
com os sentimentos de despersonalização/des- trativas, nível socioeconómico médio-alto. É
realização, que se definem como sentimentos conhecido o diagnóstico de perturbação afe-
de distanciamento ou estranheza de si próprio tiva bipolar há 15 anos, tendo permanecido
ou do meio envolvente, de irrealidade ou rutu- estável nos últimos 3 anos. Tem ainda história

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familiar de patologia afetiva (pai, tio paterno ralmente dos membros superiores e alterações
e duas irmãs). inespecíficas da marcha sequelares a trauma-
A doente apresentava recusa alimentar com tismo antigo. Foi conduzido rastreio de orga-
perda de peso significativa e desorganização nicidade com rotinas analíticas (hemograma,
progressiva do comportamento, pelo que foi função renal, ionograma, perfil hepático, fun-
trazida ao serviço de urgência (SU) por fa- ção tiroideia, serologias víricas, doseamento
miliares. Foi admitida devido a um episódio de folatos e de vitamina B12), assim como
depressivo grave e arrastado, refratário à tera- radiografia do tórax e eletrocardiograma,
pêutica com clomipramina 50 mg/dia (pres- sem que tenham sido encontradas alterações
crita dois meses antes). de relevo. O estudo imagiológico cerebral por
À admissão a doente apresentava, para além ressonância magnética revelou focos milimé-
da sintomatologia depressiva configurando tricos de hipersinal em T2 na substância bran-
episódio depressivo grave, sentimentos de in- ca subcortical adjacente aos cornos frontais
curabilidade, delírios niilistas negando o fun- de provável natureza microvascular crónica e
cionamento dos órgãos internos – “os meus ligeira acentuação dos sulcos corticais. No ele-
órgãos estão parados por isso não posso inge- troencefalograma não foram detetadas altera-
rir nada porque vai-se acumular tudo dentro ções relevantes. No Mini Mental State Exam-
de mim”; ideação delirante hipocondríaca – ination a doente pontuava 24 em 30 pontos e
“tenho uma infeção grave que posso passar às aplicadas as escalas de depressão de Hamilton
outras pessoas se usar a casa de banho” – e (EDH) e Montgomery- Asberg (EDMH) pontua-
de ruína – “tenho dívidas imensas que me vão va respetivamente 30 e 37 pontos. Foi pedida
levar à ruina a mim e à minha família”. Apu- uma avaliação neuropsicológica que revelou
raram-se ainda alucinações acústico verbais, alterações moderadas das funções executivas e
congruentes com a temática dos delírios. Ne- das capacidades visuo-percetivas, assim como
gou sempre ideação suicida. alterações ligeiras da memória imediata, aten-
No dia seguinte à admissão a doente acredi- ção sustentada, memória semântica e do ra-
tava que estava prestes a morrer, referindo: ciocínio lógico abstrato não-verbal. Assim sen-
“hoje é o dia do juízo final, é hoje que vão de- do, não é de excluir a hipótese de um processo
cidir o meu fim… vai acabar tudo para mim”. de deterioração cognitiva incipiente, apesar
Nos dias que se seguiram continuou a revelar da sintomatologia depressiva poder funcionar
ideação delirante com muito dinamismo e aqui como importante fator confundente.
interpretações delirantes de factos ocasionais Foi instituída terapêutica com clomipramina
– “veio cá o advogado de uma doente porque por via endovenosa titulada até 100 mg/dia,
ela me vai processar por alguma coisa que eu valproato de sódio titulado até 700 mg/dia,
disse”. olanzapina 10mg/dia e diazepam 15 mg/dia.
Durante o internamento realizaram-se exame Após doze dias de administração do antide-
físico e neurológico completos, salientando-se pressivo por via endovenosa fez-se transição
apenas um tremor postural e simétrico bilate- para clomipramina por via oral na dose de

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225 mg, dividida em três tomas diárias. Como quiatria que lhe foram sendo marcadas no SU.
intercorrências há a relatar o desenvolvimento Segundo a mãe, há também história familiar
de trombocitopenia ao 13º dia de tratamento, de patologia afetiva (pai com perturbação de-
atribuída ao valproato de sódio, pelo que este pressiva unipolar).
fármaco foi substituído por carbonato de lítio, Foi trazido ao SU por familiares por apresen-
titulado até 600 mg/dia, com normalização da tar alterações do comportamento e ideias de-
discrasia. lirantes.
A doente teve melhoria lenta mas progressiva, À admissão apresentava ideação delirante nii-
com diminuição significativa da ansiedade lista – “estou morto, o meu corpo é só ossos,
e da lentificação psicomotora nas primeiras não tenho carne, não tenho sangue, não te-
duas semanas. Verificou-se também uma me- nho veias…”; ideação delirante hipocondría-
lhoria gradual do humor e a ideação delirante ca – “tenho uma doença muito grave, tenho
começou a ter menos dinamismo findas três de tapar a boca com a mão para não conta-
semanas. A remissão completa da sintomato- giar ninguém” – e interpretação delirante
logia psicótica ocorreu após quatro semanas associada a sentimentos de prejuízo – “ acho
de tratamento. No entanto, a doente mantinha que fiquei assim depois de me terem dado um
ideias sobrevalorizadas hipocondríacas e pes- soro com químicos noutro hospital onde fui
simismo relativamente ao futuro, principal- às urgências há um mês atrás… fui lá muitas
mente relacionadas com a sua situação eco- vezes queixar-me… chateei os médicos e por
nómica, assim como humor sub-depressivo. À isso é que me deram este castigo”. Apresentava
saída foi feita repetição das escalas de depres- também alucinações cenestésicas – “sinto os
são, com melhoria significativa dos resultados meus órgãos a derreter” – e alucinações olfa-
(EDH-15; EDMH-19). tivas – “sinto um cheiro a podre que vem do
meu corpo”. Concomitantemente manifestava
Caso Clínico 2 inquietação psicomotora, humor ansioso e
Homem de 22 anos, etnia cigana, vive em fácies triste, verbalizando anorexia, astenia,
união de facto, tem o 3º ano de escolaridade anedonia e tristeza marcada. Realça-se tam-
e está desempregado, nunca tendo exercido bém a incontinência afetiva que o doente
uma atividade profissional reconhecida, nível apresentava, tendo chorado compulsivamente
socioeconómico médio-baixo. Tem 2 filhos durante a primeira entrevista. Não se apura-
(4 anos e 3 meses), reside com a sua família ram alterações da vivência do Eu.
na casa dos pais juntamente com duas irmãs Realizaram-se exame físico e neurológico
mais novas. Refere história de um episódio completos que não revelaram alterações. Foi
depressivo aos 16 anos. Nega internamentos conduzido rastreio de organicidade com ro-
psiquiátricos, mas apuram-se várias vindas ao tinas analíticas (hemograma, função renal,
SU nos últimos anos por ansiedade e queixas ionograma, perfil hepático, função tiroideia,
somáticas, aparentemente sem intensidade serologias víricas, doseamento de folatos e de
delirante. Nunca aderiu às consultas de psi- vitamina B12) sem que tenham sido encon-

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tradas alterações relevantes e foi feita pesquisa máticas pareciam predominantes e a sinto-
de tóxicos na urina, que foi negativa. O estudo matologia depressiva que referiu parecia ser
imagiológico cerebral por ressonância mag- secundária a ideias sobrevalorizadas relativas
nética também não identificou alterações com às alterações somáticas.
significado clínico. Após uma semana de internamento, o doente
Foi instituída terapêutica com risperidona, deixou de manifestar ideação delirante nii-
titulada até 6 mg/dia, e diazepam 30mg/dia. lista, mas mantinha ideias sobrevalorizadas
Equacionando-se o quadro de uma depressão de que ia morrer e não tinha expectativa de
com sintomas psicóticos, iniciou-se terapêuti- cura – “o que me fizeram não se faz, deram-
ca antidepressiva com clomipramina por via -me aqueles químicos e agora vou morrer…
endovenosa titulada até 100 mg /dia, suspen- queria ter alta porque vocês não me podem
sa aos 4 dias de internamento, por o doente ajudar e eu preferia morrer em casa”. Tornou-
manifestar humor tendencialmente eutímico -se também mais notória a presença de altera-
e ter começado a verbalizar sintomas esqui- ções formais do pensamento, salientando-se o
zomorfos: alterações da continuidade do Eu concretismo do pensamento – “casa roubada
– “sinto-me diferente como pessoa… nem a trancas à porta significa que se assalta a casa
minha memória é a mesma”, “até o meu cor- pela janela”, “a semelhança entre uma maçã
po está diferente, tenho a cara mais escura e e uma pera é a estatura física e o sabor”.
a barba mais fina”; experiências de passivida- Após duas semanas de tratamento com risperi-
de – “sinto partes do meu corpo a mexer sem dona 6mg/dia o doente começou a manifestar
a minha cabeça querer”; alterações da forma menos convicção nas suas ideias delirantes,
do pensamento – “no papel que me deram menor dinamismo afetivo e menos ansiedade.
no hospital dizia estatura física totalmente Durante a terceira semana de internamento
bioquímicas”; ideação delirante mais estrutu- foi oscilando entre dias em que negava com-
rada e com maior convicção – “agora tenho pletamente ideação delirante fazendo até al-
a certeza que foi bioquímicos que me deram guma crítica – “eu tinha ilusões na minha
pelo soro e que foi isso que me transformou”- cabeça que não correspondem à realidade,
e memórias delirantes – “eu já tinha ouvido agora com a medicação já me sinto melhor”,
dizer no hospital que da vez seguinte que eu lá “eu tive uma reação alérgica ao medicamento
fosse me iam derreter… depois na vez seguin- que me deram no soro mas foi por acaso, não
te deram-me mesmo um ácido no soro”. mo deram para me fazer mal”, “o pior já pas-
Apurou-se entretanto, com a família, que o sou, as minhas ideias negativas eram estupi-
doente tinha já tido no passado episódios em dez, não batem certo com a realidade”- e dias
que recusava sair de casa por achar que tinha em que voltava a apresentar ideias delirantes
dismorfias corporais e que na rua iriam repa- – “acho que me fizeram mesmo alguma coi-
rar nele e criticá-lo. Não foi possível confirmar sa com aquele soro que me fez ficar diferente,
que tivesse tido de facto um episódio depres- sinto a minha testa maior e tenho uma parte
sivo aos 16 anos, uma vez que as queixas so- da cabeça atrás que está a afundar”. Começou

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também a referir inibição do pensamento – Por sua vez o doente do caso 2 apresentava
“tenho dificuldade em pensar”. sintomatologia que se aproxima mais de uma
Às quatro semanas de internamento encon- doença psicótica do que da esfera afetiva, pelo
trava-se eutímico e sem sintomas psicóticos, que consideramos que se possa tratar de um
apurando-se apenas ideias sobrevalorizadas SC tipo I. Retrospetivamente não foi bem ca-
relativamente a alterações somáticas e algum racterizado nenhum episódio depressivo e em
concretismo do pensamento. Teve alta com o entrevistas familiares subsequentes confir-
diagnóstico de perturbação psicótica aguda do mou-se que a sintomatologia depressiva, refe-
tipo esquizofrénica. Ficou medicado com ris- rida no presente episódio, terá surgido tempo-
peridona 2mg/dia per os e risperidona depôt ralmente depois das ideias delirantes e além
37,5 mg bimensalmente. disso teve rápida remissão no internamento.
Este caso tem especial interesse dado a idade
CONSIDERAÇÕES FINAIS jovem do doente, que não é típica da SC, para
A SC é uma síndrome neuropsiquiátrica rara, além do diagnóstico de base também não ser o
que envolve a crença delirante de um doente mais frequente.
de que morreu ou está a morrer, assim como A evolução longitudinal de ambos os doentes
outras ideias delirantes niilistas relativas a é também interessante, podendo, tal como em
partes específicas do seu corpo ou temas au- outros relatos recentes da literatura20,21, ser
to-relacionados10. dividida em três diferentes fases: fase de ger-
O debate sobre a natureza deste fenómeno minação (caracterizada pelo desenvolvimento
clínico conduziu, na nossa opinião, a que a insidioso de sintomas depressivos e hipocon-
visão sindromática se tornasse a mais aceite dria), fase de floração (desenvolvimento de
– um conjunto de sintomas que podem ser uma variedade de sintomas típicos da Síndro-
encontrados associados a várias perturbações me do Cotard) e fase crónica (recuo de sinto-
psiquiátricas ou neurológicas, salientando-se mas depressivos e sistematização progressiva
a depressão psicótica, e cujas características das ideias delirantes), seguido da remissão
centrais são melancolia, ansiedade e delírios progressiva dos sintomas psicóticos. Tal como
de negação e /ou condenação. a divisão em diferentes tipos, também este pa-
A doente apresentada no caso 1 tem o diagnós- drão de evolução não é consensual na litera-
tico de uma perturbação afetiva bipolar, cor- tura.
respondendo o episódio descrito a um episó- Dado ser frequentemente referida a necessida-
dio depressivo grave com sintomas psicóticos de de ECT13,22, os casos apresentados adquirem
compatíveis com a SC. Além disso, o quadro importância, por reforçarem a ideia de que a
clínico descrito parece corresponder ao tipo II farmacoterapia isoladamente pode ser uma
da SC, uma vez que, para além dos sintomas estratégia adequada para o manuseio desta
depressivos e dos delírios negação, a doente síndrome.
apresentava marcada ansiedade e alucinações Sendo a SC relativamente rara e uma vez que
auditivas. a neurobiologia subjacente está ainda longe

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Lídia Sousa, Sónia Oliveira, Lucinda Bastos PsiLogos • pp 67-77

de ser bem definida, torna-se ainda mais im- 4. Séglas J. Le délire des négations. Paris: Masson;
portante detalhar as características clínicas e 1897.
a evolução dos sintomas apresentados pelos 5. Perris C. Sul delirio cronico di negazio-
doentes. Nesse sentido, os relatos de casos clí- ne (Sindrome di Cotard). Neuropsichiatria.
nicos são de especial interesse, principalmente 1955;11:175-201.
se houver a possibilidade de serem feitas ava- 6. De Martis D. Un caso di sindrome di Cotard. Riv
liações prospetivas. Sper Freniatr. 1956;80:491-514.
Por último, importa clarificar que em ambos 7. Berrios GE, Luque R. Cotard’s delusion or syn-
os casos foi pedido, como exame de imagem drome?: a conceptual history. Compr Psychia-
inicial, uma RM, pelo interesse académico try. 1995;36(3):218-23.
de melhor documentar potenciais alterações 8. Garrabé J. Dictionnaire Taxinomique de Psy-
estruturais e/ou variantes do normal e dado chiatrie. Paris: Masson; 1989.
haver disponibilidade de este exame se reali- 9. Ramirez-Bermudez J, Aguilar-Venegas LC,
zar em tempo útil, não atrasando o rastreio Crail-Melendez D, Espinola-Nadurille M, Nente
de eventos cerebrais agudos necessitando de F, Mendez MF. Cotard syndrome in neurologi-
intervenção urgente. cal and psychiatric patients. J Neuropsychiatry
Clin Neurosci. 2010;22(4):409-16.
Conflitos de Interesse / Conflicting Interests: 10. Berrios GE, Luke R: Cotard syndrome:
Os autores declaram não ter nenhum conflito de analysis of 100 cases. Acta Psychiatr Scand.
interesses relativamente ao presente artigo. 1995;91:185-8.
The authors have declared no competing inter- 11. Gardner-Thorpe C, Pearn J. The Cotard syndro-
ests exist. me. Report of two patients: with a review of the
extended spectrum of ‘delire des negations’.
Fontes de Financiamento / Funding: Eur J Neurol. 2004;11(8):563-6.
Não existiram fontes externas de financiamento 12. Soultanian C, Perisse D, Révah-Levy A, Lu-
para a realização deste artigo. que R, Mazet P, Cohen D. Cotard’s syndrome
The authors have declared no external funding in adolescents and young adults: a possible
was received for this study. onset of bipolar disorder requiring a mood
stabilizer? J Child Adolesc Psychopharmacol.
Bibliografia / References 2005;15(4):706-11.
1. Cotard J. Du délire hypocondriaque dans une 13. Basu A, Singh P, Gupta R, Soni S. Cotard syn-
forme grave de la mélancolie anxieuse. Ann drome with catatonia: unique combination.
Med Psychol. 1880;4:168-74. Indian J Psychol Med. 2013;35(3):314-6.
2. Cotard J. Du délire des négations. Arch Neurol. 14. Cotard J. De la perte de la vision mentale dans
1882;4:152-170, 282-96. la mélancolie anxieuse. Arch Neurol. 1884;
3. Régis E. Note historique et clinique sur le délire 289–295.
des négations. Gaz Med Paris. 1893;2:61-4.

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Revisitando a Síndrome de Cotard: Ilustração de Dois Casos Clínicos Psiquiátricos PsiLogos • pp 67-77

15. Coltheart M, Langdon R, McKay R. Schizophre- of striatal D receptor binding. Psychiatry Res.
nia and monothematic delusions. Schizophr 2004;130(1):109-12.
Bull. 2007;33(3):642-7. 19. Lohmann T, Nishimura K, Sabri O. & Klos-
16. Davies M, Coltheart M, Langdon R, Breen terkotter J. Successful electroconvulsive thera-
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-factor account. Philos Psychiatr Psychol. perfusion. Der Nervenarzt. 1996: 67,400-3.
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17. Joseph AB: Cotard’s syndrome in a patient Biological basis and staging of Cotard’s syndro-
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