Você está na página 1de 27

DIREITO PATRIMONIAL DA FAMÍLIA E SUCESSÕES

RESOLUÇÃO EXAMES

CASOS PRÁTICOS

Época normal 2015

I.

Este é um caso prático de administração dos bens do casal; mais propriamente, de ilegitimidades
conjugais.

1. Em primeiro lugar, é necessário averiguar o regime de bens. O regime de bens é o conjunto de regras
cuja aplicação define a propriedade sobre os bens do casal. O art. 1698.º estabelece o princípio da
liberdade de regime de bens: os cônjuges podem fixar livremente em convenção antenupcial o regime de
bens, quer escolhendo um dos regimes previstos no Código, quer estipulando o que lhes aprouver, dentro
dos limites legais. A convenção antenupcial é o acordo entre os nubentes destinado a fixar o regime de
bens, sendo um contrato acessório do casamento.

No caso, os nubentes celebraram convenção antenupcial, em que fixaram o regime da separação de bens.
Porém, é necessário averiguar se os requisitos da convenção antenupcial estão verificados. Em relação
aos requisitos de fundo, a convenção exige o consentimento dos nubentes e está sujeita às regras gerais;
em relação às formalidades e registo, as convenções só são válidas se forem celebradas por declaração
prestada perante funcionário do registo civil ou por escritura pública (art. 1710.º), devendo ser registadas
para terem efeitos em relação a terceiros (art. 1711.º); podem ser nulas ou anuláveis, de acordo com as
regras gerais e com o art. 1709.º; e caducam se o casamento não for celebrado dentro de 1 ano ou se,
tendo-o sido, for declarado nulo ou anulado (art. 1716.º). Ora, neste caso, interessa-nos a caducidade: o
casamento foi celebrado mais de um ano depois da celebração da convenção antenupcial, pelo que a
convenção já caducou. Assim, vigora antes o regime da comunhão de adquiridos, que é o regime de
bens supletivo (art. 1717.º): vigota na falta de convenção antenupcial ou no caso de caducidade,
invalidade ou ineficácia desta.

Al. a): Ana doou ao primo Carlos um terreno que lhe tinha sido doado na pendência do casamento. Está
em causa um bem imóvel (art. 204.º/1/a)). É um bem próprio ou comum? No regime da comunhão de
adquiridos, há ou pode haver bens comuns e próprios de cada um dos cônjuges, sendo que a ideia que
preside a este regime é a de que só se torna comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os

  1
cônjuges no esforço patrimonial do casamento, pelo que os bens levados para o casal e os adquiridos a
título gratuito não se comunicam. Assim, tratando-se de um bem doado, é um bem próprio de Ana nos
termos do art. 1722.º/1/b). Note-se que já entram na comunhão se o doador assim o tiver determinado
(art. 1729.º/1), o que não é o caso.

Quem é o administrador? O art. 1678.º enuncia as regras gerais de administração do casal, sendo
necessário distinguir entre bens próprios e comuns. Nos termos do n.º 1, cada um dos cônjuges tem a
administração de bens próprios (sendo que o n.º 2 estabelece algumas excepções, em que um dos
cônjuges pode administrar os bens do outro). Assim, a administração do terreno cabe a Ana. Note-se que
os poderes do cônjuge administrador vão além da mera administração, abrangendo poderes e disposição
de móveis comuns ou próprios (art. 1682.º/2).

No caso, Ana doou o terreno. Pode fazê-lo? O casamento gera ilegitimidades, que se distinguem das
incapacidades: enquanto que estas dependem de uma capacidade, as ilegitimidades resultam de uma
posição, são relativas. Por outro lado, ao contrário das incapacidades, não são estabelecidas para
protecção do próprio, mas sim do outro cônjuge e da família. Ocorrem quando o cônjuge extravasa os
seus poderes de administração em relação ao bem. Assim, nos regimes de comunhão, o art. 1682.º-A/1/a)
prevê que cada um dos cônjuges não pode, sem consentimento do outro, alienar bens imóveis, próprios ou
comuns (este regime resulta do facto de o CC ainda dar relevo especial à riqueza imobiliária). Assim, a
doação carecia do consentimento de Bernardo, o que não sucedeu.

Qual a sanção? O art. 1687.º considera anuláveis os actos praticados contra o disposto no art. 1682.º-A,
logo a doação é anulável. A anulação pode ser pedida pelo cônjuge que não deu o seu consentimento ou
seus herdeiros (n.º 1), nos 6 meses subsequentes à data em que teve conhecimento do acto, mas nunca
depois de 3 anos sobre a sua celebração (n.º 2). Ainda está dentro do prazo, pelo que Bernardo pode
propor a acção de anulabilidade. A anulabilidade é sanável mediante confirmação nos termos gerais
(art. 288.º).

Al. b): Ana arrendou a David um quarto da casa que morava com Bernardo e que havia comprado. Está
em causa um bem imóvel (art. 204.º/1/a)), que é casa de morada de família. Mais uma vez, está em causa
um bem próprio de Ana, uma vez que o imóvel foi adquirido por Ana antes da celebração do casamento
(art. 1722.º/1/a)), não havendo aqui esforço comum do casal. Ana é a administradora, também por força
do art. 1678.º/1.

No caso, Ana deu de arrendamento um quarto do imóvel. Neste caso, o art. 1682.º-A/2 prevê que carece
de consentimento de ambos os cônjuges o arrendamento da casa de morada de família, em nome da
defesa da estabilidade da família. Temos aqui uma ilegitimidade conjugal.

  2
Em relação à acção de anulação, vale o disposto na al. b).

2. Estamos perante um caso prático de efeitos patrimoniais do casamento, mais particularmente de


dívidas dos cônjuges. Nesta matéria, valem dois princípios fundamentais: cada um dos cônjuge tem
legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro, o que decorre do princípio da igualdade
(art. 1690.º/1); e considera-se que a data em que as dívidas foram contraídas é a do facto que lhes deu
origem (art. 1690.º/2).

É necessário, desde logo, identificar e classificar a dívida. No caso, Bernardo foi condenado a pagar uma
indemnização por cumprimento defeituoso de um contrato de empreitada. Parece que esta é uma dívida
da exclusiva responsabilidade de Bernardo, nos termos do art. 1692.º/b): é da exclusiva
responsabilidade de um dos cônjuges as indemnizações devidas por facto imputável a ele, salvo se
estiverem abrangidas pelo art. 1691.º/1 e 2 (não é o caso). É o caso: trata-se do pagamento de uma
indemnização por facto imputável a Bernardo, o cumprimento defeituoso de um contrato a que estava
obrigado. Também se poderia argumentar estar em causa uma dívida contraída no exercício do comércio,
art. 1691.º/1/d), mas não parece ser o caso. Para além disto, não parece ser uma dívida contraída em
proveito comum do casal (al. c)), uma vez que advém da prática de um facto ilícito, gerador de
responsabilidade civil.

Tratando-se de uma dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, a regra geral é a de que
respondem por esta dívida os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação
nos bens comuns (art. 1696.º/1). Para além disto, os bens elencados no n.º 2 respondem ao mesmo tempo
que os bens próprios do cônjuge devedor, ainda que possam ser comuns. Na falta ou insuficiência de bens
próprios do cônjuge devedor, podem ser imediatamente penhorados bens comuns do casal, desde que o
exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação dos
bens (art. 740.º CPC).

O art. 1697.º/2 prevê que, no caso de terem respondido bens comuns por dívidas da exclusiva
responsabilidade de um dos cônjuges, surge um crédito de compensação do património comum sobre o
património do cônjuge do devedor, a tomar em conta no momento da partilha.

III.

A personalidade jurídica extingue-se com a morte (art. 68.º/1), que abre uma crise nas relações jurídicas
de que era titular. O art. 2024.º dá-nos a definição de sucessão por morte – é o chamamento de uma ou
mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais e uma pessoa falecida e a consequente

  3
devolução dos bens a que esta pertenciam. Temos aqui uma noção de sucessão como subingresso nas
relações jurídicas do falecido. O primeiro momento do fenómeno sucessório é a abertura da sucessão,
art. 20131.º, que se caracteriza por as relações jurídicas de que o de cuius era titular se desprenderem
dele. A sucessão abre-se no momento da morte, como dispõe o art. 2031.º - este é um momento
fundamental, a que se reportam vários dos actos e operações da sucessão.

A vocação sucessória é o chamamento à sucessão, feito pela lei ou pelo de cuius no momento da morte.
O sucessível, já designado para suceder, é chamado à sucessão. Nos termos do art. 2026.º, os títulos da
vocação são a lei, o testamento e o contrato. Temos ainda de ver os pressupostos da vocação, ou seja, as
condições necessárias para que uma pessoa seja chamada à sucessão. O destinatário da vocação é o titular
da designação sucessória prevalente no momento da morte do de cuius, desde que nesse momento exista e
tenha capacidade sucessória – assim, são 3 os pressupostos da vocação, a prevalência, existência e a
capacidade sucessória.

O primeiro pressuposto é a prevalência ou a titularidade da designação sucessória prevalente. O


princípio geral, previsto no art. 2032.º/1, é o de que só se converte em vocação a designação sucessória
prevalente no momento da morte. A hierarquia das designações sucessórias é a seguinte: herdeiros
legitimários (art. 2157.º); herdeiros ou legatários contratuais (arts. 1759.º e 1705.º/3); herdeiros ou
legatários testamentários (arts. 2311.º, 2313.º e 1710.º/1); herdeiros legítimos (art. 2133.º/1). Os herdeiros
legitimários são, nos termos do art. 2157.º, o cônjuge, descendentes e ascendentes, pela ordem do art.
2133.º, valendo aqui o princípio de preferência de classes, art. 2134.º (os herdeiros de cada uma das
classes de sucessíveis preferem aos das classes imediatas) e o princípio da preferência do grau de
parentesco de cada classe, art. 2135.º (dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo preferem
aos de grau mais afastado). Este requisito está verificado em relação a B, D e E: são herdeiros
legitimários da primeira classe de sucessíveis (art. 2133.º/1/a)). G é excluído da sucessão, por força do
princípio da preferência do grau de parentesco. Já T é herdeiro legatário.

O segundo pressuposto é a existência do chamado, ou seja, o chamado tem de existir como pessoa
jurídica no momento da abertura da sucessão. Este pressuposto desdobra-se em duas exigências: o
chamando ainda há-de existir no momento da morte do autor da sucessão, ou seja, tem de ser uma pessoa
singular que ainda esteja viva ou uma pessoa colectiva que ainda não esteja extinta; e já há-de existir no
momento da morte do autor da sucessão, ou seja, tem de ser uma pessoa singular que já esteja viva ou
uma pessoa colectiva que já esteja reconhecida no momento em que se abre a sucessão. No caso, o
requisito está preenchido em relação a todos. Eduardo faleceu depois da abertura da sucessão (não houve
pré-morte), pelo que ainda é chamado à sucessão. Não há aqui direito de representação.

  4
O terceiro pressuposto é a capacidade sucessória, que é a idoneidade para ser chamado a suceder, como
herdeiro ou legatário. O princípio geral é o mesmo que determina a capacidade jurídica e está expresso no
art. 2033.º: são capazes de suceder todas as pessoas, singulares ou colectivas, que a lei não declare
incapazes. Também é no momento da abertura da sucessão que se aprecia a capacidade sucessória (art.
2033.º e 2035.º/a)). O requisito está preenchido em relação a todos.

A aquisição sucessória opera-se pela aceitação, ou seja, pela resposta afirmativa ao chamamento. A
aceitação é um acto livre para qualquer herdeiro ou legatário (com a excepção da sucessão do Estado
como herdeiro legítimo, que opera por força da lei, art. 2154.º), sendo que a aquisição retrotrai os seus
efeitos à data da abertura da sucessão. No caso de Eduardo, este direito não chegou a ser exercido, pelo
que se transmite aos seus herdeiros, nos termos do art. 2058.º. Assim, F e G vão ser chamados à herança
de E, que inclui o direito a aceitar ou repudiar a herança de A – se exercerem no sentido da aceitação, vão
concorrer à herança de A.

Em relação à partilha, uma vez que o autor da sucessão faleceu casado, temos ainda de fazer a partilha
conjugal (art. 1688.º e 1689.º). Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus
herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum (art. 1689.º/1). A partilha
faz-se segundo o regime de bens adoptado – neste caso, o regime da comunhão geral, que era o regime
supletivo para os casamentos celebrados até 31 de Maio de 1967 (art. 15.º da Lei Preambular que aprovou
o CC). Este regime é caracterizado pelo facto de o património comum ser constituído por todos os bens
(art. 1732.º), pelo que A fica com metade do património global – 50.000.

Uma vez que há herdeiros legitimários a proteger, temos de calcular a massa da herança, para poder
calculas a legítima. Nos termos do art. 2156.º, a legítima é a porção de bens que o testador não pode
dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários. O art. 2162.º estabelece que, para o
cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à
data da sua morte, aos bens doados, às despesas sujeitas à colação e às dívidas da herança. Assim, o
cálculo da massa da herança desdobra-se em quatro operações: em primeiro lugar, a avaliação dos bens
deixados (nos termos do art. 2162.º/1, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do
autor da sucessão à data da sua morte); em segundo lugar, dedução das dívidas da herança; restituição
fictícia dos bens doados e despesas sujeitas à colação; finalmente, imputação das liberalidades feitas por
conta da legítima. Apesar de a operação da dedução das dívidas vir referida em último lugar, a doutrina
de Coimbra defende que deve fazer-se logo em segundo lugar, deduzindo-se aos bens deixados e não aos
bens doados, uma vez que os credores não podem pagar-se dos bens doados. Caso contrário, os herdeiros
legitimários não receberiam legítima em situações de herança deficitária.

  5
Assim, neste caso, a massa herança é calculada da seguinte forma: bens deixados (50.000) – dívidas
(10.000) + doações (17.000 + 33.000), ou seja, 90.000. Uma vez que concorrem à sucessão o cônjuge e os
filhos, a legítima destes é de 2/3 da herança, esta é a quota indisponível (art. 1259.º/1) – 60.000. A
legítima subjectiva de cada um é de 60.000/3, ou seja, 20.000 – a sucessão é feita por cabeça (art. 2136.º e
2139.º).

No entanto, A tinha feito a D uma doação no valor de 17.000, sendo que esta doação vai ser sujeita à
colação. A colação, nos termos do art. 2104.º, é a restituição que os descendentes que queiram entrar na
sucessão do ascendente devem fazer à massa da herança dos bens ou valores que lhe foram doados por
este, para igualação da partilha. O fundamento da colação está, segundo a doutrina, na vontade presumida
do de cuius – ao fazer uma doação a um dos seus descendentes, o de cuius não terá querido favorecê-lo
em relação aos outros descendentes, mas sim fazer uma mera antecipação da quota hereditária do
donatário. A obrigação de colação recai sobre os descendentes que sejam presuntivos herdeiros
legitimários do doador, sendo que para Pereira Coelho o cônjuge não está obrigado a conferir. Para além
disto, estão sujeitos a colação as doações e as despesas. Assim, para que opere a colação, é necessário
estarem preenchidos 4 requisitos cumulativos: tem de se tratar de uma doação ou despesa gratuita (art.
2110.º/2); tem de ser uma doação feita a descendente (P. Coelho); este descendente tem de ser, à data da
colação, presuntivo herdeiro legitimário (filho, ou neto se o pai fosse pré-falecido); e é ainda necessário
que exista pluralidade de herdeiros. No caso, os requisitos estão todos verificados.

Mas como se faz a colação? Temos três regimes: o regime legal supletivo (art. 2104.º e 2108.º), segundo
o qual a doação é imputada na quota hereditária do donatário, que é obrigado a conferir, não apenas
dentro da sua legítima, mas também o excesso da doação sobre a legítima; regime convencional da
colação absoluta, segundo o qual a doação é feita por conta d legítima; e ainda o regime convencional de
dispensa da colação (art. 2114.º), no qual a colação é imputada na quota disponível e não tem de ser
conferida. No silêncio do autor da sucessão, aplica-se o primeiro regime, e a doação é imputada na quota
hereditária: porém, sendo inferior à legítima, recebe, para além dos 17.000, ainda 3.000, para igualar a
legítima.

A colação faz-se, em princípio, em valor, ou seja imputa-se o valor da doação ou das despesas na quota
hereditária (art. 2109.º/1).

Ora, vimos que a quota disponível era de 1/3 da massa da herança, ou seja, 30.000. Porém, A dispôs de
33.000 (doação ao neto G) e 20.000 (legado à tia T), ou seja, dispôs de mais do que podia. Aqui entra a
redução por inoficiosidade, art. 2168.º e segs.: a redução por inoficiosidade aplica-se a quaisquer
liberalidades do autor da sucessão, e visa a defesa da integridade da legítima O art. 2168.º diz que se
dizem inoficiosas as liberalidades que afectem as legítimas, e o art. 2160.º que estas liberalidades são

  6
redutíveis. Os arts. 2171.º a 2173.º estabelecem por que ordem devem ser reduzidas as liberalidades – em
primeiro lugar, reduzem-se as disposições testamentárias a título de herança; em segundo, os legados, e
em terceiro, as liberalidades feitas em vida, começando-se pela última. O art. 2174.º faz uma distinção,
consoante os bens deixados forem divisíveis ou indivisíveis: se forem divisíveis, a redução faz-se
separando a parte necessária para preencher a legítima; se forem indivisíveis, se a importância da redução
não exceder metade da doação, os bens pertencem ao legatário ou donatário, tendo este de pagar em
dinheiro a importância da redução.

Assim, neste caso, em primeiro lugar é reduzido o legado, integralmente; e, em segundo, é reduzida a
doação feita a G, em 3.000. Sendo o automóvel um bem indivisível, aplicando o art. 2174.º, o automóvel
continua a pertencer a G, que terá de pagar 3.000.

Assim, B, D e E recebem, cada um, 20.000 a título de legítima.

Quota indisponível: 60 Quota disponível: 30


B 20 0
D 20 (17 + 3) 17 colação
E (F e G) 20 0
G - 33 30 redução
T - 20 redução

Época normal 2014

I.

Estamos perante um caso de administração dos bens do casal; mais propriamente, de ilegitimidades
conjugais.

Em primeiro lugar, é necessário averiguar o regime de bens. O regime de bens é o conjunto de regras cuja
aplicação define a propriedade sobre os bens do casal, ou seja, a repartição entre o património comum e
os dois patrimónios próprios. O art. 1698.º fixa o princípio da liberdade de regime de bens: os cônjuges
podem fixar livremente em convenção antenupcial o regime de bens, quer escolhendo um dos regimes
previstos no Código, quer estipulando o que lhes aprouver, dentro dos limites legais. No caso, não tendo
sido celebrada convenção antenupcial, vigora o regime supletivo – regime da comunhão de adquiridos (é
o regime supletivo relativamente aos casamentos celebrado depois de 31 de Maio de 1967, art. 15.º Lei
preambular do Código).

  7
O casamento gera ilegitimidades, que se distinguem das incapacidades: enquanto que estas dependem de
uma capacidade, as ilegitimidades resultam de uma posição, são relativas. Por outro lado, ao contrário das
incapacidades, não são estabelecidas para protecção do próprio, mas sim do outro cônjuge e da família.
Ocorrem quando o cônjuge extravasa os seus poderes de administração em relação ao bem.

Al. a): A arrendou um apartamento T2 sem consentimento de B. Não se diz nada acerca do bem, pelo que
não sabemos se é um bem próprio ou comum. Porém, independentemente da natureza do bem, o art.
1682.º-A estabelece que carece do consentimento do outro cônjuge, no regime de comunhão, o
arrendamento de um imóvel próprio ou comum. Apesar de a locação ser considerada, em regra, um
acto de administração ordinária, justifica-se incluir aqui a proibição do arrendamento, uma vez que o
exercício dos direitos do arrendatário provoca uma limitação considerável das faculdades do proprietário.

Al. b): A comprou um prédio rústico. Sendo A casado no regime de comunhão de adquiridos, este bem
será um bem comum, art. 1724.º/b) – consideram-se comuns os bens adquiridos pelos cônjuges na
constância do matrimónio, salvo se lhes advierem a título de sucessão ou doação (art. 1722.º/1/b)), e os
bens sub-rogados no lugar de bens próprios (art. 1723.º). Não temos aqui nenhuma ilegitimidade.

Al. c): cedeu em comodato um imóvel que havia sido adquirido com o produto de uma doação feita por
seus pais antes do casamento. Este produto da doação é um bem próprio, nos termos do art. 1722.º/1/a)
(bem levado para o casamento). Assim, o imóvel foi adquirido com dinheiro próprio de A, pelo que
este bem se pode considerar próprio pelo art. 1723.º/c) (bem sub-rogado no lugar de bem próprio),
sendo que é necessário que se verifiquem dois requisitos: declaração da proveniência do dinheiro no
documento de aquisição ou equivalente; e assinatura de ambos os cônjuges. A declaração tem de ser feita
no momento em que se faz a aquisição, com intervenção de ambos os cônjuges (se o outro cônjuge se
recusar, P. Coelho defende o recurso ao suprimento do consentimento judicial previsto no art. 1684.º/3).
A razão desta norma está na necessidade de proteger os terceiros que confiaram na presunção de
comunhão do art. 1724.º/b). Porém, para P. Coelho, esta exigência só se justifica em nome da protecção
de terceiros, logo, estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, a conexão entre valores próprios e
o bem adquirido pode ser provada por quaisquer outros meios. No caso, não temos dados suficientes para
saber se estes requisitos foram ou não observados, pelo que em princípio o bem será próprio.

De qualquer forma, independentemente da natureza do bem, o art. 1682.º-A/1/a) estabelece que carece do
consentimento de ambos os cônjuges a constituição de direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios
ou comuns.

  8
Pode B reagir contra os actos da al. a) e c)? O art. 1687.º considera anuláveis os actos praticados contra o
disposto no art. 1682.º-A, logo estes actos são anuláveis. A anulação pode ser pedida pelo cônjuge que
não deu o consentimento ou seus herdeiros (n.º 1), nos 6 meses subsequentes à data em que o requerente
teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos 3 anos sobre a sua celebração (n.º 2). B
tomou conhecimento no dia 12/6, logo hoje (12/06) ainda está dentro do prazo de 6 meses; como os actos
foram praticados a 10/01, também estamos dentro do prazo de 3 anos. Assim, B pode pedir a anulação
dos actos da al. a) e c).

II.

Estamos perante um caso de responsabilidade por dívidas. A não pagou as prestações do IMI relativo
ao imóvel referido na al. c) anterior, tendo-lhe sido aplicada uma coima no valor de 300€.

Nesta matéria, valem dois princípios fundamentais: cada um dos cônjuge tem legitimidade para contrair
dívidas sem o consentimento do outro, o que decorre do princípio da igualdade (art. 1690.º/1); e
considera-se que a data em que as dívidas foram contraídas é a do facto que lhes deu origem (art.
1690.º/2).

Em primeiro lugar, importa classificar a dívida. Se considerarmos o bem como bem próprio de A, o art.
1694.º/2 diz que as dívidas que onerem bens próprios de um dos cônjuges são da sua exclusiva
responsabilidade (salvo se tiverem como causa a percepção dos respectivos rendimentos e estes, por
força do regime aplicável, forem considerados comuns). A dívida pelo pagamento do IMI é uma dívida
que onera o imóvel, bem próprio de A, pelo que será da sua exclusiva responsabilidade. Também
poderíamos argumentar que é uma dívida da exclusiva responsabilidade de A por se tratar de uma coima
aplicada por facto imputável a ele (art. 1692.º/b)).

Tratando-se de uma dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, o art. 1696.º diz que
respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens
comuns (n.º 1). Para além disto, o n.º 2 estabelece que respondem ao mesmo tempo que os bens próprios
do cônjuge devedor os bens aí elencados, ainda que estes, por força do regime de bens adoptados, possam
ser considerados bens comuns – a lei sacrificou nestes casos o património comum do casal em favor das
expectativas do credor. É o caso do produto do trabalho (art. 1696.º/2/b), pelo que este, apesar de ser um
bem comum por força do regime da comunhão de adquiridos (art. 1724.º/a)), responde em primeira linha
com os bens próprios. Assim, a Autoridade Tributária pode penhorar uma parte do salário de A.

III.

  9
A personalidade jurídica extingue-se com a morte (art. 68.º/1), que abre uma crise nas relações jurídicas
de que o falecido era titular. O art. 2024.º dá-nos a definição de sucessão por morte – é o chamamento
de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e
consequente devolução dos bens que a esta pertenciam (noção de sucessão como subingresso nas relações
jurídicas do falecido). O primeiro momento do fenómeno sucessório é a abertura da sucessão, art.
2031.º, que se caracteriza por as relações jurídicas de que o de cuius era titular se desprenderem dele. A
sucessão abre-se no momento da morte, art. 2031.º, sendo que este é um momento fundamental, a que se
reportam vários dos actos e operações da sucessão.

Quem vai ser chamado á sucessão de A? A vocação sucessória é o chamamento à sucessão, feito pela lei
ou pelo de cuius no momento da morte. O sucessível, já designado para suceder, é chamado à sucessão. Já
a designação sucessória é a indicação dos sucessíveis, antes da morte do de cuius, pela própria lei ou por
um facto jurídico praticado de harmonia com ela (normalmente, um testamento).

Nos termos do art. 2026.º, os títulos da vocação são a lei, o testamento e o contrato. Temos de analisar os
pressupostos da vocação, ou seja, as condições necessárias para que uma pessoa seja chamada à
sucessão. O destinatário da vocação é o titular da designação sucessória prevalente no momento da morte
do de cuius, desde que nesse momento exista e tenha capacidade sucessória. Assim, são 3 os pressupostos
da vocação: titularidade da designação sucessória prevalente; existência e capacidade sucessória. Temos
de analisar estes pressupostos em relação a C, M, D, Francisco, E e Filipe.

O primeiro pressuposto é a prevalência ou a titularidade da designação sucessória prevalente. O


princípio geral, previsto no art. 2032.º/1, é o de que só se converte em vocação a designação sucessória
prevalente no momento da morte. A hierarquia das designações sucessórias é a seguinte: herdeiros
legitimários (art. 2157.º); herdeiros ou legatários contratuais (arts. 1759.º e 1703.º/3); herdeiros ou
legatários testamentários (art 2311.º, 2313.º e 1710.º/1); e herdeiros legítimos (art. 2133.º/1). Os herdeiros
legitimários são, nos termos do art. 2157.º, o cônjuge, descendentes e ascendentes, pela ordem e regras
estabelecidas para a sucessão legítima. Vale aqui o princípio da preferência de classes, art. 2134.º (os
herdeiros de cada uma das classes de sucessíveis) e o princípio da preferência do grau de parentesco de
cada classe, art. 2135.º (dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau
mais afastado). Este requisito está verificado em relação a C, D e E, que são herdeiros legitimários da 1ª
classe de sucessíveis (art. 2133.º/1/a)), sendo que M, Francisco e Filipe são afastados por força do art.
2134.º e 2135.º. C também vai ser chamada a título de herdeira testamentária.

O segundo pressuposto é a existência do chamado, ou seja, o chamado tem de existir como pessoa
jurídica no momento da abertura da sucessão. Este pressuposto desdobra-se em duas exigências: o
chamado ainda há-de existir como pessoa jurídica no momento da morte do autor da sucessão (tem de ser

  10
uma pessoa singular que ainda esteja viva ou uma pessoa colectiva que ainda não esteja extinta, art.
2033.º e 2317.º/a)); e já há-de existir no momento da morte do autor da sucessão (tem de ser uma pessoa
singular que já esteja viva ou uma pessoa colectiva já reconhecida). Neste caso, o requisito está verificado
em relação a C e D, mas não em relação a E, que faleceu em 2010. Vai intervir aqui o direito de
representação.

O terceiro pressuposto é a capacidade sucessória, que se define como a idoneidade para ser chamado a
suceder, como herdeiro ou legatário. O princípio geral é o mesmo que determina a capacidade jurídica e
está expresso no art. 2033.º: são capazes de suceder todas as pessoas, singulares ou colectivas, que a lei
não declare incapazes. Também é no momento da abertura da sucessão que se aprecia a capacidade
sucessória (art. 2033.º e 2035.º/a)). Este requisito está preenchido em relação a todos.

Como vimos, E faleceu antes de A, pelo que temos aqui um caso de vocação indirecta, mais
propriamente, de direito de representação. Fala-se em vocação indirecta sempre que uma pessoa sucede
em vez de outra que não pôde ou não quis suceder – pressupõe que alguém não pôde ser chamado à
sucessão de outrem, por falta de um pressuposto da vocação, ou foi chamado mas respondeu
negativamente ao chamamento. Constituem exemplos de vocação indirecta o direito representação, a
substituição directa ou vulgar e o direito de acrescer. Na sucessão legal, recorremos em primeiro lugar ao
direito de representação, e só depois ao direito de acrescer.

Nos termos do art. 2039.º, a representação sucessória ocorre quando a lei chama os descendentes de um
herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança ou legado.
Distingue-se da representação e do direito de transmissão. Para a doutrina moderna, o direito de
representação não constituiu uma ficção legal, mas sim uma excepção à regra de sucessão legítima de que
o parente mais próximo exclui o parente mais afastado (art. 2135.º). Na sucessão legal, o direito de
representação depende da verificação de 2 requisitos: falta de um parente da 1ª ou 3ª classes de
sucessíveis do art. 2133.º/1, sendo que o termo “falta” abrange a pré-morte, incapacidade por indignidade,
deserdação, ausência e repúdio; e existência de descendentes do parente excluído da sucessão. No caso,
estão verificados os 2 requisitos, pelo que Francisco, filho de E, é chamado à sucessão no lugar deste.

A aquisição sucessória opera-se pela aceitação, ou seja, pela resposta afirmativa ao chamamento. A
aceitação é um acto livre para qualquer herdeiro ou legatário (com excepção da sucessão legítima do
Estado, que opera automaticamente), sendo que a aquisição retrotrai os seus efeitos à data da abertura da
sucessão. No caso, todos terão aceite.

Importa agora proceder à partilha. Como o autor da sucessão faleceu casado, temos ainda de fazer a
partilha conjugal (art. 1688.º e 1689.º). Cessando com a morte as relações patrimoniais entre os

  11
cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum
(art. 1689.º/1). A partilha faz-se segundo o regime de bens adoptados – neste caso, casaram segundo o
regime de comunhão de adquiridos (regime supletivo, art. 1717.º), sendo que os cônjuges participam por
metade na comunhão (art. 1730.º). Assim, A fica com metade do património comum, ou seja, 20.000.

Uma vez que há herdeiros legitimários a proteger, temos de calcular a massa da herança, para poder
depois calcular a legítima. Nos termos do art. 2156.º, a legítima é a porção de bens que o testador não
pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários. O art. 2162.º estabelece que, para o
cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à
data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas à colação e às dívidas da herança.
Assim, o cálculo da massa da herança desdobra-se em quatro operações: avaliação dos bens deixados;
dedução das dívidas da herança; restituição fictícia dos bens doados e despesas sujeitas à colação; e
imputação das liberalidades feitas por conta da legítima (colação). Apesar de a operação da dedução das
dívidas vir referida em último lugar, a doutrina de Coimbra defende que deve logo fazer-se em segundo
lugar, deduzindo-se aos bens deixados e não aos bens doados, uma vez que os credores não podem pagar-
se dos bens doados – caso contrário, os herdeiros legitimários poderiam não receber legítima em caso de
herança deficitária.

Assim, a massa da herança é calculada da seguinte forma: 80.000 (bens próprios) + 20.000 (metade dos
bens comuns) – 10.000 (dívidas) + 50.000 (doação ao primo Filipe) + 40.000 (doação a Eduardo) =
180.000. Uma vez que concorrem à sucessão o cônjuge e os filhos, a legítima destes é de 2/3 da herança
(quota indisponível, art. 1259.º/1) – 120.000. A legítima subjectiva de cada um é de 120.000/3, ou seja,
40.000 – a sucessão é feita por cabeça (art. 2136.º e 2139.º). C, D e F recebem cada um 40.000. Já a quota
disponível é de 1/3 da herança, ou seja, 60.000.

No entanto, A tinha feito a E uma doação no valor de 40.000, sendo que esta doação vai ser sujeita à
colação. A colação, nos termos do art. 2104.º, é a restituição que os descendentes que queiram entrar na
sucessão do ascendente devem fazer à massa da herança dos bens ou valores que lhe foram doados por
este, para igualação da partilha. O fundamento da colação está, segundo a doutrina, na vontade presumida
do de cuius – este, ao fazer uma doação a um dos seus descendentes, não terá querido favorecê-lo em
relação aos outros descendentes, mas sim fazer uma mera antecipação da quota hereditária do donatário.
A obrigação de colação recai sobre os descendentes que sejam presuntivos herdeiros legitimários do
doador, sendo que para P. Coelho o cônjuge não está obrigado a conferir. Estão sujeitos a colação as
doações e despesas (art. 2110.º, excepto as despesas do n.º 2).

Para que opere a colação, é necessário estarem preenchidos 4 requisitos cumulativos: tem de se tratar de
uma doação ou despesa gratuita (art. 2110.p); tem de ser uma doação feita a descendente (P. Coelho); este

  12
descendente tem de ser, à data da colação, presuntivo herdeiro legitimário; e é necessário que exista
pluralidade de herdeiros. No caso, todos os requisitos estão verificados.

Mas como se faz a colação? Temos três regimes: o regime legal supletivo (art. 2104.º e 2108.º), segundo
o qual a doação é imputada na quota hereditária do donatário, que é obrigado a conferir, não apenas
dentro da sua legítima, mas também o excesso da doação sobre a legítima; regime convencional da
colação absoluta, segundo o qual a doação é feita por conta da legítima; e ainda o regime convencional de
dispensa da colação (art. 2114.º), no qual a colação é imputada na quota disponível e não tem de ser
conferida. No silêncio do autor da sucessão, aplica-se o primeiro regime, e a doação é imputada na quota
hereditária, sendo igual à legítima de F, que sucede na vez de E (40.000).

A colação faz-se, em princípio, em valor, ou seja imputa-se o valor da doação ou das despesas na quota
hereditária (art. 2109.º/1).

Ora, vimos que a quota disponível era de 1/3 da massa da herança, ou seja, 60.000. Porém, A dispôs de
50.000 (doação ao primo F) e 30.000, metade da quota disponível (disposição testamentária feita a C), ou
seja, dispôs de mais do que podia. Aqui entra a redução por inoficiosidade, art. 2168.º e segs.: a redução
por inoficiosidade aplica-se a quaisquer liberalidades do autor da sucessão, e visa a defesa da integridade
da legítima O art. 2168.º diz que se dizem inoficiosas as liberalidades que afectem as legítimas, e o art.
2160.º que estas liberalidades são redutíveis. Os arts. 2171.º a 2173.º estabelecem por que ordem devem
ser reduzidas as liberalidades – em primeiro lugar, reduzem-se as disposições testamentárias a título de
herança; em segundo, os legados, e em terceiro, as liberalidades feitas em vida, começando-se pela
última. O art. 2174.º faz uma distinção, consoante os bens deixados forem divisíveis ou indivisíveis: se
forem divisíveis, a redução faz-se separando a parte necessária para preencher a legítima; se forem
indivisíveis, se a importância da redução não exceder metade da doação, os bens pertencem ao legatário
ou donatário, tendo este de pagar em dinheiro a importância da redução. Assim, neste caso, é reduzida a
disposição testamentária, em 20.000.

Concluindo, C, D e Francisco recebem cada um 40.000 a título de legítima, C recebe ainda 10.000 a título
de disposição testamentária, e Filipe conserva a sua doação no valor de 50.000.

Quota indisponível 120 Quota disponível 60


C 40 30 10 redução
D 40 -
Francisco (direito de representação) 40 (40 + 0) 40 colação
Filipe - 50

  13
Época normal 2015 (1ª turma)

I.

Em primeiro lugar, é necessário identificar o regime de bens. A casou com B no regime supletivo em
2000, logo casaram no regime de comunhão de adquiridos (art. 1717.º).

Em primeiro lugar, é necessário identificar o regime de bens. A casou com B no regime supletivo em
2000, logo casaram no regime de comunhão de adquiridos (art. 1717.º).

Al. a): está em causa um apartamento, que é um bem imóvel (art. 204.º/1/a)). Este é um bem comum,
uma vez que A o recebeu de herança na constância do casamento (art. 1722.º/1/b)). Não há aqui esforço
comum dos cônjuges. Cada um dos cônjuges tem a administração dos seus bens próprios, art. 1678.º/1,
logo o administrador do apartamento é A. No entanto, A não tem poderes para praticar o acto, temos aqui
uma ilegitimidade conjugal – carece do consentimento de ambos os cônjuges o arrendamento de um
imóvel próprio ou comum (art. 1682.º-A/1/a)).

Al. b): está em causa um bem móvel (art. 205.º). Este é um bem comum, pois foi adquirido por A a título
oneroso na constância do casamento (art. 1724.º/b)). Quem é o administrador? A regra é a de que cada
cônjuge administra os seus próprios bens (art. 1678.º/1); e ambos os cônjuges são administradores do
património comum, sendo que qualquer dos cônjuges pode praticar actos de administração ordinária (n.º
3). Porém, neste caso a administração cabe a B, uma vez que é um bem móvel por ela utilizado
exclusivamente como instrumento de trabalho. A alienou o bem. Temos aqui uma ilegitimidade conjugal,
uma vez que o art. 1682.º/3/b) diz que carece de consentimento de ambos os cônjuges a alienação de
móveis pertencentes ao cônjuge que não os administra.

Al. c): está em causa a disposição do direito ao arrendamento da casa de morada de família. Nos termos
do art. 1682.º-B/d), carece do consentimento de ambos os cônjuges o subarrendamento. Temos uma
ilegitimidade conjugal.

Estes actos são anuláveis por força do disposto no art. 1687.º. A acção deve ser proposta nos 6 meses
subsequentes à tomada de conhecimento, mas sempre dentro dos 3 anos após a prática do acto. Assim, B
podia reagir contra os actos da al. a) e c), mas não d) (já tomou conhecimento em 2013).

III.

  14
A morte extingue a personalidade jurídica (art. 68.º/1), abrindo uma crise nas relações jurídicas do
falecido. A sucessão por morte (art. 2024.º) é o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das
relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa colectiva e a consequente devolução dos bens que a esta
pertenciam. O primeiro momento do fenómeno sucessório é a abertura da sucessão, que se caracteriza por
as relações jurídicas de que o de cuius era titular se desprenderem dele. A sucessão abre-se no momento
da morte do autor (art. 2031.º), um momento fundamental.

Aberta a sucessão, ocorre a vocação sucessória, que é o chamamento à sucessão, feita pela lei ou pelo de
cuius. A vocação sucessória pressupõe a designação sucessória, que é a indicação dos sucessíveis, antes
da morte do de cuius, pela própria lei ou por um facto jurídico praticado de harmonia com ela
(normalmente, um testamento). Para sabermos que vai ser chamado à sucessão de A, temos de analisar os
pressupostos da vocação sucessória – titularidade da designação prevalente, existência e capacidade. Em
relação ao primeiro requisito, está verificado em relação a B, C e D, que são herdeiros legitimários da 1ª
classe de sucessíveis (art. 2133.º/1/a)). F e P são excluídos da sucessão por força dos princípios do art.
2134.º e 2135.º; assim como E, que é afim. Para além disto, D é chamado a título de legatário
testamentário.

Em relação ao requisito da existência, este falha em relação a C, que falece antes da abertura da sucessão.
É chamado à sucessão F, pelo direito de representação, art. 2042.º. Dá-se a representação sucessória
quando a lei chama os descendentes de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde
ou não quis aceitar a herança ou legado (art. 2039.º), sendo um tipo de vocação indirecta que se distingue
da representação e da transmissão do direito de aceitação. São necessários dois requisitos na sucessão
legal: falta de um parente na 1ª ou 2ª classe de sucessíveis; e existência de descendentes.

A aquisição sucessória depende da aceitação, art. 2050.º.

Em relação à partilha, temos primeiro de fazer a partilha conjugal (casados no regime de comunhão de
adquiridos, participam em metade no património comum, art. 1730.º).

Havendo herdeiros legitimários a proteger, temos de calcular a massa da herança. Mh = 40.000/2 +


100.000 (bens deixados) – 70.000 (dívidas) + 20.000 + 10.000 + 10.000 (doações) = 90.000. A quota
indisponível é de 60 (art. 2159.º), e a disponível de 30. A legítima sujectiva de B, F e D é de 20.000
(60.000/3), art. 2136.º e 2139.º.

A doação feita a Frederico é sujeita a colação.

  15
A dispôs de 40.000 (disposição testamentária a favor de D) + 20.000 (doação a P) + 10.000 (doação a E)
= 70.000, mais do que podia dispor. Assim, a disposição testamentária é reduzida integralmente.

B, F e D recebem cada um 20.000; E e P conservam as suas doações.

Quota indisponível (60) Quota disponível (30)


B 20 -
F (direito de representação) 20 (10 + 10) 10 colação
D 20 40 redução
E - 10
P - 20

Época normal 2013

I.

João e Maria são casados no regime da comunhão geral (regime supletivo até 31 de Maio de 1967).

Al. a): trata-se de um bem imóvel (art. 204.º), e de um bem comum (art. 1732.º). Ambos os cônjuges têm
legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns; os
restantes actos têm de ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges (art. 1678.º/3). Porém,
cada um dos cônjuges tem a administração dos bens comuns levados por ele para o casamento (art.
1678.º/2/c)), logo a administradora é M. Temos aqui uma ilegitimidade conjugal – J constitui uma
servidão de passagem (oneração com um direito real de gozo) sobre o bem sem o consentimento de A,
art. 1682.º-A/1/a).

Al. b): trata-se de um bem imóvel, que foi adquirido na constância do casamento com o produto de uma
doação. Este é um bem comum (art. 1732.º). O administrador é J, art. 1678.º/2. Temos também uma
ilegitimidade conjugal, art. 1682.º-A/1/a).

Maria pode pedir a anulação dos negócios, pois está dentro do prazo (art. 1687.º).

II.

Está em causa uma dívida referente proveniente da aquisição de um prédio, que como vimos é um bem
comum cuja administração pertence a J. Parece que temos aqui uma dívida da responsabilidade de ambos

  16
os cônjuges por aplicação do art. 1691.º/1/c), pelo que é necessário averiguar o preenchimento dos
requisitos deste preceito. Para que a dívida se considere comum, é necessário o preenchimento de 4
requisitos: tem de ser uma dívida contraída na constância do casamento; pelo cônjuge administrador, i.e.,
tem de estar ligada aos bens de que o cônjuge tem a administração; nos limites dos poderes de
administração; e contraída em proveito comum do casal. No caso, parecem estar preenchidos todos os
requisitos (note-se que o legislador não exige o consentimento do outro cônjuge para a compra de um
bem).

Sendo uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondem os bens comuns do casal e, na
falta ou insuficiência destes, os bens próprios (art. 1695.º). O salário de M é um bem comum, pelo que
pode ser penhorado em primeiro lugar (art. 1732.º e 1733.º).

III.

Quota indisponível: 120 Quota disponível: 60


B 40 30 redução
D 40 70 colação 30
G (representação de F) 40 40 30 redução

QUESTÕES TEÓRICAS

1. Convenções antenupciais: princípio da liberdade e da imutabilidade.

A convenção antenupcial é o acordo entre os nubentes destinado a fixar o regime de bens, sendo um
contrato acessório do casamento – este é um condição legal de eficácia da convenção antenupcial. Valem
nesta matéria dois princípios fundamentais: o princípio da liberdade e o princípio da imutabilidade.

O princípio da liberdade diz-nos que os cônjuges podem fixar, na convenção antenupcial, dentro dos
limites da lei, o regime de bens do casamento, quer escolhendo um dos regimes previstos no Código, quer
estabelecendo o que lhes aprouver. Podem ainda incluir na convenção disposições estranhas ao regime de
bens, como a que estão previstas no art. 1700.º e segs. Esta liberdade permite incluir na convenção
quaisquer negócios que possam constar de escritura pública, e ainda introduzir cláusulas não patrimoniais
(ex: perfilhação).

  17
O art. 1699.º/1 enuncia os limites legais a este princípio, sendo que a sua enumeração não é taxativa – a
estipulação dos nubentes pode ser nula por violação de normas imperativas, art. 294.º. E mesmo que não
sejam nulas, pode duvidar-se de que as estipulações vinculem os cônjuges em todas as circunstâncias,
sobretudo em caso de separação de facto ou de divórcio. Por outro lado ainda, pode pretender introduzir-
se cláusulas sem dignidade para serem tuteladas pelo direito.

As proibições do art. 1699.º já resultariam das regras imperativas e dos princípios fundamentais que
regem o direito matrimonial. Nos termos deste artigo, não pode ser objecto de convenção: a
regulamentação da sucessão hereditária (al. a)); a alteração dos direitos ou deveres paternais ou conjugais
(al. b)); as regras sobre administração do casal (al. c)); e a comunicabilidade dos bens do art. 1733.º, que
são bens imperativamente próprios.

Já o princípio da imutabilidade está previsto no art. 1714.º/1, que diz que, fora dos casos previstos na lei,
não é permitido alterar nem as convenções antenupciais, nem os regimes de bens legalmente fixados.
Note-se que não é só o regime de bens convencionado que não pode ser alterado, também é o regime
supletivo; a convenção antenupcial só é imutável a partir da celebração do casamento; e este princípio
vale em termos muito rígidos, só comportando as excepções do art. 1715.º.

Ora, a doutrina diverge quanto ao sentido a dar a este princípio. Para alguns autores, em um sentido
amplo, abrangendo não apenas as cláusulas constantes de convenção ou as normas do regime legalmente
fixado, mas também a situação concreta dos bens dos cônjuges. Assim, os cônjuges não poderiam alterar
por negócio a categoria de certos bens e as regras da sua administração. Porém, para P. Coelho, este
princípio tem um sentido restrito, pretendendo apenas proibir a alteração do regime de bens
convencionado ou fixado por lei na falta de convenção, sendo que esta tese é a que melhor se adapta à
letra da lei. Assim, não estão abrangidos nesta proibição os negócios que incidam sobre bens concretos,
que estariam regulados noutros lugares, como no n.º 2 e 3. Já outros negócios não regulados seriam
livremente admitidos.

O art. 1714.º/2 proíbe expressamente os contratos de compra e venda e sociedade entre cônjuges, sendo
que estas proibições não resultariam, para P. Coelho, do n.º 1. A lei proíbe os contratos de compra e
venda devido ao regime da livre revogabilidade das doações, com intenção de evitar que os cônjuges
pudessem usar fraudulentamente a faculdade de comprar para esconder uma doação real e fugir à livre
revogabilidade.

Quais os fundamentos da imutabilidade? A justificação tradicional que a doutrina portuguesa avança é a


de que este princípio visa evitar que um dos cônjuges, abusando da influência que tem sobre o outro, leve
este a consentir numa alteração do regime de bens que lhe seja prejudicial, alteração esta que se traduziria

  18
numa liberalidade de um cônjuge a favor do outro e escaparia à regra da livre revogabilidade. Porém, para
P. Coelho, este fundamento não é suficiente, dada a evolução sociológica no sentido da igualdade dos
cônjuges. Assim, de iure constituendo, a ideia mais válida que pode justificar este princípio é o da
protecção de terceiros. Se os cônjuges pudessem livremente, depois do casamento, alterar o regime de
bens, os terceiros que com eles tivessem contratado poderiam ficar gravemente lesados. Porém, este
interesse ficaria garantido com um adequado sistema de publicidade, sendo que também há argumentos
que militam a favor da mutabilidade. Por ex., casais mais velhos que querem transitar para um regime de
comunhão geral que garanta ao cônjuge sobrevivo a meação no património do casal, ou casais mais novos
em que um dos cônjuges quer iniciar uma profissão arriscada e não quer que as dívidas comprometam o
património comum do casal.

Assim, a evolução do direito português nas últimas décadas vai no sentido de diminuir o alcance do
princípio da imutabilidade, e até de o eliminar, reconhecendo uma capacidade negocial plena e igualitária
dos cônjuges.

2. Densifique o conceito de proveito comum para efeitos de responsabilidade.

Nos termos do art. 1691.º/1/c), são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na
constância do matrimónio pelo cônjuge administrador e nos limites dos seus poderes de administração,
em proveito comum do casal. Para que a dívida seja da responsabilidade de ambos os cônjuges nos
termos desta alínea, é necessário que se verifiquem 4 requisitos: tem de ser uma dívida contraída na
constância do casamento; pelo cônjuge administrador, ou seja, ligada aos bens de que o cônjuge
administrador tem a administração; nos limites dos seus poderes de administração; e em proveito comum
do casal.

Quanto à noção de proveito comum, existem várias ideias a salientar. Em primeiro lugar, o proveito
comum não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (art. 1691.º/3). Assim, é necessário
fazer prova disto. Em segundo lugar, afere-se, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja,
pelo fim visado pelo devedor que a contraiu. Se o fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se em
proveito comum ainda que dessa aplicação tenham resultado prejuízos. No entanto, note-se que o
interesse comum do casal pode não ser material ou económico, mas sim moral ou intelectual.

Para além disto, para que a dívida se considere aplicada em proveito comum, não basta a intenção
subjectiva do agente, exige-se uma intenção objectiva de proveito comum – a dívida tem de poder ser
considerada em proveito comum aos olhos de uma pessoa média, à luz das regras da experiência e
probabilidades normais. É necessário temperar o critério subjectivo com um critério objectivo.

  19
Finalmente, importa ainda confrontar esta al. com a al. b) e d). A al. b) estabelece que são da
responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas para ocorrer aos encargos normais da vida
familiar. Trata-se aqui de dívidas pequenas, relativamente ao padrão de vida do casal, que qualquer dos
cônjuges é livre de contrair (ex: despesas de supermercado, farmácia, etc.). Normalmente, são dívidas
contraídas por um dos cônjuges no âmbito dos bens cuja administração lhes cabe, e em proveito comum
do casal – porém, a lei não exige aqui a prova da verificação dos requisitos da al. c), presume que eles se
verificam. Também se podem ratar de dívidas alheias à administração de bens, ou que não têm intenção
de proveito comum, mas ainda assim se integram num quadro normal de despesas (ex: dívida para
pagamento das férias do filho).

Já a al. d) diz que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas no exercício do
comércio, sendo que o art. 15.º do CCom. prevê que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante se
presumem contraídas no exercício do seu comércio. Este alargamento da garantia patrimonial é imposto
em favor do credor e do comércio. Esta alínea estabelece uma verdadeira presunção legal de proveito
comum, em favor do credor, que por isso não tem de fazer esta prova. Porém, esta presunção não é
absoluta: assim, o cônjuge pode fazer prova de que não houve intenção de proveito comum, sendo a
dívida de responsabilidade exclusiva do cônjuge devedor. Também não haverá comunicabilidade se
vigorar entre os cônjuges o regime da separação.

3. Art. 1723.º/c).

Nos termos do art. 1723.º, conservam a qualidade de bens próprios os bens sub-rogados no lugar de bens
próprios, sendo que a sub-rogação real se admite expressamente em 3 casos: troca directa (al. a));
alienação de bens próprios quanto ao respectivo preço (al. b)); e bens adquiridos com dinheiro ou valores
próprios de um dos cônjuges. Quanto a esta última hipótese, impõem-se algumas observações.

A sub-rogação real supõe que de um património saia um bem e entre outro, havendo uma conexão entre
aquela perda e esta aquisição. A conexão em causa deve resultar expressamente do título de aquisição,
sendo que foi esta a orientação que o art. 1723.º/c) adoptou. Assim, para que os bens adquiridos com
valores próprios sejam considerados próprios, é necessário que a proveniência do dinheiro seja
devidamente mencionada no documento de aquisição ou equivalente, com assinatura de ambos os
cônjuges. A declaração tem de ser feita no momento em que se faz a aquisição ou o acto equivalente, e no
documento de aquisição, pois só assim se protege a intenção da lei. Por outro lado, exige-se a participação
de ambos os cônjuges, sendo que P. Coelho defende aqui a possibilidade de recurso ao suprimento do
consentimento conjugal do art. 1684.º/3.

  20
A razão desta norma está na necessidade de proteger os terceiros que confiaram na presunção de
comunhão do art. 1724.º/b) – os terceiros confiam que o bem adquirido a título oneroso é um bem
comum, sendo que para afastar esta expectativa normal se exige uma declaração inequívoca. Assim, se é
uma ideia de protecção de terceiros que justifica as especiais exigências desta al. c), P. Coelho defende
que só se aplica quando estejam em causa interesses de terceiros; estando em causa os interesses dos
cônjuges, a conexão entre valores próprios e o bem adquirido pode ser provada por quaisquer meios. O
STJ já se pronunciou neste sentido. Já para Rita Xavier, a natureza de bem comum resulta da
inobservância dos requisitos legais e da aplicação de uma norma imperativa, e por isso é uma qualificação
imutável. P. Coelho admite ainda que um credor pessoal do cônjuge possa fazer prova por outro meio,
desde que não haja credores comuns.

Finalmente, quando os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios entrem
na comunhão, por estar em causa interesses de terceiros e não ter sido feita a menção exigida, o cônjuge
prejudicado deve ser compensado pelo património comum. Isto não resulta claramente da lei; porém, é o
que defende P. Coelho. Não se justifica que o cônjuge do adquirente acabe por ficar beneficiado,
ganhando o direito a metade do bem comum. Isto corresponde à preocupação básica do nosso direito de
obstar ao enriquecimento sem causa, e também se coaduna com o princípio da imutabilidade, que visa
manter a integridade das massas patrimoniais.

4. Contratos entre os cônjuges.

Nos sistemas jurídicos de origem latina, a tradição da imutabilidade das convenções antenupciais e dos
regimes de bens andou associada a grandes restrições da capacidade negocial dos cônjuges, também
associado à hierarquia dos papéis conjugais. Assim, o nosso direito veio estabelecer proibições de compra
e venda e constituição de sociedades, e restrições à participação em sociedades, às doações entre cônjuges
e aos contratos de trabalho. Porém, à medida que o princípio da imutabilidade foi cedendo perante as
necessidades de adaptação aos interesses patrimoniais modernos e à medida que o estatuto dos cônjuges
se foi encaminhando para uma progressiva igualação, aquelas restrições foram perdendo sentido. Entre
nós, porém, a reforma de 1977 manteve intocado o princípio da imutabilidade, mantendo várias das
restrições impostas em nome de uma desconfiança quanto ao livre exercício da autonomia privada dentro
do casal.

Em primeiro lugar, em relação ao contrato de sociedade, o art. 8.º/1 do CSC veio alterar o art. 1714.º/2 e
3, sendo hoje permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em
sociedades, desde que apenas um deles assuma responsabilidade limitada. A razão desta norma estará no
risco de ofensa da imutabilidade que resultaria da responsabilidade ilimitada e solidária dos cônjuges;
porém, P. Coelho critica esta orientação. A livre constituição de sociedades com este limite pode implicar

  21
modificações nas massas patrimoniais do casal, sendo que teria sido preferível estabelecer como limite a
protecção dos direitos adquiridos por terceiros antes do registo da constituição da sociedade. Note-se que,
em relação às sociedades civis, se continua a aplicar o art. 1714.º/2 e 3.

Em relação às doações, os sistemas jurídicos colocam tradicionalmente restrições a estes negócios: por
um lado, existe o receio de que a doação resulte da influência de um dos cônjuges sobre o outro; por
outro, podem afectar interesses de terceiros, ao transformar bens comuns em próprios e vice-versa. O
nosso legislador seguiu uma solução intermédia, moderada: permite as doações entre cônjuges, mas
considera-as livremente revogáveis, à semelhança das disposições testamentárias (art. 1765.º). Assim,
pode dizer-se que as doações ficam dependentes de uma condição resolutiva legal, sendo que a revogação
da doação é permitida a todo o tempo e não tem de ser fundamentada.

Em terceiro lugar, nos termos do art. 1714.º/2, consideram-se abrangidos pela proibição do n.º 1 os
contratos de compra e venda entre os cônjuges, sob pena de nulidade. O legislador quer evitar que os
cônjuges façam verdadeiras doações disfarçadas de compras e vendas, abusando um dos cônjuges da
influência sobre o outro.

Discute-se também a validade de outros contratos celebrados entre os cônjuges. Em relação ao contrato
de trabalho, a tendência actual vai no sentido da autonomia negocial entre os cônjuges, tendo em conta a
igualdade entre eles. Assim, é legítima a constituição de uma relação de trabalho subordinada entre os
cônjuges, supondo que a subordinação laboral não diminui a dignidade do subordinado e não se confunde
com o desempenho das tarefas domésticas.

5. Distinção entre herdeiro e legatário.

A sucessão por morte pode ser a título universal ou a título particular, sobre bens ou valores determinados
– no caso da sucessão a título universal, fala-se em herança; no de sucessão a título particular, em legado.

Esta distinção percebe-se à luz de uma outra distinção, entre sucessão e transmissão: estruturalmente, o
herdeiro é um sucessor, enquanto que o legatário é um mero adquirente ou transmissório. Enquanto que a
sucessão é o subingresso nas relações jurídicas do falecido, na transmissão é o direito que se desliga da
titularidade de A e vai para a de B, que o adquire. Esta diferença estrutural ajuda-nos a compreender as
diferenças de regime entre as duas figuras.

A distinção entre herdeiro e legado tem assento legal, no art. 2030.º/2: diz-se herdeiro o que sucede na
totalidade ou numa quota do património do falecido, e legatário o que sucede em bens ou valores
determinados. O critério legal de distinção está, assim, na determinação ou indeterminação dos bens

  22
deixados: o instituído será herdeiro quando recebe bens indeterminados e legatário quando recebe bens
determinados. Porém, é preciso esclarecer o que se entende por quota e por bens ou valores determinados.
A quota é uma fracção aritmética, uma quota ideal ou abstracta do todo; enquanto que bens determinados
não é a mesma coisa que objectos especificados, podendo haver legado de coisa genérica (art. 2253.º) ou
alternativa (art. 2267.º). Ou seja, os bens determinados podem estar especificados ou não. O legatário é,
assim, o que sucede em certos bens com exclusão de outros bens do de cuius, enquanto que o herdeiro
não é chamado a suceder apenas em certos bens, pois o seu direito estende-se, real ou pelo menos
virtualmente, à totalidade da herança ou uma quota-parte dela. Ao contrário do direito romano, o critério
é material e não formal.

Assim, enquanto que o legatário só pode receber a totalidade do objecto a que foi chamado, mesmo que
goze do direito de acrescer, o título de vocação do herdeiro chama-o à totalidade das relações jurídicas
que constituem objecto da devolução sucessória. O herdeiro chamado a suceder em certa quota da
herança pode vir a receber uma parte maior ou mesmo a herança na sua totalidade, na medida em que
goze do direito de acrescer.

Aplicando este critério a situações da vida real, podemos dizer que temos uma herança quando: A deixa a
B a totalidade da herança ou uma quota-parte dela; ou quando deixa o remanescente da herança ou de
uma quota dela. Por outro lado, temos um legado quanto: por ex., A deixa a B um prédio; uma
universalidade de facto; a herança que recebeu de C ou a quota que tinha nessa herança; todos os bens
móveis ou todos os imóveis. A deixa do usufruto da herança é um caso duvidoso, sendo que o art.
2030.º/4 diz que é havido como legatário.

Qual o relevo desta distinção? Podemos ver 6 aplicações. Em primeiro lugar, o direito de exigir partilha
cabe apenas aos herdeiros, nos termos do art. 2101.º/1. Em segundo lugar, releva para efeitos de
responsabilidade pelos encargos da herança: pelos encargos da herança, só é responsável o herdeiro (art.
2071.º), dentro das forças da herança; a responsabilidade do legatário é uma responsabilidade eventual e
subsidiária (art. 2276.º). O legatário só é responsável pelos encargos da herança na hipótese do art.
2277.º, e apenas se os bens da herança, excluídos os legados, forem insuficientes para o pagamento dos
encargos hereditários (art. 2070.º/1 e 2278.º). Em terceiro lugar, tem interesse em matéria de direito de
acrescer: o direito de acrescer pressupõe uma vocação plural, e é conferido aos co-herdeiros (art.
2301.º/1); os legatários só gozam do direito de acrescer se tiverem sido nomeados em relação ao mesmo
objecto (art. 2302.º/1). Em quarto lugar, o testador não pode sujeitar a instituição de herdeiro a termo
inicial ou suspensivo, mas tal faculdade já lhe é concedida em relação à nomeação de legatário, à qual
pode apor termo final ou resolutivo (art. 2243.º/2). Em quinto lugar, interessa em matéria de poderes de
inventário, para inúmeros efeitos. Finalmente, o direito de preferência na venda da herança apenas é
atribuído ao herdeiro, e não ao legatário (art. 2130.º/1).

  23
Para P. Coelho, estas diferenças de regime não são explicadas pelo critério da lei. O verdadeiro critério
que devemos aqui convocar é o de herdeiro enquanto verdadeiro sucessor pessoal do de cuius, sendo o
legatário um adquirente. Por outro lado, à diferença estrutural entre a herança e o legado corresponde
também uma diferença funcional. A herança serve um interesse objectivo da comunidade, o interesse da
continuidade das relações jurídicas; enquanto que o legado serve um interesse subjectivo do de cuius –
não se trata aqui de dar um sucessor ao de cuius, de continuar as suas relações jurídicas, mas sim permitir
ao de cuius atribuir vantagens económicas a outra pessoa.

6. Conexões fundamentais do direito das sucessões

São três as conexões ou pólos fundamentais do direito das sucessões: a propriedade, a família e o Estado.
Em teoria, pode conceber-se que, com a morte de uma pessoa, os seus bens tenham como destino o que o
autor da herança lhes fixar; podem reverter em favor dos familiares; ou podem ser atribuídos ao Estado.
Assim, consoante se dê preferência a uma destas três conexões, podemos falar de um modelo
individualista, familiar e socialista do direito das sucessões.

No modelo individualista, que historicamente procede do direito romano, o direito sucessório é um mero
corolário do princípio da autonomia da vontade e do direito da propriedade. Assim, a sucessão
testamentária prevalece sobre a sucessão legitimária, que é encarada como uma sucessão testamentária
tácita, assente na vontade presumida do autor da sucessão.

Já o modelo familiar faz prevalecer a conexão com a família, sendo que aqui o direito sucessório visa
assegurar a permanência do património familiar. A sucessão testamentária só é admitida em casos
excepcionais, sendo a forma de sucessão por excelência a sucessão legítima.

Finalmente, o modelo socialista faz prevalecer a conexão com o Estado. Claro que não se pode fazer
prevalecer esta conexão em absoluto: os bens não vão todos para o Estado, mas estreita-se o círculo dos
herdeiros legítimos e legitimários, colocam-se restrições à liberdade de testar, e agrava-se a carga fiscal.

Qual o modelo do direito português? Desde logo, a conexão com o Estado assume uma relevância pouco
significativa, apesar de a reforma de 1977 ter tomado medidas neste sentido – a lei hoje só dá direito
sucessórios, como herdeiros legítimos e legitimários, aos colaterais até ao 4º grau. De resto, as soluções
do nosso direito representam uma transacção entre os outros dois modelos. No âmbito em que se admite a
sucessão legitimária, a conexão familiar é a mais forte, podendo ser reduzidas as liberalidades que
ofendam as legítimas. Fora deste âmbito, ajusta-se melhor o modelo individual: o autor da sucessão goza
de poderes amplos de disposição dos seus bens e da quota disponível, a favor dos familiares ou de outras

  24
pessoas estranhas à família. Também se argumenta no mesmo sentido como direito de acrescer. Porém,
não pode falar-se numa prevalência absoluta da conexão da propriedade, uma vez que a sucessão
legítima, nos termos do art. 2131.º, não é uma sucessão testamentária tácita, assente na vontade
presumida do de cuius.

7. Consistência da designação sucessória

A designação sucessória é a indicação dos sucessíveis, antes da morte do de cuius, pela própria lei ou por
um facto praticado de harmonia com ela (normalmente, um testamento). Distingue-se da vocação
sucessória, que é um chamamento à sucessão, feito pela lei ou pelo de cuius no momento da morte – o
sucessível, já designado para suceder, é chamado à sucessão. Diz-se que a designação é uma “vocação
virtual”, e a vocação uma “designação efectiva”.

A questão que se coloca agora é a de saber qual o relevo jurídico que se atribui à designação sucessória,
ou seja, o designado, em vida do de cuius, tem um direito subjectivo aos bens, uma expectativa jurídica,
ou uma mera expectativa de facto? É necessário distinguir entre a situação dos herdeiros legítimos e
testamentários, por um lado, e dos legitimários e contratuais por outro. Quanto aos herdeiros
testamentários e legítimos, a designação sucessória não lhes confere qualquer direito sobre os bens
hereditários, têm uma simples esperança de facto de vir a adquirir os bens. Isto porque o direito não lhes
dispensa qualquer protecção – P. Coelho ressalva um efeito jurídico que é atribuído aqui à designação
sucessória, que ocorre na curadoria definitiva (arts. 101.º a 103.º).

Quanto aos herdeiros legitimários, a lei já protege a expectativa de virem a receber, à morte do de cuius, a
legítima que lhes é atribuída. Apesar de alguns autores falarem aqui de um direito subjectivo, a doutrina
maioritária, entre a qual se encontra P. Coelho, reconhece aqui uma expectativa jurídica. Esta expectativa
é actuada aqui sobretudo através do instituto da inoficiosidade; para além disto, a nulidade dos negócios
simulados pode ser arguida, não só pelos próprios simuladores entre si, mas também pelos herdeiros
legitimários que pretendam agir em vida contra os negócios por ele feitos como intuito de os prejudicar
(art. 242.º).

Finalmente, no âmbito da sucessão contratual, os donatários, nas doações por morte para casamento, têm
uma posição idêntica à dos legitimários. Com efeito, no caso das doações de parte ou totalidade da
herança, o doador deixa de poder dispor dos bens a título gratuito (art. 1701.º/1); no caso das doações de
bens presentes certos e determinados, o doador deixa de poder dispor dos bens (uma nova disposição
implicaria uma revogação da doacção, art. 1701.º): Porém, o n.º 2 e 3 admitem a possibilidade de o
doador, nas doações mortis causa, alienar os bens doados com fundamento em grave necessidade.

  25
8. Tipos de vocação indirecta

A vocação sucessória é o chamamento à sucessão, feito pela lei ou pelo de cuius, no momento da morte
deste (art. 2032.º). Temos uma vocação indirecta sempre que uma pessoa sucede em vez de outra que não
pôde ou não quis suceder. A vocação indirecta pressupõe que alguém não pôde ser chamado à sucessão
de outrem, por falta de qualquer dos pressupostos de vocação já referidos, ou que foi chamado mas
respondeu negativamente. Isto não significa que haja duas transmissões, os bens transmitem-se
directamente para o chamado indirecto: porém, a posição jurídica do sucessível que não pôde ou não quis
suceder é o ponto de referência a partir do qual se define a posição jurídica do chamado indirectamente à
sucessão.

Dentro da vocação indirecta, encontramos nomeadamente as seguintes figuras: direito de representação;


substituição directa e direito de acrescer. Na sucessão testamentária, recorremos em primeiro lugar à
substituição directa, depois ao direito de representação, e por fim ao direito de acrescer; já na sucessão
legal, recorremos primeiro ao direito de representação e só depois ao direito de acrescer.

Nos termos do art. 2039.º, a representação sucessória (direito de representação) ocorre quando a lei
chama os descendentes de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis
aceitar a herança ou legado. Não se confunde com a representação propriamente dita, que supõe o
exercício em nome de outrem; nem com a transmissão do direito de aceitar ou direito de transmissão, que
pressupõe que o chamado à sucessão falece sem exercer o seu direito de aceitar ou repudiar a herança ou
legado. Para a doutrina tradicional, o direito de representação não constitui uma ficção legal, mas sim
uma excepção à regra de sucessão legítima de que o parente mais próximo exclui o parente mais afastado
(art. 2135.º).

Os pressupostos do direito de representação variam consoante esteja em causa uma sucessão legal ou
testamentária. Na sucessão legal, o direito de representação depende da verificação de 2 pressupostos (art.
2042.º): em primeiro lugar, falta de um parente da 1ª ou 3ª classe de sucessíveis do art. 2133.º/1,
abrangendo o termo “falta” as situações de pré-morte, incapacidade por indignidade, deserdação, ausência
e repúdio; e existência de descendentes do parente excluído da sucessão. Os pressupostos do direito de
representação na sucessão testamentária são os mesmo, com duas excepções: não tem lugar no caso de
incapacidade por indignidade (art. 2014.º e 2037.º/2, a contrario); e a representação não é permitida na
sucessão testamentária quando se verifiquem alguma das circunstâncias do n.º 2, ou em qualquer outro
caso em que o testador manifeste vontade contrária à oposição.

A lei define a extensão do direito de representação no art. 2045.º: a representação tem lugar ainda que
todos os membros das várias estirpes estejam, relativamente ao autor da sucessão, no mesmo grau de

  26
parentesco, ou exista uma só estirpe. Assim, o direito de representação funciona em 3 casos: no caso de
concorrerem à herança parentes de diferentes graus sucessórios; no caso de igualdade de graus
sucessórios com pluralidade de estirpes; e no caso de haver uma só estirpe. No primeiro caso, o efeito do
direito de representação é o de atribuir o direito de suceder aos parentes mais afastados; no segundo, leva
a uma partilha por estirpes (art. 2044.º); no terceiro, o efeito é o de obrigar o representante a imputar na
sua legítima os bens doados ao representado pelo autor da sucessão.

A substituição directa ou vulgar (assim chamada por ser a forma mais comum de substituição) está
definida no art. 2281.º, sendo definida nestes termos: o testador pode substituir outra pessoa ao herdeiro
instituído para o caso de este não poder ou não querer aceitar a herança. Se o testador previr apenas um
destes casos, entende-se querer ter abrangido o outro (n.º 2). A lei admite as substituições recíprocas (art.
2283.º).

Finalmente, temos o direito de acrescer, que está previsto no art. 2301.º e consiste no direito a ser
chamado em simultâneo com os outros e de adquirir o objecto sucessório que o outro dos sucessíveis não
pôde ou não quis aceitar. Nos termos do art. 2304.º, não há direito de acrescer se o testador tiver disposto
outra coisa, se o legado tiver natureza pessoal ou se houver direito de representação. Também há direito
de acrescer entre legatários que tenham sido nomeados em relação ao mesmo objecto (art. 2302.º).

Discute-se na doutrina qual a natureza deste direito: certos autores configuram-no como um direito de
acrescer; outros como um simples direito de não decrescer. A construção que se coaduna com as soluções
legais é esta última: não existe aqui um novo chamamento sucessório, o herdeiro ou legatário recebe a
parte acrescida graças à simples expansão da sua vocação inicialmente comprimida.

  27

Você também pode gostar