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Sucessão testamentária

Noção e características do testamento: negócio mortis causa, unilateral, pessoal,


singular, formal e livremente revogável.
As formas do testamento
A revogação do testamento: expressa, tácita e real.
A capacidade testamentária e os meios de suprimentos da incapacidade de testar: a
substituição pupilar e a substituição quase-pupilar.
As indisponibilidades relativas: conceito, âmbito de aplicação e natureza jurídica.

O facto designativo que está na origem da sucessão testamentária é o testamento.

O artigo 2179.º fornece-nos uma noção de testamento, caracterizando-o como um


ato unilateral e revogável, através do qual se dispõe de bens para depois da morte.
No entanto, o n.º 2 do mesmo artigo refere que é possível existir um testamento
sem cláusulas de carácter patrimonial. Ou seja, é perfeitamente possível haver um
testamento em que o autor se limite a fazer uma perfilhação1 ou a designar um tutor para
os seus filhos.
Conclui -se assim que não é essencial que exista uma disposição de bens no
testamento, embora regra geral assim suceda.

Podemos caracterizar o testamento como um negócio jurídico mortis causa,


unilateral, gratuito, singular, pessoal, formal e livremente revogável. Vejamos então cada
uma destas caraterísticas.

a) Negócio jurídico mortis causa2 → Resulta da lei que o testamento só produz


efeitos depois da morte e é a morte que consubstancia a causa desses efeitos.

b) Unilateral → Embora o testamento tenha de ser conjugado com a aceitação


por parte do herdeiro para que haja sucessão por morte, na verdade o testamento já está

1
- Visto que a perfilhação pode ser feita por testamento.
2
Negócio jurídico destinado a produzir efeitos depois da morte.

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completo a partir do momento em que é feito. O testamento, em si, é já um verdadeiro
negócio jurídico, embora unilateral, cujo efeito consiste em atribuir a alguém a qualidade
de sucessível testamentário.

Existe, no entanto uma situação em que o testamento tem uma estrutura bilateral:
é a situação prevista no artigo 946.º, n.º 2 em que se faz a conversão de uma doação por
morte em disposição testamentária. Ou seja, neste caso, o que nasceu com uma estrutura
bilateral – a doação – é transformado numa disposição testamentária.
No entanto, a regra é que o negócio testamentário só tem uma parte, que é o
testador.

c) Gratuito → Não existe uma contrapartida para o testador. Pode no entanto


acontecer que se estabeleçam encargos em relação às deixas testamentárias, mas essa
situação não põe em causa a natureza gratuita do ato, visto não haver de facto uma
contrapartida em benefício do testador, mas eventualmente a favor de terceiros.

d) Singular → A singularidade encontra-se prevista no artigo 2181.º de que


resulta que duas pessoas em simultâneo não podem testar no mesmo ato, nem
reciprocamente 3 , nem a favor de terceiros. A lógica desta regra é evitar que haja
interferências na liberdade de testar, ou seja, evitar que alguém contemple no seu
testamento outra pessoa pelo simples facto de essa pessoa o ter contemplado também.

No entanto, esta regra contempla uma exceção, prevista no artigo 1704.º, uma vez que,
nas convenções antenupciais, é possível que ambos os esposados façam disposições a
terceiros que não tenham intervindo no ato da aceitação, ou seja, disposições com valor
meramente testamentário Neste caso é possível que duas pessoas (os esposados) façam
disposições testamentárias no mesmo ato.
O artigo 1685.º, n.º 3, b) também prevê a possibilidade de o cônjuge intervir no
testamento do outro para autorizar a disposição por morte de um bem que faça parte do

3
A não pode dispor a favor de B, e B não pode dispor a favor de A.

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património comum.

e) Pessoal → De acordo com o artigo 2182.º, o testamento não pode ser feito por
representante4 ou procurador. Também não pode ficar sujeito ao arbítrio de outrem
quanto aos aspetos considerados fundamentais que são:
1) Os beneficiários das deixas;
2) O objeto das deixas;
3) O cumprimento ou incumprimento das disposições testamentárias.
Estes 3 aspetos têm de constar do testamento. Ou seja, num testamento têm de se saber:
quem são os herdeiros ou legatários e o que é que é deixado.
No entanto, já é possível o testador cometer a terceiro (artigo 2182.º, n.º 2):
- A repartição da herança ou legado quando institui ou nomeia uma generalidade de
pessoas, v.g. “Deixo os bens meus bens aos pobres da minha freguesia e nomeio o padre
da freguesia para fazer a distribuição” → Isto já é possível: alguém institui uma
generalidade de pessoas e comete a terceiro a repartição dos bens por essas pessoas.
- A nomeação de legatário de entre pessoas determinada, v.g. “Deixo todos os meus bens
àquele que, de entre os meus amigos, for escolhido pelo meu irmão Pedro” → Neste caso
foram designados os amigos e, dentro dos amigos, o Pedro irá escolher aquele a quem
irão ser atribuídos os bens do testador.

a) Formal → O testamento é um ato formal, cuja formalidade é bastante rígida.


São previstos 2 tipos de formas: formas comuns e formas especiais
I. Formas comuns:
Exigem a intervenção de um notário.
Existem 2 tipos de formas comuns:
i. Testamento público → é escrito pelo notário, em livro próprio
reservado para testamentos; não se trata de um escritura pública mas de uma intervenção
notarial de acordo com o artigo 2205.º.

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No entanto, há que ter em conta as figuras da substituição pupilar e quase-pupilar para os
casos em que se verifica uma incapacidade de testar e que veremos infra.

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ii. Testamento cerrado → nos termos do artigo 2206.º, é feito e
assinado pelo próprio testador ou outra pessoa a seu pedido, exigindo-se que o testador
saiba ler por forma a poder confirmar o que está escrito e evitar que a sua vontade seja
posta em causa. Tem sempre de haver uma intervenção de um notário, ou seja, depois de
escrito o testamento deverá ser levado a um cartório por forma a ser aprovado, caso
contrário não tem qualquer valor jurídico. Há que ter em atenção que a data que vale é a
data da aprovação (artigo 2207.º) e não a data em que o testamento é realizado, o que é
muito relevante para se determinar a capacidade testamentária.
Depois de aprovado o testamento, o testador tem 3 hipóteses:
1) Guardar o testamento em seu poder;
2) Depositar o testamento num cartório notarial: pode ser o da
aprovação ou outro;
3) Entregar o testamento a terceiro.
Assim sendo, enquanto o testamento público é inscrito no livro do
cartório notarial, o testamento cerrado pode ficar na posse do testador ou de terceiro a
quem ele o confiou. Esta distinção vai ser importante para efeitos de revogação do
testamento.

II- Formas especiais:


São decalcadas das formas comuns, sendo importante salientar que só em casos
excecionais são admitidas, estando sujeitas a um prazo de validade muito reduzido: se
decorrerem 2 meses sobre a cessação da causa é necessário realizar um testamento
segundo as regras normais, caso contrário o testamento fica sem efeito (vide artigo
2222.º)
Assim, só se pode fazer um testamento de forma especial:
i. por militares (artigos 2210 a 2213.º),
ii. a bordo de navios ou aeronaves (artigos 2214.º a 2219.º)
iii. em caso de calamidade pública (artigo 2220.º)

Artigo 65.º, n.º 2


Ainda a propósito da forma há que ter em conta a norma de conflitos constante do artigo

4
65.º, n.º 2 que refere que se a lei pessoal do autor da herança exigir a observância de
determinada forma, ainda que o ato seja praticado no estrangeiro, essa forma deve ser
respeitada.
Se estivermos perante um testamento de cidadão português realizado no estrangeiro, para
sabermos se o mesmo é ou não válido, temos de ter em conta o artigo 2223.º que dispõe:
“O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei
estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma
solene na sua feitura ou aprovação.”
Ou seja, se no país onde o testamento foi realizado apenas for exigida a forma verbal ou
uma simples assinatura, esse testamento pode produzir efeitos nesse país mas não em
Portugal onde se exige a intervenção de um notário. Quer isto dizer que tal testamento
não produz efeitos no que aos bens existentes em Portugal concerne.
Conclui-se assim que um testamento de português realizado no estrangeiro só produz
efeitos em Portugal se tiver sida a respeitada a formalidade da intervenção de um notário
ou autoridade pública com competência equivalente.

Testamento per relationem (artigo 2184.º)


No tocante à forma, temos de ter em conta ainda o artigo 2184.º que refere que “é nula a
disposição de dependa de instruções ou recomendações feitas a outrem secretamente, ou
se reporte a documentos não autênticos, ou não escritos e assinados pelo testador com
data anterior à data do testamento ou contemporânea desta.”
Quer isto dizer que não é possível fazer um testamento em que se diz, por exemplo,
“Deixo os meus bens de acordo com um documento que guardo na primeira gaveta da
minha secretária”, embora uma leitura a contrario deste artigo pudesse conduzir a tal
interpretação.
Com efeito, há aspetos essenciais que têm de constar do próprio testamento, não se
admitindo que possam ser remetidos para outros documentos e são os contidos no artigo
2182.º, n.º 1, a saber:
- os beneficiários das deixas;
- o objeto das deixas;
- o cumprimento ou não das respetivas disposições.

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Outros aspetos, mais de pormenor, é que podem ser remetidos para outros documentos,
v.g., alguém diz que deixa as jóias às amigas e remete para um envelope que guarda em
casa a descrição pormenorizada ou os desenhos dessas jóias.

a) Revogável → A essência do testamento é a sua revogabilidade, o que faz com


que seja sempre um ato de última vontade e que o(s) sucessível(eis) testamentário(s) não
tenha(m) qualquer garantia de virem a suceder pois até ao momento da morte o
testamento pode ser alterado e / ou revogado. No entanto, se num testamento for feita
uma perfilhação, a mesma não pode ser revogada, mesmo que o testamento seja alterado
ou revogado, por força do regime previsto para a perfilhação (v. artigo 1858.º).
A revogabilidade é uma característica inerente ao testamento e o testador não
pode renunciar a ela de acordo com o artigo 2311.º. Ou seja, no testamento não se podem
utilizar expressões como por exemplo: “Eu comprometo-me a não alterar / revogar este
testamento”.

Existem várias espécies de revogação:


I. Revogação expressa (artigo 2312.º): só pode ser feita através de novo
testamento ou escritura pública em que o testador declara expressamente que pretende
revogar o anterior testamento.
II. Revogação tácita (artigo 2313.º): neste caso tem de existir um segundo
testamento onde haja uma incompatibilidade com o primeiro. Por exemplo: em 1980, A
dividiu os seus bens por B e C em partes iguais mas em 1990 faz um novo testamento
onde deixa todos os seus bens a B e D. → o novo testamento vem fazer uma nova
distribuição de bens passando a constar como herdeiros B e D. Ou seja, neste caso existiu
uma revogação parcial do 1º testamento pois D substitui C como herdeiro; no entanto
poderia -se dar-se o caso da revogação ser total no caso dos novos herdeiros serem D e E
ao invés de B e C.
III. Revogação real (artigos 2315.º e 2316.º).
a) O artigo 2315.º só se aplica aos testamentos cerrados, pois prevê a
revogabilidade do testamento pela destruição física do mesmo, destruição essa que tem
de ser fruto da vontade do testador. Logo, se ficar provado que a destruição foi levada a

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cabo por terceira pessoa, que o testador o destruiu acidentalmente ou não se encontrava
na plenitude das suas faculdades mentais, não se pode considerar que efetivamente
ocorreu uma revogação do testamento. Também não se pode considerar revogação se
apenas se observar uma simples obliteração ou cancelamento, por exemplo, quando as
disposições testamentárias aparecem com um traço por cima mas é possível ler a
primitiva disposição.5 Se se verificar uma destruição física do documento ou este for
impossível de ler, embora rigorosamente não haja uma revogação, não havendo um
suporte material do documento, teremos de entender, face à natureza formal do
testamento, que não é possível reconstituir a vontade do testador por mero recurso a
prova testemunhal.
b) Outra forma de revogação real está prevista no artigo 2316.º e
aplica-se a qualquer forma de testamento pois não tem a ver com a forma do testamento
mas sim com o objeto da deixa. Por exemplo, se for legado um carro e esse carro
entretanto for vendido, verifica-se uma revogação da deixa por inexistência do objeto
legado6.
Também haverá revogação se ocorrer a transformação do objeto legado. Por exemplo, se
A lega a B uma pilha de madeira mas, entretanto, essa madeira foi transformada em
móveis, B não terá direito a esses móveis.
É no entanto possível fazer a prova de que o testador, ao alienar ou transformar o objeto
do legado, não pretendeu revogar o legado: neste caso, este transforma-se em legado de
coisa alheia7.

Capacidade Testamentária

A regra é a capacidade testamentária, nos termos do artigo 2188.º, estando apenas


5
- Do artigo 2315.º pode presumir-se que só existe testamento desde que seja possível reconstruir -lo.
Por exemplo, um testamento é rasgado, mas a sua leitura é possível após se colarem os diferentes pedaços.
Situação diferente será o fato de o testamento se encontrar totalmente riscado e impossível ler o que é
quer que seja ou se for queimado ou desaparecer..
6
- No entanto, no exemplo supracitado pode não haver revogação se se observarem algumas das
seguintes situações:
a) Quando o objeto do legado venha a ser readquirido,
b) Quando o ato de alienação venha a ser anulado
7
- Ver artigos. 2251.º e 2252.º.

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impedidos de testar, de acordo com o artigo 2189.º:
a) Os menores não emancipados;
b) Os interditos por anomalia psíquica.

A capacidade, de acordo com o artigo. 2191.º, determina-se na data do


testamento, sendo esta, nos termos do artigo 2207.º, a data da aprovação do mesmo. Ou
seja, se uma pessoa fizer um testamento na plenitude das suas capacidades e depois as
perder, o testamento é válido pois quando o testador o produziu não estava incapacitado.
Da mesma maneira, se o testamento for feito por um menor não emancipado mas for
aprovado depois da emancipação é considerado válido.
A consequência de um testamento realizado por incapaz é a nulidade, ou
seja, o testamento é considerado nulo (artigo 2190.º).
Outra situação de incapacidade verifica-se relativamente a uma situação que
a lei designa de inabilidade: de acordo com o artigo 2208.º, “os que não sabem ler são
inábeis para dispor em testamento cerrado.” Estas pessoas não estão impedidas de
realizar testamentos em geral, mas apenas testamentos cerrados, ou seja, possuem uma
incapacidade relativa para testar.
Também neste caso a sanção deverá ser a nulidade.

Substituição pupilar e quase pupilar

Estas figuras estão previstas nos artigos 2297º e seguintes e são institutos destinados a
ultrapassar as incapacidades testamentárias.
Quer no artigo 2297º, quer no artigo 2298º, observa-se que é conferida ao progenitor que
não estiver inibido de exercer o poder paternal a faculdade de substituir ao filho os
herdeiros ou legatários que entender para o caso de o filho falecer antes de perfazer 18
anos de idade (substituição pupilar) ou no caso do filho ser incapaz de testar em
consequência de interdição por anomalia psíquica (substituição quase pupilar).

A substituição pupilar e a quase pupilar representam uma exceção ao carácter pessoal do


testamento que decorre do artigo 2182.º.

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O artigo 2182º/1 dispõe que o testamento é um ato pessoal insusceptível de ser feito por
meio de representante mas há exceções que são precisamente as decorrentes da previsão
de substituições pupilares e quase pupilares. São casos de representação legal no negócio
testamentário.

As substituições pupilar e quase-pupilar são meios de suprimento da incapacidade de


testar, que resulta do artigo 2189º. Recorde-se que este artigo estabelece que são
incapazes de testar:
a)Os menores não emancipados;
b) Os interditos por anomalia psíquica.

Desta natureza das substituições pupilar e quase pupilar (meios para suprir a incapacidade
testamentária) resulta que as mesmas caducam se o menor ou o interdito por anomalia
psíquica adquirirem capacidade testamentária.
Assim, se o menor casar com 16 anos, tornando-se menor emancipado, deve entender-se
que a substituição pupilar caduca pois adquire capacidade para fazer testamento. Se for
levantada a interdição também caducará a substituição quase pupilar.

Por outro lado, estas substituições também caducam quando sobrevivem ao filho
sucessíveis legitimários.

Fala-se, no artigo 2297º/2, 2ª parte, duma caducidade da substituição em razão do


falecimento do filho deixando descendentes ou ascendentes mas é necessário ter presente
que, sendo o cônjuge um herdeiro legitimário prioritário e privilegiado, não faz sentido a
substituição não caducar quando sobreviva cônjuge.

O mesmo se diga relativamente à substituição quase pupilar uma vez que o interdito por
anomalia psíquica pode ter-se casado validamente antes de ser interdito e portanto poderá
acontecer que, à data da sua morte, subsista o vínculo conjugal.

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É portanto essencial, para que a substituição pupilar e quase pupilar produzam efeitos
que, à data da morte do filho, não sobrevivam sucessíveis legitimários. Embora a lei só
refira ascendentes e descendentes, deve também ocorrer caducidade da substituição se
sobreviver cônjuge, fazendo uma interpretação sistemática e atualista da norma.

Bens abrangidos pelas substituições


Como se lê no artigo 2300º, os bens que são abrangidos pela substituição pupilar e quase
pupilar são os bens que foram adquiridos (em vida) ou que irão ser adquiridos (por
morte) pelo representado (menor ou interdito por anomalia psíquica)

Tal demonstra que o que está em causa é não a sucessão do progenitor, mas sim a
sucessão do filho.

Indisponibilidade relativa (artigos 2192.º e ss)


Através deste instituto visa-se evitar que a liberdade de testar seja posta em causa,
impedindo-se que o autor da sucessão faça testamento a favor de certas pessoas,
prevendo-se como sanção a nulidade.
Quem são essas pessoas?
Em primeiro lugar, prevêem-se os tutores, curadores, administradores de bens,
protutores, médicos, enfermeiros e sacerdotes que tratem o testador.
No entanto se as deixas forem deixadas às pessoas supra mencionadas e estas forem
também descendentes, ascendentes, colaterais até ao 3.º grau ou cônjuge do testador, já as
deixas serão válidas (v. artigos 2192.º e 2195.º), pois nestas situações presume-se que o
testador não será influenciado e que sempre contemplaria esses familiares em testamento.

Em segundo lugar, aquele com quem o testador casado mantinha uma relação
amorosa (artigo. 2196.º), sendo que neste caso o que se pretende proteger é a instituição
casamento. No entanto há de ter em conta que esta limitação não se aplica:
a) “Se o casamento já estava dissolvido, ou os cônjuges estavam separados
judicialmente de pessoas e bens ou separados de facto há mais de seis anos à data da

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abertura da sucessão.
b) Se a disposição se limitar a assegurar alimentos ao beneficiário.”
O que está em causa é, por um lado a proteção e defesa da instituição
familiar e, por outro, a reprovação social do autor da sucessão que além de casado e ter
cometido adultério, resolve contemplar no seu testamento o seu / a sua amante.
A dúvida que se levanta a este propósito é a de saber se, tendo sido
alterada a lei do divórcio e admitindo-se agora a separação de facto por um ano como
fundamento do divórcio, deverá entender-se que a disposição já é válida se existir uma
separação de facto há mais de um ano.
A questão não é líquida pois apesar de a doutrina ter suscitado esta
questão quando o prazo de seis anos foi reduzido para três, a verdade é que o legislador
manteve intocada esta norma, o que pode querer indiciar que não há uma relação direta
entre os dois regimes.

Em terceiro lugar, o notário ou a pessoa que lavrou o testamento, bem como as


testemunhas e outros eventuais intervenientes (v.g. intérpretes), nos termos do artigo
2197.º. O legislador entendeu ser necessária esta norma para evitar que estas pessoas
influenciassem o testador, bem como para evitar que a vontade expressa do testador fosse
de alguma forma alterada pela intervenção destas pessoas.

Por último, há que ter me conta o artigo 2198.º, que remete para o artigo 579.º, n.º 2 e que
prevê que as deixas serão também nulas se feitas por interposta pessoa.8

Natureza jurídica da indisponibilidade relativa


O que está em causa não é uma verdadeira indisponibilidade, pois tal conceito refere-se a
bens, mas sim a impossibilidade de certas pessoas serem designadas para sucederem ao
autor da sucessão. Portanto tem de existir uma relação entre o autor da sucessão e o
beneficiário
Assim sendo, também não parece que estejamos perante uma incapacidade pois não está

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Dispõe o artigo 579, n.º 2: “Considera -se que a cessão é efectuada por interposta pessoa, quando é
feita ao cônjuge do inibido ou a pessoa de quem este seja herdeiro presumido, ou quando é feita a terceiro,
de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a coisa ou direito cedido.”

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em causa uma qualidade do próprio autor da sucessão, mas sim a especial relação que
num dado momento existe entre este e o beneficiário. Tanto assim é que, por exemplo, na
deixa a favor do médico é preciso que o testamento tenha sido feito durante a doença e
que a morte tenha ocorrido em consequência dessa doença para a deixa ser nula; já se o
testamento vier a ser feito antes de a doença ser conhecida ou depois do autor da sucessão
estar curado não terá qualquer problema. Por outro lado, se existir uma relação familiar
entre o autor da sucessão e algumas destas pessoas, a lei considera que esta se deve
sobrepor, o que é também um argumento no sentido de que não está em causa uma
qualidade do testador mas sim uma especial relação.
Assim sendo, a qualificação mais correta deste instituto é antes a de uma ilegitimidade
testamentária ativa: não é possível fazer testamento a favor de certas pessoas, em
determinadas circunstâncias e se o testamento for feito será nulo.

Aula 7
A sucessão testamentária (conclusão)
Aspetos gerais do negócio testamentário
A interpretação do testamento
Falta e vícios da vontade no testamento
A invalidade do testamento.
A proteção do sucessível testamentário em vida do autor da sucessão.
A hierarquia dos sucessíveis.

ASPETOS GERAIS DO NEGÓCIO TESTAMENTÁRIO

1- Considerações gerais

O negócio testamentário é um negócio jurídico onde a vontade do testador é decisiva,


quase sagrada.
Há no entanto que ter em conta dois princípios fundamentais:

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Em primeiro lugar, para que essa vontade seja protegida é preciso que a sua
exteriorização obedeça a uma determinada forma. Ou seja, a vontade do testador está
condicionada pelo caráter formal do testamento.

Por outro lado, não sendo o testamento um negócio recetício, não há que atender à
proteção da confiança dos destinatários.
Estes dois princípios vão condicionar alguns aspetos do regime do negócio testamentário
que passaremos a analisar.

2- Interpretação do negócio testamentário

Temos uma norma especialmente dedicada à interpretação do testamento que é o artigo


2187º. Este artigo tem normas paralelas nas normas previstas para os negócios jurídicos
na parte geral: quer o artigo 236º,quer o artigo 238º.

Torna-se evidente o desvio do negócio testamentário face aos negócios jurídicos em geral
se compararmos o artigo 2187º com o artigo 236º/1.
O artigo 236º/1 CC assenta na posição do declaratário normal. Essa posição não vai ter
qualquer relevo para efeitos de interpretação do testamento.

Por outro lado, importa estabelecer também um paralelo entre o artigo 2187º e o artigo
238º, que se refere aos negócios formais. E o testamento, como sabemos, é um negócio
formal.
Ao lermos o artigo 238º e o artigo 2187º encontramos pontos de contacto. No entanto,
torna-se evidente o desvio se lermos o artigo 238º/2.
O artigo 2187º/2 é de facto semelhante, na sua parte final, com o artigo 238º/1 mas já se
distingue do artigo 238º/2. De facto, o artigo 238º/2 admite que se apure o sentido da
declaração não tendo em conta a vontade expressa no suporte formal, ou seja, que se
chegue a uma vontade que não tem o mínimo de correspondência no texto do documento.
Ora isso está vedado na interpretação do testamento pois a vontade do testador deve ter
sempre correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, no respetivo texto.

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Outro elemento a ter presente para efeitos de interpretação do testamento é o facto de o
testamento ser feito num determinado momento mas ter eficácia diferida, ou seja, o
testamento vai valer à data da morte do testador.

A interpretação do testamento deve assim ter em conta que a vontade do testador é


projetada para o momento da morte, logo é uma vontade conjetural.

Em conclusão
Ao interpretarmos o testamento devemos apurar a vontade do testador (interpretação
subjetivista) mas podemos recorrer a prova complementar (inclusive prova testemunhal),
desde que essa vontade figure no testamento, embora de forma tácita ou imperfeita.

3- Integração de lacunas

Como não podia deixar de ser, também em matéria de lacunas existe um elemento formal
condicionante que é a forma exigida para o testamento.
Como sabem, as disposições testamentárias devem observar uma determinada forma:
- testamento cerrado
- testamento público
Podem existir disposições testamentárias fora do testamento público ou do testamento
cerrado mas estas não se podem prender com aspectos essenciais, fundamentais. Têm que
ser aspetos secundários, menores, instrumentais (testamento per relationem).

A nível da integração de lacunas deve pensar-se da mesma forma: a integração de lacunas


será possível no negócio testamentário mas apenas quando verse sobre aspetos menores,
aspetos que não sejam tidos como essenciais, ou seja, que não estejam a coberto do artigo
2182º/1.

O Professor Oliveira Ascensão apresenta um exemplo que qualifica como de lacuna no


testamento e que é a seguinte:

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Um testador tem 6 casas e 6 netos e dá a entender no princípio do testamento que quer
deixar as 6 casas aos 6 netos.
Então começa a enunciar as casas que deixa aos vários netos: a casa A ao neto António, a
casa B ao neto Bernardo, etc... Faz isto relativamente a 5 casas e 5 netos mas não diz
nada quanto à 6ª casa e ao 6º neto.

Neste caso, não há verdadeiramente uma lacuna pois é possível inferir do testamento que
a 6ª casa deve ser atribuída ao 6.º neto. Concorda-se assim com o Professor Pamplona
Corte-Real que defende que se pode chegar ao resultado que o Professor Oliveira
Ascensão aponta através duma interpretação extensiva ou através do artigo 2203º. Não
estariamos sequer no âmbito da integração de lacunas.

Por uma ou outra via- pela via do artigo 2203º- erro na indicação da pessoa ou dos bens-
ou por força duma interpretação extensiva, pois no fundo o testador disse menos do que
queria dizer, pode-se então chegar a tal disposição testamentária que atribui a 6ª casa ao
6º neto.
Conclusão
A integração de lacunas é possível mas só quando há disposições de caráter secundário, à
semelhança do que se passa para as disposições testamentárias que não estejam incluídas
no testamento público ou testamento cerrado. Elas poderão ser integradas se não
versarem sobre os aspetos fundamentais da sucessão que, recorde-se, são os beneficiários
e o objeto das deixas.

4- Falta e vícios da vontade do negócio testamentário

Encontramos nos artigos 2199º e seguintes uma regulamentação específica da falta e


vícios da vontade no testamento.

A questão que se coloca é a de saber se podemos recorrer, subsidiariamente, às normas da


parte geral, e a resposta deve ser afirmativa, embora devamos adaptá-las às características
e às especificidades do negócio testamentário.

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No fundo, as normas que encontramos na parte geral que se referem à matéria da falta e
vícios da vontade têm em consideração a posição do declaratário, a ideia da tutela da
confiança, logo, temos que adaptar essas regras tendo em conta que o negócio
testamentário tem natureza não recetícia.

a) Incapacidade acidental - Artigo 2199º-

O regime apresenta diferenças significativas se confrontado com o contido no artigo


257º/1 e 2.
Em primeiro lugar, o artigo 257º vem exigir que a tal incapacidade seja notória ou
conhecida do declaratário, exigência que não se encontra no artigo 2199º. Portanto, já
estaremos a observar algumas manifestações do caráter não recetício do negócio
testamentário.

Em segundo lugar, deve ter-se em conta que o instituto da incapacidade acidental previsto
no artigo 2199º vai ter uma importância maior que a incapacidade acidental, prevista na
parte geral do código civil.

Porquê?

Porque as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as


incapacidades gerais. Recorde-se que os inabilitados por anomalia psíquica podem testar
mas também podem facilmente não ter consciência do ato que praticam e logo ser-lhes
aplicado o regime da incapacidade acidental. Por outro lado, tenha-se em vista que as
situações de interdição são excecionais e que, muitas vezes, existe uma situação de
demência não reconhecida pelo direito, mas uma demência permanente e também nestes
casos se vai aplicar este regime.

b) Simulação- Artigo 2200º-

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O artigo 2200.º refere-se especificamente a uma situação de simulação relativa,
determinando que a disposição testamentária simulada é anulável.
É curioso que a simulação do negócio testamentário não decorre de um acordo entre o
declarante e declaratário porque não há declaratário. Decorre antes de um acordo entre o
autor da sucessão (testador) e o beneficiário indicado no testamento, que não é aquele que
o testador queria contemplar. Há assim uma divergência intencional entre a vontade dele
e a declaração.
Não há dúvidas assim quando à invalidade da disposição testamentária simulada.
O problema coloca-se quanto à validade da disposição testamentária dissimulada-
disposição testamentária pela qual o autor queria beneficiar outra pessoa, tendo acordado
com o beneficiário que lhe transmitiria posteriormente os bens deixados.
Para o Professor Oliveira Ascensão o próprio negócio dissimulado seria válido.
Já o Professor Pamplona Corte Real entende que não em virtude do caráter formal do
testamento: o destinatário da deixa deve constar do próprio testamento e não de um
acordo feito secretamente.
Tendo em conta o regime do artigo 241.º, n.º 2, parece-nos mais correta esta última tese.

c) Erro, dolo e coação- Artigo 2201.º


Estabelece a anulabilidade da disposição testamentária determinada por:
- erro vício simples
- erro vício qualificado por dolo
- erro vício qualificado por coacção moral

d) Erro-vício – Artigo 2202.º

Professor Oliveira Ascensão


O Professor Oliveira Ascensão lê o artigo 2202.º como se fosse um género do artigo 252º,
n.º1, ou seja, o artigo 2202º, que tem como epígrafe erro sobre os motivos, não se
aplicaria ao erro sobre os motivos que recaisse sobre a pessoa do obrigado ou sobre os
bens objeto da disposição.

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A esse erro-vício que recaisse sobre a pessoa do designado ou sobre os bens objecto da
disposição seria de aplicar analogicamente o regime do artigo 2203º- regime do
erro-obstáculo.
O efeito desta posição é procurar salvar e chegar o mais possível próximo da vontade do
testador uma vez que o regime do artigo 2203º é mais permissivo no que respeita à
pesquisa da vontade do testador já que admite o recurso à prova complementar, enquanto
o artigo 2202º dispõe que o erro deve estar evidenciado no próprio testamento.

Professor Pamplona Corte Real


O próprio artigo 2202º não distingue e aí estão compreendidas todas as situações de erro
sobre os motivos. Por outro lado, o Professor Oliveira Ascensão enfrenta uma
dificuldade: é que, se aplica analogicamente o regime do artigo 2203º, então está a
pressupor que existe uma lacuna. Mas como, se temos uma disposição testamentária?

Devemos assim concluir que o artigo 2202º versa sobre todas as situações de erro sobre
os motivos (erro vício), incluindo o erro sobre a pessoa e sobre os bens.

e) Erro obstáculo - Artigo 2203º


Não tem a ver com o erro vício na formação da vontade, mas sim com o erro na indicação
da pessoa ou dos bens.
Aqui, para se chegar à vontade real do testador são permitidos mais meios do que no caso
do erro-vício.
Com efeito, o artigo 2202º refere-se ao próprio testamento, enquanto o artigo 2203º
admite a interpretação do testamento e, como vimos, o artigo 2187º, a propósito da
interpretação do testamento, admite também a prova complementar.

f) Reserva mental – Artigo 244.º


Será a reserva mental fundamento de anulação do testamento?
O Professor Oliveira Ascensão entende que sim.

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Já para o Professor Pamplona Corte Real a reserva mental é irrelevante porque não há
correspondência entre a vontade real e o texto do testamento, pelo que deve valer o que
ficou expresso no testamento. Concorda-se com este último entendimento.

5- Invalidade do testamento
Vamos encontrar também especificidades no tocante à nulidade e à anulabilidade.
(Artigos 2308º e ss)
O prazo para arguir a anulabilidade é de 2 anos.
O prazo para pedir a declaração de nulidade da disposição testamentária é de 10 anos.
Admite-se também confirmação da nulidade.

Como sabemos, de acordo com o regime geral da nulidade esta pode ser invocada a todo
o tempo e não é suscetível de confirmação.

No que não estiver especialmente previsto, aplicam-se as regras gerais das invalidades,
nomeadamente os institutos da redução e conversão.

Proteção do sucessível testamentário em vida autor da sucessão


Não é nenhuma porque, obviamente, a sua posição é precária.
O testador, até falecer, pode sempre mudar de opinião e revogar o testamento.
O sucessível testamentário não tem assim qualquer expetativa juridicamente relevante de
vir a suceder.

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