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Penhora de quotas sociais, recuperação judicial e o conflito principiológico no

julgamento do recurso especial 1.830.250-SP

Bruno Dantas – Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Pós-


Doutor (UERJ), Doutor e Mestre (PUC-SP) em Direito. Visiting Researcher
Fellow na Benjamin N. Cardozo School of Law (Nova York, EUA), no
Max Planck Institute for Regulatory Procedural Law (Luxemburgo) e na
Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Professor-Adjunto da
Graduação, Mestrado e Doutorado da UERJ, do Doutorado da FGV
Direito-Rio e do Mestrado em Direito da UNINOVE.

Caio Victor Ribeiro dos Santos – Assessor de Ministro do Tribunal de


Contas da União (TCU). Mestrando em Direito Processual pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito
Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Pesquisador vinculado aos grupos de pesquisa Processo Civil à luz da
Constituição Federal e Processo Civil e Tutela efetiva de direitos – Aditus
Iure (IDP).

Ementa
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. DÍVIDA
PARTICULAR DE SÓCIO. PENHORA. QUOTAS SOCIAIS. SOCIEDADE EM
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra
acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados
Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se em ação de
execução proposta contra sócio, relativa a dívida particular por ele contraída, é
permitida a penhora de suas quotas sociais e, caso possível, se essa situação se altera
na hipótese de a sociedade estar em recuperação judicial. 3. É possível, uma vez
verificada a inexistência de outros bens passíveis de constrição, a penhora de quotas
sociais de sócio por dívida particular por ele contraída sem que isso implique abalo na
affectio societatis. Precedentes. 4. Não há vedação para a penhora de quotas sociais
de sociedade empresária em recuperação judicial, já que não enseja,
necessariamente, a liquidação da quota. 5. Recurso especial não provido

Sumário: 1. Recurso Especial nº 1.803.250-SP: delimitação fática e


argumentativa; 2. Dupla principiologia: entre o regime de proteção do credor
particular do sócio e o regime de preservação do patrimônio social da empresa; 3.
Voto do Relator; 4. Voto vista; 4.1. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva; 4.2. Ministros
Mauro Ribeiro e Nancy Andrighi; 5. Penhora de quotas sociais: ponto de divergência e
contrapontos necessários; Considerações finais; Referências.
1. Recurso Especial nº 1.803.250-SP: delimitação fática e argumentativa
No Recurso Especial nº 1.803.250-SP1, o Superior Tribunal de Justiça foi chamado
a decidir se, em ação de execução proposta contra sócio relativa a dívida particular por ele
contraída, seria possível a penhora de suas quotas sociais e, caso possível, se essa situação
se alteraria na hipótese da sociedade se encontrar em recuperação judicial.
Na origem, em execução proposta por X contra Y, Z e outros, o juízo de primeiro
grau deferiu o pedido de penhora de quotas sociais de seis empresas pertencentes aos
executados. A penhora visava a execução de débito no valor de R$ 595.157,07 reais e
alcançava as quotas sociais de empresas que não tinham relação alguma com a dívida,
senão o fato de que esta havia sido contraída, pessoalmente, por alguns de seus sócios.
Inconformados, Y e Z interpuseram agravo de instrumento a fim de desconstituir a
penhora, que atingiu as quotas sociais de três empresas de sua titularidade.
O Tribunal de Justiça, no entanto, negou provimento ao agravo de instrumento, em
acórdão cuja conclusão, constante da ementa, foi a seguinte: (i) “nada impede a constrição
de quotas sociais, na medida em que não se está atingindo os bens da sociedade, mas tão
somente as cotas sociais de propriedade dos sócios; (ii) ademais, a medida em estudo
encontra amparo legal no dispositivo processual previsto no artigo 835 do Código de
Processo Civil; (iii) por outro lado, a recuperação judicial da pessoa jurídica também não
impede a constrição judicial de patrimônio que pertence aos sócios”.
Foram opostos e, subsequentemente, rejeitados, embargos de declaração.
Em seguida, Y e Z com fundamento na alínea ‘a’ do permissivo constitucional e
apontando violação aos art. 35 e 66 da Lei 11.101/05, interpuseram o recurso especial cujo
acórdão ora se analisa, invocando como razões os seguintes argumentos: (i) a quota social
não é um direito creditório, representando apenas a parte ideal do capital social, que
somente representaria pagamento no caso de liquidação da sociedade e houvesse
numerário suficiente, (ii) a penhora de quotas sociais impõe aos sócios o ingresso de
pessoa estranha ao quadro social, em evidente prejuízo à affectio societatis, (iii) duas
empresas encontram-se em recuperação judicial, tendo o plano sido aprovado pelos
credores, que assim manifestaram sua confiança nas sociedades empresárias e em seus
administradores, motivo pelo qual sua substituição dependeria da realização de nova
assembleia geral de credores, nos termos do artigo 66 da Lei no 11.101/2005, (iv) a
transferência de quotas para a exequente lhe concederia vantagem em eventual
liquidação/falência das empresas, em detrimento dos demais credores, afetando a par
conditio creditorum, e (v) a recorrida não demonstrou ter buscado outros meios de penhora
menos gravosos, sendo a penhora de quotas sociais medida excepcional.
O recurso especial não foi admitido na origem, tendo sido interposto agravo em
recurso especial, no qual ficou consignada a necessidade de melhor análise da matéria,
com a determinação de reautuação do recurso. Levado o feito a julgamento pela Terceira
Turma do STJ, após a prolação do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze,
pediram vistas os Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi, ocasião em que
a Corte chegou à resolução final de que: (i) é possível, uma vez verificada a inexistência de

1
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.803.250-SP. Rel. Ministro Marco Aurélio
Bellizze. Rel. acórdão: Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma, julgado em 24/10/2019, DJe 28/10/2019.
outros bens passíveis de constrição, a penhora de quotas sociais de sócio por dívida
particular por ele contraída sem que isso implique abalo na affectio societatis; e, finalmente
(ii) não há vedação para a penhora de quotas sociais de sociedade empresária em
recuperação judicial, já que não enseja, necessariamente, a liquidação da quota.
Doravante, passamos a analisar os fundamentos do acórdão, a fim de elucidar, sob o
ponto de vista teórico, o acerto da resolução final alcançada pela Corte.
2. Dupla principiologia: entre o regime de proteção do credor particular do
sócio e o regime de preservação do patrimônio social da empresa
O julgamento do STJ sobre controvérsia em questão foi interessante por diversos
aspectos, mas, especialmente, por ter a Corte notado estar diante da uma dupla
principiologia2 que, no caso concreto, parecia se sobrepor: por um lado, um regime de
proteção aos credores particulares do sócio, fundado no princípio da efetividade processual
e nos dispositivos pertinentes do Código de Processo Civil e do Código Civil, e, por outro,
um regime de proteção do patrimônio social, calcado no princípio da preservação da
empresa e em dispositivos da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/05).
A controvérsia se resumia a saber se em execução proposta contra sócio, por dívida
particular por este contraída, seria possível a penhora recair sobre quotas sociais de sua
titularidade, considerando a circunstância de que a sociedade, da qual o executado possui a
participação societária objeto de constrição, encontra-se em recuperação judicial.
A penhora, ensina Liebman, “é o ato pelo qual o órgão judiciário submete a seu
poder imediato determinados bens do executado, fixando sobre eles a destinação de
servirem à satisfação do crédito do exequente”3, e a recuperação judicial, explica
Tomazette, “é um conjunto de atos, cuja prática depende de concessão judicial, com o
obetivo de superar as crises de empresas viáveis”4. Enquanto a primeira é uma ferramenta
do processo executivo, posta a serviço da efetividade do direito de credores em geral, a
segunda é uma garantia em favor do patrimônio social5, sem o qual a empresa não pode
exercer seu papel social de gerar empregos e circular riquezas6, tampouco oferecer
segurança de liquidez aos credores dos negócios que celebra7. Em comum, ambos institutos

2
Gerson Luiz Carlos Branco e Amanda Lemos Dill, em artigo sobre a penhora de quotas sociais, falam em
uma “dualidade principiológica” que paira sobre a matéria, envolvendo a “efetividade do processo para a
satisfação do credor em contraste com os princípios empresariais que limitam essa efetividade”. Cf.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos; DILL, Amanda Lemos. A penhora de quotas no código de processo civil:
procedibilidade e procedimento. Revista de Direito Privado, vol. 83/2017, p. 182, 2017.
3
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 124.
4
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas. v. 3. 5. ed.
rev. e atual. – São Paulo : Atlas, 2017. p. 124.
5
Da necessidade de sua proteção surgiu o princípio da intangibilidade do capital social. Acerca deste
princípio empresarial, Modesto Carvalhosa anota, em Comentários ao Código Civil. Arts. 1052 a 1195. São
Paulo: Saraiva 2003, p. 100: “é uma ficção jurídica cuja criação foi motivada visando a salvaguarda dos
credores da sociedade. (...) A origem do princípio da integridade do capital social está, portanto, na ideia de
manutenção da estabilidade social e da segurança no cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade.”
6
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, em Manual de direito comercial. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 1, p.
41.: “no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico
prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade),
em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da
continuidade deste; assim os interesses de empregados quanto aos seus postos de trabalho, de consumidores
em relação aos bens ou serviços de que necessitam, do fisco voltado à arrecadação e outros.”
7
“A disciplina jurídica do capital social prende-se, sempre, à tutela dos terceiros e por isso, em princípio, é
corroborada com sanções penais. A justificativa da sanção penal decorre justamente do fato de as que normas
possuem a meta de tutelar direitos assegurados por uma disciplina jurídica própria e com
objetivos específicos, e se entrelaçam pelos limites que o primeiro encontra em aspectos da
disciplina do segundo8.
Colocam-se, aí, portanto, dois regimes distintos, um em favor dos credores
particulares do sócio e outro em favor da sociedade e de seus credores que, ao serem
conjugados no mesmo caso, apresentaram à Corte uma equação ligeiramente distinta, mas
de crucial relevância, para que se chegasse a uma solução diversa da que já havia se
estabelecido pacificamente em inúmeros julgados anteriores. Até o julgamento do RESP
1.803.250-SP, a Corte já havia sedimentado a possibilidade de penhora de quotas sociais9.
Os acórdãos que fizeram coro a esta conclusão, porém, referiam-se a situações de
normalidade empresarial. Inexistindo crise econômico-financeira na sociedade, é lícita a
penhora de quotas sociais – e, ao que parece, foi com base nesse corte que legislador do
código processual de 2015 houve por bem expressamente admitir a penhora de quotas
sociais, se feita uma leitura sistemática com a Lei de Recuperação judicial e Falência.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio Bellize faz uma retrospectiva da legislação
processual acerca da matéria. No Código de Processo Civil de 1973, a constrição judicial
das quotas sociais era admitida, em tese, pelo art. 655, X, que estabelecia, em ordem
preferencial, entre os bens passíveis de penhora, os “direitos e ações”, fazendo-se, a partir
deste dispositivo, uma interpretação extensiva em favor da medida. Com a Lei.
11.385/2006, o Código passou a prever, expressamente, no inciso VI do mesmo
dispositivo, a penhora de quotas sociais, sem, todavia, estabelecer-lhe um procedimento.
Isso só foi ocorrer com o Código de Processo Civil de 2015, que para além de ratificar a
possibilidade de penhora das quotas, estabeleceu o rito para a sua liquidação.
Ocorre que, como registrou o Relator, o regramento legal, ao promover esse
balizamento de interesses contrapostos e ao admitir que a quota do sócio devedor fosse
suprida pelos demais, pressupõe que a “situação patrimonial [da sociedade] o permita”.
Ora, ausente a crise empresarial, não há sobreposição de regimes. Não há conflito
evidente: a lei confere ao credor do sócio tudo que lhe é de direito, desde que respeitadas
as balizas procedimentais. Afinal, ou existe lucro a que o sócio devedor faça jus que
poderá ser excutido, ou parcela de sua quota social será liquidada para satisfazer o direito
do credor exequente10. Tutelar o direito material, em estado de normalidade empresarial, é
prosseguir todo o procedimento para, ausentes outros meios menos gravosos, alcançar na
sociedade e dela retirar o que o sócio deve a eventual credor de dívida pessoal.
Com a crise empresarial a solução é diversa. E tem de ser, pois o direito é um
emaranhado de sistemas que se comunicam, como dizia Luhmann11, e as soluções dadas

relativas à integridade do capital social respeitam à tutela de terceiros.” In ASCARELLI, Tulio. em


Problemas das sociedades anônimas e Direito comparado. São Paulo: Saraiva: 1945, p. 354
8
Branco e Dill, acerca dessa relação, anotam: “De modo claro e direto: há um limitador ao juiz no processo
de maximização da efetividade do processo, que é a função social da empresa e demais princípios que regem
o Direito Empresarial”. BRANCO; DILL, Op. Cit. p. 182.
9
“A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que a penhora de quotas sociais não encontra vedação
legal e nem afronta o princípio da affectio societatis, já que não enseja, necessariamente, a inclusão de novo
sócio.” In: BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.221.579/MS. Rel. Ministra Maria Isabel
Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1º/3/2016, DJe 4/3/2016.
10
Conforme destacam Branco e Dill, Op. Cit. p. 8: “Não sendo possível a penhora dos lucros ou não sendo
suficientes os lucros acumulados, a alternativa que resta é a liquidação das quotas.”
11
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução Ana Cristina Arantes Nasser. 2 ed.
Petrópolis: Vozes, 2010. p. 112-113.
por cada um devem coexistir harmonicamente até onde não se excluam. Havendo crise
econômico-financeira, o ordenamento pátrio deflagra uma série de garantias em favor da
empresa e de seus credores que, por veicularem uma principiologia própria, devem ser
ponderadas lado a lado com o dever de atender aos credores particulares do sócio.
O caso sob análise foi um exemplo dessa dicotomia, pois nele, por um lado, o
Ministro Bellizze demonstrou ter vislumbrado uma sobreposição de regimes a determinar a
prevalência do regime da Lei 11.101/2015, em face daquele que protege o credor particular
do sócio, enquanto o Ministro Villas-Boas Cueva e a Ministra Nancy Andrighi entenderam
que, de fato, havia essa sobreposição, mas que ela poderia coexistir até certo ponto sem
necessária exclusão de um regime em favor do outro, em uma solução que, a nosso ver,
extrai o máximo rendimento do processo, na forma esperada pela legislação processual.
Passemos, agora, a analisar a argumentação dos votos do julgamento em questão.
3. Voto do Relator
O eixo central do argumento do Ministro Marco Aurélio Bellizze assenta-se sobre
uma interpretação analógica que, em síntese, poderia ser transposta no seguinte
questionamento: se, encontrando-se uma sociedade em recuperação judicial, sob
indiscutível crise financeira, seria um completo contrassenso ou fraude aos credores a
distribuição de lucros entre os sócios, faria sentido que, não obstante, alguém pudesse
penhorar e liquidar, sem se submeter a qualquer plano de recuperação, as quotas de um
desses sócios? Essa liquidação não seria uma via oblíqua de burlar as “travas” da
recuperação judicial, colocando o credor particular do sócio em posição de extrema
vantagem, ao atribuir-lhe faculdade que a lei não deu sequer aos credores extraconcursais?
Nas palavras do Relator,
“Não se pode deixar de reconhecer que, encontrando-se a sociedade em
recuperação judicial, a evidenciar indiscutível crise financeira, eventual
distribuição de lucros aos sócios configuraria manifesta contradição de
proceder, senão verdadeira fraude aos credores concursais. De igual
modo — já que perante os credores da sociedade o efeito é rigorosamente
o mesmo — não se poderia permitir que os lucros a que o sócio fizesse
jus fossem penhorados para fazer frente a uma dívida particular deste na
hipótese de encontrar-se a sociedade em recuperação judicial”.

Aliás, a primeira parte do questionamento tornou-se objeto de projeto de lei que


tramitou no Congresso Nacional (PL 10.220/2018), convertido na Lei 14.112/2020, e que
teve por objetivo aprimorar a Lei 11.101/05, dispondo, em sua primeira versão, no art. 6º-
A que “É vedado à pessoa jurídica em processo de recuperação judicial distribuir os lucros
ou dividendos a sócios e acionistas, respeitado o disposto no art. 168”12. O art. 168 da Lei
de Recuperação Judicial e Falência trata de fraude a credores, estabelecendo ser crime a
prática de ato fraudulento de que resulte ou possa resultar em prejuízo aos credores.
A liquidação, no entanto, embora não possa ser considerada um ato fraudulento,
implica inevitável prejuízo aos credores de uma sociedade em estado de crise empresarial,
já que dela decorre inevitável diminuição do patrimônio social. Sobrevindo eventual

12
Referimo-nos à primeira versão porque a redação que prosperou, quando da conversão do projeto em lei
(Lei 14.112/2020), é ligeiramente diferente da inicial, tendo sido o dispositivo aprovado nos seguintes
termos: “Art. 6º-A. É vedado ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, distribuir lucros
ou dividendos a sócios e acionistas, sujeitando-se o infrator ao disposto no art. 168 desta Lei.”
quebra da sociedade, a submissão legal à ordem de preferência da execução concursal já
não confere garantia nenhuma de satisfação total dos créditos, o que se agravaria com o
exercício do direito de retirada dos sócios, ou por seus credores particulares. Dar ao credor
particular do sócio a possibilidade de fugir a essa “trava”, seria equivalente a conceder-lhe
uma espécie de execução per saltum, ou um status “ultraconcursal”, acima de toda a
ordem de preferência estabelecida na lei, em clara violação à par conditio creditorum.
Nesse sentido, asseverou o Relator:
“Por óbvio, o credor particular do sócio não se submete aos efeitos da
recuperação judicial. Tampouco é possível atribuir-lhe a qualidade de
credor extraconsursal, na medida em que não se trata de um débito
assumido (diretamente) pela recuperanda. Afigura-se, pois, de todo
inadequado conferir-lhe qualquer privilégio em detrimento dos credores
concursais, e mesmo dos extraconcursais, sob pena de se incorrer em
manifesta injustiça, já que de débito social não se trata propriamente”.
O argumento é sólido, e seu peso foi reconhecido pelo Ministro Moura Ribeiro, ao
expressar em seu voto-vista se tratar de questão de “difícil solução, sem dúvida”. De fato,
se bem observada a ratio do caso, embora ao fim do julgamento tenha prevalecido o voto
do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o argumento não foi derrotado, senão a ele se
acrescentou uma observação lateral de crucial relevância, mas que não lhe prejudica
essencialmente o mérito, apesar de ter mudado os rumos do julgamento.
Como já destacado, o ponto de toque para a conclusão do STJ, no presente caso, foi
a existência ou não de uma crise empresarial. Afinal, como bem destacou o Relator, em
situação de normalidade empresarial, o sócio possui o direito de exigir da sociedade,
inclusive judicialmente (Art. 599, CPC/2015), a liquidação de sua participação societária,
valendo-se, por exemplo, de seu direito de retirada. Sendo esse o caso, razão não haveria
para se impedir que um credor particular desse sócio, em eventual processo de execução,
pudesse “sub-rogar-se” no crédito advindo da liquidação a que o sócio faria jus. Se o sócio
pode fazê-lo, igual faculdade assiste ao credor ao tomar seu lugar através da execução.
Todavia, se por alguma razão a lei de regência vier a limitar esse direito do sócio na
hipótese de encontrar-se a sociedade em recuperação judicial, pela mesma razão o seu
credor particular – mantendo-se o paralelismo –, deverá estar impedido de dele se
apropriar. Afinal, o adquirente não se sub-roga apenas nos direitos, mas também nos ônus
de seu exercício, devendo seguir a mesma sorte daquele a quem substituirá na sociedade.
Daí por que necessário analisar o texto da Lei 11.101/2005 para verificar se a
premissa se realiza, indagando-se: qual tratamento a Lei 11.101/05 conferiu ao exercício
do direito de liquidação da participação societária quando a sociedade se encontra
submetida a regime concursal de credores, em recuperação judicial e falência?
A esse propósito, como apontado pelo Relator, em primeiro lugar chamam atenção
as normas do art. 116, inciso II e art. 83, §2º da referida lei. A primeira dispõe que “A
decretação da falência suspende: II – o exercício do direito de retirada ou de recebimento
do valor de suas quotas ou ações, por parte dos sócios da sociedade falida”, e a última, no
mesmo sentido, que “Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio
ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade”.
As sociedades empresárias, como é sabido, possuem um disciplina que as confere
uma série de garantias. Estas, no entanto, justificam-se menos pelo interesse de quem
exerce a empresa e mais pelos fins que ela desempenha no meio social como fonte de
empregos e de produção de riquezas13. Além disso, como qualquer pessoa capaz para os
atos da vida civil, a sociedade arca com os riscos dos negócios que realiza e, neles,
submete-se ao pacta sunt servanda. A recuperação judicial não é senão uma ferramenta
colocada a serviço destes mesmos fins. Daí por que na topologia do art. 83, que trata da
classificação dos créditos na falência, os créditos dos sócios aparecerem apenas no último
inciso e alínea e só se lhes admitir exigência após o pagamento de todos os credores.
Por essa razão, a lei de regência, nos art. 116, inciso II e art. 83, §2º, ao tratar da
matéria, deixou claro que “uma vez decretada a quebra, os sócios não poderão exercer seu
direito de retirada, uma vez que a liquidação de sua participação societária somente poderá
ser efetivada, se e quando, todos os credores da massa tiverem seus créditos integralmente
quitados”. A essa observação do Relator, aliás, faz coro a de Sérgio Campinho, ao anotar
que “Somente após o integral pagamento dos créditos subordinados é que, havendo sobras
(Art. 153) serão elas partilhadas entre os sócios, segundo a proporção de seus quinhões
sociais”14, e a de Marcelo Babosa Sacramone, ao explicar que “Como é resultante da
participação no capital social e não de obrigação contraída pela pessoa jurídica, os sócios
apenas receberão os referidos valores após a satisfação de todas as obrigações sociais.15”
Essa vedação de livre disposição do patrimônio social se deve ao princípio da
intangibilidade do capital social, que se prende sempre à tutela de terceiros16. Fábio Ulhoa
Coelho explica que “porque intangível o capital social, a sociedade está, em princípio
proibida de restituir os recursos correspondentes aos sócios. Essa restituição somente é
possível em condições excepcionais e com a observância de determinadas cautelas”17.
É importante destacar que a lei em questão, ao tratar da suspensão do direito de
retirada, só o fez nos capítulos pertinentes à falência. Nos capítulos atinentes à recuperação
judicial não há qualquer dispositivo legal específico que verse sobre esse direito.
A partir dessa leitura analógica, o Relator concluiu que lei, portanto, vedou o direito
de retirada do sócio e, por conseguinte, o direito de liquidar sua participação societária,
quando a sociedade se encontra em recuperação judicial. E, como já dito, se assim a lei
dispõe acerca do sócio, à mesma disciplina se submete eventual credor que o sub-rogue.
Convém destacar, pois é determinante para o caso, que essa regra geral é
excepcionada em duas hipóteses. Essas duas exceções estão previstas no art. 66, in verbis:
Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor
não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente,
salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o

13
“Sem dúvida, o primeiro objetivo específico da recuperação judicial é a manutenção da fonte produtora,
isto é, a manutenção da empresa (atividade) em funcionamento. Não se busca aqui salvar o sujeito, mas
salvar a atividade que ele exercia, pois é ao redor dessa atividade (empresa) que circundam os interesses de
credores, fisco, comunidade e trabalhadores. É mais importante que a atividade se mantenha funcionando,
ainda que com outro titular, pois sua manutenção permitirá a geração de novos empregos, a geração de
riquezas e o atendimento às necessidades da comunidade.” Cf. TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito
empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1, 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.
14
CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial: Falência e Recuperação de Empresa. São Paulo:
Editora Saraiva, 2019, p. 382
15
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São
Paulo: Editora Saraiva, 2018. p. 337
16
ASCARELLI, Op. Cit. p. 354.
17
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. vol. 2. 22 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2019, p. 414.
Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de
recuperação judicial. (Grifos nossos)

Em síntese, duas situações autorizam a alienação ou oneração de bens ou direitos de


uma sociedade em recuperação judicial: (i) prévia relação no plano de recuperação judicial
e em (ii) casos de evidente utilidade reconhecida pelo juiz, após ouvidos os credores. Tais
dispositivos denotam que a sociedade em recuperação judicial não possui livre disposição
de seus bens, carecendo ou da aprovação do comitê de credores, ou do juiz, caso se avente
tomar qualquer medida que possa implicar possível alteração do patrimônio social.
Em situação de normalidade empresarial, a lei de regência confere aos sócios o
direito de retirada, até porque ninguém é obrigado, por mandamento constitucional, a
permanecer associado sem o desejar18. No entanto, em fase de recuperação judicial, a lei,
ao vedar o direito de retirada – e conseguinte liquidação – protege o patrimônio social a
fim de que os credores da sociedade não sejam prejudicados, uma vez que o
“enfraquecimento do ativo da empresa faz-se sempre em prejuízo dos credores”19.
Ora, se a liquidação da quota social não reverte em favor do patrimônio da própria
sociedade – o que pode ocorrer, por exemplo, quando ela é suprida por outro sócio, solução
que, inclusive, preserva a affectio societatis e foi objeto de melhor análise pelo voto vista –
, este ato inevitavelmente implica diminuição do capital social.
É certo que a penhora das quotas ou ações do sócio não se confunde com a penhora
da empresa20. Mas embora aquelas integrem o patrimônio do sócio, e não da sociedade,
elas estão diretamente relacionadas ao exercício da empresa. A bem da verdade, o valor
integralizado pelos sócios para a constituição do patrimônio empresarial, para além de
integrar o seu patrimônio particular, representa também uma parcela do capital social com
o qual a sociedade exerce sua atividade e oferece segurança de liquidez aos credores, de
modo que, havendo a sua parcela para si em eventual retirada da empresa, é evidente que o
patrimônio dela diminui proporcionalmente à quota liquidada. A participação societária
encontra-se a meio termo entre o patrimônio do sócio e o patrimônio da sociedade.
Por essa razão, a liquidação de quota social pode ser enquadrada, como observou o
Relator, numa hipótese de alienação/oneração de ativo permanente da sociedade.
Sendo esse o caso, o interesse na liquidação das quotas, seja do sócio ou de seu
credor particular, uma vez encontrando-se a sociedade em recuperação judicial, deve se
submeter às regras do art. 66 da Lei 11.101/05, exigindo-se, pois: (i) aprovação dos
credores no plano de recuperação judicial,, ou (ii) autorização judicial, caso a medida
mostre-se útil e necessária ao soerguimento empresarial.
Nenhuma dessas hipóteses, porém, se realizou no caso concreto.

18
José Afonso da Silva há muito sustentou que o direito fundamental à liberdade de associação (art. 5, inciso
XX da Constituição Federal) é fundamento último do direito de retirada, argumentando que a “liberdade de
associação inclui tanto as associações em sentido estrito (em sentido técnico estrito, associações são
coligações de fim não lucrativo e as sociedades (coligações de fim lucrativo).” In: SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 267.
19
MAMEDE, Gladson. Falência e Recuperação de Empresa. 10ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2019,
p. 183-184.
20
ALVIM, Angélica Arruda. Comentários ao código de processo civil. Coord. Angélica Arruda Alvim [et
al.]. Saraiva, 2017. p. 554.
Com base nesse raciocínio, o Relator, verificando que a liquidação das quotas
sociais não reverteria em favor do patrimônio social, senão a um credor particular do sócio
executado, entendeu que a iniciativa não atendia à principiologia da recuperação judicial,
estando, pois, abrangida pela proibição do art. 66 da Lei. 11.101/05, e assim concluiu:
“Pode-se concluir, assim, que o direito de retirada, e, por conseguinte, o
direito de liquidar sua participação societária — que, em última análise,
implica alienação/oneração de ativo permanente do patrimônio da
sociedade —, somente será admitido desde que haja aprovação dos
credores específica ou no bojo do próprio plano de recuperação judicial,
como forma de soerguimento da empresa, ou com autorização judicial
(do juízo recuperacional), no caso de se mostrar útil e necessário aos fins
da recuperação.”

4. Voto vista

4.1. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva


A divergência no julgamento foi aberta pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Após concordar com a conclusão do Relator pela possibilidade penhora de quotas
sociais, uma vez verificada a inexistência de outros bens passíveis de constrição21, sem que
isto implique violação à affectio societatis, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,
ressalvou que não partilhava “ao menos não na extensão dada pelo Relator, da conclusão
de que é vedada a penhora de quotas da sociedade em recuperação judicial”.
A divergência leva em consideração a ressalva da parte final do art. 789 do CPC
2015, o qual dispõe que “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros
para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
Isto é: quis o legislador apenas obstar a penhora diante de restrição legal.
Examinando a legislação, nota-se que não há, a princípio, nenhuma proibição direta à
penhora de quotas sociais. Quando muito, segundo a posição, que julgamos acertada, do
Relator, a proibição que nesta matéria existe se dirige apenas à liquidação das quotas.
A proibição legal, aqui, alcança a liquidação da quota, e não a penhora em si.
Penhora não se confunde com liquidação, e há, entre ambas, um espaço mediado por outras
medidas possíveis que o código admite sejam tomadas. A liquidação, como anotou o voto
vista, “é apenas uma dentre outras situações possíveis a partir da efetivação da penhora”.
Essas possibilidades estão elencadas no art. 861, inciso II, e nos parágrafos §1º e
§5º do CPC 2015, que, em síntese, são : (i) o oferecimento das quotas ou ações aos demais
sócios, observado o direito de preferência legal ou contratual; (ii) a aquisição das quotas
pela própria sociedade, para evitar liquidação, sem redução do capital social e com a
utilização de reservas, para manutenção em tesouraria; (iii) alongamento do prazo de
pagamento das quotas caso haja risco a estabilidade financeira da sociedade.
21
A inexistência de outros bens passíveis de constrição é uma condição de procedibilidade para a penhora de
quotas sociais. Acerca do assunto, Gerson Luiz Carlos Branco e Amanda Lemos Dill registram que: “Essa
imposição ao credor de indicação e bens encontra amparo no art. 798, II, c, do Código de Processo Civil
vigente. Compreende-se que o legislador adotou essa postura para criar um ônus, uma condição, para o
exercício de um direito. Embora não se possa considerar como dever, essa atribuição legislativa possui
estrutura similar, pois exige uma atuação positiva do credor. Não se trata propriamente de um dever, porque o
efeito da inação é o não prosseguimento do processo de execução e se arquivamento em face da inércia,
razão pela qual se deve considerar como um verdadeiro ônus processual. BRANCO; DILL, Op. Cit. p. 2.
Assim, penhoradas as quotas, em primeiro lugar assiste direito aos sócios de supri-
las, a fim de evitar a liquidação e o ingresso do credor particular do sócio no quadro
societário. Posteriormente, não sendo as quotas adquiridas pelos sócios, a faculdade de
fazê-lo passa à sociedade. Essa última medida, no entanto, havendo recuperação judicial
em curso, não é admitida, pois sem lucros ou reservas disponíveis só seria possível realizá-
la às custas do patrimônio social – o que, como foi destacado exaustivamente no voto do
Relator, é vedado pelo art. 66 da Lei 11.101/05 durante o soerguimento empresarial.
Com base nesse raciocínio, e verificando não haver qualquer vedação legal, ao
menos a princípio, que impeça a penhora de quotas sociais de uma sociedade em
recuperação judicial, mas uma multiplicidade de situações que podem ocorrer ao longo da
execução, o voto visto se encaminhou no sentido de concluir que “eventual interferência da
penhora de quota social na recuperação judicial da empresa deve ser analisada com o
decorrer da execução” (grifos nossos), não podendo ser vedada a priori e abstratamente.
Registrou, por fim, que para essa finalidade a comunicação entre o juízo da
execução e o da recuperação judicial pode se dar na forma do art. 69 do CPC 2015.
Apenas de passagem, há um questionamento que poderia ter sido feito à conclusão
do Ministro Villas-Boas, e que, não obstante, não foi ventilado nos votos nem no recurso.
Não seria certo cogitar que a solução dada pelo voto vista vencedor, apontando o
dispositivo do CPC que admite seja a quota social adquirida pelos demais sócios, apresenta
um conflito com a norma do art. 66 da Lei 11.101/05? O art. 66 é claro em dizer que, após
a distribuição do pedido de recuperação, é vedada qualquer alienação de bens ou direitos
do ativo permanente da sociedade. Ora, essa vedação deve se estender apenas a estranhos à
sociedade (credores particulares do sócio, no caso) ou poderia também ser invocada contra
a alienação de quotas sociais para os próprios integrantes do quadro societário? A solução
dada por ambos os votos foi no sentido de que a alienação é proibida quando vier a reverter
em benefício de estranhos ao quadro social. Uma intepretação literal deste dispositivo daria
razão aos recorrentes, fazendo com que essa proibição alcançasse também a liquidação que
reverte em favor da própria sociedade, e uma sistemática, manteria a razão dos recorridos.
O aprofundamento dessa questão, todavia, fugiria aos escopos deste texto.
4.2.Ministros Mauro Ribeiro e Nancy Andrighi
A divergência inaugurada pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva foi
acompanhada pelos Ministros Moura Ribeiro e Nancy Andrighi.
O Ministro Moura Ribeiro, em uma interpretação, ao que parece, pragmática,
sopesou entre ambas as posições, apontando que “Para um Juiz de Vara, melhor a
conclusão adotada pelo Ministro Marco Aurélio Belizze”, mas em seguida reconhecendo
que “a solução do Ministro Villas Boas-Cueva é muito mais social, quer pela dicção do art.
789 do NCPC (art. 391 do CC/02), quer porque a penhora não prejudicará a recuperação, e
também porque só na liquidação se saberá qual o destino da quota penhorada”.
Com essa breve consideração, acompanhou a divergência.
A Ministra Nancy Andrighi, por sua vez, discorreu em seu voto reiterando os
fundamentos do voto vista que abriu a divergência. Em seu voto expressa opinião diversa
da que expôs o Relator quanto ao direito de retirada dos sócios quando a sociedade
encontra-se em recuperação judicial. Aquele havia entendido, por uma interpretação
analógica, que se na falência (art. 116) esse direito fica proibido, o mesmo deveria ocorrer
na recuperação judicial. A Ministra, no entanto, ao subscrever a divergência, registrou, em
sentido oposto, que se a legislação carece de qualquer dispositivo específico acerca do
direito de retirada na recuperação judicial, “pode-se inferir que a intenção do legislador foi
no sentido de não obstar a saída do sócio dos quadros da empresa” (grifos no original).
Reiterando que não havia lacuna na lei a viabilizar a interpretação analógica do
Relator, acompanhou a divergência, negando provimento ao recurso especial.
5. Penhora de quotas sociais: ponto de divergência e contrapontos necessários
Cumpre-nos, pois, neste tópico, especificar detalhadamente os contrapontos
necessários à tese exposta no voto do Relator à luz dos argumentos levantados no recurso.
Onde, exatamente, ao que nos parece, desviou-se do acerto o voto Relator?
Quando anota que “na hipótese de falência, o sócio somente poderá reaver os
valores destinados à integralização do capital social por ocasião da constituição da
sociedade empresaria, após a quitação de todos os credores da massa.” e, ao fechar o
raciocínio esboçado nestas linhas, chega à conclusão: “Logo, o credor particular desse
sócio, de igual modo, não poderia fazer a penhora incidir sobre tais bens” (grifos nossos).
Toda argumentação apoiada nesse silogismo nos parece eivada por sua falsidade.
Ratificando os argumentos declinados no voto vista vencedor, ao que nos parece, da
impossibilidade de os sócios exercerem o direito de retirada até a quitação de todos os
credores da massa não decorre necessariamente, embora a conclusão pareça essa, uma
proibição à penhora. Ao examinar a legislação processual pertinente verifica-se que o
silogismo não se confirma. A divergência – que julgamos acertada – é que a penhora pode,
sim recair sobre tais bens, desde que entre ela e a liquidação seja factível qualquer outra
medida não vedada em lei e útil à satisfação do credor particular do sócio que não implique
violação à affectio societatis. E, no caso do ordenamento pátrio, o art. 861, inciso II, do
CPC, prevê o oferecimento da quota aos demais sócios, no claro intuito de satisfazer a
dívida sem prejudicar a affectio societatis. A alternativa encontra o caminho do meio.
Se entre a penhora e a liquidação qualquer sócio dá um passo adiante e – talvez
otimista quanto ao soerguimento da sociedade –, com seu próprio patrimônio, se oferece a
adquirir a quota social do sócio executado, todo o problema se resolve.
O primeiro argumento do recurso dizia que (i) a quota social não é um direito
creditório, representando apenas a parte ideal do capital social, que somente representaria
pagamento no caso de liquidação da sociedade e houvesse numerário suficiente.
A este argumento pode-se opor o fato de que, direito creditório ou não, há muito o
direito brasileiro, superando a vetusta teoria unitária, incorporou a distinção entre débito
(Schuld) e responsabilidade (Raftung)22, sendo a penhora de quotas sociais decorrência

22
Ainda que haja antecedentes no direito romano e germânico, Alois Brinz é considerado o entusiasta da
teoria dualista da obrigação, que desenvolveu no final do século XIX. A fim de elucidar o ponto, transcreve-
se passagem de Flávio Tartuce: “A superação daquela velha teoria [teoria unitária], pode ser percebida a
partir do estudo dos dois elementos básicos da obrigação: o débito (Schuld) e responsabilidade (Haftung),
sobre os quais a obrigação se estruturada. Inicialmente , o Schuld é o dever legal de cumprir com a obrigação,
o dever existente por parte do devedor. Havendo o adimplemento da obrigação surgirá apenas esse conceito.
Mas, por outro lado, se a obrigação não é cumprida, surgirá a responsabilidade, o Haftung. Didaticamente,
pode-se utilizar a palavra Schuld como sinônimo de debitum e Haftung, de obligatio. Cf. TARTUCE, Flávio.
Manual de Direito Civil. vol. único. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, p. 303., 2019.
direta do princípio da responsabilidade patrimonial23, elemento da obrigação segundo o
qual o devedor deve arcar com todo o seu patrimônio perante seus credores. A participação
societária, por menor que seja, possui inegável expressão econômica, estando, portanto,
sujeita ao poder estatal a fim de satisfazer o direito daqueles. Como, em última instância, a
liquidação da participação societária implica em diminuição do capital social, este se
mostra um verdadeiro caso responsabilidade sem débito a recair sobre a sociedade.
O segundo, por sua vez, que (ii) a penhora de quotas sociais impõe aos sócios o
ingresso de pessoa estranha ao quadro social, em evidente prejuízo à affectio societatis.
Neste se veicula o mesmo silogismo equivocado que se acha no voto Relator.
Sendo as quotas adquiridas por outro sócio, o quadro societário se mantém incólume.
O terceiro argumento sustentava que (iii) duas empresas encontravam-se em
recuperação judicial, tendo o plano sido aprovado pelos credores, que assim manifestaram
sua confiança nas sociedades empresárias e em seus administradores, motivo pelo qual sua
substituição dependeria da realização de nova assembleia geral de credores.
O argumento se assenta sobre a ideia de que, uma vez excutida a quota, o credor
particular do sócio se sub-rogaria no direito deste à participação societária, o que
modificaria o quadro societário e, por conseguinte, retiraria o solo personalíssimo sob o
qual se firmou a confiança dos credores ao aprovarem o plano. No entanto, adquirida a
quota por um dos demais sócios já integrantes do quadro societário à época da aprovação
do plano, os credores não estariam depositando sua confiança em ninguém que já não a
tivesse recebido, razão por que desnecessária uma segunda convocação para esse fim.
Por último – pois o derradeiro argumento no sentido de que não foram buscados
outros meios de penhora menos gravosos do que a constrição das quotas sociais não foi
objeto de análise da Corte – argumentou-se que (iv) a transferência de quotas para a
exequente lhe concederia vantagem em eventual liquidação/falência das empresas, em
detrimento dos demais credores, afetando a par conditio creditorum.
Outra vez, adquirida a quota por outro sócio, não há que se falar em vantagem em
eventual liquidação ou falência, já que ao adquiri-la seria um total contrassenso que o
adquirente deixasse de atuar como sócio de uma sociedade em crise empresarial, posição
que lhe dá direito a crédito apenas após o pagamento de todo o passivo da sociedade, para
assumir repentinamente, na proporção da quota adquirida, a posição de credor exequente
de dívida particular de sócio, como se agora fosse um estranho à sociedade tentando
alcançar o patrimônio dela. De qualquer forma, se assim procedesse, esbarraria na ratio do
julgamento da Corte que levou ao provimento do recurso pelo Relator, necessitando de
aprovação dos credores para exercer seu direito de retirada em relação à parcela adquirida,
já que se concluiu, neste caso, que prevalece a par conditio creditorum.
Considerações finais
Do caso examinado extrai-se a conclusão de que enquanto entre a penhora das
quotas sociais e sua liquidação for possível tomar qualquer outra medida útil à satisfação
do credor particular do sócio que preserve a affectio societatis, não se pode proibir, a priori
e abstratamente, a penhora de quotas de uma sociedade em recuperação judicial.

23
BRANCO; DILL, Op. Cit. p. 3
Agir em sentido diverso seria denegar efetividade ao processo sem que ele tenha
esgotado o máximo de seu rendimento, que é, assumidamente, um dos objetivos centrais
do Código de Processo Civil24. De fato, se, por um lado, o processo tem uma finalidade
instrumental25, não podendo desbordar de seus limites e atrofiar o direito material em nome
da efetividade, tampouco pode ele, por outro lado, ficar aquém de suas possibilidades
legítimas, sob pena de ser igualmente inefetivo. In medio stat virtus, ensinava Aristóteles, e
encontrar a justa medida processual é tarefa difícil, devendo-se aliar, para a realização
dessa empreitada, uma profunda ponderação do direito material de ambos os lados com um
verdadeiro conhecimento das possibilidades procedimentais admitidas pela lei – e, claro,
também a inteligência de relacionar todos esses elementos em busca da melhor solução.
No caso objeto destes breves comentários, fazer prevalecer um regime de proteção
acima do outro equivaleria a prestigiar a efetividade com uma mão, mas desrespeitá-la com
a outra. É um caso de cobertor curto: concedê-lo à empresa, seria retirá-lo do credor do
sócio, e concedê-lo ao credor do sócio, seria retirar dos demais sócios ou, em eventual
quebra, dos credores da sociedade, numa hipótese em que todos estão cobertos, mas pela
lei – o primeiro pelo regime do Código Civil e do Código de Processo Civil, e os demais
pelo regime da Lei de Recuperação Judicial e Falência. Daí porque se pode concluir que o
voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva andou bem, pois soube encontrar o ponto
ótimo mediado pelo procedimento onde se realiza (ou não se prejudica) o direito material
de todos os envolvidos na controvérsia apreciada pela Corte, em verdadeira concretização
– e lição – do que se deve entender por efetividade e instrumentalidade do processo.
Referências
ALVIM, Angélica Arruda. Comentários ao código de processo civil. Coord. Angélica
Arruda Alvim [et al.]. Saraiva, 2017.
ASCARELLI, Tulio. Problemas das sociedades anônimas e Direito comparado. São
Paulo: Saraiva: 1945.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos; DILL, Amanda Lemos. A penhora de quotas no código
de processo civil: procedibilidade e procedimento. Revista de Direito Privado, vol.
83/2017, p. 182, 2017.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.221.579/MS. Rel. Ministra
Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1º/3/2016, DJe 4/3/2016.
______, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.803.250-SP. Rel. Ministro
Marco Aurélio Bellizze. Rel. acórdão: Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma,
julgado em 24/10/2019, DJe 28/10/2019.
CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial: Falência e Recuperação de
Empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
24
Conforme estabelece a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015: “Com evidente
redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia
dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressa
e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa
proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo
problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o
rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último
objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de
organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão.” (Grifos nossos)
25
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2003.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Arts. 1052 a 1195. São Paulo:
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. vol. 2. 22 ed. São Paulo: Ed.
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rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.

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