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RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. DÍVIDA
PARTICULAR DE SÓCIO. PENHORA. QUOTAS SOCIAIS. SOCIEDADE EM
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra
acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados
Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se em ação de
execução proposta contra sócio, relativa a dívida particular por ele contraída, é
permitida a penhora de suas quotas sociais e, caso possível, se essa situação se altera
na hipótese de a sociedade estar em recuperação judicial. 3. É possível, uma vez
verificada a inexistência de outros bens passíveis de constrição, a penhora de quotas
sociais de sócio por dívida particular por ele contraída sem que isso implique abalo na
affectio societatis. Precedentes. 4. Não há vedação para a penhora de quotas sociais
de sociedade empresária em recuperação judicial, já que não enseja,
necessariamente, a liquidação da quota. 5. Recurso especial não provido
1
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.803.250-SP. Rel. Ministro Marco Aurélio
Bellizze. Rel. acórdão: Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma, julgado em 24/10/2019, DJe 28/10/2019.
outros bens passíveis de constrição, a penhora de quotas sociais de sócio por dívida
particular por ele contraída sem que isso implique abalo na affectio societatis; e, finalmente
(ii) não há vedação para a penhora de quotas sociais de sociedade empresária em
recuperação judicial, já que não enseja, necessariamente, a liquidação da quota.
Doravante, passamos a analisar os fundamentos do acórdão, a fim de elucidar, sob o
ponto de vista teórico, o acerto da resolução final alcançada pela Corte.
2. Dupla principiologia: entre o regime de proteção do credor particular do
sócio e o regime de preservação do patrimônio social da empresa
O julgamento do STJ sobre controvérsia em questão foi interessante por diversos
aspectos, mas, especialmente, por ter a Corte notado estar diante da uma dupla
principiologia2 que, no caso concreto, parecia se sobrepor: por um lado, um regime de
proteção aos credores particulares do sócio, fundado no princípio da efetividade processual
e nos dispositivos pertinentes do Código de Processo Civil e do Código Civil, e, por outro,
um regime de proteção do patrimônio social, calcado no princípio da preservação da
empresa e em dispositivos da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/05).
A controvérsia se resumia a saber se em execução proposta contra sócio, por dívida
particular por este contraída, seria possível a penhora recair sobre quotas sociais de sua
titularidade, considerando a circunstância de que a sociedade, da qual o executado possui a
participação societária objeto de constrição, encontra-se em recuperação judicial.
A penhora, ensina Liebman, “é o ato pelo qual o órgão judiciário submete a seu
poder imediato determinados bens do executado, fixando sobre eles a destinação de
servirem à satisfação do crédito do exequente”3, e a recuperação judicial, explica
Tomazette, “é um conjunto de atos, cuja prática depende de concessão judicial, com o
obetivo de superar as crises de empresas viáveis”4. Enquanto a primeira é uma ferramenta
do processo executivo, posta a serviço da efetividade do direito de credores em geral, a
segunda é uma garantia em favor do patrimônio social5, sem o qual a empresa não pode
exercer seu papel social de gerar empregos e circular riquezas6, tampouco oferecer
segurança de liquidez aos credores dos negócios que celebra7. Em comum, ambos institutos
2
Gerson Luiz Carlos Branco e Amanda Lemos Dill, em artigo sobre a penhora de quotas sociais, falam em
uma “dualidade principiológica” que paira sobre a matéria, envolvendo a “efetividade do processo para a
satisfação do credor em contraste com os princípios empresariais que limitam essa efetividade”. Cf.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos; DILL, Amanda Lemos. A penhora de quotas no código de processo civil:
procedibilidade e procedimento. Revista de Direito Privado, vol. 83/2017, p. 182, 2017.
3
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 124.
4
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas. v. 3. 5. ed.
rev. e atual. – São Paulo : Atlas, 2017. p. 124.
5
Da necessidade de sua proteção surgiu o princípio da intangibilidade do capital social. Acerca deste
princípio empresarial, Modesto Carvalhosa anota, em Comentários ao Código Civil. Arts. 1052 a 1195. São
Paulo: Saraiva 2003, p. 100: “é uma ficção jurídica cuja criação foi motivada visando a salvaguarda dos
credores da sociedade. (...) A origem do princípio da integridade do capital social está, portanto, na ideia de
manutenção da estabilidade social e da segurança no cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade.”
6
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, em Manual de direito comercial. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 1, p.
41.: “no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico
prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade),
em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da
continuidade deste; assim os interesses de empregados quanto aos seus postos de trabalho, de consumidores
em relação aos bens ou serviços de que necessitam, do fisco voltado à arrecadação e outros.”
7
“A disciplina jurídica do capital social prende-se, sempre, à tutela dos terceiros e por isso, em princípio, é
corroborada com sanções penais. A justificativa da sanção penal decorre justamente do fato de as que normas
possuem a meta de tutelar direitos assegurados por uma disciplina jurídica própria e com
objetivos específicos, e se entrelaçam pelos limites que o primeiro encontra em aspectos da
disciplina do segundo8.
Colocam-se, aí, portanto, dois regimes distintos, um em favor dos credores
particulares do sócio e outro em favor da sociedade e de seus credores que, ao serem
conjugados no mesmo caso, apresentaram à Corte uma equação ligeiramente distinta, mas
de crucial relevância, para que se chegasse a uma solução diversa da que já havia se
estabelecido pacificamente em inúmeros julgados anteriores. Até o julgamento do RESP
1.803.250-SP, a Corte já havia sedimentado a possibilidade de penhora de quotas sociais9.
Os acórdãos que fizeram coro a esta conclusão, porém, referiam-se a situações de
normalidade empresarial. Inexistindo crise econômico-financeira na sociedade, é lícita a
penhora de quotas sociais – e, ao que parece, foi com base nesse corte que legislador do
código processual de 2015 houve por bem expressamente admitir a penhora de quotas
sociais, se feita uma leitura sistemática com a Lei de Recuperação judicial e Falência.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio Bellize faz uma retrospectiva da legislação
processual acerca da matéria. No Código de Processo Civil de 1973, a constrição judicial
das quotas sociais era admitida, em tese, pelo art. 655, X, que estabelecia, em ordem
preferencial, entre os bens passíveis de penhora, os “direitos e ações”, fazendo-se, a partir
deste dispositivo, uma interpretação extensiva em favor da medida. Com a Lei.
11.385/2006, o Código passou a prever, expressamente, no inciso VI do mesmo
dispositivo, a penhora de quotas sociais, sem, todavia, estabelecer-lhe um procedimento.
Isso só foi ocorrer com o Código de Processo Civil de 2015, que para além de ratificar a
possibilidade de penhora das quotas, estabeleceu o rito para a sua liquidação.
Ocorre que, como registrou o Relator, o regramento legal, ao promover esse
balizamento de interesses contrapostos e ao admitir que a quota do sócio devedor fosse
suprida pelos demais, pressupõe que a “situação patrimonial [da sociedade] o permita”.
Ora, ausente a crise empresarial, não há sobreposição de regimes. Não há conflito
evidente: a lei confere ao credor do sócio tudo que lhe é de direito, desde que respeitadas
as balizas procedimentais. Afinal, ou existe lucro a que o sócio devedor faça jus que
poderá ser excutido, ou parcela de sua quota social será liquidada para satisfazer o direito
do credor exequente10. Tutelar o direito material, em estado de normalidade empresarial, é
prosseguir todo o procedimento para, ausentes outros meios menos gravosos, alcançar na
sociedade e dela retirar o que o sócio deve a eventual credor de dívida pessoal.
Com a crise empresarial a solução é diversa. E tem de ser, pois o direito é um
emaranhado de sistemas que se comunicam, como dizia Luhmann11, e as soluções dadas
12
Referimo-nos à primeira versão porque a redação que prosperou, quando da conversão do projeto em lei
(Lei 14.112/2020), é ligeiramente diferente da inicial, tendo sido o dispositivo aprovado nos seguintes
termos: “Art. 6º-A. É vedado ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, distribuir lucros
ou dividendos a sócios e acionistas, sujeitando-se o infrator ao disposto no art. 168 desta Lei.”
quebra da sociedade, a submissão legal à ordem de preferência da execução concursal já
não confere garantia nenhuma de satisfação total dos créditos, o que se agravaria com o
exercício do direito de retirada dos sócios, ou por seus credores particulares. Dar ao credor
particular do sócio a possibilidade de fugir a essa “trava”, seria equivalente a conceder-lhe
uma espécie de execução per saltum, ou um status “ultraconcursal”, acima de toda a
ordem de preferência estabelecida na lei, em clara violação à par conditio creditorum.
Nesse sentido, asseverou o Relator:
“Por óbvio, o credor particular do sócio não se submete aos efeitos da
recuperação judicial. Tampouco é possível atribuir-lhe a qualidade de
credor extraconsursal, na medida em que não se trata de um débito
assumido (diretamente) pela recuperanda. Afigura-se, pois, de todo
inadequado conferir-lhe qualquer privilégio em detrimento dos credores
concursais, e mesmo dos extraconcursais, sob pena de se incorrer em
manifesta injustiça, já que de débito social não se trata propriamente”.
O argumento é sólido, e seu peso foi reconhecido pelo Ministro Moura Ribeiro, ao
expressar em seu voto-vista se tratar de questão de “difícil solução, sem dúvida”. De fato,
se bem observada a ratio do caso, embora ao fim do julgamento tenha prevalecido o voto
do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o argumento não foi derrotado, senão a ele se
acrescentou uma observação lateral de crucial relevância, mas que não lhe prejudica
essencialmente o mérito, apesar de ter mudado os rumos do julgamento.
Como já destacado, o ponto de toque para a conclusão do STJ, no presente caso, foi
a existência ou não de uma crise empresarial. Afinal, como bem destacou o Relator, em
situação de normalidade empresarial, o sócio possui o direito de exigir da sociedade,
inclusive judicialmente (Art. 599, CPC/2015), a liquidação de sua participação societária,
valendo-se, por exemplo, de seu direito de retirada. Sendo esse o caso, razão não haveria
para se impedir que um credor particular desse sócio, em eventual processo de execução,
pudesse “sub-rogar-se” no crédito advindo da liquidação a que o sócio faria jus. Se o sócio
pode fazê-lo, igual faculdade assiste ao credor ao tomar seu lugar através da execução.
Todavia, se por alguma razão a lei de regência vier a limitar esse direito do sócio na
hipótese de encontrar-se a sociedade em recuperação judicial, pela mesma razão o seu
credor particular – mantendo-se o paralelismo –, deverá estar impedido de dele se
apropriar. Afinal, o adquirente não se sub-roga apenas nos direitos, mas também nos ônus
de seu exercício, devendo seguir a mesma sorte daquele a quem substituirá na sociedade.
Daí por que necessário analisar o texto da Lei 11.101/2005 para verificar se a
premissa se realiza, indagando-se: qual tratamento a Lei 11.101/05 conferiu ao exercício
do direito de liquidação da participação societária quando a sociedade se encontra
submetida a regime concursal de credores, em recuperação judicial e falência?
A esse propósito, como apontado pelo Relator, em primeiro lugar chamam atenção
as normas do art. 116, inciso II e art. 83, §2º da referida lei. A primeira dispõe que “A
decretação da falência suspende: II – o exercício do direito de retirada ou de recebimento
do valor de suas quotas ou ações, por parte dos sócios da sociedade falida”, e a última, no
mesmo sentido, que “Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio
ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade”.
As sociedades empresárias, como é sabido, possuem um disciplina que as confere
uma série de garantias. Estas, no entanto, justificam-se menos pelo interesse de quem
exerce a empresa e mais pelos fins que ela desempenha no meio social como fonte de
empregos e de produção de riquezas13. Além disso, como qualquer pessoa capaz para os
atos da vida civil, a sociedade arca com os riscos dos negócios que realiza e, neles,
submete-se ao pacta sunt servanda. A recuperação judicial não é senão uma ferramenta
colocada a serviço destes mesmos fins. Daí por que na topologia do art. 83, que trata da
classificação dos créditos na falência, os créditos dos sócios aparecerem apenas no último
inciso e alínea e só se lhes admitir exigência após o pagamento de todos os credores.
Por essa razão, a lei de regência, nos art. 116, inciso II e art. 83, §2º, ao tratar da
matéria, deixou claro que “uma vez decretada a quebra, os sócios não poderão exercer seu
direito de retirada, uma vez que a liquidação de sua participação societária somente poderá
ser efetivada, se e quando, todos os credores da massa tiverem seus créditos integralmente
quitados”. A essa observação do Relator, aliás, faz coro a de Sérgio Campinho, ao anotar
que “Somente após o integral pagamento dos créditos subordinados é que, havendo sobras
(Art. 153) serão elas partilhadas entre os sócios, segundo a proporção de seus quinhões
sociais”14, e a de Marcelo Babosa Sacramone, ao explicar que “Como é resultante da
participação no capital social e não de obrigação contraída pela pessoa jurídica, os sócios
apenas receberão os referidos valores após a satisfação de todas as obrigações sociais.15”
Essa vedação de livre disposição do patrimônio social se deve ao princípio da
intangibilidade do capital social, que se prende sempre à tutela de terceiros16. Fábio Ulhoa
Coelho explica que “porque intangível o capital social, a sociedade está, em princípio
proibida de restituir os recursos correspondentes aos sócios. Essa restituição somente é
possível em condições excepcionais e com a observância de determinadas cautelas”17.
É importante destacar que a lei em questão, ao tratar da suspensão do direito de
retirada, só o fez nos capítulos pertinentes à falência. Nos capítulos atinentes à recuperação
judicial não há qualquer dispositivo legal específico que verse sobre esse direito.
A partir dessa leitura analógica, o Relator concluiu que lei, portanto, vedou o direito
de retirada do sócio e, por conseguinte, o direito de liquidar sua participação societária,
quando a sociedade se encontra em recuperação judicial. E, como já dito, se assim a lei
dispõe acerca do sócio, à mesma disciplina se submete eventual credor que o sub-rogue.
Convém destacar, pois é determinante para o caso, que essa regra geral é
excepcionada em duas hipóteses. Essas duas exceções estão previstas no art. 66, in verbis:
Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor
não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente,
salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o
13
“Sem dúvida, o primeiro objetivo específico da recuperação judicial é a manutenção da fonte produtora,
isto é, a manutenção da empresa (atividade) em funcionamento. Não se busca aqui salvar o sujeito, mas
salvar a atividade que ele exercia, pois é ao redor dessa atividade (empresa) que circundam os interesses de
credores, fisco, comunidade e trabalhadores. É mais importante que a atividade se mantenha funcionando,
ainda que com outro titular, pois sua manutenção permitirá a geração de novos empregos, a geração de
riquezas e o atendimento às necessidades da comunidade.” Cf. TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito
empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1, 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.
14
CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial: Falência e Recuperação de Empresa. São Paulo:
Editora Saraiva, 2019, p. 382
15
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São
Paulo: Editora Saraiva, 2018. p. 337
16
ASCARELLI, Op. Cit. p. 354.
17
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. vol. 2. 22 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2019, p. 414.
Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de
recuperação judicial. (Grifos nossos)
18
José Afonso da Silva há muito sustentou que o direito fundamental à liberdade de associação (art. 5, inciso
XX da Constituição Federal) é fundamento último do direito de retirada, argumentando que a “liberdade de
associação inclui tanto as associações em sentido estrito (em sentido técnico estrito, associações são
coligações de fim não lucrativo e as sociedades (coligações de fim lucrativo).” In: SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 267.
19
MAMEDE, Gladson. Falência e Recuperação de Empresa. 10ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2019,
p. 183-184.
20
ALVIM, Angélica Arruda. Comentários ao código de processo civil. Coord. Angélica Arruda Alvim [et
al.]. Saraiva, 2017. p. 554.
Com base nesse raciocínio, o Relator, verificando que a liquidação das quotas
sociais não reverteria em favor do patrimônio social, senão a um credor particular do sócio
executado, entendeu que a iniciativa não atendia à principiologia da recuperação judicial,
estando, pois, abrangida pela proibição do art. 66 da Lei. 11.101/05, e assim concluiu:
“Pode-se concluir, assim, que o direito de retirada, e, por conseguinte, o
direito de liquidar sua participação societária — que, em última análise,
implica alienação/oneração de ativo permanente do patrimônio da
sociedade —, somente será admitido desde que haja aprovação dos
credores específica ou no bojo do próprio plano de recuperação judicial,
como forma de soerguimento da empresa, ou com autorização judicial
(do juízo recuperacional), no caso de se mostrar útil e necessário aos fins
da recuperação.”
4. Voto vista
22
Ainda que haja antecedentes no direito romano e germânico, Alois Brinz é considerado o entusiasta da
teoria dualista da obrigação, que desenvolveu no final do século XIX. A fim de elucidar o ponto, transcreve-
se passagem de Flávio Tartuce: “A superação daquela velha teoria [teoria unitária], pode ser percebida a
partir do estudo dos dois elementos básicos da obrigação: o débito (Schuld) e responsabilidade (Haftung),
sobre os quais a obrigação se estruturada. Inicialmente , o Schuld é o dever legal de cumprir com a obrigação,
o dever existente por parte do devedor. Havendo o adimplemento da obrigação surgirá apenas esse conceito.
Mas, por outro lado, se a obrigação não é cumprida, surgirá a responsabilidade, o Haftung. Didaticamente,
pode-se utilizar a palavra Schuld como sinônimo de debitum e Haftung, de obligatio. Cf. TARTUCE, Flávio.
Manual de Direito Civil. vol. único. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, p. 303., 2019.
direta do princípio da responsabilidade patrimonial23, elemento da obrigação segundo o
qual o devedor deve arcar com todo o seu patrimônio perante seus credores. A participação
societária, por menor que seja, possui inegável expressão econômica, estando, portanto,
sujeita ao poder estatal a fim de satisfazer o direito daqueles. Como, em última instância, a
liquidação da participação societária implica em diminuição do capital social, este se
mostra um verdadeiro caso responsabilidade sem débito a recair sobre a sociedade.
O segundo, por sua vez, que (ii) a penhora de quotas sociais impõe aos sócios o
ingresso de pessoa estranha ao quadro social, em evidente prejuízo à affectio societatis.
Neste se veicula o mesmo silogismo equivocado que se acha no voto Relator.
Sendo as quotas adquiridas por outro sócio, o quadro societário se mantém incólume.
O terceiro argumento sustentava que (iii) duas empresas encontravam-se em
recuperação judicial, tendo o plano sido aprovado pelos credores, que assim manifestaram
sua confiança nas sociedades empresárias e em seus administradores, motivo pelo qual sua
substituição dependeria da realização de nova assembleia geral de credores.
O argumento se assenta sobre a ideia de que, uma vez excutida a quota, o credor
particular do sócio se sub-rogaria no direito deste à participação societária, o que
modificaria o quadro societário e, por conseguinte, retiraria o solo personalíssimo sob o
qual se firmou a confiança dos credores ao aprovarem o plano. No entanto, adquirida a
quota por um dos demais sócios já integrantes do quadro societário à época da aprovação
do plano, os credores não estariam depositando sua confiança em ninguém que já não a
tivesse recebido, razão por que desnecessária uma segunda convocação para esse fim.
Por último – pois o derradeiro argumento no sentido de que não foram buscados
outros meios de penhora menos gravosos do que a constrição das quotas sociais não foi
objeto de análise da Corte – argumentou-se que (iv) a transferência de quotas para a
exequente lhe concederia vantagem em eventual liquidação/falência das empresas, em
detrimento dos demais credores, afetando a par conditio creditorum.
Outra vez, adquirida a quota por outro sócio, não há que se falar em vantagem em
eventual liquidação ou falência, já que ao adquiri-la seria um total contrassenso que o
adquirente deixasse de atuar como sócio de uma sociedade em crise empresarial, posição
que lhe dá direito a crédito apenas após o pagamento de todo o passivo da sociedade, para
assumir repentinamente, na proporção da quota adquirida, a posição de credor exequente
de dívida particular de sócio, como se agora fosse um estranho à sociedade tentando
alcançar o patrimônio dela. De qualquer forma, se assim procedesse, esbarraria na ratio do
julgamento da Corte que levou ao provimento do recurso pelo Relator, necessitando de
aprovação dos credores para exercer seu direito de retirada em relação à parcela adquirida,
já que se concluiu, neste caso, que prevalece a par conditio creditorum.
Considerações finais
Do caso examinado extrai-se a conclusão de que enquanto entre a penhora das
quotas sociais e sua liquidação for possível tomar qualquer outra medida útil à satisfação
do credor particular do sócio que preserve a affectio societatis, não se pode proibir, a priori
e abstratamente, a penhora de quotas de uma sociedade em recuperação judicial.
23
BRANCO; DILL, Op. Cit. p. 3
Agir em sentido diverso seria denegar efetividade ao processo sem que ele tenha
esgotado o máximo de seu rendimento, que é, assumidamente, um dos objetivos centrais
do Código de Processo Civil24. De fato, se, por um lado, o processo tem uma finalidade
instrumental25, não podendo desbordar de seus limites e atrofiar o direito material em nome
da efetividade, tampouco pode ele, por outro lado, ficar aquém de suas possibilidades
legítimas, sob pena de ser igualmente inefetivo. In medio stat virtus, ensinava Aristóteles, e
encontrar a justa medida processual é tarefa difícil, devendo-se aliar, para a realização
dessa empreitada, uma profunda ponderação do direito material de ambos os lados com um
verdadeiro conhecimento das possibilidades procedimentais admitidas pela lei – e, claro,
também a inteligência de relacionar todos esses elementos em busca da melhor solução.
No caso objeto destes breves comentários, fazer prevalecer um regime de proteção
acima do outro equivaleria a prestigiar a efetividade com uma mão, mas desrespeitá-la com
a outra. É um caso de cobertor curto: concedê-lo à empresa, seria retirá-lo do credor do
sócio, e concedê-lo ao credor do sócio, seria retirar dos demais sócios ou, em eventual
quebra, dos credores da sociedade, numa hipótese em que todos estão cobertos, mas pela
lei – o primeiro pelo regime do Código Civil e do Código de Processo Civil, e os demais
pelo regime da Lei de Recuperação Judicial e Falência. Daí porque se pode concluir que o
voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva andou bem, pois soube encontrar o ponto
ótimo mediado pelo procedimento onde se realiza (ou não se prejudica) o direito material
de todos os envolvidos na controvérsia apreciada pela Corte, em verdadeira concretização
– e lição – do que se deve entender por efetividade e instrumentalidade do processo.
Referências
ALVIM, Angélica Arruda. Comentários ao código de processo civil. Coord. Angélica
Arruda Alvim [et al.]. Saraiva, 2017.
ASCARELLI, Tulio. Problemas das sociedades anônimas e Direito comparado. São
Paulo: Saraiva: 1945.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos; DILL, Amanda Lemos. A penhora de quotas no código
de processo civil: procedibilidade e procedimento. Revista de Direito Privado, vol.
83/2017, p. 182, 2017.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.221.579/MS. Rel. Ministra
Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1º/3/2016, DJe 4/3/2016.
______, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.803.250-SP. Rel. Ministro
Marco Aurélio Bellizze. Rel. acórdão: Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma,
julgado em 24/10/2019, DJe 28/10/2019.
CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial: Falência e Recuperação de
Empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
24
Conforme estabelece a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015: “Com evidente
redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia
dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressa
e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa
proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo
problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o
rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último
objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de
organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão.” (Grifos nossos)
25
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2003.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Arts. 1052 a 1195. São Paulo:
Saraiva 2003.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. vol. 2. 22 ed. São Paulo: Ed.
Saraiva, 2019.
______, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. vol. 1. 30. ed. São Paulo: Saraiva,
2018.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2003.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1980.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução Ana Cristina Arantes
Nasser. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
MAMEDE, Gladson. Falência e Recuperação de Empresa. 10ª Edição. São Paulo:
Editora Atlas, 2019.
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
Falências. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. Ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. vol. único. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, p. 303., 2019.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de
empresas. v. 3. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo : Atlas, 2017.
______, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1, 8. ed.
rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.