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3
Em Direção a uma Explicação
Epistemológica da Virtude Acerca do
Testemunho

3.1. ESBOÇANDO A POSIÇÃO DIALÉTICA


O fenômeno que chamo de injustiça testemunhal não está de
fato confinado a trocas de testemunho, permitindo também que
consideremos testemunho em seu sentido mais amplo de modo a incluir
todos os casos de contar algo (telling). O déficit de credibilidade
preconceituoso pode, afinal de contas, ocorrer quando uma falante
simplesmente expressa uma opinião pessoal a um ouvinte, ou exprime
um juízo de valor, ou experimenta uma nova ideia ou hipótese sobre um
público. Mas contar algo é o caso-mãe da injustiça testemunhal, uma vez
que o dano básico da injustiça testemunhal é a debilitação da falante
enquanto conhecedora, e, embora outros tipos de elocução possam, às
vezes, comunicar conhecimento, é distintivo do ato de contar algo que
transmitir conhecimento é o seu objetivo mais básico e imediato – seu
objetivo ilocucionário, como poderíamos dizer 1 . (Espero que esta

1
Não se deve deixar de mencionar que C.A.J. Coady, em seu livro Testimony: A
philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992, entende o objetivo ilocucionário do
testemunho não em termos da comunicação do conhecimento, mas especificamente como
fornecimento de evidência. Ele efetivamente coloca a transmissão de conhecimento como
um caso especialmente oportuno de fornecimento de evidências; mas parece-me que isso
é um pouco forçado. Caracterizar como evidência o que eu ofereço à minha interlocutora
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afirmação seja intuitiva o suficiente por si só, mas em qualquer caso,


veremos isso fundamentado no Capítulo 5 por meio de uma certa
genealogia do conceito de conhecimento.) Por essa razão, a
epistemologia do testemunho é a estrutura relevante para estabelecer
todos os casos de déficit de credibilidade preconceituoso.
As propostas da epistemologia do testemunho podem ser vistas
em duas grandes variedades: inferencialista e não-inferencialista. Há
espaço para uma diversidade de pontos de vista, com certeza mas uma
das principais motivações para qualquer um deles será a inclinação
inferencialista ou não-inferencialista do autor sobre as obrigações de um
ouvinte quando o ouvinte quiser obter conhecimento de sua
interlocutora. Pode-se estar inclinado a colocar em evidência uma
imagem familiar da justificação e argumentar que, a fim de obter
conhecimento de que p de alguém que lhe diga que p, o ouvinte deve, de

quando ela me pergunta minha data de nascimento, e eu digo a ela minha data de
nascimento, coloca muita pressão sobre a ideia – que é o principal objetivo que Coady quer
defender – que o conhecimento testemunhal pode ser direto ou não-inferencial.
Coady é sensível a essa linha de objeção e responde enfatizando que a concepção de
evidência que ele pretende é epistemologicamente mínima; e ele também diz que, como
afirmar, objetar e argumentar, o objetivo mais geral do testemunho ilocucionário é
informar, de modo que a evidência é apenas a maneira distinta como o testemunho o faz
(p. 43). Mas eu acho que é muito difícil ouvir “evidências” tão minimamente quanto Coady
nos pede, e certamente a alegação de que o falante “oferece” sua palavra como evidência
parece completamente errada psicologicamente para o caso normal.
Coady toma o testemunho formal do tribunal como seu modelo inicial para o testemunho
informal cotidiano, e pode-se pensar que ele está certo em supor que isso apóia a ideia de
que o objetivo do testemunho informal é fornecer evidências. Creio que esse não é o caso.
Certamente, a ideia de que o que as testemunhas do tribunal estão fazendo ao testemunhar
é oferecer evidências; mas a maior parte do testemunho fornecido em um tribunal é
solicitada por causa de seu peso evidencial em algum outro assunto que o tribunal deve
resolver (seria o réu culpado como fora acusado?). Permanece bastante aberto se o
testemunho de uma testemunha de que p deve ser concebido como também evidência para
p. Isso parecia estranho como uma explicação de testemunho informal, e agora parece
estranho até mesmo como uma explicação de testemunho formal. Certamente, o objetivo
processual ou institucional do testemunho formal é fornecer evidências, mas o objetivo
ilocucionário pode ainda ser, simplesmente, transmitir conhecimento.
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alguma forma (talvez muito rapidamente, talvez até mesmo


inconscientemente) ensaiar um argumento cuja conclusão é p2. Por outro
lado, pode-se estar inclinado a colocar as considerações
fenomenológicas em primeiro plano e argumentar que nossa recepção
espontânea cotidiana da palavra dos outros pode trazer conhecimento
mesmo sem a elaboração de qualquer argumento. Aqueles inclinados a
aceitar este último quadro não-inferencialista tendem a defender algum
tipo de credulidade ou aceitação padrão do que os outros nos dizem.
Talvez esse padrão seja argumentado com base em que temos uma
tendência natural tanto para a veracidade (como falantes) quanto para a
credulidade (como ouvintes), de modo que, em geral, a primeira fornece

2
A fonte histórica chave para a perspectiva inferencialista é certamente Hume; ver HUME,
David. An Enquiry Concerning Human Understanding, SELBY-BIGGE, L.A. (ed.), 3ª
ed. Oxford: Clarendon Press, 1975, seção 10. Publicado pela primeira vez em 1739.
[Traduzido para o português em HUME, David. Investigação sobre o entendimento
humano. Leya, 2013]. Mas deixe-me registrar alguma cautela aqui, pois acho que é uma
má estratégia interpretativa supor que a visão inferencialista que Hume expõe a respeito
de relatos surpreendentes – a única coisa que ele escreveu sobre testemunho é “Dos
Milagres” – pode ser tomada como uma posição sobre o testemunho em geral. Pode-se
facilmente imaginar uma visão alternativa, igualmente humeana, que ele poderia ter
assumido sobre a epistemologia dos relatos cotidianos não surpreendentes, no sentido de
que a mente humana é condicionada pela experiência a mover-se espontaneamente da
palavra de uma falante de que p para a verdade de p. Michael Welbourne defendeu um
argumento para a leitura de Hume como propondo esse padrão associativo de aceitação
(veja seu Knowledge. Chesham, Bucks: Acumen, 2001, cap. 5); Paul Faulkner adverte
contra a interpretação de Hume como um reducionista cético (veja seu David Hume’s
reductionist epistemology of testimony. Pacific Philosophical Quarterly, v. 79, n. 4,
1998, pp. 302 – 13); e Robert Fogelin sugere que a posição de Hume é neutra em relação
ao assunto (ver A defense of Hume on miracles. Princeton University Press, 2003, p. 90,
n. 3).
Para algumas abordagens inferencialistas recentes, ver Against gullibility. In: MATILAL,
B. K.; CHAKRABARTI, A. (eds.) Knowing from words. Springer, Dordrecht, 1994. p.
125-161, e Second-hand knowledge. Philosophy and Phenomenological Research, v.
73, n. 3, p. 592-618, 2006; LYONS, Jack. Testimony, induction and folk psychology.
Australasian Journal of Philosophy, v. 75, n. 2, 1997, pp. 163– 77; e LIPTON, Peter.
The epistemology of testimony. Studies in History and Philosophy of Science Part A,
v. 29, n. 1, p. 1-31, 1998.
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uma justificação empírica para a segunda 3 . Ou talvez o padrão seja


proposto como sendo justificado a priori, de modo que estamos
autorizados a priori ao padrão de aceitar acriticamente o que os outros
nos dizem 4 . De um modo ou de outro, vemos o não-inferencialismo
tomando forma como um padrão de receptividade não crítica por parte
do ouvinte, pois isso parece fazer com que a epistemologia esteja
consoante com a fenomenologia. A grosso modo, então, na
epistemologia do testemunho pode parecer que devemos recorrer a uma
de duas histórias epistemológicas. Uma história apresenta o ouvinte
como adquirindo conhecimento apenas se ele desempenha uma
inferência apropriada. A outra história parece apresentar o ouvinte como
ganhando conhecimento por meio de um ou outro padrão de
receptividade não crítica, de tal forma que ele tem o direito de aceitar o
que é dito sem exercer qualquer capacidade crítica.

3
A figura histórica chave para a visão de que um padrão de aceitação do que nos é dito é
inato é Thomas Reid; veja seu An Inquiry into the Human Mind. DUGGAN, T. (ed.).
Chicago: University of Chicago Press, 1970, cap. 6, seção xxiv, Of the Analogy between
Perception and the Credit We Give to Human Testimony. Publicado originalmente em
1764. Os princípios gêmeos de “credulidade” e “veracidade”, instilados em nossa natureza
por Deus, juntos garantem que temos o direito de aceitar o que nos é dito, exceto na medida
em que a experiência do sujeito maduro possa suscitar dúvidas em qualquer caso particular.
Para algumas abordagens não-inferencialistas recentes, consulte COADY, Testimony;
MCDOWELL, John. Knowledge by Hearsay. In: Meaning, Knowledge, and Reality.
Cambridge, Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998, ensaio 19; publicado
originalmente em MATILAL, B. K. e CHAKRABARTI, A. (eds.), Knowing from
Words: Western and Indian Philosophical Analysis of Understanding and Testimony.
Dordrecht: Kluwer, 1994; e para uma forma especificamente comunitária de não-
infernecialismo, ver KUSCH, Martin. Knowledge by agreement: The programme of
communitarian epistemology. Oxford University Press, 2002, parte I.
4
A visão de que um padrão de aceitação é justificado a priori é defendida por BURGE,
Tyler. Content preservation. The Philosophical Review, v. 102, n. 4, p. 457-488, 1992;
ver também seu Interlocution, perception, and memory. Philosophical Studies: An
International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, v. 86, n. 1, p. 21-47, 1997.
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A deficiência de um é a qualidade do outro. O inferencialismo,


como Coady o apresenta, diz que “todo conhecimento por testemunho é
indireto ou inferencial. Sabemos que p quando nos dizem
confiavelmente que p porque fazemos alguma inferência sobre a
confiabilidade e sinceridade da testemunha” 5 . Em uma formulação
alternativa, John McDowell apresenta o modelo inferencialista como
baseado na seguinte suposição:

Se uma posição epistemicamente satisfatória no espaço de razões, com


relação a uma proposição, é mediada ao invés de imediata, isso
significa que a posição é constituída pela força de um argumento,
que está disponível ao seu ocupante, com a proposição em questão
como conclusão.6
Em qualquer formulação, o modelo inferencialista é
obviamente bem projetado para acalmar as ansiedades sobre a
justificação para aceitar o que os outros nos dizem, pois exige que o
ouvinte adote um raciocínio que forneça justificação. Inevitavelmente,
isso geralmente será algum tipo de argumento indutivo: por exemplo,
um argumento sobre a confiabilidade passada da falante individual sobre
esses assuntos ou sobre a confiabilidade geral de pessoas como a falante
sobre esses assuntos. Mas o problema agora é que a exigência de que o
ouvinte se valha de tal argumento parece muito forte por ser muito

5
COADY, Testimony, pp. 122 – 3.
6
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, p. 415. Ele assume que o inferencialismo exige
que tal argumento forneça ao ouvinte conhecimento do que lhe é dito; mas esta seria uma
forma particularmente forte de inferencialismo, uma vez que exige que se esteja na posse
de um argumento que garanta a verdade do que se ouve. Um inferencialismo mais modesto
exigiria apenas que o argumento forneça ao ouvinte justificação para acreditar no que lhe
foi dito. Parece-me, portanto, que um dos principais argumentos que McDowell usa contra
o inferencialismo – que nunca haveria um argumento disponível para o ouvinte que fosse
forte o suficiente para fornecer a garantia necessária – é ineficaz contra a forma mais
modesta de inferencialismo.
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intelectualmente trabalhosa. Isso simplesmente não corresponde à nossa


fenomenologia cotidiana da troca informal de testemunhos, que
apresenta o aprendizado de algo sendo dito como distintamente não
laborioso e espontâneo. Certamente, uma prática epistêmica tão básica
para a vida humana como ter coisas contadas por alguém que sabe algo
não pode exigir esse nível de esforço intelectual, muito menos uma
realização. Se o ouvinte devesse genuinamente e competentemente
refletir (de uma maneira que seja menos prosaica) sobre a probabilidade
de que a ele tenha sido contada a verdade, isso levaria alguns minutos
para uma avaliação rigorosa de um tipo que simplesmente não encaixa
com a espontaneidade fácil que é característica de grande parte do nosso
intercâmbio cotidiano de testemunhos. O defensor do modelo inferencial
responderá naturalmente enfatizando que o ouvinte maduro
normalmente exercita seu argumento com muita prontidão e facilidade.
Porém, quanto mais ele se esforça para enfatizar que essa argumentação
justificativa pode ser tão rápida que mal pode ser notada, e pode até ser
completamente inconsciente, mais o modelo se assemelha a um caso de
intelectualismo sob pressão.
Esse problema com o modelo inferencialista nos leva a procurar
o não-inferencialismo em busca de uma alternativa. Aqui encontramos
uma imagem segundo a qual o ouvinte desfruta de algum tipo de padrão
de receptividade acrítica ao que lhe é dito. Isso certamente parece
encaixar muito melhor com a fenomenologia de nossas trocas diárias.
Na ausência de sinais para a dúvida, nós aceitamos certamente a maioria
do que nos é dito sem fazer qualquer avaliação crítica ativa, e assim
nossa experiência como ouvintes pode fazer parecer que somos
confiáveis a menos que, e até que, algum alerta para a dúvida seja
111

percebido. Isso é algo que uma visão que nos descreve como
constitutivamente abertos à palavra de outros, tal como é defendida por
Thomas Reid, está bem posicionada para explicar. Um exemplo
cotidiano pode ser o de que, quando vou apressadamente para a estação
de trem, pergunto a um estranho que horas são, ele me diz que são duas
horas da tarde e eu simplesmente aceito, sem refletir, o que ele diz. Essa
falta de reflexão é sublinhada pelo fato de que, se eu perceber algum
sinal para dúvida – ele diz que são duas horas da tarde, quando eu sei
que deve ser mais tarde do que isso porque já está escurecendo –, então
eu experimento uma espécie de mudança de marcha intelectual, saindo
desse modo não reflexivo e entrando em um modo reflexivo e mais
trabalhoso de avaliação crítica ativa. É somente com essa mudança de
marcha que posso começar a trazer alguma reflexão ativa sobre a questão
da confiabilidade de minha interlocutora.
Mas agora podemos sentir que a relevância intuitiva da
evidência da experiência passada, de como estamos condicionados a
receber a palavra de outras pessoas, desapareceu do caso comum não-
reflexivo. Não é apenas a consciência de alguém (por exemplo) de se
está claro ou escuro que condiciona as respostas dele como ouvinte, mas
também as suposições de fundo sobre a probabilidade de uma falante
como esta dizer a verdade sobre um assunto como esse. Certamente esses
tipos de suposições devem estar fazendo algum trabalho justificacional,
certo? Se tais considerações amplamente indutivas estão totalmente
ausentes de nossas trocas não-reflexivas, sem impor qualquer
constrangimento ao que o ouvinte possa aceitar adequadamente, isso
certamente deixa nossas trocas não-reflexivas comuns em um vácuo
racional inaceitável. Certamente, essa preocupação se aplica a visões nas
112

quais o padrão deve ser justificado com base empírica, uma vez que a
ideia de que uma propensão humana natural a dizer a verdade poderia
justificar uma política geral de receber acriticamente o que é dito parece
super otimista, para dizer o mínimo. Uma propensão natural é uma coisa,
mas a vida discursiva traz muitos fatores compensadores para que essa
propensão subjacente seja invocada. É claro que existem contextos
confinados nos quais essa prática resultaria bem, mas uma prática geral
de credulidade não seria um sucesso. Primeiro, as pessoas entendem
errado – cometemos erros, temos má sorte e, às vezes, imaginamos que
sabemos quando realmente não sabemos; e segundo, às vezes as pessoas
enganam ou ocultam deliberadamente informações de outras pessoas,
porque é do seu interesse fazê-lo. Um padrão geral de aceitação crítica
da palavra de outras pessoas, de modo não mediado, seria
justificacionalmente frouxo. Nossas trocas de testemunhos sempre
estarão sujeitas à sorte, mas esse tipo de padrão nos deixaria
implausivelmente indefesos contra os riscos rotineiros de testemunhos.
No entanto, onde o padrão é considerado como sendo
justificado a priori, como na explicação de Tyler Burge, não é preciso
levantar o problema do excesso de otimismo, pois ele pode ser evitado
enfatizando, como faz Burge, que a justificação não depende
precisamente da probabilidade empírica da veracidade da falante 7 . A
justificação é originária de outro lugar, nas conexões conceituais entre
inteligibilidade, racionalidade e veracidade (embora essa última seja
completamente problemática, pois, como Burge está ciente, a conexão
conceitual entre racionalidade e verdade pode tanto resultar em uma

7
Veja BURGE, Content Preservation, p. 468.
113

instância de mentira racional quanto em uma instância onde se diz a


verdade8.). Uma autorização padrão a priori de aceitar o que nos é dito
pode ser mantida, mesmo que, em um determinado contexto, seja
geralmente o caso em que não se pode confiar em falantes. Mesmo em
um contexto onde é preciso mais comumente desconfiar do que confiar,
a autorização a priori para o padrão ainda seria válida; de fato, é apenas
isso, o padrão seria geralmente abandonado. O problema do excesso de
otimismo, então, se aplica apenas à versão empírica da ideia de que
desfrutamos de um padrão de credulidade. Mas há um problema
intimamente relacionado que afeta os dois tipos de explicação padrão:
ambas representam efetivamente as faculdades críticas do ouvinte como
estando no modo soneca no exato momento em que ele obtém
conhecimento de uma interlocutora. Isso deve parecer insatisfatório,
pois, embora esse aspecto das explicações padrão pareça estar em
sintonia com a fenomenologia do ouvinte, no que diz respeito à falta de
reflexão espontânea com a qual costumamos receber a palavra dos
outros, não obstante, está significativamente fora de sintonia com a
fenomenologia em dois outros aspectos importantes.

8
Burge tenta consertar as coisas com um argumento funcional:
Uma das funções primárias da razão é a de representar verdade, independentemente de
interesses pessoais especiais. Mentir é às vezes racional no sentido de que é algo do
interesse do mentiroso. Mas mentir causa uma desunião entre as funções da razão. Conflita
com a função transpessoal da razão de apresentar a verdade, independentemente de
interesses pessoais. (Ibid. 475)
Tal argumento, no entanto, é muito fraco para tal e poderia apenas fornecer algo como a
ideia de que falar a verdade é funcionalmente anterior a mentir, o que certamente é. A
partir dessa prioridade se segue que não deveria haver uma sociedade cuja prática de
testemunho fosse universalmente não-confiável, mas não se segue que nós estamos
autorizados a presumir veracidade, normalmente, mesmo permitindo que a autorização em
si precise apenas valer em um alto grau de idealização. Pois permanece o fato
constrangedor de que, em qualquer caso, a conexão conceitual em operação pode não ser
aquela entre racionalidade e veracidade, mas sim aquela entre racionalidade de falsidade.
Determinar qual está, de fato, em operação em qualquer caso só pode ser uma questão
empírica.
114

Primeiro, a ideia de uma posição padrão não crítica por parte


do ouvinte deturpa a “mudança de marcha” mental que é experimentada
na detecção de um motivo de dúvida. Qualquer modelo padrão – seja na
forma dos princípios gêmeos inatos de credulidade e veracidade de Reid,
ou no Princípio da Aceitação a priori e justificada de Burge – representa
o ouvinte como tendo suas faculdades críticas no modo soneca, a menos
e até que ele seja alertado para alguma sugestão de dúvida que pressiona
um botão para despertar sua consciência crítica. Em qualquer uma dessas
propostas, a mudança de marcha é representada como uma mudança da
recepção não crítica para a recepção crítica do que é dito. Mas acredito
que a caracterização mais fiel (e certamente tão fiel como a alternativa)
é aquela que a apresenta como uma mudança dos modos não reflexivos
para reflexivos por parte do ouvinte, onde qualquer um dos modos é tal
que o ouvinte pode dar uma recepção crítica à palavra de sua
interlocutora.
Em segundo lugar, e consequentemente, sugiro que nossa
experiência de aceitar irrefletidamente o que nos é dito não é, afinal,
melhor caracterizada por uma explicação que represente nossas
faculdades críticas como inteiramente inoperantes, mas por uma
explicação que represente nossas faculdades críticas como operando
continuamente de maneira mais automática e de nível inferior. Sem
avaliar ativamente ou refletir sobre o quão confiável nossa interlocutora
é, o ouvinte responsável, ainda assim, permanece irrefletidamente alerta
para a infinidade de sinais, avisos e pistas que determinam até que ponto
ele deve confiar. Sugiro que esta é a descrição mais fiel da
fenomenologia, e desenvolverei abaixo uma visão que faça sentido
epistemológico dela. Abordaremos a ideia, discutida no capítulo
115

anterior, de que um julgamento de credibilidade pode ser uma percepção.


Mais especificamente, esses julgamentos são percepções carregadas de
“teoria”, sendo a “teoria” em questão um corpo de generalizações sobre
habilidades cognitivas humanas e estados motivacionais relacionados
aos dois aspectos da confiabilidade, competência e sinceridade. Essa
ideia de um julgamento de credibilidade como uma percepção da
interlocutora ajudará a caracterizar a posição do ouvinte responsável
como sendo de abertura crítica à palavra de outras pessoas, onde essa
postura permite que ele adquira conhecimento com o mesmo baixo
esforço que a fenomenologia sugere. Tanto a explicação empírica quanto
a a priori parecem assumir que, se nenhuma inferência é feita pelo
ouvinte, sua recepção da palavra de sua interlocutora deve ser acrítica;
daí a necessidade de obter justificação em algum lugar nos bastidores,
em uma propensão natural, ou então em algo a priori. De fato, essa é
uma suposição que eles compartilham com seus oponentes
inferencialistas, cuja resposta espelhada é exigir que um argumento
esteja escrito no script do ouvinte. Mas a suposição é falsa, ou pelo
menos tentarei mostrar que é.

3. 2. O OUVINTE RESPONSÁVEL?
McDowell defende a visão de que um ouvinte obtém
conhecimento por meio de testemunho em virtude do exercício da
“responsabilidade doxástica”; e o que é exercer responsabilidade
doxástica é explicado em termos sellarsianos característicos de uma
sensibilidade ao lugar que se ocupa no “espaço de razões”. A ideia de
uma “posição mediada no espaço de razões” é a ideia de um estado – um
estado de conhecimento, por exemplo – que foi alcançado por meio de
116

uma sensibilidade apropriada às razões a favor e contra a proposição. E


essa sensibilidade não precisa se manifestar na realização de inferências
ou argumentos. Na verdade, precisamente não. Como McDowell diz:

O que proponho é uma concepção diferente do que é mediar uma


posição no espaço de razões. Uma posição no espaço de razões pode
ser mediada pela força racional das considerações circundantes, à
medida em que o conceito dessa posição não pode ser aplicado a um
sujeito que não responde a essa força racional.9

Portanto, se a posição no espaço de razões é “saber que p”,


então a proposta de McDowell é que esse conhecimento que p tenha
como pré-condição que o conhecedor de alguma forma exerça uma
sensibilidade às razões que o cercam, contra e a favor de p.
Se alguém aceita esta proposta eminentemente aceitável, é
natural passar para a próxima pergunta e questionar: Se não por nossas
faculdades habituais de argumentação e inferência, então por qual
capacidade racional o ouvinte é capaz de responder à força racional de
razões circundantes? A ideia de que o cumprimento da responsabilidade
doxástica não precisa exigir argumentação é certamente crucial para
explicar como o conhecimento testemunhal pode ser mediado, mas
direto (ou, como estou estruturando a questão, crítico, mas não-
inferencial); mas algo mais precisa ser dito para explicar como o ouvinte
o faz. Se ele não está exercendo sua capacidade de inferência e
argumentação, que capacidade racional está exercendo?
McDowell parece disposto a dizer que não há nada a ser
explicado aqui:

9
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, p. 430.
117

Se não devemos explicar o fato, de que ter ouvido de alguém que as


coisas são de determinado modo é uma posição epistêmica, apelando
para a força de um argumento de que as coisas são desse modo ...
precisamos de alguma outra explicação disso? Eu ficaria tentado a
afirmar que não. A ideia de conhecimento por testemunho é que, se
um conhecedor dá expressão inteligível ao seu conhecimento, ele o
coloca em domínio público, onde pode ser captado por aqueles que
podem entender a expressão, desde que a oportunidade não esteja
fechada para eles porque seria doxasticamente irresponsável acreditar
na falante.10
Suponha que podemos concordar que o quietismo é necessário
na questão do que constitui a transação pela qual uma falante usa a
linguagem para colocar um conhecimento no domínio público, para que
outro falante possa notar. Pode-se dizer que, tendo expressado o quebra-
cabeça da maneira correta, livre de certas dificuldades filosóficas
peculiares que nos levam a profundidades de fantasia, não há mais
motivo para perplexidade aqui. De acordo. Não obstante, é certamente
necessário algo mais no que diz respeito à questão de como exercemos a
responsabilidade doxástica. Isso continua intrigante, e certamente é um
quebra-cabeça que os não-inferencialistas precisam resolver. Se o
ouvinte exercer responsabilidade doxástica não é uma questão de ele
fazer uma inferênciao ou, então é uma questão de quê? Certamente é
correto dizer que um ouvinte pode exercer responsabilidade sem fazer
inferências; mas isso deve deixar alguém imaginando como – com que
capacidade de razão – ele deveria fazê-lo.
A mesma pergunta surge, em termos ligeiramente diferentes, na
explicação padrão de Burge. Ele defende um Princípio da Aceitação,
segundo o qual o ouvinte “tem o direito a priori de aceitar uma
proposição que é apresentada como verdadeira e que é inteligível para

10
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, pp. 437 – 8.
118

ele, a menos que haja razões mais fortes para não fazê-lo”11. Assim,
temos o direito de aceitar o que o outro nos diz enquanto o padrão de
aceitação se mantiver; ou, como Burge descreve, temos o direito de
aceitar “se tudo correr de modo normal”. Mas quanto mais focamos
nessa questão do padrão, menos a proposta de Burge parece ter
alcançado em termos de realização da ambição não-inferencialista. O
enigma tradicional sobre como o ouvinte pode estar justificado em
aceitar sem inferência o que lhe é dito é mais deslocado do que resolvido,
pois permanecemos inteiramente no escuro sobre como os ouvintes
podem viver na prática o Princípio da Aceitação. Ainda estamos
buscando iluminação quando se trata das obrigações remanescentes do
ouvinte em termos de sua exibição de sensibilidade a se o padrão é válido
ou não em um caso específico.
A questão de como o ouvinte deve ser sensível não-
inferencialmente ao status do padrão é apenas uma nova versão do
problema original que uma explicação não-inferencialista precisa
resolver: a saber, o problema de como o ouvinte pode exercer
sensibilidade para o equilíbrio de razões, a favor e contra a aceitação,
sem fazer inferência. O Princípio da Aceitação nos pede para “aceitar ...
a menos que haja razões mais fortes para não aceitar”, portanto, ao
exercer uma sensibilidade ao status do padrão de aceitação, o ouvinte só
pode exercer uma sensibilidade à mesma coisa que o Princípio da
Aceitação deveria salvá-lo de enfrentar: a saber, o equilíbrio de razões a
favor e contra a aceitação do que lhe é dito. É claro que, na explicação
de Burge, o exercício dessa sensibilidade pelo ouvinte não é a fonte da

11
Veja BURGE, Content Preservation, p. 469.
119

justificação – o ponto principal da proposta é ter uma fonte de


justificação independentemente de qualquer coisa no desempenho do
ouvinte. Mas agora fica-se imaginando quanto se ganha ao colocar a
fonte de justificação fora da cena, pois vemos que o ouvinte ainda
precisa exercitar uma sensibilidade racional não-inferencial e
inexplicável ao equilíbrio de razões a favor e contra a aceitação. A única
diferença é que ele deve exercitá-la com relação ao status do padrão (isso
se sustenta?), e não com relação ao status do próprio testemunho (ele
deve ser aceito?). Parece que o não-inferencialismo pode ser bem
servido por um olhar direto renovado ao desempenho efetivo do ouvinte
responsável. De fato, proponho que, se pudermos esclarecer o papel
desempenhado pela sensibilidade racional efetivo do ouvinte
responsável, teremos chegado a uma explicação não-inferencialista das
responsabilidades do ouvinte que faz com que uma justificação a priori
(de fato, qualquer justificação efetiva) vá além do que é exigido.
Vamos prosseguir com a ideia da abertura crítica do ouvinte ao
que lhe é dito, uma ideia que possa dar sentido à fenomenologia (como
a caracterizei) de alerta irrefletido à infinidade de avisos e sugestões que
sustentam até que ponto alguém deve confiar. Estamos procurando uma
sensibilidade racional, de modo que o ouvinte possa filtrar criticamente
o que lhe é dito sem reflexão ou inferência ativa de qualquer tipo. Um
breve comentário sobre Coady fornece um ponto de partida sugestivo.
Ele descreve um “mecanismo de aprendizado” que opera criticamente
no ouvinte, embora de forma não-inferencial, para determinar o
equilíbrio da confiança. Nas palavras dele:

O que acontece caracteristicamente na recepção do testemunho é que


o ouvinte opera um tipo de mecanismo de aprendizado que possui
120

certas capacidades críticas incorporadas. O mecanismo pode ser


pensado como parcialmente inato, embora modificado pela
experiência, especialmente em matéria de capacidades críticas. É útil
invocar o modelo de um mecanismo aqui, pois a recepção do
testemunho normalmente não é reflexiva, mas não é, entretanto,
acrítica.12
Eu acho que isso está exatamente correto, embora em si não nos
leve muito longe. Ainda precisamos encontrar uma explicação mais
completa da formação e operação de nosso mecanismo de aprendizado,
a fim de entender como ele pode ser operado espontaneamente, para que
não haja necessidade de nenhuma reflexão ativa de nossa parte, e ainda
como ele pode responder a novas experiências discursivas para que se
desenvolva e se modifique de acordo. Vejamos novamente a
fenomenologia e um exemplo de Robert Audi. Ele imagina estar em um
avião, conversando com a pessoa no assento vizinho. No início da
conversa, ele não leva tão a sério sua palavra, mas, no final, a reconhece
inteiramente credível. Refletindo sobre as diferentes explicações
possíveis para essa mudança de atitude, ele diz:

Uma possibilidade é uma inferência inconsciente, digamos, a partir da


credibilidade geral de seu relato até a conclusão de que essa
proposição, como parte essencial dele, é verdadeira. Mas talvez a
influência cognitiva de minhas crenças, como uma crença recém-
formada de que ela é credível, não precise prosseguir através de uma
inferência a partir delas. Outra explicação possível é mais moderada:
mesmo aparte de minhas crenças formadoras sobre sua credibilidade,
ela eventualmente se tornar, aos meus olhos, uma pessoa bastante
credível, pode, de alguma maneira bastante direta, produzir em mim
uma disposição geral de acreditar nela.13

12
COADY, Testimony, p. 47.
13
AUDI, Robert. Epistemology: A contemporary introduction to the theory of knowledge.
Routledge, 1998, p. 133.
121

Mas que explicação deve ser dada sobre essa “maneira bastante
direta” pela qual falantes são ou se tornam mais ou menos credíveis aos
olhos de seus interlocutores? Como Hobbes diz, no testemunho é antes
de tudo a pessoa que é medida:

Quando o discurso de um homem não começa nas Definições, ele


começa em alguma outra contemplação sua. ...Ou começa com
algumas palavras de outra pessoa, cuja capacidade de conhecer a
verdade e cuja honestidade em não enganar ele não duvida; e então o
discurso não se refere tanto à coisa, como à pessoa; e a resolução é
chamada Crença [Beleefe], e Fé [Faith]: Fé no homem.14
No capítulo anterior, começamos a explorar a ideia de que
deveríamos pensar no julgamento da credibilidade do ouvinte em termos
de percepção do ouvinte sobre a falante como mais ou menos confiável
no assunto em questão. Um modelo perceptivo certamente se encaixa no
fenômeno que Audi descreve de um ouvinte mudando “de maneira
bastante direta” sua visão sobre a credibilidade de uma interlocutora
durante uma conversa. Portanto, desenvolvamos a ideia de que a
sensibilidade de um ouvinte às muitas sugestões e pistas que apontam
para a confiança é sua capacidade de um certo tipo de percepção social.
Que tipo de capacidade perceptiva seria essa? Para que o ouvinte veja,
por assim dizer, suas interlocutoras em cores epistêmicas, a capacidade
perceptiva teria que ser informada por uma “teoria” de fundo (corpo de
generalizações) não apenas das competências e motivações humanas em
si, mas, mais especificamente, uma “teoria” socialmente situada das
habilidades e motivações humanas deste ou daquele tipo social neste ou
naquele contexto. Ele precisa receber a palavra de sua interlocutora à luz

14
HOBBES, Thomas. Leviathan. TUCK, R. (ed.) Cambridge University Press, 1991 p.
48. [Traduzido para o português em HOBBES, Thomas. Leviatã: matéria, forma e poder
de um estado eclesiástico e civil. LeBooks Editora, 2019].
122

da probabilidade de que alguém assim (possa e esteja disposta a) dizer,


a alguém como ele, a verdade sobre algo assim, em circunstâncias como
essa. Portanto, o julgamento do ouvinte quanto à credibilidade deve
operar nas prováveis competências e motivações de diferentes tipos
sociais, incluindo como a provável percepção social da falante, que o
ouvinte tem, pode afetar sua motivação em relação à sinceridade. O fato
de o ouvinte ter que operar com tipos sociais dessa maneira foi o motivo
pelo qual, no capítulo anterior, descobrimos que os estereótipos são uma
parte apropriada – de fato, uma parte essencial – dos julgamentos sobre
a credibilidade. Somente quando os estereótipos são preconceituosos é
que algo estranho – uma corrente contra-racional de poder identitário –
entra.
Isso tudo nos é familiar desde o capítulo anterior, mas para que
possamos agora substanciar mais plenamente a ideia de que o ouvinte
responsável percebe sua interlocutora de uma maneira epistemicamente
carregada – ele a percebe como mais, ou menos, credível naquilo que ela
está dizendo a ele – vamos olhar para a ética em busca de uma analogia
instrutiva. Existe uma forma de cognitivismo moral na tradição ética das
virtudes que promove a ideia de percepção moral. Nessa tradição neo-
aristotélica, a sensibilidade do sujeito virtuoso é concebida como
“treinada” ou educada socialmente, de modo que o sujeito passe a ver o
mundo em cores morais. Ao construir uma analogia com a ideia da
sensibilidade ética de um agente virtuoso, esperamos chegar a uma
explicação de como o ouvinte responsável exerce a sensibilidade
racional, sem inferência, de modo a ser criticamente aberto à palavra dos
outros. Assim, a explicação oferecida fornecerá a estrutura para uma
proposta epistemológica da virtude acerca do testemunho. A ideia
123

principal é que, quando um ouvinte dá uma recepção adequadamente


crítica à palavra de uma interlocutora sem fazer nenhuma inferência, ele
o faz em virtude dos produtos perceptivos de uma sensibilidade
testemunhal bem treinada.

3. 3 PERCEPÇÃO VIRTUOSA MORAL E


EPISTÊMICA
A analogia que pretendo construir entre a capacidade perceptiva
moral do agente virtuoso e a capacidade perceptiva testemunhal do
ouvinte virtuoso depende de cinco pontos de paralelo intimamente
relacionados. Para antecipar, são eles: (1) que, no testemunho e na esfera
moral, o modelo de julgamento é perceptivo e, portanto, não-inferencial;
(2) em ambas as esferas, o bom julgamento é incodificável; (3) em
ambas as esferas, o julgamento é intrinsecamente motivador e (4)
intrinsecamente fundamentado; (5) e em ambas as esferas o julgamento
normalmente contém um aspecto emocional que é uma parte apropriada
da cognição. Permita-me elaborar.
De acordo com o tipo de cognitivismo que nasce da tradição da
virtude na ética, o agente virtuoso é marcado por possuir uma capacidade
de julgamento moral perceptivo. Ele é alguém que, graças a uma
“educação” moral adequada ou (como eu preferiria) a uma socialização
moral adequada, chegou a ver o mundo em cores morais. Quando ele é
confrontado por uma ação ou situação com um certo caráter moral, ele
não precisa determinar que a ação é cruel ou gentil, caridosa ou egoísta;
ele apenas vê dessa maneira. Agora, esse tipo de julgamento perceptivo
é espontâneo e não reflexivo; não envolve argumentação ou inferência
124

por parte do agente. A capacidade perceptiva do agente virtuoso é


explicada em termos de sensibilidade às características moralmente
salientes da situação que o confronta. No caso testemunhal, a sugestão
paralela é que a capacidade perceptiva do ouvinte virtuoso seja entendida
em termos de sensibilidade às características epistemicamente salientes
da situação e ao desempenho da falante. Essas características
epistemicamente salientes são as várias pistas sociais relacionadas à
confiabilidade – pistas relacionadas à sinceridade e competência da
falante sobre o assunto em questão. Essa sensibilidade é sustentada por
um conjunto de suposições de fundo sobre a confiabilidade de diferentes
tipos sociais em diferentes tipos de contextos – uma “teoria” socialmente
situada da confiança, como eu disse. Assim como a percepção do sujeito
moralmente virtuoso é moralmente enriquecida, a percepção do ouvinte
virtuoso é epistemicamente enriquecida. A analogia nos aponta para uma
maneira de substanciar filosoficamente a ideia de que julgamentos de
credibilidade podem ser perceptivos, e sugiro que temos aqui aquilo pelo
qual a epistemologia do testemunho clama: um modelo para o
julgamento não-inferencial.
Todavia, devemos ser especialmente cautelosos neste momento
ao usar a linguagem da “teoria” e da “carga teórica”, uma vez que usá-
la agora traz um sério risco de enganação. Pois é uma característica
importante do cognitivismo moral em que estamos focados, e a segunda
característica-chave da analogia que estamos desenvolvendo, que nem o
agente moralmente virtuoso nem o ouvinte epistemicamente virtuoso
chegam ao seu julgamento perceptivo (um julgamento moral e um
julgamento de credibilidade, respectivamente) aplicando generalizações
ao caso que o confronta. Ele não aplica uma teoria, nem aplica uma
125

teoria – não é uma teoria e ele não a aplica. Pelo contrário, embora
algumas generalizações ou princípios relevantes sejam certamente
formuláveis (e inestimáveis em contextos em que é necessária a
mudança para um modo de julgamento mais reflexivo), o sujeito
virtuoso não chega a seu julgamento perceptivo por meio da obediência
a qualquer codificação das normas infinitamente complexas implícitas
em seu julgamento. Livre de qualquer dependência de regras
antecipadas, ele é capaz de adaptar e refazer seu pensamento aos
contextos indefinidamente diversos que podem confrontá-lo. Confiar em
regras seria, antes, a marca de alguém que ainda não alcançou a plena
virtude, estando ainda na fase imitativa. Martha Nussbaum faz uma
comparação reveladora com a improvisação artística:

Uma boa deliberação é como improvisação teatral ou musical,


onde o que conta é flexibilidade, capacidade de resposta e abertura
ao externo; confiar em um algoritmo aqui não é apenas
insuficiente, é um sinal de imaturidade e fraqueza. É possível tocar
um solo de jazz a partir de uma partitura, fazendo pequenas
alterações para a natureza particular do instrumento. A questão é:
quem faria isso e por quê?15
É claro que pode ser possível caracterizar muitos dos produtos
de uma capacidade perceptiva virtuosa em termos generalizados, mas
isso não implica que haja qualquer codificação disponível – nenhuma
série de regras poderia capturar antecipadamente as improvisações
treinadas de uma sensibilidade perceptiva moral virtuosa. Qualquer
dessas regras se deve ao fato de um julgamento virtuoso. Elas podem ser
úteis como orientação para aqueles que ainda não alcançaram a plena

15
NUSSBAUM, Martha. The Discernment of Perception: An Aristotelian Conception of
Private and Public Rationality. In: Love”s Knowledge: Essays on Philosophy and
Literature. Oxford: Oxford University Press, 1990 , p. 74.
126

virtude, assim como o comportamento e os julgamentos dos plenamente


virtuosos são úteis como orientação para aqueles que estão no caminho
da virtude plena, mas nunca poderiam substituir a virtude. O tipo de
julgamento que estamos sugerindo ser comum ao caso moral e ao caso
testemunhal é irredutivelmente justamente isso: uma questão de
julgamento. McDowell novamente:

Para um olho sem preconceitos, deveria parecer bastante implausível


que qualquer perspectiva moral razoavelmente adulta admita essa
codificação. Como Aristóteles sempre diz, as melhores generalizações
sobre como alguém deve se comportar valem apenas para a maior
parte. Se alguém tentasse reduzir a concepção do que a virtude exige
a um conjunto de regras, por mais sutil e atencioso que fosse na
elaboração do código, surgiriam inevitavelmente casos em que uma
aplicação mecânica das regras pareceria errada – e não
necessariamente porque alguém mudou de ideia; antes, a compreensão
de alguém sobre a questão não era suscetível de captura em nenhuma
fórmula universal.16
A ideia de que o conhecimento moral não é codificável se torna
mais clara se tivermos em mente que uma capacidade perceptiva moral
virtuosa é uma sensibilidade a padrões de saliência moral, uma
sensibilidade a como diferentes tipos de valor se configuram em uma
nova situação, ação ou até pessoa. É uma sensibilidade que permite à
pessoa virtuosa ver o mundo sob uma certa luz, onde isso tem uma
importância prática intrínseca, mas onde seria enganoso reduzir a
sensibilidade a nada mais do que uma alternativa à deliberação. A
consciência ética é mais do que decidir o que fazer17. Uma percepção

16
MCDOWELL, John. Virtue and Reason. In: Mind, Value and Reality. Cambridge,
Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998. Ensaio 3; publicado originalmente em
The Monist, n. 62, 1979, 331 – 50.
17
Veja DIAMOND, Cora. Wittgenstein, mathematics, and ethics: Resisting the attractions
of realism. In: SLUGA, H.; STERN, D. (eds.). The Cambridge Companion to
Wittgenstein. Cambridge University Press, 1996, pp. 226 – 60; e a tréplica simpática de
127

virtuosa nos dá uma compreensão moral de experiências, pessoas,


situações e eventos – uma visão do mundo em cores morais, como eu
disse – e é parte integrante dessa maneira de ver que mesmo a pessoa
moralmente mais sábia permanece aberta a surpresas. Ou melhor, o fato
de ela ter um coração aberto o suficiente para resistir à segurança
desonesta de entendimentos morais fixos é a marca principal de sua
sabedoria moral. Isto é o que Iris Murdoch quer dizer quando diz: “As
tarefas morais são caracteristicamente infinitas não apenas porque
‘dentro’, por assim dizer, de um determinado conceito nossos esforços
são imperfeitos, mas também porque, à medida que nos movemos e
quando olhamos, nossos próprios conceitos estão mudando”18.
Com a percepção virtuosa entendida dessa maneira, podemos
ver mais claramente como a própria ideia de codificabilidade é anátema
à percepção moral virtuosa. A aspiração à codificação – que não deve
ser confundida com a ambição (inteiramente honrosa) de tornar
explícitos quaisquer princípios gerais que possam ser utilmente
extrapolados da sensibilidade virtuosa – é revelada como um impulso de
refugiar-se em uma objetividade falsa; ou seja, um impulso de fugir das
demandas criativas indefinidas feitas a alguém pela vida ética.
A impossibilidade de codificação final do conhecimento ético
localiza nosso segundo ponto de paralelo com o caso do testemunho.
Para o início do pensamento paralelo, aqui está uma observação de
Coady:

Sabina Lovibond em Ethical Formation, Cambridge e Londres: Harvard University Press,


2002, cap. 2.
18
MURDOCH, Iris. The Idea of Perfection. In: The Sovereignty of Good. London:
Routledge, p. 28.
128

A tradição matemática está cheia de comentários sobre testemunhas


que dizem a verdade duas vezes mais do que dizem falsidades, ou que
têm uma taxa de credibilidade de .8 ou algo assim, mas, como C.S.
Peirce apontou há muito tempo, esse tipo de conversa está muito perto
da fantasia. Não é apenas que, no caso de pessoas reais, não temos
como calcular tais proporções. Mais importante ainda, a ideia de tais
proporções promove a ilusão de que as pessoas são como moedas,
tendo uma tendência bastante geral a cair de um lado ou de outro,
tendência que um rastreamento longo de suas declarações revelaria.
Mas as pessoas não são assim. Elas não têm tendências gerais para
mentir, seja qual for o contexto ou o assunto, nem para cometer erros
de abstração a partir de circunstâncias particulares.19
Essa passagem parece certa, embora devamos permitir que a
busca por índices precisos de credibilidade possa incorporar alguma
sensibilidade ao contexto, e devemos observar também que os modelos
probabilísticos não precisam exigir que falantes reais tenham índices de
credibilidade ou que os ouvintes façam tais cálculos – sua preocupação
pode ser antes mapear a racionalidade de que tipos de mudanças nas
evidências aumentam ou diminuem a credibilidade do que é dito e em
quanto20. Eu acho que o ponto principal do cético aqui é que a gama de
contextos a que o ouvinte humano comum precisa ser sensível em seus
julgamentos de credibilidade é tão vasta, os contextos tão finamente
diferenciados pelos inúmeros comandos e indícios relacionados à
confiabilidade em diferentes contextos sociais, que simplesmente não é
realista pensar que qualquer codificação suficientemente complexa
estará disponível, ou, se estivesse, que possa ser útil. Este é o cerne do
ponto de não codificação no cognitivismo moral, e o lado testemunhal

19
COADY, Testimony, pp. 210 – 11.
20
Ver, por exemplo, BOVENS, Luc et al. Bayesian epistemology. Oxford University
Press on Demand, 2003, cap. 5, no qual eles constroem um modelo para o raciocínio
“estranho demais para não ser verdade”, em que atribuímos mais credibilidade a uma
história surpreendente contada por várias testemunhas independentes do que a uma história
não surpreendente contada por várias testemunhas independentes.
129

de nosso paralelo contém uma contraparte exata. O ouvinte virtuoso não


chega a seu julgamento de credibilidade por aplicação de princípios pré-
estabelecidos de qualquer tipo, pois não há precisão ou abrangência
suficiente para fazer esse trabalho. Ele “apenas vê” sua interlocutora sob
uma certa luz e responde à palavra dela de acordo. É claro que podemos,
tanto no caso de testemunho quanto no moral, nos beneficiar
explicitando certos princípios gerais que devem governar nossos
julgamentos. O ponto é que tais princípios gerais são posteriores ao fato
do julgamento virtuoso, eles não podem substituir a virtude 21. Tendo
explicado o caso moral em termos de uma sensibilidade para as
saliências morais de situações, ações e pessoas, podemos ver que, no
caso de testemunho, o ouvinte deve exercer uma sensibilidade paralela
às saliências epistêmicas – os muitos aspectos do desempenho da falante
no contexto relacionado à confiabilidade.
A impossibilidade de codificar a percepção moral de um agente
virtuoso e a percepção epistêmica de um ouvinte virtuoso sobre uma
falante, portanto, constitui nosso segundo ponto de paralelo. Mas, talvez
como adendo, vale a pena observar uma relação ainda mais próxima
aqui. Algumas das coisas às quais nosso ouvinte virtuoso precisa ser
sensível dizem respeito apenas à competência da falante para saber do
que ela está falando; mas outras dizem respeito à sua sinceridade. Sendo
a sinceridade uma noção moral, essas últimas saliências epistêmicas

21
Para uma discussão esclarecedora que apresenta certas normas relativas a relatos
surpreendentes, principalmente em contextos em que o preconceito pode estar em
funcionamento, consulte JONES, Karen. The Politics of Credibility. In: ANTHONY,
L.M.; WITT, C.E. (eds.). A Mind of One’s Own: Feminist Essays on Reason and
Objectivity. 2ª ed. Boulder: Westview Press, 2002. Jones também é clara que, embora
esses princípios alimentem “avaliações finais de credibilidade”, eles não as determinam.
Os julgamentos de credibilidade tudo-considerado permanecem uma questão de
julgamento.
130

também constituem saliências morais. São dicas relacionadas à atitude


moral da interlocutora em relação ao ouvinte: quão facilmente ela pode
estar motivada para enganá-lo, por exemplo, ou até que ponto ela o vê
merecendo um relato útil das coisas, ou até que ponto ela o considera
como seu igual em termos de capacidade de suportar verdades
desagradáveis. A confiança epistêmica incorpora a confiança ética,
porque a confiabilidade epistêmica incorpora um tipo de confiabilidade
moral: a sinceridade. Consequentemente, a sensibilidade do ouvinte
virtuoso a saliências epistêmicas envolverá uma sensibilidade a algumas
saliências morais – ver uma falante em cores epistêmicas implica vê-la
em alguma cor moral.
Passando agora para o nosso terceiro e quarto pontos paralelos,
é uma característica do agente moralmente virtuoso que sua
sensibilidade às saliências traz consigo carga motivacional – a percepção
moral é intrinsecamente motivadora. Mesmo se eu der uma resposta
moral a algo que me foi dito no passado, de maneira que não haja
nenhuma dúvida sobre qualquer intervenção prática de minha parte,
ainda assim minha percepção do que foi bom ou mau, injusto, gentil,
corajoso ou maldoso, é uma percepção de um tipo capaz de motivar a
ação. Ver uma situação através da lente moral é vê-la pedindo uma ou
outra resposta prática das partes relevantes. Mais do que isso, no entanto,
as percepções morais também são justificacionalmente carregadas, uma
vez que a motivação fornecida é racional: os fatos virtuosamente
percebidos constituem uma razão para agir de uma certa maneira.
Consequentemente, pode-se explicar e justificar moralmente uma ação
citando as circunstâncias relevantes como percebidas pelo agente
virtuoso. Assim, McDowell diz: “se [as ações] manifestam a maneira
131

distinta de uma pessoa virtuosa ver as coisas, elas devem ser


explicáveis... em termos de exercícios dessa capacidade perceptiva, que
não precisam ser complementados com desejos para fornecer
especificações completas de razões”22.
Em relação a ambos os pontos – motivação e justificação –,
podemos ver um paralelo direto no caso do testemunho. A percepção
epistemicamente enriquecida que um ouvinte virtuoso tem da sua
interlocutora – uma percepção dela como, por exemplo, confiável no que
ela está dizendo [ao ouvinte] – fornece uma motivação para aceitar o que
ela está dizendo. Isso é óbvio: se você perceber que alguém lhe oferece
um item de conhecimento, estará motivado a aceitar o que ele está lhe
dizendo. Além disso, a percepção do ouvinte virtuoso de sua
interlocutora como confiável fornece uma justificação para aceitar o que
ela diz – a motivação para aceitar é racional. Isso é crucial para o quadro
geral de testemunho que estamos construindo aqui. A percepção do
ouvinte virtuoso de sua interlocutora como confiável no que está dizendo
a ele não apenas o motiva a aceitar o que ela diz, mas o justifica ao fazê-
lo. Se desafiado após o fato, o ouvinte pode ou não conseguir reconstruir
sua razão, mas desde que seu julgamento de credibilidade tenha sido
emitido por uma sensibilidade bem treinada às características
epistemicamente salientes da performance testemunhal no contexto –
isto é, se o julgamento foi o produto de uma sensibilidade virtuosa de
testemunho – então estava justificado. Consequentemente, se é

22
MCDOWELL, John. Are Moral Requirements Hypothetical Imperatives? In: Mind,
Value and Reality. Cambridge, Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998. Ensaio
4, p. 85; publicado originalmente em Proceedings of the Aristotelian Society, volume
suplementar 52, 1978, pp. 13-29.
132

conhecimento que a ele é oferecido, então é conhecimento que ele


recebe. O ouvinte virtuoso pode obter o que recebeu, sem reflexão
adicional.
No contexto moral, a questão de como algo cognitivo – uma
percepção – pode ser intrinsecamente motivador é obviamente
controversa. É controversa porque o cognitivista moral está
comprometido com a visão de que o agente virtuoso não precisa de um
estado independente de desejo para trazê-lo à ação; a percepção é
suficiente. Por outro lado, o argumento paralelo que estamos
apresentando no caso de testemunho não depende estritamente de
mostrar que tal percepção é suficiente para motivar, uma vez que não
temos nenhum investimento especial em mostrar que o ouvinte virtuoso
não precisa possuir um desejo identificável de verdade ou conhecimento,
a fim de ser motivado a aceitar quando ele confia. Talvez, no entanto,
valha a pena explorar esse ponto, pois acredito que o paralelo com o
cognitivismo moral se mantém nesse particular, desde que tenhamos
diante de nós a compreensão adequada do papel constitutivo da emoção
em certos tipos de cognição. Se alguém abordar a questão com a ideia
fixa empirista de que existe cognição, por um lado, e emoção, por outro,
onde o primeiro tem conteúdo intencional e o segundo não, então será
terminalmente intrigante sugerir que um estado cognitivo, como uma
percepção, poderia motivar uma ação 23. Se, no entanto, alguém chega à
questão com uma concepção de emoção como capaz de conteúdo

23
A fonte principal desse comprometimento empirista é HUME, David. A Treatise of
Human Nature. SELBY-BIGGE, L.A. (ed.), 3ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1975, III,
seção 3. [Traduzido para o português em HUME, David. Tratado da natureza humana.
2ª Edição. Unesp, 2009. N. do. T.].
133

cognitivo e/ou uma concepção de cognição como permitindo conteúdo


emocional, então a questão da motivação não se apresenta como um
problema 24 . A interpretação de Nussbaum de Aristóteles é útil nessa
questão:

[Aristóteles] sustenta que a pessoa realmente boa não apenas age bem,
mas também sente as emoções apropriadas sobre o que escolhe...
Por trás disso está uma imagem das paixões como elementos
responsivos e seletivos da personalidade. Não impulsos ou tendências
platônicas, eles possuem um alto grau de educabilidade e
discriminação. Para Aristóteles, mesmo os desejos apetitivos são
intencionais e capazes de fazer distinções; eles podem informar o
agente da presença de um objeto necessário, trabalhando em interação
responsiva com a percepção e a imaginação. Seu objeto intencional é
“o bem aparente”. As emoções são compostas de crenças e
sentimentos, moldadas pelo desenvolvimento do pensamento e
altamente discriminatórias em suas razões. ...Em resumo, Aristóteles
não faz uma divisão nítida entre o cognitivo e o emotivo.25
Sendo a emoção concebida como intencional e como parte
apropriada da percepção moral, temos uma imagem filosófica na qual
não surgirá nenhum enigma sobre como os estados de percepção moral
poderiam motivar a ação. A resposta é construída como uma parte
apropriada da cognição moral. Se alguém retirasse a emoção da
percepção, ela cessaria de ser uma percepção virtuosa.

24
Para um trabalho feminista inicial sobre essa questão, e especialmente sobre o poder
das emoções nos dizerem coisas sobre o mundo político e moral, ver JAGGAR, Alison M.
Love and knowledge: Emotion in feminist epistemology, SPELMAN, Elizabeth. Anger
and Insubordination, ambos em GARRY, A.; PEARSALL, M. (eds.). Women,
Knowledge, and Reality: Explorations In Feminist Philosophy. Boston: Unwin Hyman,
1989, pp. 129 – 55, pp. 263 – 74; e FRICKER, Miranda, Reason and Emotion, Radical
Philosophy, 57, pp. 14–19, 1991.
25
NUSSBAUM, Discernment of Perception, p. 78. Para um tratamento cognitivista
estendido da emoção ver seu Upheavals of thought: The intelligence of emotions.
Cambridge University Press, 2003. Para uma abordagem diferente, na qual a
intencionalidade das emoções é traduzida em termos de “sentimento em relação a”, ver
GOLDIE, Peter et al. The emotions: A philosophical exploration. Oxford University
Press, 2000.
134

Como isso aponta para a presença da emoção como parte


apropriada da percepção moral, de acordo com a nossa concepção do
ouvinte virtuoso? As muitas instruções e sugestões presentes no
desempenho de sua interlocutora, às quais nosso ouvinte virtuoso deve
ser sensível, dizem respeito à confiabilidade da falante quanto ao que ela
está dizendo a ele. Se o ouvinte perceber que a falante é digna de
confiança, normalmente, ele realmente confiará nela e aceitará o que ela
lhe disser. Ora, essa atitude de confiança em relação a outra pessoa não
é uma atitude puramente intelectual; essa atitude de confiança contém
um sentimento de confiança. Penso que seria assim, mesmo que apenas
a competência da interlocutora estivesse em jogo, mas o fato de o
ouvinte também ser sensível à sinceridade da interlocutora em relação a
ele torna o argumento irresistível. A sinceridade de uma interlocutora
não é o tipo de atitude que alguém poderia notar sem algum tipo de
resposta emocional pessoal a ela. Quando o ouvinte virtuoso percebe sua
interlocutora como digna de confiança neste ou naquele grau, então, essa
conquista cognitiva é inevitavelmente em parte composta por uma
emoção: um sentimento de confiança. Assim, o ouvinte, como o sujeito
moral, faz julgamentos que (pelo menos tipicamente) têm um aspecto
emocional.
Mas esse ponto de paralelo é ainda mais substanciado pelo fato
de que também há um envolvimento emocional mais geral envolvido na
percepção do ouvinte sobre a sinceridade ou insinceridade de sua
interlocutora: o ouvinte deve ter empatia suficiente com ela para estar
em posição de julgar, e a empatia normalmente carrega alguma carga
135

emocional26. Um ouvinte com poderes mínimos de empatia está em uma


desvantagem notável quando se trata de fazer julgamentos de
credibilidade, pois muitas vezes pode deixar de ver o desempenho da
falante sob a luz adequada. Se, por exemplo, sua falta de habilidade
empática o torna incapaz de perceber o fato de que sua interlocutora tem
medo dele (talvez ela seja uma aluna da escola e ele o diretor), então ele
pode interpretar mal os modos dela, tomando-a, por exemplo, como
insincera quando ela não é. Entendo que empatia é uma capacidade
cognitiva emocional e, nesse sentido, também a sensibilidade de
testemunho bem treinada envolve algumas emoções bem treinadas, e sua
percepção da interlocutora inclui quaisquer respostas emocionais
associadas a um envolvimento empático específico (um sentimento de
simpatia ou suspeita; de propósito comum ou competição; de respeito ou
desprezo, etc.). Se nos comprometêssemos com a concepção dualista
empirista de cognição e emoção, esse fato sobre a percepção da
interlocutora pelo ouvinte pode parecer um embaraço a ser explicado
como uma emoção que meramente acompanha. Mas a concepção mais
aristotélica da emoção nos permite representar o sentimento de
confiança ou desconfiança do ouvinte, ou quaisquer outros sentimentos
associados a um envolvimento empático específico, como uma
contribuição cognitiva positiva para sua percepção epistemicamente
carregada. Às vezes pode até ser, de maneira bastante apropriada, o
aspecto dominante da percepção. Quando se trata de confiança
epistêmica, como na confiança puramente moral, pode ser um bom

26
Karen Jones argumenta que confiança envolve empatia; ver Trust as an affective
attitude. Ethics, v. 107, n. 1, p. 4-25, 1996.
136

conselho ouvir as emoções, pois as respostas emocionais de um ouvinte


virtuoso a diferentes falantes em diferentes contextos são treinadas e
aperfeiçoadas pela experiência. O sentimento de confiança no ouvinte
virtuoso é um radar emocional sofisticado para detectar a confiabilidade
nas falantes. Assim, o quinto ponto do paralelo: tantos as percepções
morais virtuosas quanto as percepções testemunhais virtuosas
apresentam a emoção como uma contribuição cognitiva positiva.
O que, finalmente, deve ser dito sobre a nossa fenomenologia
como ouvintes? Os cinco pontos do paralelo explorados acima – que o
julgamento moral/testemunhal é não-inferencial, não codificável,
intrinsecamente motivador, intrinsecamente fundamentador e
tipicamente tem um aspecto emocional – são todos consistentes com a
fenomenologia espontânea e irrefletida do testemunho que forneceu
bastante impulso para o não-inferencialismo. De fato, eles explicam
como a nossa fenomenologia como ouvintes pode ser uma parte da
atividade cognitiva totalmente não-reflexiva e espontânea, mesmo sendo
uma atividade crítica. Mais especificamente, esses pontos de paralelo se
encaixam na descrição da fenomenologia que eu ofereci acima, no
sentido de que o ouvinte normalmente tem uma experiência de estar
alerta de modo irrefletido às muitas solicitações e sugestões relacionadas
à confiabilidade de sua interlocutora. Concedido que nossos julgamentos
diários de credibilidade locais são como eu os descrevi – julgamentos
perceptivos socialmente treinados, tipicamente feitos espontaneamente
–, não é de surpreender que a fenomenologia deva ser irrefletida e, no
entanto, como sugeri, seria um abuso caracterizá-la como não-crítica. A
interpretação da fenomenologia do ouvinte como um estado de alerta
137

irrefletido e crítico é justificada e faz sentido se aceitarmos a analogia


com o modelo de percepção moral.

3 .4. TREINANDO A SENSIBILIDADE


Ao avançar a ideia de uma capacidade perceptiva testemunhal
análoga à capacidade perceptiva moral da pessoa virtuosa, invoco a
noção aristotélica de treinamento moral. Mas preciso dizer um pouco
mais sobre como essa noção se aplica ao lado testemunhal do paralelo.
Na imagem aristotélica, o treinamento da pessoa virtuosa consiste em
habituação por meio da prática e do exemplo. Contrastando as virtudes
com os sentidos, Aristóteles diz:

Mas as virtudes adquirimos primeiro ao exercitá-las, como acontece


nas artes. Tudo o que temos que aprender a fazer, aprendemos com o
que está sendo feito: as pessoas se tornam construtoras construindo e
instrumentistas tocando instrumentos. Da mesma forma, nos tornamos
justos realizando atos justos, moderados realizando atos moderados,
corajosos realizando atos corajosos.27

Também encontramos no quadro dele o risco de que o


treinamento de alguém não esteja à altura da meta, pois a habituação
pode funcionar nos dois sentidos, na direção da virtude ou do vício:

Mais uma vez, as causas ou meios que produzem qualquer forma de


excelência são os mesmos que os destroem, e de maneira semelhante
à arte; pois é como resultado de tocar harpa que as pessoas se tornam
boas e más harpistas. O mesmo princípio se aplica aos construtores e
a todos os outros artesãos. Os homens se tornarão bons construtores

27
ARISTÓTELES. The ethics of Aristotle: the Nicomachean ethics. 1981, trad. de J. A.
K. Thomson. Londres: Penguin, 1976, 91 – 2; II. 1; 1103a 14 – 25. [Traduzido para o
português em ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, trad. Edunb, São Paulo, Nova Cultural,
1996. N. do T.].
138

como resultado da boa construção, e maus como resultado da má


construção. ... Agora, isso também vale para as virtudes.28

Isso é relevante para o que quero dizer sobre a sensibilidade


testemunhal do ouvinte. Até o momento, focamos na ideia da
sensibilidade bem treinada, mas é bom lembrar a fonte de um mau
treinamento que é de interesse central para o nosso projeto: o preconceito
e, mais particularmente, os estereótipos preconceituosos. A percepção
da interlocutora pelo ouvinte pode ser virtuosa ou deixar de ser virtuosa
de uma ou de outra maneira. Sempre houve preconceitos (pense em
Aristóteles sobre escravos e mulheres), mas os preconceitos que podem
estar no ar a qualquer momento mudam com a história. Precisamos de
uma concepção de seres humanos formada pelas atitudes de seu tempo,
mas também capaz de assumir uma posição crítica em relação a essas
atitudes, e, portanto, precisamos de uma concepção mais histórica e mais
reflexiva do treinamento ético do que encontramos em Aristóteles.
A sensibilidade ética recebe sua primeira forma ao sermos
inculcados nas atitudes do dia. Mas logo estamos em posição de criticar
essas atitudes e, assim, se as pressões sociais permitirem, podemos nos
distanciar de qualquer compromisso. O historicismo traz responsabilidade
para o nosso próprio modo de vida ético – uma responsabilidade imersa ou
imanente por quem somos 29 . Por conseguinte, sugiro que pensemos no
treinamento de uma sensibilidade ética como envolvendo pelo menos duas
correntes distintas de entrada: social e individual – nessa ordem. A pessoa
desenvolve uma sensibilidade ética ao tornar-se impregnada de um

28 b
Ibid. p. 92; 1103 1 – 25.
29
Esse tema de nossa responsabilidade por quem somos é apresentado por LOVIBOND,
Sabina. Realism and Imagination in Ethics. Oxford: Blackwell, 1983; e seu Ethical
Formation (ver, e.g., cap. 9, seção 5).
139

modo de vida histórico e cultural específico – ou, como diz Alasdair


MacIntyre, de uma “tradição” ética30 – onde isso deve ser interpretado como
uma questão de socialização ética contínua. Mais uma vez, é a partir de uma
experiência de vida irredutivelmente individual que se obtém uma educação
sentimental específica e, nesse sentido, a formação permanente da
sensibilidade de alguém é algo distintamente individual. Juntas, essas duas
correntes de entrada – coletiva e individual – geram continuamente a
sensibilidade moral de uma pessoa. As libertações da sensibilidade de um
indivíduo, então, são moldadas por um conjunto de atitudes interpretativas
e motivacionais de fundo, que são herdadas passivamente da comunidade
ética, mas depois refletidas ativamente e vividas de uma ou outra maneira
pelo indivíduo reflexivo. A responsabilidade ética exige que o indivíduo
gere um elo crítico apropriado entre o momento tradicional em que obtém
sua socialização ética primária e as experiências que a vida lhe oferece –
experiências que às vezes podem estar em tensão com sua socialização ética,
a fim de suscitar uma reflexão crítica sobre a sensibilidade que ele de outra
forma simplesmente herdou31.
Sugiro que a socialização epistêmica através da qual ouvintes
virtuosos ganham sua sensibilidade testemunhal tem uma estrutura
semelhante. Como no caso moral, devemos pensar na sensibilidade do
ouvinte virtuoso como formada por meio da participação e observação
de práticas de troca de testemunhos. Há, em primeiro lugar, uma herança
social passiva e, em seguida, uma entrada individual, às vezes passiva,
às vezes ativa, da própria experiência do ouvinte. Juntas, as correntes de

30
MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Londres:
Duckworth, 1981, cap. 15. [Traduzido para o português em MACINTYRE, Alasdair C.
Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Edusc, 2001. N. do T.].
31
Tentei desenvolver esse tema em Confidence and Irony. In: HACOURT, E. (ed.).
Morality, Reflection, and Ideology. Oxford University Press, 2000.
140

entrada individuais e coletivas são o que explicam como nossa recepção


normal não-refletida do que as pessoas nos dizem é condicionada por
uma grande variedade de experiências colaterais – nossa “teoria”
informal de confiabilidade socialmente situada. Assim como as
experiências pertinentes ao treinamento das virtudes éticas são
internalizadas na sensibilidade da pessoa virtuosa, o corpo da
experiência coletiva e individual de testemunhos é internalizado pela
ouvinte virtuosa, tornando-o imanente em sua sensibilidade testemunhal.
É através da influência amplamente indutiva desse corpo de experiência
que podemos aprender, de maneira confiável, a assumir confiança
quando, e somente quando, devemos. Assim, nossa percepção de
falantes e suas afirmações passa a ser informada por uma riqueza de
experiências individuais e coletivas relacionadas a diferentes tipos de
confiabilidade das falantes em relação a diferentes tipos de assuntos em
diferentes tipos de contexto. Como ouvintes, nossas percepções de
nossos interlocutores são julgamentos condicionados por uma vasta
riqueza de diversas experiências relacionadas a testemunhos, individuais
e coletivas.
Qual é a nossa capacidade como ouvintes de formar um elo crítico
com essa grande herança passiva que condiciona os julgamentos de
credibilidade que fazemos? Aqui, novamente, a tarefa é identificar uma
analogia com o caso ético. Eu disse que, inicialmente, a sensibilidade
testemunhal de um indivíduo é herdada passivamente. Mas, uma vez que
a luz se faça para um ouvinte, ele descobrirá que às vezes suas
experiências de troca testemunhal estão em tensão com os produtos da
sensibilidade que ele assumiu passivamente; nesse caso, a
responsabilidade exige que sua sensibilidade se ajuste para acomodar a nova
141

experiência. Sua experiência com políticos pode, por exemplo, ser a de que
há proporcionalmente tantas mulheres políticas que ele respeite quanto
homens políticos que ele respeite. E ele pode notar uma certa dissonância
cognitiva entre suas crenças, por um lado – sua crença, por exemplo, de que
as mulheres são iguais aos homens na vida política – e os vereditos
espontâneos de sua sensibilidade testemunhal, por outro – uma sensibilidade
que novamente o faz não levar a palavra política das mulheres tão a sério
quanto a dos homens. Ao refletir sobre seus processos de julgamento, ele
pode detectar a influência de uma imagem tradicional estereotipada das
mulheres como não aptas para a vida política, mesmo enquanto sua própria
experiência o levou a acreditar que esse estereótipo é mero preconceito. Ao
sentir tal dissonância, o ouvinte responsável pode ver sua sensibilidade
testemunhal alinhando-se diretamente com suas crenças, e esse novo
alinhamento pode ocorrer sem a necessidade de qualquer reflexão crítica
mediadora. Mais provavelmente, no entanto, ele precisará ativamente trazer
um pensamento crítico para seus hábitos internalizados de resposta de
ouvinte, a fim de agitá-los o suficiente para efetuar qualquer ajuste.
Se o ajuste for direto, ele passará por uma espécie de mudança
gestáltica na maneira como percebe as oradoras políticas, de modo que
o ajuste à sua sensibilidade testemunhal seja mais ou menos instantâneo.
Se for indireta, uma reflexão crítica ativa sobre seus padrões de
julgamento de credibilidade poderá primeiro produzir algum tipo de
política corretiva externa à sua sensibilidade (talvez ele concentre sua
mente ativamente na igualdade intelectual entre mulheres e homens
quando ouve mulheres falando sobre política, ou talvez ele tente corrigir
a influência do preconceito em seu julgamento após o fato). Com o
tempo, essa política corretiva pode tornar-se internalizada como parte
integrante de sua sensibilidade testemunhal, de modo que se torna
142

implícita em seus poderes recém-condicionados de percepção


testemunhal sobre mulheres na política. Seja direta ou indireta, podemos
ver como a sensibilidade do ouvinte responsável pode amadurecer e se
adaptar à luz da experiência testemunhal contínua. Tal processo de
amadurecimento e adaptação autocrítica é o modo como se pode
aproximar cada vez mais da virtude enquanto ouvinte. A alegação de que
a sensibilidade testemunhal é uma capacidade depende crucialmente da
capacidade da sensibilidade testemunhal de se adaptar dessa maneira,
pois do contrário ela seria pouco mais do que um condicionamento social
de peso morto, que mais pareceria uma ameaça à justificação das
respostas do ouvinte do que uma fonte dessa justificação.
Nessa adaptabilidade também podemos ver como nossa
concepção de sensibilidade testemunhal corrobora a descrição de Coady
do “mecanismo de aprendizagem” crítico. Vimos que ele vê ouvintes
operando um mecanismo que é “modificado pela experiência,
especialmente em matéria de capacidades críticas”, e sugiro que
chegamos a algo que se encaixa no projeto: nossa ideia de sensibilidade
testemunhal é uma ideia de uma sensibilidade crítica espontânea que está
permanentemente em treinamento e se adapta continuamente de acordo
com a experiência individual e coletiva. Esta proposta de como a
racionalidade indutiva pode ser incorporada nos produtos perceptivos
espontâneos da sensibilidade testemunhal mostra que a realização de um
passo inferencial explícito não é a única maneira pela qual um ouvinte
pode estar justificado em aceitar o que lhe foi dito. Uma sensibilidade
testemunhal adequadamente treinada permite que o ouvinte responda à
palavra de outra pessoa com o tipo de abertura crítica necessária para um
compartilhamento sem esforço do conhecimento. Essa ideia de
143

sensibilidade testemunhal nos dá uma imagem de como os julgamentos


podem ser racionais, mas não reflexivos, críticos, mas não-inferenciais.
Ela nos apresenta uma capacidade racional que inclui virtudes, que são
inculcadas no sujeito através de um processo de socialização e que
permite correções e ajustes contínuos à luz da experiência e da reflexão
crítica. Assim, somos confrontados com uma capacidade racional
diferente de tudo que é comumente entretido na epistemologia per se,
mas que tem precedentes antigos na epistemologia moral. Podemos
pensar na sensibilidade testemunhal como uma parte – de fato, uma parte
essencial – de nossa “segunda natureza” epistêmica32.

32
Eu faço eco ao uso deste termo por John McDowell, que ele encontra “quase explícito
na explicação de Aristóteles sobre como o caráter ético é formado”, e que ele amplia para
aplicar não apenas à nossa educação ética (a “sabedoria prática” de Aristóteles) mas, de
maneira mais geral, à nossa educação epistêmica. Ver MCDOWELL, John. Mind and
World. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994, p. 84.

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