Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3
Em Direção a uma Explicação
Epistemológica da Virtude Acerca do
Testemunho
1
Não se deve deixar de mencionar que C.A.J. Coady, em seu livro Testimony: A
philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992, entende o objetivo ilocucionário do
testemunho não em termos da comunicação do conhecimento, mas especificamente como
fornecimento de evidência. Ele efetivamente coloca a transmissão de conhecimento como
um caso especialmente oportuno de fornecimento de evidências; mas parece-me que isso
é um pouco forçado. Caracterizar como evidência o que eu ofereço à minha interlocutora
106
quando ela me pergunta minha data de nascimento, e eu digo a ela minha data de
nascimento, coloca muita pressão sobre a ideia – que é o principal objetivo que Coady quer
defender – que o conhecimento testemunhal pode ser direto ou não-inferencial.
Coady é sensível a essa linha de objeção e responde enfatizando que a concepção de
evidência que ele pretende é epistemologicamente mínima; e ele também diz que, como
afirmar, objetar e argumentar, o objetivo mais geral do testemunho ilocucionário é
informar, de modo que a evidência é apenas a maneira distinta como o testemunho o faz
(p. 43). Mas eu acho que é muito difícil ouvir “evidências” tão minimamente quanto Coady
nos pede, e certamente a alegação de que o falante “oferece” sua palavra como evidência
parece completamente errada psicologicamente para o caso normal.
Coady toma o testemunho formal do tribunal como seu modelo inicial para o testemunho
informal cotidiano, e pode-se pensar que ele está certo em supor que isso apóia a ideia de
que o objetivo do testemunho informal é fornecer evidências. Creio que esse não é o caso.
Certamente, a ideia de que o que as testemunhas do tribunal estão fazendo ao testemunhar
é oferecer evidências; mas a maior parte do testemunho fornecido em um tribunal é
solicitada por causa de seu peso evidencial em algum outro assunto que o tribunal deve
resolver (seria o réu culpado como fora acusado?). Permanece bastante aberto se o
testemunho de uma testemunha de que p deve ser concebido como também evidência para
p. Isso parecia estranho como uma explicação de testemunho informal, e agora parece
estranho até mesmo como uma explicação de testemunho formal. Certamente, o objetivo
processual ou institucional do testemunho formal é fornecer evidências, mas o objetivo
ilocucionário pode ainda ser, simplesmente, transmitir conhecimento.
107
2
A fonte histórica chave para a perspectiva inferencialista é certamente Hume; ver HUME,
David. An Enquiry Concerning Human Understanding, SELBY-BIGGE, L.A. (ed.), 3ª
ed. Oxford: Clarendon Press, 1975, seção 10. Publicado pela primeira vez em 1739.
[Traduzido para o português em HUME, David. Investigação sobre o entendimento
humano. Leya, 2013]. Mas deixe-me registrar alguma cautela aqui, pois acho que é uma
má estratégia interpretativa supor que a visão inferencialista que Hume expõe a respeito
de relatos surpreendentes – a única coisa que ele escreveu sobre testemunho é “Dos
Milagres” – pode ser tomada como uma posição sobre o testemunho em geral. Pode-se
facilmente imaginar uma visão alternativa, igualmente humeana, que ele poderia ter
assumido sobre a epistemologia dos relatos cotidianos não surpreendentes, no sentido de
que a mente humana é condicionada pela experiência a mover-se espontaneamente da
palavra de uma falante de que p para a verdade de p. Michael Welbourne defendeu um
argumento para a leitura de Hume como propondo esse padrão associativo de aceitação
(veja seu Knowledge. Chesham, Bucks: Acumen, 2001, cap. 5); Paul Faulkner adverte
contra a interpretação de Hume como um reducionista cético (veja seu David Hume’s
reductionist epistemology of testimony. Pacific Philosophical Quarterly, v. 79, n. 4,
1998, pp. 302 – 13); e Robert Fogelin sugere que a posição de Hume é neutra em relação
ao assunto (ver A defense of Hume on miracles. Princeton University Press, 2003, p. 90,
n. 3).
Para algumas abordagens inferencialistas recentes, ver Against gullibility. In: MATILAL,
B. K.; CHAKRABARTI, A. (eds.) Knowing from words. Springer, Dordrecht, 1994. p.
125-161, e Second-hand knowledge. Philosophy and Phenomenological Research, v.
73, n. 3, p. 592-618, 2006; LYONS, Jack. Testimony, induction and folk psychology.
Australasian Journal of Philosophy, v. 75, n. 2, 1997, pp. 163– 77; e LIPTON, Peter.
The epistemology of testimony. Studies in History and Philosophy of Science Part A,
v. 29, n. 1, p. 1-31, 1998.
108
3
A figura histórica chave para a visão de que um padrão de aceitação do que nos é dito é
inato é Thomas Reid; veja seu An Inquiry into the Human Mind. DUGGAN, T. (ed.).
Chicago: University of Chicago Press, 1970, cap. 6, seção xxiv, Of the Analogy between
Perception and the Credit We Give to Human Testimony. Publicado originalmente em
1764. Os princípios gêmeos de “credulidade” e “veracidade”, instilados em nossa natureza
por Deus, juntos garantem que temos o direito de aceitar o que nos é dito, exceto na medida
em que a experiência do sujeito maduro possa suscitar dúvidas em qualquer caso particular.
Para algumas abordagens não-inferencialistas recentes, consulte COADY, Testimony;
MCDOWELL, John. Knowledge by Hearsay. In: Meaning, Knowledge, and Reality.
Cambridge, Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998, ensaio 19; publicado
originalmente em MATILAL, B. K. e CHAKRABARTI, A. (eds.), Knowing from
Words: Western and Indian Philosophical Analysis of Understanding and Testimony.
Dordrecht: Kluwer, 1994; e para uma forma especificamente comunitária de não-
infernecialismo, ver KUSCH, Martin. Knowledge by agreement: The programme of
communitarian epistemology. Oxford University Press, 2002, parte I.
4
A visão de que um padrão de aceitação é justificado a priori é defendida por BURGE,
Tyler. Content preservation. The Philosophical Review, v. 102, n. 4, p. 457-488, 1992;
ver também seu Interlocution, perception, and memory. Philosophical Studies: An
International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, v. 86, n. 1, p. 21-47, 1997.
109
5
COADY, Testimony, pp. 122 – 3.
6
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, p. 415. Ele assume que o inferencialismo exige
que tal argumento forneça ao ouvinte conhecimento do que lhe é dito; mas esta seria uma
forma particularmente forte de inferencialismo, uma vez que exige que se esteja na posse
de um argumento que garanta a verdade do que se ouve. Um inferencialismo mais modesto
exigiria apenas que o argumento forneça ao ouvinte justificação para acreditar no que lhe
foi dito. Parece-me, portanto, que um dos principais argumentos que McDowell usa contra
o inferencialismo – que nunca haveria um argumento disponível para o ouvinte que fosse
forte o suficiente para fornecer a garantia necessária – é ineficaz contra a forma mais
modesta de inferencialismo.
110
percebido. Isso é algo que uma visão que nos descreve como
constitutivamente abertos à palavra de outros, tal como é defendida por
Thomas Reid, está bem posicionada para explicar. Um exemplo
cotidiano pode ser o de que, quando vou apressadamente para a estação
de trem, pergunto a um estranho que horas são, ele me diz que são duas
horas da tarde e eu simplesmente aceito, sem refletir, o que ele diz. Essa
falta de reflexão é sublinhada pelo fato de que, se eu perceber algum
sinal para dúvida – ele diz que são duas horas da tarde, quando eu sei
que deve ser mais tarde do que isso porque já está escurecendo –, então
eu experimento uma espécie de mudança de marcha intelectual, saindo
desse modo não reflexivo e entrando em um modo reflexivo e mais
trabalhoso de avaliação crítica ativa. É somente com essa mudança de
marcha que posso começar a trazer alguma reflexão ativa sobre a questão
da confiabilidade de minha interlocutora.
Mas agora podemos sentir que a relevância intuitiva da
evidência da experiência passada, de como estamos condicionados a
receber a palavra de outras pessoas, desapareceu do caso comum não-
reflexivo. Não é apenas a consciência de alguém (por exemplo) de se
está claro ou escuro que condiciona as respostas dele como ouvinte, mas
também as suposições de fundo sobre a probabilidade de uma falante
como esta dizer a verdade sobre um assunto como esse. Certamente esses
tipos de suposições devem estar fazendo algum trabalho justificacional,
certo? Se tais considerações amplamente indutivas estão totalmente
ausentes de nossas trocas não-reflexivas, sem impor qualquer
constrangimento ao que o ouvinte possa aceitar adequadamente, isso
certamente deixa nossas trocas não-reflexivas comuns em um vácuo
racional inaceitável. Certamente, essa preocupação se aplica a visões nas
112
quais o padrão deve ser justificado com base empírica, uma vez que a
ideia de que uma propensão humana natural a dizer a verdade poderia
justificar uma política geral de receber acriticamente o que é dito parece
super otimista, para dizer o mínimo. Uma propensão natural é uma coisa,
mas a vida discursiva traz muitos fatores compensadores para que essa
propensão subjacente seja invocada. É claro que existem contextos
confinados nos quais essa prática resultaria bem, mas uma prática geral
de credulidade não seria um sucesso. Primeiro, as pessoas entendem
errado – cometemos erros, temos má sorte e, às vezes, imaginamos que
sabemos quando realmente não sabemos; e segundo, às vezes as pessoas
enganam ou ocultam deliberadamente informações de outras pessoas,
porque é do seu interesse fazê-lo. Um padrão geral de aceitação crítica
da palavra de outras pessoas, de modo não mediado, seria
justificacionalmente frouxo. Nossas trocas de testemunhos sempre
estarão sujeitas à sorte, mas esse tipo de padrão nos deixaria
implausivelmente indefesos contra os riscos rotineiros de testemunhos.
No entanto, onde o padrão é considerado como sendo
justificado a priori, como na explicação de Tyler Burge, não é preciso
levantar o problema do excesso de otimismo, pois ele pode ser evitado
enfatizando, como faz Burge, que a justificação não depende
precisamente da probabilidade empírica da veracidade da falante 7 . A
justificação é originária de outro lugar, nas conexões conceituais entre
inteligibilidade, racionalidade e veracidade (embora essa última seja
completamente problemática, pois, como Burge está ciente, a conexão
conceitual entre racionalidade e verdade pode tanto resultar em uma
7
Veja BURGE, Content Preservation, p. 468.
113
8
Burge tenta consertar as coisas com um argumento funcional:
Uma das funções primárias da razão é a de representar verdade, independentemente de
interesses pessoais especiais. Mentir é às vezes racional no sentido de que é algo do
interesse do mentiroso. Mas mentir causa uma desunião entre as funções da razão. Conflita
com a função transpessoal da razão de apresentar a verdade, independentemente de
interesses pessoais. (Ibid. 475)
Tal argumento, no entanto, é muito fraco para tal e poderia apenas fornecer algo como a
ideia de que falar a verdade é funcionalmente anterior a mentir, o que certamente é. A
partir dessa prioridade se segue que não deveria haver uma sociedade cuja prática de
testemunho fosse universalmente não-confiável, mas não se segue que nós estamos
autorizados a presumir veracidade, normalmente, mesmo permitindo que a autorização em
si precise apenas valer em um alto grau de idealização. Pois permanece o fato
constrangedor de que, em qualquer caso, a conexão conceitual em operação pode não ser
aquela entre racionalidade e veracidade, mas sim aquela entre racionalidade de falsidade.
Determinar qual está, de fato, em operação em qualquer caso só pode ser uma questão
empírica.
114
3. 2. O OUVINTE RESPONSÁVEL?
McDowell defende a visão de que um ouvinte obtém
conhecimento por meio de testemunho em virtude do exercício da
“responsabilidade doxástica”; e o que é exercer responsabilidade
doxástica é explicado em termos sellarsianos característicos de uma
sensibilidade ao lugar que se ocupa no “espaço de razões”. A ideia de
uma “posição mediada no espaço de razões” é a ideia de um estado – um
estado de conhecimento, por exemplo – que foi alcançado por meio de
116
9
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, p. 430.
117
10
MCDOWELL, Knowledge by Hearsay, pp. 437 – 8.
118
ele, a menos que haja razões mais fortes para não fazê-lo”11. Assim,
temos o direito de aceitar o que o outro nos diz enquanto o padrão de
aceitação se mantiver; ou, como Burge descreve, temos o direito de
aceitar “se tudo correr de modo normal”. Mas quanto mais focamos
nessa questão do padrão, menos a proposta de Burge parece ter
alcançado em termos de realização da ambição não-inferencialista. O
enigma tradicional sobre como o ouvinte pode estar justificado em
aceitar sem inferência o que lhe é dito é mais deslocado do que resolvido,
pois permanecemos inteiramente no escuro sobre como os ouvintes
podem viver na prática o Princípio da Aceitação. Ainda estamos
buscando iluminação quando se trata das obrigações remanescentes do
ouvinte em termos de sua exibição de sensibilidade a se o padrão é válido
ou não em um caso específico.
A questão de como o ouvinte deve ser sensível não-
inferencialmente ao status do padrão é apenas uma nova versão do
problema original que uma explicação não-inferencialista precisa
resolver: a saber, o problema de como o ouvinte pode exercer
sensibilidade para o equilíbrio de razões, a favor e contra a aceitação,
sem fazer inferência. O Princípio da Aceitação nos pede para “aceitar ...
a menos que haja razões mais fortes para não aceitar”, portanto, ao
exercer uma sensibilidade ao status do padrão de aceitação, o ouvinte só
pode exercer uma sensibilidade à mesma coisa que o Princípio da
Aceitação deveria salvá-lo de enfrentar: a saber, o equilíbrio de razões a
favor e contra a aceitação do que lhe é dito. É claro que, na explicação
de Burge, o exercício dessa sensibilidade pelo ouvinte não é a fonte da
11
Veja BURGE, Content Preservation, p. 469.
119
12
COADY, Testimony, p. 47.
13
AUDI, Robert. Epistemology: A contemporary introduction to the theory of knowledge.
Routledge, 1998, p. 133.
121
Mas que explicação deve ser dada sobre essa “maneira bastante
direta” pela qual falantes são ou se tornam mais ou menos credíveis aos
olhos de seus interlocutores? Como Hobbes diz, no testemunho é antes
de tudo a pessoa que é medida:
14
HOBBES, Thomas. Leviathan. TUCK, R. (ed.) Cambridge University Press, 1991 p.
48. [Traduzido para o português em HOBBES, Thomas. Leviatã: matéria, forma e poder
de um estado eclesiástico e civil. LeBooks Editora, 2019].
122
teoria – não é uma teoria e ele não a aplica. Pelo contrário, embora
algumas generalizações ou princípios relevantes sejam certamente
formuláveis (e inestimáveis em contextos em que é necessária a
mudança para um modo de julgamento mais reflexivo), o sujeito
virtuoso não chega a seu julgamento perceptivo por meio da obediência
a qualquer codificação das normas infinitamente complexas implícitas
em seu julgamento. Livre de qualquer dependência de regras
antecipadas, ele é capaz de adaptar e refazer seu pensamento aos
contextos indefinidamente diversos que podem confrontá-lo. Confiar em
regras seria, antes, a marca de alguém que ainda não alcançou a plena
virtude, estando ainda na fase imitativa. Martha Nussbaum faz uma
comparação reveladora com a improvisação artística:
15
NUSSBAUM, Martha. The Discernment of Perception: An Aristotelian Conception of
Private and Public Rationality. In: Love”s Knowledge: Essays on Philosophy and
Literature. Oxford: Oxford University Press, 1990 , p. 74.
126
16
MCDOWELL, John. Virtue and Reason. In: Mind, Value and Reality. Cambridge,
Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998. Ensaio 3; publicado originalmente em
The Monist, n. 62, 1979, 331 – 50.
17
Veja DIAMOND, Cora. Wittgenstein, mathematics, and ethics: Resisting the attractions
of realism. In: SLUGA, H.; STERN, D. (eds.). The Cambridge Companion to
Wittgenstein. Cambridge University Press, 1996, pp. 226 – 60; e a tréplica simpática de
127
19
COADY, Testimony, pp. 210 – 11.
20
Ver, por exemplo, BOVENS, Luc et al. Bayesian epistemology. Oxford University
Press on Demand, 2003, cap. 5, no qual eles constroem um modelo para o raciocínio
“estranho demais para não ser verdade”, em que atribuímos mais credibilidade a uma
história surpreendente contada por várias testemunhas independentes do que a uma história
não surpreendente contada por várias testemunhas independentes.
129
21
Para uma discussão esclarecedora que apresenta certas normas relativas a relatos
surpreendentes, principalmente em contextos em que o preconceito pode estar em
funcionamento, consulte JONES, Karen. The Politics of Credibility. In: ANTHONY,
L.M.; WITT, C.E. (eds.). A Mind of One’s Own: Feminist Essays on Reason and
Objectivity. 2ª ed. Boulder: Westview Press, 2002. Jones também é clara que, embora
esses princípios alimentem “avaliações finais de credibilidade”, eles não as determinam.
Os julgamentos de credibilidade tudo-considerado permanecem uma questão de
julgamento.
130
22
MCDOWELL, John. Are Moral Requirements Hypothetical Imperatives? In: Mind,
Value and Reality. Cambridge, Mass., e Londres: Harvard University Press, 1998. Ensaio
4, p. 85; publicado originalmente em Proceedings of the Aristotelian Society, volume
suplementar 52, 1978, pp. 13-29.
132
23
A fonte principal desse comprometimento empirista é HUME, David. A Treatise of
Human Nature. SELBY-BIGGE, L.A. (ed.), 3ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1975, III,
seção 3. [Traduzido para o português em HUME, David. Tratado da natureza humana.
2ª Edição. Unesp, 2009. N. do. T.].
133
[Aristóteles] sustenta que a pessoa realmente boa não apenas age bem,
mas também sente as emoções apropriadas sobre o que escolhe...
Por trás disso está uma imagem das paixões como elementos
responsivos e seletivos da personalidade. Não impulsos ou tendências
platônicas, eles possuem um alto grau de educabilidade e
discriminação. Para Aristóteles, mesmo os desejos apetitivos são
intencionais e capazes de fazer distinções; eles podem informar o
agente da presença de um objeto necessário, trabalhando em interação
responsiva com a percepção e a imaginação. Seu objeto intencional é
“o bem aparente”. As emoções são compostas de crenças e
sentimentos, moldadas pelo desenvolvimento do pensamento e
altamente discriminatórias em suas razões. ...Em resumo, Aristóteles
não faz uma divisão nítida entre o cognitivo e o emotivo.25
Sendo a emoção concebida como intencional e como parte
apropriada da percepção moral, temos uma imagem filosófica na qual
não surgirá nenhum enigma sobre como os estados de percepção moral
poderiam motivar a ação. A resposta é construída como uma parte
apropriada da cognição moral. Se alguém retirasse a emoção da
percepção, ela cessaria de ser uma percepção virtuosa.
24
Para um trabalho feminista inicial sobre essa questão, e especialmente sobre o poder
das emoções nos dizerem coisas sobre o mundo político e moral, ver JAGGAR, Alison M.
Love and knowledge: Emotion in feminist epistemology, SPELMAN, Elizabeth. Anger
and Insubordination, ambos em GARRY, A.; PEARSALL, M. (eds.). Women,
Knowledge, and Reality: Explorations In Feminist Philosophy. Boston: Unwin Hyman,
1989, pp. 129 – 55, pp. 263 – 74; e FRICKER, Miranda, Reason and Emotion, Radical
Philosophy, 57, pp. 14–19, 1991.
25
NUSSBAUM, Discernment of Perception, p. 78. Para um tratamento cognitivista
estendido da emoção ver seu Upheavals of thought: The intelligence of emotions.
Cambridge University Press, 2003. Para uma abordagem diferente, na qual a
intencionalidade das emoções é traduzida em termos de “sentimento em relação a”, ver
GOLDIE, Peter et al. The emotions: A philosophical exploration. Oxford University
Press, 2000.
134
26
Karen Jones argumenta que confiança envolve empatia; ver Trust as an affective
attitude. Ethics, v. 107, n. 1, p. 4-25, 1996.
136
27
ARISTÓTELES. The ethics of Aristotle: the Nicomachean ethics. 1981, trad. de J. A.
K. Thomson. Londres: Penguin, 1976, 91 – 2; II. 1; 1103a 14 – 25. [Traduzido para o
português em ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, trad. Edunb, São Paulo, Nova Cultural,
1996. N. do T.].
138
28 b
Ibid. p. 92; 1103 1 – 25.
29
Esse tema de nossa responsabilidade por quem somos é apresentado por LOVIBOND,
Sabina. Realism and Imagination in Ethics. Oxford: Blackwell, 1983; e seu Ethical
Formation (ver, e.g., cap. 9, seção 5).
139
30
MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Londres:
Duckworth, 1981, cap. 15. [Traduzido para o português em MACINTYRE, Alasdair C.
Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Edusc, 2001. N. do T.].
31
Tentei desenvolver esse tema em Confidence and Irony. In: HACOURT, E. (ed.).
Morality, Reflection, and Ideology. Oxford University Press, 2000.
140
experiência. Sua experiência com políticos pode, por exemplo, ser a de que
há proporcionalmente tantas mulheres políticas que ele respeite quanto
homens políticos que ele respeite. E ele pode notar uma certa dissonância
cognitiva entre suas crenças, por um lado – sua crença, por exemplo, de que
as mulheres são iguais aos homens na vida política – e os vereditos
espontâneos de sua sensibilidade testemunhal, por outro – uma sensibilidade
que novamente o faz não levar a palavra política das mulheres tão a sério
quanto a dos homens. Ao refletir sobre seus processos de julgamento, ele
pode detectar a influência de uma imagem tradicional estereotipada das
mulheres como não aptas para a vida política, mesmo enquanto sua própria
experiência o levou a acreditar que esse estereótipo é mero preconceito. Ao
sentir tal dissonância, o ouvinte responsável pode ver sua sensibilidade
testemunhal alinhando-se diretamente com suas crenças, e esse novo
alinhamento pode ocorrer sem a necessidade de qualquer reflexão crítica
mediadora. Mais provavelmente, no entanto, ele precisará ativamente trazer
um pensamento crítico para seus hábitos internalizados de resposta de
ouvinte, a fim de agitá-los o suficiente para efetuar qualquer ajuste.
Se o ajuste for direto, ele passará por uma espécie de mudança
gestáltica na maneira como percebe as oradoras políticas, de modo que
o ajuste à sua sensibilidade testemunhal seja mais ou menos instantâneo.
Se for indireta, uma reflexão crítica ativa sobre seus padrões de
julgamento de credibilidade poderá primeiro produzir algum tipo de
política corretiva externa à sua sensibilidade (talvez ele concentre sua
mente ativamente na igualdade intelectual entre mulheres e homens
quando ouve mulheres falando sobre política, ou talvez ele tente corrigir
a influência do preconceito em seu julgamento após o fato). Com o
tempo, essa política corretiva pode tornar-se internalizada como parte
integrante de sua sensibilidade testemunhal, de modo que se torna
142
32
Eu faço eco ao uso deste termo por John McDowell, que ele encontra “quase explícito
na explicação de Aristóteles sobre como o caráter ético é formado”, e que ele amplia para
aplicar não apenas à nossa educação ética (a “sabedoria prática” de Aristóteles) mas, de
maneira mais geral, à nossa educação epistêmica. Ver MCDOWELL, John. Mind and
World. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994, p. 84.