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ALICE MILLER:
sobre o ciclo do adoecimento e a ação de educar

Laysa Maria Akeho1


Lucília Regina de Souza Machado 2

Resumo
Este artigo resulta de uma pesquisa conceitual de natureza reflexiva e crítica por meio
da qual buscou-se conhecer as proposições da autora polonesa Alice Miller a respeito do
que ela entende ser o ciclo de adoecimento emocional e suas implicações para a ação de
educar. A pesquisa se deu por meio da leitura atentiva de três de suas obras: O drama
da criança bem dotada (1997), A verdade liberta (2004) e No princípio era a educação
(2006). Neste artigo, apresentamos a autora, suas publicações e reflexões relativamente
ao tema do adoecimento emocional e da ação de educar. Explicitamos conceitos
presentes em suas obras que nos permitem compreender as circunstâncias infantis que
determinam o adoecimento humano de caráter geracional, as consequências desse
estendidas à vida relacional e social, assim como as possibilidades de saída desse
processo cíclico para um desenvolvimento saudável.
Palavras-chave: Alice Miller. Ciclo de adoecimento. Educar.

Introdução
A educação tem instado diferentes áreas do conhecimento a se pronunciar, pois
revela problemas manifestados nos mais diversos âmbitos sociais. Se em um passado
não tão distante predominavam práticas abertamente autoritárias e antidialógicas,
sancionadas por concepções idealistas, hoje há preocupações contrárias a essa tradição,
que divergem das diretrizes que têm por objetivo adaptar o ser humano à ordem social
estabelecida. Ainda assim é preciso avançar na compreensão da educação como prática
social que reconhece a singularidade do homem e compreende a educação a partir das

1
Psicóloga clínica
2
Professora titular aposentada da UFMG.

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relações humanas, como uma experiência universal e essencialmente constitutiva do


homem no mundo.

Se o modelo de educação tradicional tem fracassado, há crenças que nela


persistem como aquela que adultos, velada ou abertamente, podem ameaçar ou
amedrontar, a fim de educar, ainda que isso, não necessária ou muito contrariamente,
passe pela razão. No adulto, a autoconfiança, as reações emocionais equilibradas, a
segurança interior e as relações harmoniosas têm sido cada vez mais raras. Há um
impacto disso na relação com a criança que está em formação, o que se reverbera ecoa
de nossa própria criança, nossa infância. Miller se atenta a isso.

Alice Miller (1997, 2004, 2006) convida-nos a refletir sobre o adoecimento


humano a partir das relações que tem como propósito educar, um processo cíclico que
envolve gerações, pois aquele que foi educado, educará ou educa. A autora pensa o
fenômeno educativo a partir de um movimento que pode ter uma continuidade circular,
que formam e deformam historicamente pessoas emocionalmente.

Aqui o fenômeno educativo é entendido como aquele que abrange ações e


relações do educar que envolvem todos que fazem o entorno da criança ao assumirem
funções de educadores. Não apenas os que exercem a figuração da mãe e do pai, como
também parentes, professores, mestres, líderes, babás, dentre outros.
Independentemente da figura de referência da criança o que Miller (2006) busca chamar
a atenção é para o jogo de poder e para os métodos de legitimação de um tipo de
pedagogia cruel, a Pedagogia Negra, que atinge nossa vida emocional e que tem
consequências devastadoras como a traumatização na infância. Tal traumatização ainda
teria fortes implicações sociais, pois, fatalmente, se voltaria contra a sociedade, em
forma de autodestruição (dependência de drogas, prostituição, doenças psíquicas,
suicídios) ou em atos destrutivos contra outras pessoas (crimes, genocídios).

O ciclo de adoecimento emocional ainda encontraria no discurso da educação


uma sustentação social ao se entender que aquele que educa se apoia no entendimento
de que “faz o bem”. Assim, processos educativos dirigidos por adultos com a intenção
de exercer influência sobre as crianças, os jovens e também sobre outros adultos, para
fazê-los inseridos numa determinada sociedade, trazem como consequência um
adoecimento humano. São ações que resultam em práticas educacionais que reproduzem

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o sistema social vigente e que contribuem para constituí-lo, que atravessam relações,
instituições e sistemas (MILLER, 2006).

A construção do pensamento de Alice Miller tem como base as contribuições


teóricas da Psicanálise, a denúncia sobre tragicidades cotidianamente presentes na
primeira infância, olhares sobre a educação e supostos princípios da ação de educar.
Para tanto, a autora faz um resgate bibliográfico sobre a educação, apresenta textos que
perpassaram dois séculos de história e relatos de vida sobre acontecimentos trágicos sob
o ponto de vista da vida emocional de pessoas que acompanhou em seu consultório ou
de outras, incluindo personagens famosos e reconhecidos socialmente. Apoia-se na sua
vivência de vinte anos de clínica e em resgates de rememorandos de vidas, por registros
pessoais ou de familiares, biógrafos e historiadores. Esse é o caminho que Miller utiliza
para ilustrar seus pensamentos, aproximando o leitor de cada uma dessas pessoas.
Mesmo aquele legendário e humanamente incompreensível Hitler perde o caráter
totalmente enigmático diante da sua história de sofrimento infantil.

Do caráter determinista e fatalista desse ciclo vicioso que atravessa gerações,


Miller traz avanços e aponta caminhos pelos quais desse pode-se sair. Mesmo que se
tenha vivenciado, em sua trajetória de vida, relações marcadas pela incompreensão e
abandono, castigos e sofrimentos, a partir de si mesmo e do acesso e enfrentamento
dessa infância, suas faltas vividas diante das necessidades.

A autora aponta a psicoterapia como saída do ciclo de repetição, pois o processo


terapêutico acessa sentimentos prematuros que, experimentados pela primeira vez,
conscientemente, possibilita deixar de negar os sofrimentos de sua vida infantil. O
adulto poderá vivenciá-los e aceitar as condições, talvez frágeis, que lhe foram
oferecidas para se desenvolver emocionalmente. Ao tornar consciente tal experiência,
pode entender que aprendeu a esconder seu verdadeiro ser da pessoa que amava para se
proteger (MILLER, 2004).

Olhar para nós mesmos, diz Miller (1997; 2006), é investigar e aceitar nosso
passado, é percorrer o caminho para um mundo mais democrático. Assim, diz: “O
futuro da democracia depende dessas iniciativas individuais. Enquanto não
conseguirmos clarificar nossos sentimentos, de nada adiantará apelar para o amor e a
razão.” (MILLER, 1997, p. 106). Esse seria, segundo a autora, o caminho para um
mundo mais justo para todos, pois “[...] pessoas que estão dispostas a escavar suas

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histórias da escuridão do esquecimento irão encorajar outras a fazerem o mesmo,


possibilitando, dessa forma, que suas consciências tragam mais luz e clareza à escuridão
da “política” de nossos dias.” (MILLER, 1997, p. 107).

Miller considera que, embora as primeiras experiências de vida de uma criança


em relação àqueles que a rodeiam sejam determinantes, isso não destitui o papel
importantíssimo de testemunhas que exerceram influências posteriores em sua vida.
Psicólogos, professores, babás, avós, tios, amigos, seja quem for, pode ser testemunha
empática. Segundo Miller (2006), essa testemunha é um interlocutor que conhece o
significado marcante das experiências que uma pessoa passou e não a subestima, ignora
ou diminui. Alguém que lhes possibilitou perceber as injustiças sofridas, confirmando a
percepção da própria criança de que não recebeu o que precisava. Não nega as vivências
de privação da infância daquela pessoa. Essas vivências, quando consideradas e
respeitadas, não levam, necessariamente, ao adoecimento da pessoa, mas à possibilidade
de guardar essas vivências como lembranças que fortalecem a experiência e o mundo
interior da pessoa.

Alice Miller em panorâmica.


Alice Miller é de origem polonesa (1923-2010) e ascendência judaica. Além da
produção literária foi psicóloga clínica. Viveu sua juventude em Varsóvia, Polônia, e na
Suíça. Doutorou-se nas áreas de Filosofia, Psicologia e Sociologia na Universidade de
Basel, Suíça, no ano de 1953 e faleceu na França em 14 de abril de 2010 3.

Sua atividade clínica registra vinte anos de experiência e é marcada pela


abordagem psicanalítica. Dessa vivência originaram-se suas reflexões, as quais
apontaram lacunas que, em seu entendimento, a Psicanálise não preenchia (MILLER,
1997, 2004, 2006). Isso explica suas críticas a Freud e Jung, seu afastamento da
Psicanálise e a orientação que recebeu para se desligar da Associação Psicanalítica
Internacional de Berlim após a publicação de seu quarto livro 4.

Miller teve treze livros publicados em sua língua materna até seu falecimento,
aos 76 anos. Já foi traduzida para trinta idiomas. Cinco de seus livros foram traduzidos

3
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Miller>. Acesso em fev. 2013.
4
Disponível em <http://nucleotavola.com.br/revista/escrevendo-a-clinica-quem-e-alice-miller/> e
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Miller >. Acesso em fev. 2013

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para o português5. Entretanto, ainda é pouco conhecida e estudada no Brasil, não apenas
no campo da Psicologia, mas de outras áreas, para as quais oferece grandes
contribuições, como a Sociologia e a Educação.

Sua primeira publicação, O drama da criança bem dotada – Como os pais


podem formar (e deformar) a vida emocional dos filhos (1997), chegou ao público da
Alemanha em 1979 e, ao Brasil, apenas em 1997. Nessa obra Miller discorre sobre
como e por meio do processo educativo fomos (e somos), desde nosso nascimento,
desviados de nossa verdadeira natureza humana. Desvestido de linguagem tecnicista, o
livro desconcerta o que seria o certo e o normal, na medida em que aponta o
comportamento da criança bem dotada e educada como fruto de uma tragicidade em sua
própria infância e de um desenvolvimento decorrente de uma vida emocional reprimida,
de uma imagem auto-enganosa de si mesmo e, por isso, sofrida. O que a autora nos
atenta é que esse sofrimento não termina com o fim da infância, mas é presentificado
pela repetição, na maneira como o adulto se relaciona com o mundo e com os outros.
Dentre esses estaria, futuramente, o filho desse adulto, que, sob sua tutela, sofreria mais
diretamente essa vida emocional deformada que constituiu e que a passará, por sua vez,
para a próxima geração, dando sequência a um ciclo.

Do impacto desse livro na comunidade, relatado pela própria autora, surgiram


ricas correspondências de seus leitores (MILLER, 1997). Suas publicações que vieram
na sequência trazem o intuito de esclarecê-los e de alguma forma apaziguar as angústias
que provocaram seus inusitados pensamentos (MILLER, 2006).

A segunda publicação da autora no Brasil, terceira na ordem das que publicou, A


verdade liberta (2004), é apresentada por ela como um estímulo à reflexão sobre nossas
vidas e as histórias singulares de nossas famílias. Não para fazer o resgate do passado,
mas para apontar práticas do presente em diversas áreas, que poderiam ser mais
produtivas se levassem em conta de fato a infância e o conhecimento sobre os cuidados

5
Livros de Alice Miller publicados no Brasil:
- O Drama da Criança Bem Dotada: Como os pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos
filhos, Summus Editora, 1997, 2ª edição revista e atualizada.
- No Princípio era a Educação. Editora Martins Fontes, 2006. No original, em alemão: Am anfang war
erziehung, 1990.
- A verdade liberta. Editora Martins Fontes, 2004.
- Não Perceberás: Variações sobre o tema do paraíso. Editora Martins Fontes, 2006. No original, em
alemão: Du sollst nicht merken. Variationen über das Paradies, 1981.
- A Revolta do Corpo. Martins Fontes, 2011. No original, em alemão: Die revolte des körpers, 2004.

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dela que devem ser considerados e divulgados. Por exemplo, pela Medicina,
Psicoterapia, Política, Sistema Penal, Educação Religiosa e Pesquisas Biográficas.
Miller (2004) entende que há um grande tabu para se falar da infância, quando, na
verdade, essa fase da vida humana seria um manancial de ricas informações que
poderiam determinar ações mais efetivas nessas áreas. Despercebidas como tal, elas não
lidam com o que de fato poderia possibilitar saídas para problemas enfrentados nesses
campos.

Um desses é a Medicina, cujo olhar privilegia causas biológicas e se afasta do


universo emocional, que também é constitutivo da saúde integral do ser humano. A
autora entende que esta falta de atenção é causada por uma barreira emocional, que
produz estorvos no organismo. O adoecimento sinaliza o embate entre o sistema
corporal e cognitivo. Tenta provar que os mecanismos de negação e repressão do
sofrimento infantil resultam na dessensibilização e no adoecimento corporal e ganham
regularidade de um padrão, que ela assegura ter validade universal. Ela faz tais ilações
não apenas com base em suas experiências na relação com seus pacientes, mas por ter
constatado regularidade de evidências ao resgatar a vida de escritores, artistas, filósofos,
permeada pelos maus tratos extremos, idealização dos pais, glorificação da violência,
negação das dores e necessidade de vingança.

Seu segundo livro, No princípio era a educação (2006), apresenta o resultado do


diálogo da autora com seus leitores, pensamentos e experiências com uma gama maior
de detalhes e aprofundamento. Ela busca clarificar sua definição de primeira infância e
distinguir os sentimentos de culpa e tristeza. Compreende que a criança cresce num
entorno concreto de pessoas de referência cujo inconsciente exerce sobre seu
desenvolvimento uma influência crucial. Portanto, torna-se premente olhar e cuidar
desse entorno. Sua tarefa primeva, desde seu primeiro livro, consiste em sensibilizar o
leitor sobre o sofrimento da primeira infância, tentando falar diretamente com a criança
que outrora existiu, e que nele permanece quando adulto. O caminho escolhido para
sensibilizá-lo é o de expor, a partir de textos e autobiografias, o que entende por
“Pedagogia Negra”, sobre a qual discorreremos abaixo. O livro traz relatos, também, da
infância cruel que teria determinado o destino de Adolf Hitler, Christiane F 6 e Junger

6
Alemã que aos doze anos iniciou-se no vício do consumo de heroína e que por ele foi levada à
prostituição. O livro Eu, Christiane F., 13 anos drogada e prostituída, resultado de uma entrevista que
concedeu a jornalistas durante duas horas, tornou-se um sucesso mundial.

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Bartsch7, estratégia que a autora utilizou para aproximar o leitor da compreensão das
crueldades por eles realizadas contra o outro e/ou contra si mesmos mostrando suas
raízes na primeira infância. Segundo ela, “Todos os três destinos atestam o papel
devastador da educação, sua aniquilação da vivacidade, seu perigo para a sociedade.”
(MILLER, 2006, p. 4).

Para Miller (2006) esse livro vai ao encontro do direito que todos têm de saber
sobre o que se passa de fato nos consultórios dos analistas. Cuidando de resguardar o
sigilo, ela entendia que apresentar o que testemunhou no consultório não é algo que diz
respeito apenas à vida de pessoas doentes ou com perturbações mentais, dentro do
setting psicanalítico8, mas a todos nós que fomos um dia impedidos de exercer nossa
vivacidade. Entendia que o que vivenciou em sua experiência clínica está na vida e deve
ser revelado como possibilidade diferente de se conhecer o desenvolvimento emocional
das pessoas.

A autora faz ao leitor para pensar o voltar-se para si mesmo como caminho que
possibilita o aparecimento do outro na relação. Ela considera que, se um eu não se olha,
não se reconhece, não se integra. Se ele não se reconhece, não se legitima e, portanto,
não possibilita que o outro possa ser além dos enquadramentos que se deseja que o
outro faça.

Para explicar esse processo, Miller (1997) discute a constituição do processo


cíclico de adoecimento da vida emocional de uma pessoa, que se iniciaria em sua
primeira infância com reflexos diretos em sua vida adulta. O ciclo se fecharia e ganharia
continuidade na forma como esse adulto estabelece suas relações com o outro e com o
mundo, e passaria de geração em geração, tendo diversas consequências sociais, dentre
as quais, fenômenos de violência. Miller (1997, 2004, 2006) considera, portanto, que há
conexão entre a formação humana de uma pessoa e a maneira como, ao estabelecer suas
relações, passa a reproduzi-las. A autora cunha o conceito de “Pedagogia Negra” para
aprofundar a análise dessa dinâmica no âmbito educacional e, com isso, possibilitar a
compreensão de como educadores, nas relações que estabelecem, corroboram formas de
como foram educados.

7
Pedófilo e assassino em série alemão. Órfão, foi adotado aos onze meses de idade, tendo sofrido maus
tratos na infância e desenvolvido tendências sádicas.
8
Proposições metodológicas, técnicas e éticas sobre como realizar o trabalho clínico na Psicanálise.

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A geração que temos como referência é decorrente do fenômeno conhecido


como Baby boomers9, mais especificamente aquela que Mansur (2011) denomina como
“a primeira e mais expressiva geração social do sistema capitalista que se formou após
os intensos conflitos multicontinentais de Forças Armadas” 10. Segundo o autor, são
pessoas nascidas após a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1964, que foram jovens
durante as décadas de 1960 e 1970 e acompanharam de perto as mudanças culturais e
sociais dessas duas décadas11.

Trata-se de geração12 constituída de indivíduos educados a partir da afirmação


de hierarquia acentuada, castigos físicos, homogeneização de comportamentos, regras
rígidas e pautadas por valores de um mundo orientado à consolidação do capitalismo.
Valores que também marcaram a educação de gerações anteriores, erigidos por esse
sistema social e usados para preparar as pessoas para o trabalho alienado e o
consumismo.

Miller (2006) denuncia uma metodologia educacional subordinada a esse


sistema social, que ao mesmo tempo contribui para constituí-lo. Uma metodologia que
se manifesta em discursos que, com o pretexto de educar, deflagra um abuso passado de
geração em geração e revela a transcrição do processo educacional a partir de um
tratamento que hoje é visto como cruel e brutal. Uma das abordagens metodológicas

9
“Baby Boom é uma definição genérica para crianças nascidas durante uma explosão populacional” -
Baby Boom significa em inglês “explosão de bebês”. Dessa forma, quando definimos uma geração como
Baby Boomer é necessário definir a qual Baby Boom, ou explosão populacional estamos nos referindo.
Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boom>. Acesso em mar. 2012.
10
Disponível em http://betomansur.zip.net/. Acesso em 10 mar. 2013.

12
Ainda segundo Mansur (2011) pertencente ao mundo capitalista, essa geração foi atingida pelos
projetos políticos e econômicos, tanto liberais, quanto assistencialistas, e pela nova cultura conceituada
de American Dream – conjunto complexo de valores sociais de acordo com o padrão capitalista
industrial e pós-industrial de se viver. (...) Significativamente, são pessoas que fizeram parte de uma
história social consequente de promessas de paz e harmonia que o final da Segunda Guerra apresentou,
já que, naquele período, as conquistas dos Direitos Sociais foram muito evidentes. Em função disso,
tivemos casamentos de jovens com idades entre 18 e 21 anos, os quais imediatamente tiveram filhos,
que não seriam preparados para as guerras e sim para o trabalho. De acordo com os estudiosos, para
cada 10 famílias passaram a existir em média 61 filhos, o que se conceituou de “explosão de recém-
nascidos”, ou de “Baby Boomers”. (...) Daí, se foi por intenção ou por naturalidade, passamos a segunda
metade do século XX convivendo com novos elementos nas classes sociais, que foram educados e
ensinados conforme os padrões de um sistema capitalista que promoveu marcante globalização de
comportamento e de valores sociais.

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daquilo que a autora chama de Pedagogia Negra consiste e tem por objetivo a não
conscientização do próprio sofrimento vivido na infância. Miller (2006) acredita que a
ideologia desse tipo de educação é assim reproduzida e legitimada, e não questionada.
Isso é, por não compreendermos em nós mesmos a situação vivida na primeira infância,
legitimamos os maus tratos sofridos pela criança e quando os designamos de
“educação” acreditamos que a bem-sucedida educação é aquela que produz corpos
dóceis, bem-comportados, que assimilaram os princípios dessa educação. Por esse
motivo a autora se posiciona: “[...] minha postura antipedagógica não está voltada
contra um tipo específico de educação, mas contra a educação em geral, mesmo contra a
educação antiautoritária.” (MILLER, 2006, p. 112). Para ela não se trata, porém, de
crescer de forma totalmente selvagem, sem limite, mas de entender que se desenvolver
pressupõe princípios fundamentais como ter o respeito das pessoas de referência,
receber a tolerância por seus sentimentos e sensibilidade. Isso pressupõe atenção aos
mais fracos, respeito diante da vida e suas leis.

Miller considera que há valores que não podem ser relativizados quando
acompanhamos e somos responsáveis por uma criança. Por isso, ela questiona o
pressuposto de que há alguns valores sagrados à educação. Ela argumenta que há
valores quase universamente enraizados na tradição judaico-cristã e que costumam ser
relativizados pelo adulto quando este lança mão de determinadas posturas e atitudes sob
a justificativa de que está realizando educação. São esses valores que, para Miller
(2004, 2006), devem ser abandonados, pois são os abstratos da ética religiosa ou mesmo
filosófica, que nos dificulta voltar para a realidade psíquica, não acessar sua história e
compreender o preço emocional que uma pessoa paga para seguir e reproduzi-los. Tais
valores são passados de geração em geração, principalmente pelo fio condutor do
sistema social e das relações entre educadores e educandos, inclusive as familiares. A
autora centra sua atenção especialmente nos pais e mães como educadores e nos filhos
como os educandos e explica que

[...] seria igualmente importante e benéfico nunca perder de vista que


quando dizemos “pais” e “filhos” não estamos nos referindo a pessoas
específicas, mas a circunstâncias e a situações comuns ou jurídicas
que dizem respeito a todos nós, porque todos os pais já foram crianças
um dia, e as crianças de hoje, em sua maioria, um dia serão pais.
(MILLER, 2006, p. 4).

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E ainda “[...] designo como “mãe” a pessoa de referência mais importante para a
criança em seus primeiros anos de vida. Não precisa necessariamente ser a mãe
biológica, tampouco ser mulher.” (MILLER, 2006, p 14). Ou seja, diz respeito a todos
que no entorno da criança assumirem funções de educadores.

A tese da autora: a origem do adoecimento

A tese geral apresentada por Miller é de que na infância estão escondidas as


raízes de toda a vida da pessoa. Tem a premissa que o desenvolvimento emocional e
físico da pessoa é determinado em seus primeiros anos de vida e em relação à forma
com a qual seus pais ou substitutos foram receptivos ou responderam às necessidades
dela quando criança. A situação difícil de ser criança é a de precisar do amor desse
adulto, do qual depende e está, por isso, à disposição. O desenvolvimento da criança
fica comprometido por esse adulto não estar voltado para as necessidades dela, mas para
a satisfação própria, uma vez que esta não foi satisfeita quando da infância desse adulto.
Segundo a autora, a criança responde a isso se adaptando às expectativas dos adultos,
desenvolvendo e fortalecendo um falso self13 e se afastando cada vez mais de seus
sentimentos e emoções e da vivacidade que propicia seu contato com o verdadeiro self.
Durante sua vida, a maneira como se relacionará com as pessoas estará presa ao que foi
registrado desse transtorno ou traumatismo emocional infantil. Isso se evidenciará,
principalmente, diz a autora, quando ela tiver seu próprio filho, pessoa indefesa,
vulnerável às suas manipulações inconscientes e fonte de fácil satisfação de suas
necessidades. Estrutura-se assim, um ciclo de repetição de comportamentos, passados
de geração a geração, que se expressaria na vida emocional desse adulto responsável
por essa criança, que poderá fazer a ela, de forma consciente ou não, o mesmo que
sofreu no seu passado.

13
Self: em Psicologia, refere-se à representação cognitiva e afetiva da própria identidade que o sujeito
desenvolve a partir de sua experiência. O falso self é mecanismo de defesa como forma funcional de
sobrevivência da criança desarmada diante das manipulações do adulto que a faz se adaptar ao meio e,
portanto, aos que a rodeiam. A capacidade adaptativa, diz Miller (2006), está inclusive na não
possibilidade de demonstrar suas angústias. Tal adequação leva ao desenvolvimento do falso self, de
modo que a pessoa se funda numa postura construída do que sempre foi esperado dela. Uma
construção auto-enganosa. Os adultos encontram nesse falso self desenvolvido na criança a satisfação
das necessidades que buscavam. A criança é admirada não pelo que é, mas pelo que se esforça para ser.
O verdadeiro self não pode ser vivido, se desenvolver e se diferenciar. Decorre daí um verdadeiro
sentimento de vazio, falta de sentido e desenraizamento que Miller testemunha na clínica.

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Daí a necessidade de a infância ser levada a sério e não tratada como um tabu,
como ocorre muitas vezes nas sociedades em geral e nas diversas áreas do
conhecimento. A criança precisa ter suas necessidades legitimadas, ser notada e
compreendida e ser respeitada pelo adulto. Ser olhada como alguém indefeso e não
como possibilidade de realização dos projetos e expectativas do adulto, de ser a
circunstância para acalmar os medos desse adulto. Ser alguém que possa aprender a ver
e a ser si mesmo e não ver e ser conforme as necessidades do outro.

A autora apresenta diversos motivos que impedem a quebra desse ciclo que
denuncia. Há os de natureza emocional, como os mecanismos de defesa. Há os de
natureza social, como o pressuposto universal de que filhos devem amar, respeitar e
corresponder ao que seus pais desejam sempre, ou aceitar acriticamente. Há os
pressupostos religiosos que reforçam tais crenças. Há a necessidade de manter
idealizada a imagem de pais amorosos e a premissa social de que o “amor” justifica
todas as ações dos pais se o objetivo é educar o filho, cumprindo a importante função de
evitar que entrem em contato com o próprio sofrimento infantil. Diz, então, Miller: “A
crença irracional em imagens tradicionais de amor e de moral presta-se bem para
esconder ou reprimir os fatos reais da própria história.” (MILLER, 1997, p. 51) .

A tolerância pela sociedade desse tratamento à criança é quase tomada como


trivial, visto como direito daquele que é responsável por ela, o que Miller (1997, 2004,
2006) diz ser creditado como educação. Isso é, o adulto, sendo confirmado pela
sociedade como o responsável pela educação da criança, acredita que educar significa
preparar essa criança para a dureza da vida, suportar o sofrimento, não demonstrar sua
fraqueza. Assim procedendo promoveria a deformação da vida emocional da criança. O
questionamento de Miller baseia-se no dito de que há uma suposta “coerência na
educação” quando o que se faz é “para o seu próprio bem”. A autora adota um conceito
primário e absoluto de que toda forma de educar é um tipo de tutela e por isso coloca
em xeque a educação e seus princípios. É neste sentido que afirma sua postura
antipedagógica.

Nessa educação, quando se veda a possibilidade de a criança enxergar a


crueldade com a qual foi tratada, estabelece-se um distanciamento emocional que
também tem consequências em seu corpo. E no registro do corpo essas mensagens
distorcidas são armazenadas como informações, pois ele conhece a própria história e

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abriga aquilo que se quis velar, esconder e dominar. O corpo cede, se submete e
obedece àquilo que lhe foi ensinado nos primeiros meses e anos de vida, mas também
trará os conflitos do que a criança vivenciou durante sua vida (MILLER, 2004).

A autora chama-nos, entretanto, à necessidade de cessar esse ciclo, dada a


importância das suas consequências individuais e sociais. Personalidades construídas a
partir de autoimagens enganosas, falsos selfs, seriam ilusões, que as tornam vítimas de
outras pessoas, grupos ou ideologias. Isso porque há o reforço da ilusão de que é a partir
de determinado comportamento que a pessoa terá compreensão, aceitação e segurança
garantida. Assim, torna-se desarmada e indefesa diante do que lhe determinam ser e
fazer, alimentando seu falso-self. Os vínculos cegos a determinados grupos, ideologias
ou pessoas são a tentativa de fugir de sua própria história de sofrimento. Segundo Miller
(1997, 2006), assim o fascismo nasceu, se fortaleceu e se manteve. A tese da autora se
estende à compreensão de desordens sociais, que têm seu início na vida particular de
cada pessoa. Ela quer nos fazer entender que as raízes da violência social, tanto daquele
que supostamente a lidera e é ativo diante dela, como aquele que a aceita, estão na
infância. Ela quer nos fazer entender que todo violentado será um violentador em
potencial e compreender que a violência social é fruto de histórias individuais de abuso.
Segundo Miller,

[...] quanto mais cedo é aplicada a violência, mais permanente é o efeito do que foi
aprendido e menos ele consegue ser controlado pela mente consciente. Por isso basta
que surja a primeira oportunidade, a primeira ideologia obtusa, para liberar a
brutalidade mais bestial em pessoas que até então se comportavam com tranquilidade e
submissão, mas que provavelmente viviam com fortes agressões reprimidas, cujo
verdadeiro motivo elas desconheciam. Isso nos deve induzir a refletir e a empreender
indispensáveis pesquisas nessa direção. (MILLER, 2004, p. 41).

Diante daqueles que se sentem resguardados pela imagem de equilíbrio


emocional e comportamental de sua história têm na obra de Miller um convite para
pensar além. Aqueles lares que seguem um padrão de normalidade podem também
ocultar uma infância trágica. São aqueles nos quais a imagem da infância se apresenta
feliz e protegida, com talentos, “amadurecimentos” e dons evidentes, os “bem-dotados”,
que por isso são admirados pelos seus feitos e vistos como fortes e estáveis. Esses são
tidos como os educados. É sobre essa aparente normalidade, sobre o obscuro da suposta
segurança da vida emocional do leitor, que Miller deseja lançar luzes e iluminar.

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O ciclo do adoecimento emocional e suas consequências

Miller, em sua obra de 1997, relata o comprometimento emocional daqueles que


foram usados por seus educadores para corresponder às expectativas destes e, por causa
disso, “amados” sobre determinadas condições. Indefesa e dependente, a criança atende
essas condições, adapta-se ao que o adulto deseja para se afastar de qualquer
possibilidade de abandono, sinalizadas a ela pelas desaprovações deste. Essa disposição
da criança e a necessidade de sobrevivência configuram seu caráter indefeso. Miller
compreende a adaptação precoce por meio da negação de alguma parte de si mesmo
como única chance de sobreviver.

A adaptação realizada precocemente pela criança se daria dentro de um contexto


de repressão de necessidades básicas como amor, atenção, empatia, compreensão e
participação. Paralelamente, a criança desenvolveria a capacidade de controlar, de
reprimir suas reações emocionais mal vistas pelos adultos, como: ciúme, medo, inveja,
raiva, impotência e abandono. Durante seu crescimento consegue habilmente
desenvolver a capacidade de manter longe de si mesma seus sentimentos, não acessá-
los, já que por serem mal vistos não podem se manifestar. Nega assim parte de si
mesma. Miller (2006) afirma que a tolerância da criança com os pais não conhece
limites e a crueldade do adulto pode ficar segura e protegida pelo amor e disposição da
criança. A criança depende, entre outras coisas, da aprovação desse adulto e irá buscá-la
para sentir-se segura de que o outro estará com ela.

Miller (1997) apresenta, assim, a criança como uma refém dessa situação. Ela se
tornará também na fase adulta refém de suas próprias emoções e sentimentos. Os
sentimentos da infância serão revividos pelo adulto como vagas lembranças, mas
estarão presentes. Estarão presos a elas, mas afastados. Quando adulto, da mesma forma
que quando criança dependeu de seus pais para ser aceito, estará preso à aceitação de
outras pessoas, como seus companheiros, amigos, grupos ou ideologias. Dessa infância
emocional trágica emergem adultos e, por vezes, pais. O ciclo é renovado e não
quebrado. Já com seus próprios filhos, por serem eles indefesos, podem então passar a
manipular, em vez de ser manipulado. O ciclo assim se fecha e ganha continuidade.
Para Miller,

[...] somos totalmente indefesos contra essa espécie de manipulação na infância. É


dramático que também os pais estejam à mercê dessa atitude, enquanto se negarem a

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olhar suas próprias histórias. Enquanto a repressão continuar existindo, a tragédia da


infância dos pais será perpetuada, inconscientemente nos filhos. (MILLER, 1997, p.
33).

É como se a falta vivenciada na infância pudesse então agora ser preenchida.


Para Miller, a criança que teve na sua infância a experiência constante de ser humilhada,
ludibriada e trapaceada e que não pode vivenciar a raiva e a reprimiu transformará esse
sentimento, que não se extingue, em ódio, mais ou menos consciente contra si mesmo
ou contra outros. E se antes era impedida de se expressar, quando se torna adulto sente
que está permitido e justificado repetir o que lhe fizeram. Estar diante de uma criança
fraca e indefesa pode dar ao adulto a sensação de força, um tipo de sensação alimentada
pela satisfação de controlar os sentimentos do outro, o que não consegue fazer com os
seus próprios. Assim, de acordo com a autora,

[...] podemos educar um filho para que ele se torne o que gostaríamos que fosse.
Podemos usar o filho para ganharmos respeito, para confiarmos a ele nossos próprios
sentimentos, para nos espelharmos em seu amor e deslumbramento, para nos sentirmos
fortes a seu lado [...]. Sentimo-nos enfim, no centro das atenções. (MILLER, 1997, p.
22).

Quando tentamos nos aproximar emotivamente de uma criança somos pegos


pelo nosso passado, voltando a nos sentir como criança indefesa. Mas, ao mesmo
tempo, nisso está a possibilidade de desenvolvermos a vivacidade, nossa sensibilidade
perdida (MILLER, 2004). Da mesma forma que os filhos serão a possibilidade de
satisfação de suas necessidades infantis, eles apontarão exatamente para suas faltas. Já
que,

[...] provavelmente, todas as pessoas têm em si uma câmara interior, mais ou menos
escondida, na qual se encontram os elementos de seus dramas da infância. Os únicos
que certamente terão acesso a essa câmera serão seus filhos. Eles trazem vida nova para
o lugar, e a história pode continuar (MILLER, 1993, p. 34).

Miller (2006) entende que a crueldade maior dessa situação é compreender a


intenção dos pais como de fato tentativas de alcançar o bem para seus filhos, de não
serem falsários de uma boa intenção, embora nem por isso, contudo, façam o bem. Isso
explica a atitude compreensiva da autora ao falar com os pais, ou mais especificamente
para as mães. Segundo Miller,

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[...] eu diria hoje a todas as mães: não fiquem aflitas se as suas mãos de repente
escorregarem; vocês passaram muito cedo por essas experiências dolorosas, isso
acontece quase automaticamente, e geralmente vocês conseguem corrigir um erro
quando o reconhecem e o assumem. Mas nunca digam aos seus filhos que o fizeram
para o bem deles, porque assim estarão construindo para a estupidificação e o sadismo
velado. (MILLER, 2004, p. 76).

O ciclo se perpetua, diz Miller (1997, 2006), pelo fato de o adulto não saber de
sua história, especificamente de sua infância e, portanto, não estar ciente de suas
determinações. Isso o leva a temer e a evitar as experiências que vivenciou na infância e
que, hoje, não existem mais. Preso a lembranças e a determinadas necessidades
inconscientes de tempos passados, vive durante a vida a reprodução dos maus tratos
sofridos.

Uma importante forma de manutenção desse ciclo são os mecanismos de defesa,


que servem para que a pessoa se defenda das próprias experiências infantis e para que
possa transformar sofrimentos passivos em comportamentos ativos por meio do
desprezo, da racionalização, do deslocamento e da idealização. Para a autora “[..] todos
esses mecanismos de defesa são seguidos pela repressão da situação original e dos
sentimentos que a ela acompanhavam.” (MILLER, 1997, p. 23). A negação tem a
função de bloquear os sentimentos. Por exemplo, quando o adulto apresenta e afirma
aqueles que estiveram envolvidos no seu educar apenas como compreensivos e não
aceita a raiva que sentiu ao ser destratado. Isso também envolve o mecanismo da
idealização, por meio do qual a vítima passa a justificar a ação sofrida e manter a forte
tendência a idealizar a figura dos que cuidaram dela. Convence-se de que há um motivo
justificado para a ação sofrida na infância, aceita a maneira como foi tratada, justifica
que não lhe fizeram mal quando criança; mas que, pelo contrário, a prepararam para a
dureza da vida, para suportar o que viria e vencer os obstáculos. Isso é fortalecido
quando encontra motivos socialmente aceitos para a ação de seus pais. Vemos isso no
depoimento deste aluno: “Meus pais me amam e fizeram tudo bem feito. No começo
eles não me batiam, porém mais tarde não puderam deixar de fazê-lo, pois eu era uma
criança que sentia prazer em fazer bobagem. Toda hora eu fazia alguma bobagem.”
(MILLER, 2004, p. 98). Depois de contar que teria um dia fugido e foi castigado
retoma: “Ainda me lembro que enquanto eles me batiam eu pensava, afinal, se eles me

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procuraram tão desesperadamente é porque me amam. Sua raiva é prova de amor.”


(MILLER, 2004, p. 98).

Para Miller (1997, 2006) a negação encontra-se aliada à forma de como tais
pessoas se relacionam pervertidamente com drogas, grupos, cultos e ideologias, o que
caracteriza o mecanismo do deslocamento, que para ela é “[...] a essência da adaptação
ou da obediência (em que) nada se altera com a simples troca de seu objeto.” (MILLER,
1997, p. 99).

Exemplo de deslocamento seria a necessidade de encontrar a continuação da


figura paterna autoritária. Obedecer às ordens e ansiar por submissão não parece
estranho a alguém que foi ensinado a seguir aqueles considerados, indiscutivelmente,
maiores. Afinal, “Como é que alguém que nunca pôde desenvolver em si nada além de
obedecer às ordens alheias poderá conviver de forma independente com esse vazio
interior?” (MILLER, 2006, p. 83). Quando aparece alguém que fala e se comporta como
aquele pai autoritário, sujeitar-se a ele, exaltá-lo, deixar-se manipular e conceder-lhe
confiança, aparecem como suporte para seu vazio e sofrido interior emocional.

Há ainda os mecanismos de defesa da racionalização e da intelectualização, que


também mantêm o controle dos sentimentos pessoais, até talvez o momento em que a
somatização se manifeste no corpo. Esses mecanismos de defesa se relacionam
dinamicamente para manter resguardadas e protegidas as lembranças traumáticas do
adulto. A infância de sofrimento, se não for revisitada e vivenciada, e sim negada,
promoverá a repetição de um padrão de estabelecimento de relações. “Quanto maior
tiver sido o esvaziamento de sentimentos da infância, tanto maior deverá ser o arsenal
de armas intelectuais e o depósito de próteses morais [...].” (MILLER, 2006, p. 99).

Independentemente de sua instrução uma pessoa poderá despertar a busca de


satisfação dessas necessidades. Não estará protegida nem por sua intelectualidade nem
por alguém (sistema ou pessoa ditatorial) com quem se identificar. A contradição de
ideologias ou de correntes de pensamento não é percebida por seu intelecto se a vida
emocional dessa pessoa prima pela necessidade de se identificar, se proteger, se prender
a uma forma de explicar e organizar sua vida emocional para que suas próprias faltas

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não apareçam. A identificação de Martin Heidegger 14 com a ideologia fascista de Hitler,


que a muitos surpreende, é um dos exemplos citados por Miller para ilustrar esse
mecanismo, sobre o qual diz que “[...] a capacidade de não repelir o que foi percebido
não depende absolutamente da inteligência, mas sim do acesso ao verdadeiro self. Ao
contrário, a inteligência pode ajudar a efetuar inúmeros desvios, se for necessária uma
adaptação.” (MILLER, 2006, p. 55).

Assim, mesmo pensadores ilustres serão pegos por essa dinâmica emocional que
se inicia em sua infância e.

[...] é improvável que um trabalho de esclarecimento puramente intelectual e o


conhecimento na idade adulta possam ser suficientes para suprimir o condicionamento
tão precocemente realizado na infância. Quem, sob ameaça de vida, aprendeu na mais
tenra idade, a respeitar leis não escritas e a abrir mão de seus sentimentos, aprenderá
muito rapidamente a respeitar as leis escritas e a não encontrar proteção de si. Visto,
porém, que a pessoa não pode viver totalmente sem sentimentos, irá unir-se a grupos,
nos quais seus sentimentos até então proibidos serão legitimados ou mesmo exigidos e
poderão ser finalmente vivenciados de forma coletiva. (MILLER, 2006, p. 100).

Sua identificação com o grupo se fará a partir da forma submissa que


estabeleceu e construiu a relação com seus pais. Mas a forma submissa ainda se manterá
oculta e imperceptível para a própria pessoa, protegida pelo seu saber intelectual.
Assim,

[...] somente dentro do próprio grupo de que faz parte (por exemplo, ligado a uma
ideologia ou escola teórica), e que representa a situação familiar anterior, é que essa
pessoa preservará, sob certas circunstâncias, uma servidão cega e uma falta de senso
crítico totalmente estranhas a seu brilhantismo em outras situações. Na servidão e na
falta de senso crítico, continua existindo tragicamente a antiga dependência em relação
aos pais tiranos, que – assim como quer a “pedagogia negra” – permanece encoberta.
(MILLER, 2006, p. 55).

E, dessa forma, segundo a autora, “A educação se presta, em muitos casos, a


impedir o renascimento daquilo que outrora foi morto e desprezado na própria criança
que cada um traz em si.” (MILLER, 2006, p. 104).

14
Filósofo alemão (1889-1976). Foi assistente e colaborador de Edmund Husserl, fundador da
fenomenologia. Sua obra fundamental Ser e Tempo, de 1927, é dedicada a Husserl, que, porém, não a
aprovou. Heidegger se filiou e emprestou sua credibilidade intelectual ao Partido Nazista de Adolf Hitler.

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A quebra do ciclo

O caminho apontado por Miller (1997, 2004, 2006) para a quebra desse ciclo
vicioso é aquele que passa por uma experiência de encontro com uma pessoa empática
ao que vive ou viveu a criança. Ela chama essa pessoa de testemunha auxiliadora ou
conhecedora. Miller (2004) descreve que a testemunha auxiliadora

[...] é uma pessoa que ajuda uma criança maltratada, ainda que o faça apenas de forma
esporádica, oferecendo-lhe um pouco de apoio para contrabalançar a crueldade que
determina o seu dia a dia. Pode ser qualquer pessoa do entorno da criança: um
professor, uma vizinha, a empregada da casa ou a avó. Muito frequentemente são os
próprios irmãos. Essa testemunha é uma pessoa que dá um pouco de simpatia ou até
amor à criança maltratada ou negligenciada, não tem a intenção de manipulá-la com a
finalidade de educá-la, confiar nela e transmitir-lhe a sensação de que não é má e de que
merece ser tratada com gentileza. Graças a esta testemunha, que nem precisa ter
consciência do seu papel determinando e redentor, a criança começa a saber que neste
mundo existe algo como o amor. Nos casos mais bem-sucedidos, ela desenvolve a
confiança no seu semelhante e consegue preservar o amor, a bondade e outros valores
positivos da vida. (MILLER, 2004, prefácio).

São encontros com pessoas que possam ver que a criança que foi abusada,
desamparada e espancada não é doente como aqueles que circundaram dela. (MILLER,
2004, 2006).

A testemunha conhecedora seria este acompanhante da pessoa ou da criança que


possibilita que ela vivencie seu medo, ajudando-a a suportar a dor, orientado-a por meio
de suas próprias lembranças, mesmo quando surgem sentimentos fortes como a raiva, a
repulsa, a ira, dentre outros. Permite que ela possa se expressar e articular essas
vivências e se posicionar diferentemente diante de si mesma, do outro e da vida. “A
criança somente irá superar a injustiça que lhe foi impingida, não sofrendo
consequências graves, se ela puder se defender, isto é, se puder articular seu sofrimento
e sua raiva.” (MILLER, 2006, p. 15).

Ela precisa estabelecer relação do que significa sua raiva hoje com a sua história
em determinadas situações do passado para chegar a compreender porque não lhe foi
possibilitado conhecer esses sentimentos como uma estratégia de sobrevivência, porque

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foi induzida a negá-los. Essa testemunha é conhecedora porque consciente do processo


de ajuda a aceitação de uma verdade que talvez a criança ou o adulto não possa suportar
sozinho, para que não duvidem de sua história e vivência e levem a sério as emoções e
mensagens que seu corpo sinaliza15. Ela pode, inclusive, chegar a entender que ela
mesma contribuía para seu sofrimento não ser visto por outros. Uma habilidade que
desenvolveu para ocultar dos outros e de si mesma seus sentimentos, para se desligar de
suas necessidades. Para, simplesmente, diante de determinadas situações dolorosas, não
estar presente (MILLER, 2004). Essa testemunha

[...] é uma pessoa que conhece as consequências da negligência e dos maus tratos
sofridos pelas crianças. Por isso ela pode ajudar essas pessoas prejudicadas
transmitindo-lhes empatia, ajudando-as a entender melhor, a partir de suas histórias,
seus sentimentos incompreensíveis de medo e impotência, para que agora adultas
possam ter mais liberdade de fazer suas escolhas. [...] Dentre as testemunhas
conhecedoras estão alguns terapeutas, professores esclarecidos, advogados, consultores
e escritores”. (MILLER, 2004, prefácio).

Ser uma testemunha conhecedora significa oferecer um acompanhamento


íntegro, o que só pode ocorrer quando aquele que se coloca sente-se seguro diante do
outro. Não se caracteriza simplesmente por “medidas educacionais e uma boa
conversa.” (MILLER, 2004, p. 23) que se mostram insuficientes para ajudar a criança
escondida no adulto. Por isso, como dito anteriormente quando se descreveu o terapeuta
que possibilita uma terapia reveladora, essa testemunha conhece as partes de si mesmo e
não se fechará diante das histórias, dores, sintomas e adoecimentos da pessoa que

15
Para a autora o corpo abriga nossa história, do afeto aos maus tratos, desde os primeiros meses e
anos de vida. Não se deve duvidar do que ele sinaliza. Mensagens armazenadas que se estiverem
marcadas pela violência dificultam o reconhecimento da dor física como sinal de perigo, a orientação a
partir delas para fins de autodefesa. Isso pode também refletir prejudicialmente no sistema imunológico
da pessoa. (MILLER, 2004). “[...] nosso corpo conhece toda nossa história, e nossa alma abriga aquilo
que quer nos dominar e nos dirigir totalmente, como o que a criança aprende de seus pais nos primeiros
meses e anos de vida. Por isso o corpo não pode fazer outra coisa senão ceder, submeter-se e
obedecer.” (MILLER, 2004, p. 29). Serão estas as fontes também das doenças. O conflito entre os
diferentes saberes que guarda uma pessoa, no seu sistema cognitivo ou físico, reflete-se no seu sistema
imunológico. Compreender então a doença como parte da manifestação de uma vida emocional que
deve ser cuidada mediante a revelação de si mesmo. Miller (2004) fortalece um olhar limitadamente
orgânico sobre a manifestação da doença, perpetuando a comum postura impositiva dos profissionais
da área de sáude que compreendem o caminho que colocam ao paciente como única chance de
sobreviver a uma determinada doença.

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acompanha. E por ter um dia acessado seu próprio passado suportará que o passado do
outro possa aparecer16. De maneira que,

[...] cada vez mais conscientizava-se de que seus sintomas contavam-lhe uma história
da sua primeira infância e de que, para se aproximar dessa história, precisaria de um
acompanhamento. Percebeu que não conseguiria desvelar nem suportar sozinha as
dores daquela criancinha. Precisava encontrar uma testemunha a quem pudesse dizer:
“olhe, foi isso que me aconteceu”, e que estivesse disposta a levar a sério o ocorrido,
porque vivenciara algo semelhante na sua infância. (MILLER, 2004, p. 17).

É um caminho de saída árduo que passa pelo si mesmo. É aquele que possibilita
sair da prisão da infância, um caminho desconfortável, mas que liberta a pessoa de ser
vítima inconsciente do passado. Torna-a responsável e ciente de sua história de vida,
com a possibilidade de conviver com ela. A autora entende ser um fato não poder mudar
o passado. Não se pode voltar a ele, mas pode-se compreendê-lo e, com isso, não trazê-
lo e repeti-lo nas relações atuais, como uma procura pela segurança e aconchego que
não se teve na infância. “Pois, enquanto o adulto não puder perceber aquilo que lhe
aconteceu, uma parte de sua vida emocional estará congelada e sua sensibilidade em
relação às humilhações da infância estará, por isso, embotada.” (MILLER, 2006, p.3).
Se o adulto não conseguir algo próprio dele viverá à mercê, vítima deste movimento
cíclico e é nesse sentido que a psicoterapia aparece como possibilidade de quebra dessa
repetição.

A psicoterapia é apontada por Miller (2006) como caminho possível para o


retorno aos próprios sentimentos, que nos devolveria a vitalidade pelo resgate do
verdadeiro self. Diz a autora que é neste espaço que podemos chegar ao insigth
emocional de que todo o “amor” manifesto em admiração e “aceitação” estava

16
O terapeuta, reafirma Miller (2004), vai entender a linguagem dos sintomas de seu paciente quando
conseguir lidar abertamente com as próprias emoções ao ter acesso à sua infância, senão calará os
sintomas de seu paciente para não ver a si mesmo. Ele pode possibilitar a revelação por ser uma
testemunha empática que acompanha o paciente na descoberta de sua verdade. “O trabalho na história
da sua infância, negada e reprimida em muitos casos produz um certo alívio, sobretudo quando o
sofredor teve a sorte de encontrar uma pessoa empática que já desvendou emocionalmente a sua
própria história.” (MILLER, 2004, p. 12). Espera-se que o terapeuta, como já passou por determinados
obstáculos de sua própria negação, possa ajudar o paciente a reconhecer nele mesmo suas atitudes, em
vez de se identificar com ela. Ele permite que os temores do paciente ganhem espaço e não compartilha
da negação do paciente.

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104

condicionado ao que os adultos desejavam de nós, o que justifica todo esforço


empregado para manter nosso falso self. É quando entendemos que “[...] uma criança
precisa se adaptar a fim de obter a ilusão do amor, da atenção, do querer bem. O adulto
não precisa dessa ilusão para sobreviver. Ele pode encerrar sua cegueira a fim de passar
ao comando de suas ações de olhos abertos.” (MILLER, 1997, p.67).

Miller (2006) faz uma correlação com a lenda de Narciso e a lógica de fixação
no falso self. Ele ama sua imagem idealizada, reflexo enganoso, pois mostra apenas seu
lado perfeito, encobrindo outros, mas

[...] não são somente os sentimentos “bonitos”, “bons” e agradáveis que nos tornam
vitais, que aprofundam nossa existência e nos permitem insights decisivos, mas
exatamente aqueles sentimentos desagradáveis, “errados”, dos quais preferiríamos
escapar: impotência, vergonha, inveja, ciúme, confusão, raiva, luto. Sua paixão pelo seu
falso self impossibilita-o não apenas do amor pelo outro, mas também, por mais
incrível que isso possa parecer, pela pessoa que está inteiramente confiada a seus
cuidados: ele próprio. (MILLER, 1997, p. 68).

Nesse processo inicia-se o contato com esses sentimentos desagradáveis e


surgem as dúvidas da pessoa de como pode ter sido amada. E se ela não o foi pelo que
era, mas pelo seu comportamento amável, comportado, corajoso, compreensivo e
tolerante pode daí surgir o espaço para se decepcionar com aqueles que estiveram à sua
volta na infância. Pode parar de alimentar a imagem idealizada de seus pais, e deixar
chegar os sentimentos e dores antigas de um passado sempre presente. Sentimentos de
decepção, desespero, rebeldia, desconfiança e raiva ganham espaço para, enfim,
aparecerem. Na terapia permite ver-se livre da culpa, pois quando criança era senão
vítima e não responsável pelo que fizeram a ela. Permite entender que

[...] a necessidade interior de construir constantemente novas ilusões e negações, a fim


de evitar a vivência da própria verdade, desaparece se essa verdade for encarada e
vivenciada. Descobrimos, então, que passamos toda a vida temendo e nos defendendo
de algo que não pode acontecer - porque já aconteceu, isso no início de nossa vida,
quando éramos indefesos. (MILLER, 1997, p. 99).

Uma terapia reveladora é capaz de fazer com que esses sentimentos intensos do
presente encontrem relação com sua situação original e não sejam apenas mais vagas
lembranças do passado. Eles precisam ser novamente trazidos à vivência pois “[...] O

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reavivamento e a consciência dos sentimentos da infância não matam, libertam. O que


não raro mata é reprimir os sentimentos, cuja experimentação consciente poderia nos
revelar a verdade.” (MILLER, 1994, p.16). Permitir reencontrar sua história, considerá-
los válidos, já que “[...] precisamos de uma porta aberta ao nosso próprio passado para
perceber que só se pode entender uma vida quando se consegue levar a sério seu
começo.” (MILLER, 2004, p. 10).

Miller (1997) nos apresenta ainda, que o processo terapêutico vai muito além do
reconhecimento intelectual, aquele que nos mantém na esfera da ilusão, do falso self
(MILLER, 2004). Um processo que requer duas coisas: “[...] a confrontação com a
infância traumática e também a revelação dos inúmeros mecanismos de defesa, cuja
criação foi necessária para proteger a criança das dores insuportáveis.” (MILLER, 2004,
p. 34). A análise realizada na companhia de uma terapeuta auxilia a “[...] se
desvencilhar da intrincada ligação com seus pais até atingirem sua própria
personalidade separada deles” (MILLER, 2006, p. 12). Segundo um relato da autora,

[...] o senhor A. passou então a experimentar na análise um sentimento de raiva


impotente em relação às restrições nefastas de sua vida, proveniente da postura do pai.
[...] Encontrou-o em sua própria raiva e tristeza, nenhuma outra pessoa poderia contar-
lhe sobre ele, pois esse lado instável do pai só tinha a sua morada na psique de seu
filho, em sua neurose obsessiva. (MILLER, 2006, p. 108).

Na psicoterapia as vivências do passado se articulam e se manifestam no


presente. Oferece um espaço em que as pessoas possam se concentrar em seus
sentimentos, perceber a si mesmas e como se vinculam às pessoas, às ideologias e ao
mundo. Ajuda a entender que as reações adequadas às ofensas sofridas, às humilhações
e às violações precisaram ser suprimidas, e, portanto estas experiências não puderam ser
integradas à sua personalidade. Seus sentimentos permaneceram reprimidos e há a
necessidade de articulá-los. Caso contrário, a busca contínua de satisfação permanecerá
desesperançosa (MILLER, 2006).

Assim, para Miller (1997), o sentido da terapia não está em corrigir o drama do
paciente, mas possibilitar seu confronto e o luto desse drama. O objetivo é alcançado
quando o paciente tiver recuperado sua vitalidade. Em seguida, diz ela, cabe a cada um,
por si mesmo, decidir o que fazer da própria vida, seja no âmbito profissional,
emocional ou social, porque “[...] não é nossa tarefa “socializá-lo” ou “educá-los” (nem

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politicamente, pois toda a forma de educar é um tipo de tutela) nem possibilitar-lhe


amizades, pois tudo isso compete apenas ao próprio paciente”. (MILLER, 1997, p. 105).
Eles poderão participar de grupos sem se sentir desamparados ou dependentes, sem se
vincular e seguir cegamente sistemas e ideologias, estabelecer relações correndo menos
o risco de idealizar as pessoas e poderão reconhecer e considerar mais rapidamente os
sentimentos do outro. Poderão se sentir menos ameaçados e menos ameaçar o outro.
“Enfim a pessoa que sabe lidar honestamente com seus sentimentos, sem autoenganar-
se, não precisa disfarçá-los com ideologias e, por isso, é inofensiva às outras.”
(MILLER, 1997, p.107).

Como o ciclo vicioso apontado por Miller (1997, 2004, 2006) outro ciclo inversamente
pode se dar: o do desenvolvimento saudável. Apenas este possibilita a empatia.
Segundo a autora,

[...] as pessoas que realmente puderam crescer num ambiente


empático (o que é muito raro, pois até pouco tempo atrás não se sabia
o quanto uma criança pode sofrer) ou aquelas que mais tarde criaram
um objeto empático dentro de si próprias poderão ser mais abertas ao
sofrimento de outros ou, ao menos não contestá-los. Isso seria uma
condição necessária para que as antigas feridas pudessem sarar e para
que não fossem encobertas com o auxílio da próxima geração.
(MILLER, 2006, p. 75).

Desenvolvimento saudável então significa que

[...] as pessoas que não tiveram sua integridade violada na infância,


que puderam experimentar com seus pais proteção, respeito e
sinceridade serão, na adolescência e também mais tarde, inteligentes,
sensíveis, empáticas e terão alta capacidade de percepção. Terão
alegria de viver e não sentirão necessidade de prejudicar ou mesmo de
matar alguém, ou a si próprias. Usarão seu poder para se defender,
mas não para agredir os outros. Serão sempre capazes de dar atenção e
proteção aos mais fracos e, portanto também, a seus filhos, porque
elas mesmas experimentaram isso um dia e porque esse conhecimento
(e não a crueldade) estará armazenado nelas desde o princípio. Tais
pessoas nunca serão capazes de entender por que seus antepassados
tiveram outrora de montar uma indústria bélica para se sentirem bem e

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seguros nesse mundo. Visto que a defesa contra as ameaças anteriores


não constitui tarefa inconsciente em suas vidas, elas poderão lidar com
as ameaças de forma mais racional e criativa. (MILLER, 2006, p. 7).

O sentimento de segurança e o aconchego dado pelo adulto são as condições básicas,


segundo Miller, do desenvolvimento da autoconfiança da criança. Se ela foi vista como
realmente era, compreendida, tolerada e respeitada em seus sentimentos, poderá
desenvolver um narcisismo saudável. Os componentes vitais da estrutura de uma
relação como esta envolvem principalmente segurança, continuidade e constância, para
que uma criança possa vivenciar seus sentimentos e emoções. Segundo Miller (1997,
2004, 2006) a criança pode então integrar estes sentimentos e emoções e não aliená-los
no passado. Pode se posicionar diante do mundo e das pessoas tendo como chão a
confiança no seu si mesmo. Ela terá suprido as necessidades naturais de sua idade e não
terá que suprir as necessidades dos adultos que a rodeiam. Ela poderá, quando adulto,
ser surpreendida por emoções inesperadas e compreender e aceitá-las como parte de si,
como sentimentos saudáveis – mesmo que não seja por si só bons – e por isso integrá-
los. Isso porque esses sentimentos foram aceitos e não negados e proibidos pelo adulto
que lhe cuidava na infância. Isso dá à pessoa equilíbrio e autoestima, podendo expressar
suas emoções, sem receio de ser amada e odiada por isso, sem medo de deixar a outra
pessoa insegura por isso. Assim,

[...] as pessoas que, desde o início, tiveram possibilidade e permissão,


na sua infância, de reagir adequadamente, ou seja, com raiva, às dores,
ofensas e frustrações que lhes foram infringidas de forma consciente
ou inconsciente irão manter essa capacidade de reagir adequadamente
também na idade madura. Quando adultas, serão capazes de sentir e
de verbalizar quando alguém lhe fizer mal. (...) Uma pessoa que
compreende que a raiva é uma parte de si mesma e que consegue
integrá-la não se torna violenta. Só terá necessidade de bater nos
outros se justamente não conseguir entender sua raiva, se não pode
familiarizar-se com esse sentimento quando ainda era uma criança
pequena, se nunca pode vivenciá-lo como uma parte de si mesma,
porque isso era completamente impensável em seu entorno.
(MILLER, 2006, p. 78).

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A criança precisa ser acompanhada quanto ao aspecto psíquico e físico numa relação
que, em grande medida, deve conter os seguintes elementos: atenção em relação às
crianças, respeito pelos seus próprios direitos, tolerância com seus sentimentos e
disposição para aprender com seu comportamento (MILLER, 2006).

Na situação em que a pessoa encontra uma outra que lhe quer determinar algo do qual
discorde, ela conseguirá se posicionar, “[...] justamente porque cresceu sem ser iludida e
sem sofrer maus-tratos na infância, a pessoa não precisou vivenciar esse padrão reativo,
e desenvolveu a capacidade de enxergar manipulações inconscientes.” (MILLER, 2004,
p. 75). Ela se permite questionar, e colocar isso ao outro, tolera contradições, e não
assume a acusação do outro, reconhecendo seu medo e não se submetendo a este. Isso
também se refletiria na sua saúde como um todo, inclusive orgânica, pois permite-se
que expresse suas emoções (MILLER, 2004).

Considerações finais

O pensamento de Alice Miller cobre diferentes ângulos da compreensão sobre a


ação de educar incitando-nos a discutir as relações que educam, das relações que
constituem essa ação, entender a tragicidade que um ciclo vicioso geracional pode
causar, inclusive socialmente, assim como apontar para caminhos de saída deste ciclo,
não descreditando do próprio desenvolvimento saudável do ser humano.

Sem deixar de responsabilizar a pessoa que educa, tentou-se compreender que


sua ação de educar passa por questões e dificuldades que dizem de sua própria trajetória
social, histórica e pessoal. Isso permite acolher a própria natureza, por vezes ambígua e
conflitante, que está no seio de suas ações. A autora aponta para a necessidade de
acendermos nossa capacidade de exercer um papel crucial da dinâmica de estar mais
ciente de si, de suas possibilidades e dificuldades na relação com o outro, é uma
condição que pode estimular nossa participação efetiva e interação com o outro em
nossa comunidade, nosso mundo.

Para Miller é incipiente alargar espaços e tempos que nos permita ver como
mergulhados nesse mundo, mesmo que de forma determinante e pouco reflexiva, que
possibilite desenvolver a proximidade da pessoa de seu si mesmo. Nesse sentido,
oferece compreensão que abraça a necessidade de quebra do ciclo vicioso na afirmação

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na busca da autenticidade das pessoas, na potencialização de saberes de si como


transformadores também de uma realidade.

Esse olhar de perspectiva relacional e geracional abre-se para ir além de se reafirmar


perante o outro, apoderar-se, mas de voltar-se para si mesmo e reconhecer sua atitude,
que pode ter premências para formar, mas que também pode estar cheia de
possibilidades verdadeiramente transformadoras de um ciclo que irrefletidamente se
repetiria. O que nos permite ter vistas de entender que somos parte do mundo, que é
objeto intencional deste homem, e que situado no mundo ao mesmo tempo sofre a ação
deste, mas pensa este mundo, age nele e a ele transforma.

ALICE MILLER:
on the cycle of illness and the action of educating

ABSTRACT
This article is the result of a conceptual research, of a reflexive and critical nature,
through which it was sought to know the propositions of the Polish author Alice Miller
on what she understands as a cycle of emotional illness and its implications for the
action of educating. The research was done through the attentive reading of three of his
works: The drama of the well endowed child (1997), The truth liberta (2004) and In the
beginning was the education (2006). In this article, we present the author, her
publications and reflections on the subject of emotional illness and the action of
educating. We explain concepts present in his works that allow us to understand
children's circumstances that determine the human illness of generational character, the
consequences of this for the relational and social life, as well as the possibilities of exit
from this cyclical process for a healthy development.

ALICE MILLER:
Sobre el ciclo de la enfermedad y la acción de educar.
RESUMEN
Este artículo es el resultado de una investigación conceptual de naturaleza reflexiva y
crítica a través de la cual se pretendía conocer las propuestas de la autora polaca Alice
Miller sobre lo que ella entiende como el ciclo de la enfermedad emocional y sus
implicaciones para la acción de educar. La investigación se realizó a través de la lectura
atenta de tres de sus obras: El drama del niño bien dotado (1997), La verdad liberta
(2004) y Al principio fue la educación (2006). En este artículo, presentamos a la autora,
sus publicaciones y reflexiones sobre el tema de la enfermedad emocional y la acción de
educar. Explicamos conceptos presentes en sus obras que nos permiten entender las
circunstancias infantiles que determinan la enfermedad humana de carácter
generacional, las consecuencias de esto para la vida relacional y social, así como las
posibilidades de salir de este proceso cíclico para un desarrollo saludable.

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Palabras clave: Alice Miller. Ciclo de la enfermedad. Educar

Keywords: Alice Miller. Cycle of illness. To educate.

Referências

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Távola On Line. 10 nov. 2011. Disponível em:
<http://nucleotavola.com.br/revista/escrevendo-a-clinica-quem-e-alice-miller/>. Acesso
em fev. 2013.

MANSUR, B. A Geração Baby Boomers. 10 set. 2011. Disponível em:


<http://betomansur.zip.net/> . Acesso em 10 mar. 2013.

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deformar) a vida emocional dos filhos. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo:
Summus Editora, 1997.

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______. Retrato de Alice Miller: Sobre la realidad de la infancia, 2008. Blog Alice
Miller, Child abuse and mistreatment. Disponível em: <http://www.alice-
miller.com/index_es.php>. Acesso em 15 maio 2013.

______ . Alice Miller - Communication To My Readers. International Primal


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Acesso em 15 maio 2013.

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