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ALICE MILLER:
sobre o ciclo do adoecimento e a ação de educar
Resumo
Este artigo resulta de uma pesquisa conceitual de natureza reflexiva e crítica por meio
da qual buscou-se conhecer as proposições da autora polonesa Alice Miller a respeito do
que ela entende ser o ciclo de adoecimento emocional e suas implicações para a ação de
educar. A pesquisa se deu por meio da leitura atentiva de três de suas obras: O drama
da criança bem dotada (1997), A verdade liberta (2004) e No princípio era a educação
(2006). Neste artigo, apresentamos a autora, suas publicações e reflexões relativamente
ao tema do adoecimento emocional e da ação de educar. Explicitamos conceitos
presentes em suas obras que nos permitem compreender as circunstâncias infantis que
determinam o adoecimento humano de caráter geracional, as consequências desse
estendidas à vida relacional e social, assim como as possibilidades de saída desse
processo cíclico para um desenvolvimento saudável.
Palavras-chave: Alice Miller. Ciclo de adoecimento. Educar.
Introdução
A educação tem instado diferentes áreas do conhecimento a se pronunciar, pois
revela problemas manifestados nos mais diversos âmbitos sociais. Se em um passado
não tão distante predominavam práticas abertamente autoritárias e antidialógicas,
sancionadas por concepções idealistas, hoje há preocupações contrárias a essa tradição,
que divergem das diretrizes que têm por objetivo adaptar o ser humano à ordem social
estabelecida. Ainda assim é preciso avançar na compreensão da educação como prática
social que reconhece a singularidade do homem e compreende a educação a partir das
1
Psicóloga clínica
2
Professora titular aposentada da UFMG.
o sistema social vigente e que contribuem para constituí-lo, que atravessam relações,
instituições e sistemas (MILLER, 2006).
Olhar para nós mesmos, diz Miller (1997; 2006), é investigar e aceitar nosso
passado, é percorrer o caminho para um mundo mais democrático. Assim, diz: “O
futuro da democracia depende dessas iniciativas individuais. Enquanto não
conseguirmos clarificar nossos sentimentos, de nada adiantará apelar para o amor e a
razão.” (MILLER, 1997, p. 106). Esse seria, segundo a autora, o caminho para um
mundo mais justo para todos, pois “[...] pessoas que estão dispostas a escavar suas
Miller teve treze livros publicados em sua língua materna até seu falecimento,
aos 76 anos. Já foi traduzida para trinta idiomas. Cinco de seus livros foram traduzidos
3
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Miller>. Acesso em fev. 2013.
4
Disponível em <http://nucleotavola.com.br/revista/escrevendo-a-clinica-quem-e-alice-miller/> e
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Miller >. Acesso em fev. 2013
para o português5. Entretanto, ainda é pouco conhecida e estudada no Brasil, não apenas
no campo da Psicologia, mas de outras áreas, para as quais oferece grandes
contribuições, como a Sociologia e a Educação.
5
Livros de Alice Miller publicados no Brasil:
- O Drama da Criança Bem Dotada: Como os pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos
filhos, Summus Editora, 1997, 2ª edição revista e atualizada.
- No Princípio era a Educação. Editora Martins Fontes, 2006. No original, em alemão: Am anfang war
erziehung, 1990.
- A verdade liberta. Editora Martins Fontes, 2004.
- Não Perceberás: Variações sobre o tema do paraíso. Editora Martins Fontes, 2006. No original, em
alemão: Du sollst nicht merken. Variationen über das Paradies, 1981.
- A Revolta do Corpo. Martins Fontes, 2011. No original, em alemão: Die revolte des körpers, 2004.
dela que devem ser considerados e divulgados. Por exemplo, pela Medicina,
Psicoterapia, Política, Sistema Penal, Educação Religiosa e Pesquisas Biográficas.
Miller (2004) entende que há um grande tabu para se falar da infância, quando, na
verdade, essa fase da vida humana seria um manancial de ricas informações que
poderiam determinar ações mais efetivas nessas áreas. Despercebidas como tal, elas não
lidam com o que de fato poderia possibilitar saídas para problemas enfrentados nesses
campos.
6
Alemã que aos doze anos iniciou-se no vício do consumo de heroína e que por ele foi levada à
prostituição. O livro Eu, Christiane F., 13 anos drogada e prostituída, resultado de uma entrevista que
concedeu a jornalistas durante duas horas, tornou-se um sucesso mundial.
Bartsch7, estratégia que a autora utilizou para aproximar o leitor da compreensão das
crueldades por eles realizadas contra o outro e/ou contra si mesmos mostrando suas
raízes na primeira infância. Segundo ela, “Todos os três destinos atestam o papel
devastador da educação, sua aniquilação da vivacidade, seu perigo para a sociedade.”
(MILLER, 2006, p. 4).
Para Miller (2006) esse livro vai ao encontro do direito que todos têm de saber
sobre o que se passa de fato nos consultórios dos analistas. Cuidando de resguardar o
sigilo, ela entendia que apresentar o que testemunhou no consultório não é algo que diz
respeito apenas à vida de pessoas doentes ou com perturbações mentais, dentro do
setting psicanalítico8, mas a todos nós que fomos um dia impedidos de exercer nossa
vivacidade. Entendia que o que vivenciou em sua experiência clínica está na vida e deve
ser revelado como possibilidade diferente de se conhecer o desenvolvimento emocional
das pessoas.
A autora faz ao leitor para pensar o voltar-se para si mesmo como caminho que
possibilita o aparecimento do outro na relação. Ela considera que, se um eu não se olha,
não se reconhece, não se integra. Se ele não se reconhece, não se legitima e, portanto,
não possibilita que o outro possa ser além dos enquadramentos que se deseja que o
outro faça.
7
Pedófilo e assassino em série alemão. Órfão, foi adotado aos onze meses de idade, tendo sofrido maus
tratos na infância e desenvolvido tendências sádicas.
8
Proposições metodológicas, técnicas e éticas sobre como realizar o trabalho clínico na Psicanálise.
9
“Baby Boom é uma definição genérica para crianças nascidas durante uma explosão populacional” -
Baby Boom significa em inglês “explosão de bebês”. Dessa forma, quando definimos uma geração como
Baby Boomer é necessário definir a qual Baby Boom, ou explosão populacional estamos nos referindo.
Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boom>. Acesso em mar. 2012.
10
Disponível em http://betomansur.zip.net/. Acesso em 10 mar. 2013.
12
Ainda segundo Mansur (2011) pertencente ao mundo capitalista, essa geração foi atingida pelos
projetos políticos e econômicos, tanto liberais, quanto assistencialistas, e pela nova cultura conceituada
de American Dream – conjunto complexo de valores sociais de acordo com o padrão capitalista
industrial e pós-industrial de se viver. (...) Significativamente, são pessoas que fizeram parte de uma
história social consequente de promessas de paz e harmonia que o final da Segunda Guerra apresentou,
já que, naquele período, as conquistas dos Direitos Sociais foram muito evidentes. Em função disso,
tivemos casamentos de jovens com idades entre 18 e 21 anos, os quais imediatamente tiveram filhos,
que não seriam preparados para as guerras e sim para o trabalho. De acordo com os estudiosos, para
cada 10 famílias passaram a existir em média 61 filhos, o que se conceituou de “explosão de recém-
nascidos”, ou de “Baby Boomers”. (...) Daí, se foi por intenção ou por naturalidade, passamos a segunda
metade do século XX convivendo com novos elementos nas classes sociais, que foram educados e
ensinados conforme os padrões de um sistema capitalista que promoveu marcante globalização de
comportamento e de valores sociais.
daquilo que a autora chama de Pedagogia Negra consiste e tem por objetivo a não
conscientização do próprio sofrimento vivido na infância. Miller (2006) acredita que a
ideologia desse tipo de educação é assim reproduzida e legitimada, e não questionada.
Isso é, por não compreendermos em nós mesmos a situação vivida na primeira infância,
legitimamos os maus tratos sofridos pela criança e quando os designamos de
“educação” acreditamos que a bem-sucedida educação é aquela que produz corpos
dóceis, bem-comportados, que assimilaram os princípios dessa educação. Por esse
motivo a autora se posiciona: “[...] minha postura antipedagógica não está voltada
contra um tipo específico de educação, mas contra a educação em geral, mesmo contra a
educação antiautoritária.” (MILLER, 2006, p. 112). Para ela não se trata, porém, de
crescer de forma totalmente selvagem, sem limite, mas de entender que se desenvolver
pressupõe princípios fundamentais como ter o respeito das pessoas de referência,
receber a tolerância por seus sentimentos e sensibilidade. Isso pressupõe atenção aos
mais fracos, respeito diante da vida e suas leis.
Miller considera que há valores que não podem ser relativizados quando
acompanhamos e somos responsáveis por uma criança. Por isso, ela questiona o
pressuposto de que há alguns valores sagrados à educação. Ela argumenta que há
valores quase universamente enraizados na tradição judaico-cristã e que costumam ser
relativizados pelo adulto quando este lança mão de determinadas posturas e atitudes sob
a justificativa de que está realizando educação. São esses valores que, para Miller
(2004, 2006), devem ser abandonados, pois são os abstratos da ética religiosa ou mesmo
filosófica, que nos dificulta voltar para a realidade psíquica, não acessar sua história e
compreender o preço emocional que uma pessoa paga para seguir e reproduzi-los. Tais
valores são passados de geração em geração, principalmente pelo fio condutor do
sistema social e das relações entre educadores e educandos, inclusive as familiares. A
autora centra sua atenção especialmente nos pais e mães como educadores e nos filhos
como os educandos e explica que
E ainda “[...] designo como “mãe” a pessoa de referência mais importante para a
criança em seus primeiros anos de vida. Não precisa necessariamente ser a mãe
biológica, tampouco ser mulher.” (MILLER, 2006, p 14). Ou seja, diz respeito a todos
que no entorno da criança assumirem funções de educadores.
13
Self: em Psicologia, refere-se à representação cognitiva e afetiva da própria identidade que o sujeito
desenvolve a partir de sua experiência. O falso self é mecanismo de defesa como forma funcional de
sobrevivência da criança desarmada diante das manipulações do adulto que a faz se adaptar ao meio e,
portanto, aos que a rodeiam. A capacidade adaptativa, diz Miller (2006), está inclusive na não
possibilidade de demonstrar suas angústias. Tal adequação leva ao desenvolvimento do falso self, de
modo que a pessoa se funda numa postura construída do que sempre foi esperado dela. Uma
construção auto-enganosa. Os adultos encontram nesse falso self desenvolvido na criança a satisfação
das necessidades que buscavam. A criança é admirada não pelo que é, mas pelo que se esforça para ser.
O verdadeiro self não pode ser vivido, se desenvolver e se diferenciar. Decorre daí um verdadeiro
sentimento de vazio, falta de sentido e desenraizamento que Miller testemunha na clínica.
Daí a necessidade de a infância ser levada a sério e não tratada como um tabu,
como ocorre muitas vezes nas sociedades em geral e nas diversas áreas do
conhecimento. A criança precisa ter suas necessidades legitimadas, ser notada e
compreendida e ser respeitada pelo adulto. Ser olhada como alguém indefeso e não
como possibilidade de realização dos projetos e expectativas do adulto, de ser a
circunstância para acalmar os medos desse adulto. Ser alguém que possa aprender a ver
e a ser si mesmo e não ver e ser conforme as necessidades do outro.
A autora apresenta diversos motivos que impedem a quebra desse ciclo que
denuncia. Há os de natureza emocional, como os mecanismos de defesa. Há os de
natureza social, como o pressuposto universal de que filhos devem amar, respeitar e
corresponder ao que seus pais desejam sempre, ou aceitar acriticamente. Há os
pressupostos religiosos que reforçam tais crenças. Há a necessidade de manter
idealizada a imagem de pais amorosos e a premissa social de que o “amor” justifica
todas as ações dos pais se o objetivo é educar o filho, cumprindo a importante função de
evitar que entrem em contato com o próprio sofrimento infantil. Diz, então, Miller: “A
crença irracional em imagens tradicionais de amor e de moral presta-se bem para
esconder ou reprimir os fatos reais da própria história.” (MILLER, 1997, p. 51) .
abriga aquilo que se quis velar, esconder e dominar. O corpo cede, se submete e
obedece àquilo que lhe foi ensinado nos primeiros meses e anos de vida, mas também
trará os conflitos do que a criança vivenciou durante sua vida (MILLER, 2004).
[...] quanto mais cedo é aplicada a violência, mais permanente é o efeito do que foi
aprendido e menos ele consegue ser controlado pela mente consciente. Por isso basta
que surja a primeira oportunidade, a primeira ideologia obtusa, para liberar a
brutalidade mais bestial em pessoas que até então se comportavam com tranquilidade e
submissão, mas que provavelmente viviam com fortes agressões reprimidas, cujo
verdadeiro motivo elas desconheciam. Isso nos deve induzir a refletir e a empreender
indispensáveis pesquisas nessa direção. (MILLER, 2004, p. 41).
Miller (1997) apresenta, assim, a criança como uma refém dessa situação. Ela se
tornará também na fase adulta refém de suas próprias emoções e sentimentos. Os
sentimentos da infância serão revividos pelo adulto como vagas lembranças, mas
estarão presentes. Estarão presos a elas, mas afastados. Quando adulto, da mesma forma
que quando criança dependeu de seus pais para ser aceito, estará preso à aceitação de
outras pessoas, como seus companheiros, amigos, grupos ou ideologias. Dessa infância
emocional trágica emergem adultos e, por vezes, pais. O ciclo é renovado e não
quebrado. Já com seus próprios filhos, por serem eles indefesos, podem então passar a
manipular, em vez de ser manipulado. O ciclo assim se fecha e ganha continuidade.
Para Miller,
[...] podemos educar um filho para que ele se torne o que gostaríamos que fosse.
Podemos usar o filho para ganharmos respeito, para confiarmos a ele nossos próprios
sentimentos, para nos espelharmos em seu amor e deslumbramento, para nos sentirmos
fortes a seu lado [...]. Sentimo-nos enfim, no centro das atenções. (MILLER, 1997, p.
22).
[...] provavelmente, todas as pessoas têm em si uma câmara interior, mais ou menos
escondida, na qual se encontram os elementos de seus dramas da infância. Os únicos
que certamente terão acesso a essa câmera serão seus filhos. Eles trazem vida nova para
o lugar, e a história pode continuar (MILLER, 1993, p. 34).
[...] eu diria hoje a todas as mães: não fiquem aflitas se as suas mãos de repente
escorregarem; vocês passaram muito cedo por essas experiências dolorosas, isso
acontece quase automaticamente, e geralmente vocês conseguem corrigir um erro
quando o reconhecem e o assumem. Mas nunca digam aos seus filhos que o fizeram
para o bem deles, porque assim estarão construindo para a estupidificação e o sadismo
velado. (MILLER, 2004, p. 76).
O ciclo se perpetua, diz Miller (1997, 2006), pelo fato de o adulto não saber de
sua história, especificamente de sua infância e, portanto, não estar ciente de suas
determinações. Isso o leva a temer e a evitar as experiências que vivenciou na infância e
que, hoje, não existem mais. Preso a lembranças e a determinadas necessidades
inconscientes de tempos passados, vive durante a vida a reprodução dos maus tratos
sofridos.
Para Miller (1997, 2006) a negação encontra-se aliada à forma de como tais
pessoas se relacionam pervertidamente com drogas, grupos, cultos e ideologias, o que
caracteriza o mecanismo do deslocamento, que para ela é “[...] a essência da adaptação
ou da obediência (em que) nada se altera com a simples troca de seu objeto.” (MILLER,
1997, p. 99).
Assim, mesmo pensadores ilustres serão pegos por essa dinâmica emocional que
se inicia em sua infância e.
[...] somente dentro do próprio grupo de que faz parte (por exemplo, ligado a uma
ideologia ou escola teórica), e que representa a situação familiar anterior, é que essa
pessoa preservará, sob certas circunstâncias, uma servidão cega e uma falta de senso
crítico totalmente estranhas a seu brilhantismo em outras situações. Na servidão e na
falta de senso crítico, continua existindo tragicamente a antiga dependência em relação
aos pais tiranos, que – assim como quer a “pedagogia negra” – permanece encoberta.
(MILLER, 2006, p. 55).
14
Filósofo alemão (1889-1976). Foi assistente e colaborador de Edmund Husserl, fundador da
fenomenologia. Sua obra fundamental Ser e Tempo, de 1927, é dedicada a Husserl, que, porém, não a
aprovou. Heidegger se filiou e emprestou sua credibilidade intelectual ao Partido Nazista de Adolf Hitler.
A quebra do ciclo
O caminho apontado por Miller (1997, 2004, 2006) para a quebra desse ciclo
vicioso é aquele que passa por uma experiência de encontro com uma pessoa empática
ao que vive ou viveu a criança. Ela chama essa pessoa de testemunha auxiliadora ou
conhecedora. Miller (2004) descreve que a testemunha auxiliadora
[...] é uma pessoa que ajuda uma criança maltratada, ainda que o faça apenas de forma
esporádica, oferecendo-lhe um pouco de apoio para contrabalançar a crueldade que
determina o seu dia a dia. Pode ser qualquer pessoa do entorno da criança: um
professor, uma vizinha, a empregada da casa ou a avó. Muito frequentemente são os
próprios irmãos. Essa testemunha é uma pessoa que dá um pouco de simpatia ou até
amor à criança maltratada ou negligenciada, não tem a intenção de manipulá-la com a
finalidade de educá-la, confiar nela e transmitir-lhe a sensação de que não é má e de que
merece ser tratada com gentileza. Graças a esta testemunha, que nem precisa ter
consciência do seu papel determinando e redentor, a criança começa a saber que neste
mundo existe algo como o amor. Nos casos mais bem-sucedidos, ela desenvolve a
confiança no seu semelhante e consegue preservar o amor, a bondade e outros valores
positivos da vida. (MILLER, 2004, prefácio).
São encontros com pessoas que possam ver que a criança que foi abusada,
desamparada e espancada não é doente como aqueles que circundaram dela. (MILLER,
2004, 2006).
Ela precisa estabelecer relação do que significa sua raiva hoje com a sua história
em determinadas situações do passado para chegar a compreender porque não lhe foi
possibilitado conhecer esses sentimentos como uma estratégia de sobrevivência, porque
[...] é uma pessoa que conhece as consequências da negligência e dos maus tratos
sofridos pelas crianças. Por isso ela pode ajudar essas pessoas prejudicadas
transmitindo-lhes empatia, ajudando-as a entender melhor, a partir de suas histórias,
seus sentimentos incompreensíveis de medo e impotência, para que agora adultas
possam ter mais liberdade de fazer suas escolhas. [...] Dentre as testemunhas
conhecedoras estão alguns terapeutas, professores esclarecidos, advogados, consultores
e escritores”. (MILLER, 2004, prefácio).
15
Para a autora o corpo abriga nossa história, do afeto aos maus tratos, desde os primeiros meses e
anos de vida. Não se deve duvidar do que ele sinaliza. Mensagens armazenadas que se estiverem
marcadas pela violência dificultam o reconhecimento da dor física como sinal de perigo, a orientação a
partir delas para fins de autodefesa. Isso pode também refletir prejudicialmente no sistema imunológico
da pessoa. (MILLER, 2004). “[...] nosso corpo conhece toda nossa história, e nossa alma abriga aquilo
que quer nos dominar e nos dirigir totalmente, como o que a criança aprende de seus pais nos primeiros
meses e anos de vida. Por isso o corpo não pode fazer outra coisa senão ceder, submeter-se e
obedecer.” (MILLER, 2004, p. 29). Serão estas as fontes também das doenças. O conflito entre os
diferentes saberes que guarda uma pessoa, no seu sistema cognitivo ou físico, reflete-se no seu sistema
imunológico. Compreender então a doença como parte da manifestação de uma vida emocional que
deve ser cuidada mediante a revelação de si mesmo. Miller (2004) fortalece um olhar limitadamente
orgânico sobre a manifestação da doença, perpetuando a comum postura impositiva dos profissionais
da área de sáude que compreendem o caminho que colocam ao paciente como única chance de
sobreviver a uma determinada doença.
acompanha. E por ter um dia acessado seu próprio passado suportará que o passado do
outro possa aparecer16. De maneira que,
[...] cada vez mais conscientizava-se de que seus sintomas contavam-lhe uma história
da sua primeira infância e de que, para se aproximar dessa história, precisaria de um
acompanhamento. Percebeu que não conseguiria desvelar nem suportar sozinha as
dores daquela criancinha. Precisava encontrar uma testemunha a quem pudesse dizer:
“olhe, foi isso que me aconteceu”, e que estivesse disposta a levar a sério o ocorrido,
porque vivenciara algo semelhante na sua infância. (MILLER, 2004, p. 17).
É um caminho de saída árduo que passa pelo si mesmo. É aquele que possibilita
sair da prisão da infância, um caminho desconfortável, mas que liberta a pessoa de ser
vítima inconsciente do passado. Torna-a responsável e ciente de sua história de vida,
com a possibilidade de conviver com ela. A autora entende ser um fato não poder mudar
o passado. Não se pode voltar a ele, mas pode-se compreendê-lo e, com isso, não trazê-
lo e repeti-lo nas relações atuais, como uma procura pela segurança e aconchego que
não se teve na infância. “Pois, enquanto o adulto não puder perceber aquilo que lhe
aconteceu, uma parte de sua vida emocional estará congelada e sua sensibilidade em
relação às humilhações da infância estará, por isso, embotada.” (MILLER, 2006, p.3).
Se o adulto não conseguir algo próprio dele viverá à mercê, vítima deste movimento
cíclico e é nesse sentido que a psicoterapia aparece como possibilidade de quebra dessa
repetição.
16
O terapeuta, reafirma Miller (2004), vai entender a linguagem dos sintomas de seu paciente quando
conseguir lidar abertamente com as próprias emoções ao ter acesso à sua infância, senão calará os
sintomas de seu paciente para não ver a si mesmo. Ele pode possibilitar a revelação por ser uma
testemunha empática que acompanha o paciente na descoberta de sua verdade. “O trabalho na história
da sua infância, negada e reprimida em muitos casos produz um certo alívio, sobretudo quando o
sofredor teve a sorte de encontrar uma pessoa empática que já desvendou emocionalmente a sua
própria história.” (MILLER, 2004, p. 12). Espera-se que o terapeuta, como já passou por determinados
obstáculos de sua própria negação, possa ajudar o paciente a reconhecer nele mesmo suas atitudes, em
vez de se identificar com ela. Ele permite que os temores do paciente ganhem espaço e não compartilha
da negação do paciente.
Miller (2006) faz uma correlação com a lenda de Narciso e a lógica de fixação
no falso self. Ele ama sua imagem idealizada, reflexo enganoso, pois mostra apenas seu
lado perfeito, encobrindo outros, mas
[...] não são somente os sentimentos “bonitos”, “bons” e agradáveis que nos tornam
vitais, que aprofundam nossa existência e nos permitem insights decisivos, mas
exatamente aqueles sentimentos desagradáveis, “errados”, dos quais preferiríamos
escapar: impotência, vergonha, inveja, ciúme, confusão, raiva, luto. Sua paixão pelo seu
falso self impossibilita-o não apenas do amor pelo outro, mas também, por mais
incrível que isso possa parecer, pela pessoa que está inteiramente confiada a seus
cuidados: ele próprio. (MILLER, 1997, p. 68).
Uma terapia reveladora é capaz de fazer com que esses sentimentos intensos do
presente encontrem relação com sua situação original e não sejam apenas mais vagas
lembranças do passado. Eles precisam ser novamente trazidos à vivência pois “[...] O
Miller (1997) nos apresenta ainda, que o processo terapêutico vai muito além do
reconhecimento intelectual, aquele que nos mantém na esfera da ilusão, do falso self
(MILLER, 2004). Um processo que requer duas coisas: “[...] a confrontação com a
infância traumática e também a revelação dos inúmeros mecanismos de defesa, cuja
criação foi necessária para proteger a criança das dores insuportáveis.” (MILLER, 2004,
p. 34). A análise realizada na companhia de uma terapeuta auxilia a “[...] se
desvencilhar da intrincada ligação com seus pais até atingirem sua própria
personalidade separada deles” (MILLER, 2006, p. 12). Segundo um relato da autora,
Assim, para Miller (1997), o sentido da terapia não está em corrigir o drama do
paciente, mas possibilitar seu confronto e o luto desse drama. O objetivo é alcançado
quando o paciente tiver recuperado sua vitalidade. Em seguida, diz ela, cabe a cada um,
por si mesmo, decidir o que fazer da própria vida, seja no âmbito profissional,
emocional ou social, porque “[...] não é nossa tarefa “socializá-lo” ou “educá-los” (nem
Como o ciclo vicioso apontado por Miller (1997, 2004, 2006) outro ciclo inversamente
pode se dar: o do desenvolvimento saudável. Apenas este possibilita a empatia.
Segundo a autora,
A criança precisa ser acompanhada quanto ao aspecto psíquico e físico numa relação
que, em grande medida, deve conter os seguintes elementos: atenção em relação às
crianças, respeito pelos seus próprios direitos, tolerância com seus sentimentos e
disposição para aprender com seu comportamento (MILLER, 2006).
Na situação em que a pessoa encontra uma outra que lhe quer determinar algo do qual
discorde, ela conseguirá se posicionar, “[...] justamente porque cresceu sem ser iludida e
sem sofrer maus-tratos na infância, a pessoa não precisou vivenciar esse padrão reativo,
e desenvolveu a capacidade de enxergar manipulações inconscientes.” (MILLER, 2004,
p. 75). Ela se permite questionar, e colocar isso ao outro, tolera contradições, e não
assume a acusação do outro, reconhecendo seu medo e não se submetendo a este. Isso
também se refletiria na sua saúde como um todo, inclusive orgânica, pois permite-se
que expresse suas emoções (MILLER, 2004).
Considerações finais
Para Miller é incipiente alargar espaços e tempos que nos permita ver como
mergulhados nesse mundo, mesmo que de forma determinante e pouco reflexiva, que
possibilite desenvolver a proximidade da pessoa de seu si mesmo. Nesse sentido,
oferece compreensão que abraça a necessidade de quebra do ciclo vicioso na afirmação
ALICE MILLER:
on the cycle of illness and the action of educating
ABSTRACT
This article is the result of a conceptual research, of a reflexive and critical nature,
through which it was sought to know the propositions of the Polish author Alice Miller
on what she understands as a cycle of emotional illness and its implications for the
action of educating. The research was done through the attentive reading of three of his
works: The drama of the well endowed child (1997), The truth liberta (2004) and In the
beginning was the education (2006). In this article, we present the author, her
publications and reflections on the subject of emotional illness and the action of
educating. We explain concepts present in his works that allow us to understand
children's circumstances that determine the human illness of generational character, the
consequences of this for the relational and social life, as well as the possibilities of exit
from this cyclical process for a healthy development.
ALICE MILLER:
Sobre el ciclo de la enfermedad y la acción de educar.
RESUMEN
Este artículo es el resultado de una investigación conceptual de naturaleza reflexiva y
crítica a través de la cual se pretendía conocer las propuestas de la autora polaca Alice
Miller sobre lo que ella entiende como el ciclo de la enfermedad emocional y sus
implicaciones para la acción de educar. La investigación se realizó a través de la lectura
atenta de tres de sus obras: El drama del niño bien dotado (1997), La verdad liberta
(2004) y Al principio fue la educación (2006). En este artículo, presentamos a la autora,
sus publicaciones y reflexiones sobre el tema de la enfermedad emocional y la acción de
educar. Explicamos conceptos presentes en sus obras que nos permiten entender las
circunstancias infantiles que determinan la enfermedad humana de carácter
generacional, las consecuencias de esto para la vida relacional y social, así como las
posibilidades de salir de este proceso cíclico para un desarrollo saludable.
Referências
______. No Princípio era a Educação. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006.
______. Retrato de Alice Miller: Sobre la realidad de la infancia, 2008. Blog Alice
Miller, Child abuse and mistreatment. Disponível em: <http://www.alice-
miller.com/index_es.php>. Acesso em 15 maio 2013.