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Universidade do Minho

Escola de Direito

Reflexão sobre o Direito de Audição e de Participação da Criança

Trabalho realizado no âmbito da Unidade Curricular “Da infância e dos Direitos”

Mestrado em Direito das Crianças, Família e Sucessões


Catarina da Silva Arteiro Serra (PG52406)

Dezembro de 2023
Índice
Introdução ............................................................................................................................ 2
1. A evolução do conceito de família....................................................................................... 3
2. A mutação do conceito de infância tendo em consideração a criança ........................................ 4
3. A criança enquanto sujeito de direitos ................................................................................. 6
4. O Direito de audição e de participação da criança em Portugal ................................................ 7
5. Jurisprudência................................................................................................................ 9
Conclusão .......................................................................................................................... 11
Bibliografia.......................................................................................................................... 11

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Introdução

O presente trabalho tem como principal objetivo a elaboração de uma reflecção crítica sobre
os conceitos abordados durante as lições da Unidade Curricular “Da infância e dos Direitos”,
nomeadamente, o conceito de família, infância, criança, direitos, proteção e participação. Ora, a
abordagem destes diferentes conceitos não será feita de modo individual nem estanque, na
medida que estes estão interligados e relacionados entre si.

Com a evolução dos tempos, a sociedade contemporânea tem sofrido transformações e


alterações significativas nos conceitos e estruturas que fundamentam a compreensão de
instituições fundamentais, como a família e a infância. A evolução desses conceitos reflete, não
só, as mudanças culturais, sociais e econômicas, mas também evidência a crescente necessidade
de considerar a criança como um sujeito ativo na construção de sua própria identidade e no
desenvolvimento de sua autonomia. Com o tempo, as perceções sobre o que constitui uma família
têm se alargando, indo para além do modelo tradicional nuclear. Sendo que esse contexto
diversificado desafia as conceções convencionais, estimulando uma reflexão profunda sobre o
papel da família na formação e no amadurecimento das crianças.

Neste sentido, procuramos fazer uma compreensão da infância como uma fase essencial da
vida da criança. Assim, a criança emerge como um sujeito de direitos, dotada de autonomia e
dignidade, cujas necessidades e perspetivas merecem ser consideradas de maneira integral. Ora,
na atualidade todos os instrumentos jurídicos internos e internacionais reconhecem a criança
como um sujeito de direitos, tal como plasmado na Convenção sobre os Direitos da Criança. Desta
forma, pretendemos analisar as inovações trazidas por esta Convenção para a concretização dos
direitos da criança, nomeadamente quanto ao seu direito de participação e de audição.
Pretendemos analisar se o que está consagrado, relativamente a estes direitos específicos de
participação e de audição, é de facto cumprido pelos Tribunais no decorrer dos processos judiciais.
Neste seguimento, pretendemos analisar situações reais, recorrendo à jurisprudência, e verificar
se o direito de audição e de participação da criança é real e se está ou não a ser cumprido.

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1. A evolução do conceito de família

O conceito de família ultrapassa fronteiras culturais e temporais, sendo um conceito bastante


complexo e de uma difícil definição, tendo em conta a multiplicidade intricada de relações,
sentimentos e responsabilidades que surgem em volta dele. Tradicionalmente, o conceito de
família surge associado à união de sujeitos ligados através de laços sanguíneos, no entanto, este
conceito tem-se alterado e desenvolvido ao longo dos tempos, acabando por refletir as mutações
sociais e culturais sofridas no mundo.

No Código Civil não temos uma definição do conceito de família, não obstante, este
diploma legal diz-nos quais são as fontes das relações familiares no seu artigo 1576º, sendo elas
o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção. Ora, aqui pode-nos interessar para a discussão
em apreço o conceito de casamento e o de parentesco, que estão intrinsecamente ligados ao
conceito de família. Ora, nos termos do artigo 1577º o casamento trata-se de “um contrato
celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão
de vida”. E, nos termos do art.1578º do Código Civil, o conceito de parentesco é definido como
“o vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da outra ou de
ambas procederem de um progenitor comum”. Podemos concluir que a visão clássica deste
diploma legal relativamente ao conceito de família se baseia em vínculos biológicos e matrimoniais.
No entanto, sabemos que, atualmente, a família é muito mais do que isto. Vivemos num mundo
onde este conceito é cada vez mais elástico e inclusivo, deixando aos poucos as conceções
tradicionais, onde era exigida uma grande persistência na manutenção das relações familiares,
como por exemplo, o casamento.

Em oposição ao que acontecia no passado, hoje observamos que a sociedade está mais
preocupada com o individuo singular ao invés da estabilidade familiar. Isto deve-se muito ao
desenvolvimento da sociedade. Não raras vezes os sujeitos colocam à frente o desenvolvimento
pessoal e profissional do que a constituição de uma família, sendo pais cada vez mais tarde. No
passado, as famílias alargadas e com muito filhos eram sinónimo de mais riqueza, no sentido em
que havia mais pessoas no seio familiar que podiam contribuir para o sustento da casa. Desta
forma, as crianças eram desejadas, mas vistas como um “mini-adulto”, ajudando na gestão
familiar. Hoje, com aumento do custo do nível de vida, com a formação profissional e escolar cada
vez mais exigente e necessária, prolongada pelo tempo, com a necessidade e a ânsia de progredir
na carreira verificamos que a constituição de uma família é deixada para segundo plano ou
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constituindo um plano mais tardio na vida das famílias. Hoje temos menos crianças e concluímos
isso a cada ano que passa, na medida em que a taxa bruta de natalidade tem vindo a diminuir
ano após ano.

Por outro lado, com a evolução social vemos que têm vindo a existir novos tipos de famílias
a par da família nuclear/ tradicional constituída por pai, mãe e filhos. Desta forma, tem havido um
grande aumento das famílias monoparentais, onde apenas existe um pai ou uma mãe. A par deste
tipo, tem surgido também um acréscimo excecional das famílias reconstituídas, devendo-se ao
elevado número de divórcios em Portugal, sendo que na sequência de uma nova união onde já
existem filhos, surge aqui a presença da figura do padrasto ou da madrasta.

Em suma, não é possível encontrar uma definição estanque para o conceito de família, na
medida em que este, apesar de ter ainda traços tradicionais, concluímos que no seu cerne as
relações familiares vão-se alterando ao longo do tempo, tendo em conta as mutações sociais e
culturais que ocorrem na sociedade.

2. A mutação do conceito de infância tendo em consideração a


criança

Tal como o conceito de família, também o conceito de criança passou por uma metamorfose
ao longo dos séculos, tendo de se adaptar e moldar às transformações sofridas a nível social e
cultural da humanidade. Assim, o que compreendemos hoje como “infância” trata-se do produto
de um desenvolvimento complexo que espelha as mudanças nas perceções individuais dos
cidadãos e também das organizações que compõem a nossa sociedade.

No passado, a infância era, não raras vezes, subsumida pela vida adulta, uma vez que as
crianças eram consideras um “mini-adulto”, sendo pequenos aprendizes com a função de
aprender o mais rápido possível os valores e os conhecimentos dos adultos e da comunidade em
que a família estava inserida. Os filhos tinham de se submeter às vontades dos pais, sendo que
as crianças não tinham os mesmos direitos do que os adultos. Neste contexto, para estas crianças,
a infância era fase que passava muito rápido, não tendo estas tempo para brincar o suficiente,
vendo esta possibilidade ser deixada para trás mais depressa do que o realmente desejado, à
medida que as responsabilidades aumentavam precocemente.

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No entanto, com o advento de vários movimentos filosóficos e sociais que ocorreram
durante o Iluminismo e o Romantismo, a perceção da criança e da finalidade na sociedade
começou a alterar. Neste seguimento, a infância começou a ser tida como uma fase deveras
importante para o desenvolvimento e formação da criança, na qual a educação e o afeto dos pais
eram cruciais. Aqui falamos da era da “criança-rei” onde esta era o centro da relação familiar,
onde a sua opinião era tida em conta. Já no século XX este conceito continuou a sofrer alterações
e a evoluir progressivamente por forma a dar resposta às mudanças que se faziam sentir na
sociedade. O desenvolvimento da psicologia infantil, chefiado por autores como Piaget e Freud
deu um grande contributo para uma melhor compreensão e um entendimento mais completo das
complexidades do desenvolvimento infantil. Começaram a surgir organizações a nível internacional
em busca da proteção dos direitos do Homem, incluindo aqui também os direitos da criança.

Atualmente, o século XXI encara a infância como uma fase única e valiosa na vida da
criança, sendo que as sociedades contemporâneas procuram encontrar um equilíbrio entre a
proteção da inocência infantil e, por outro lado, o estímulo do desenvolvimento autónomo. A
tecnologia tem aqui um papel ativo, na medida em que veio introduzir novas formas de
aprendizagem e interação na infância, no entanto, não podemos descurar que têm existido vários
problemas com a exposição das crianças e a segurança online. Cremos que tem de haver aqui
uma utilização ponderada e consciente do uso das tecnologias na infância das crianças.

Claro está que esta abordagem que fizemos acerca da evolução do conceito da infância é
vista de um prisma ocidental, considerado privilegiado tendo em conta outras culturas. Não
podendo descurar que existem e sempre vão existir crianças que vivem em situações de pobreza
extrema, que são maltratadas, que passam fome e miséria, etc., sendo que nesses casos estas
crianças acabam por não ter sequer infância. Desta forma, não podemos ignorar que estas
realidades existem.

Assim, verificamos que a constante mutação do conceito de criança consiste num


testemunho da capacidade da sociedade em se adaptar a aprender com o passado. Sendo que à
medida que o futuro se aproxima, é imperativo que o ser humano continue a dar valor à infância,
reconhecendo esta fase como uma riqueza que molda a sociedade.

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3. A criança enquanto sujeito de direitos

Atualmente, as crianças são vistas como verdadeiros sujeitos de direitos, dotadas de


personalidade jurídica. Tal conclusão pode ser retirada de várias fontes de direito internacional
que regulam o Direito das Crianças, nomeadamente, a Convenção dos Direitos da Criança de
1989, de onde se retira que a criança é titular de direitos, tal como um adulto, podendo exercê-
los de acordo com a sua crescente autonomia. No entanto, nem sempre foi assim, visto que houve
uma longa e árdua caminha para se conseguir chegar a esta conclusão que hoje é tida como
assente.

Ora, esta caminha iniciou-se sobretudo no século XVIII, marcado pela Revolução Francesa
e pela promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Assim, a
Declaração dos Direitos do Homem foi o grande instrumento impulsionador dos movimentos de
defesa e proteção do povo, incluindo aqui as crianças. No entanto, a criança era vista como um
sujeito carente de proteção, mas não como um sujeito de direitos. Por conseguinte, o Século XIX
conduz normas que “visam a proteção e o desenvolvimento das crianças, considerando a sua
dignidade e necessidade de proteção jurídica especial, devido à sua fragilidade e dependência”1

No entanto, foi o século XX que impulsionou a concretização destes direitos, sendo este o
século de afirmação dos Direitos da Criança. Ora, o primeiro documento internacional que teve
por objetivo a proteção destes direitos foi a Declaração de Genebra de 1924, onde se previa o
bem estar das crianças, o normal desenvolvimento, alimentação, saúde e proteção contra a
exploração2. Embora isto estivesse tipificado o certo é que as diretrizes da Declaração não eram
vinculativas e não foram apreendidas por grande parte dos Estados-Membros. Posteriormente,
surgiu também a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e a Declaração dos
Direitos da Criança de 1959. Já após a 2º Guerra Mundial a ONU (Organização das Nações Unidas)
veio apresentar uma recomendação para que a Declaração dos Direitos das Crianças fosse
atualizada, sendo então criada a UNICEF (United Nations International Children´s Emergency
Fund)3.

1
VIANNA, Silvana Correa – A Audição da Criança na Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, P 19.
2 ALBUQUERQUE, Catarina – Os direitos da Criança: as Nações Unidas, A Convenção e o Comité, in Portal do
Ministério Público, Gabinete de Documentação e Direito Comparado, P 1.
3 UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. http://nacoesunidas.org/agencia/unicef/

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Não obstante, é a Convenção sobre os Direitos da Criança o documento jurídico
internacional mais completo e crucial para o reconhecimento dos direitos da criança, “reafirmando
no seu Preâmbulo os princípios fundamentais já enunciados na Convenção de Genebra e na
Declaração sobre os Direitos da Criança”. 4

A Convenção veio introduzir diversos princípios fundamentais, no entanto, nesta exposição


vamos dar uma maior enfase ao Princípio da Participação e da Audição da Criança (artigo 12º).
Assim, o direito de audição e de participação constituiu um dos grandes pilares da Convenção,
juntamente com o direito à não discriminação, o direito à vida, e ao desenvolvimento integral da
sua personalidade. Desta forma, relacionando aqui os vários Princípios, concluímos que o Direito
de Participação e de Audição da Criança acaba por ser meio para concretizar o Princípio do
Superior Interesse da Criança. Acabamos por verificar que existe já uma consciencialização
coletiva e internacional de que a criança é um verdadeiro sujeito de direitos e que tem de ser tida
em conta nas decisões que a ela dizem respeito. No entanto, cumpre-nos analisar se na prática
são reconhecidas às crianças a possibilidade de intervirem, exercendo os seus direitos,
nomeadamente o direito de participação e de audição, uma vez que o law in the book acaba por
não ser o mesmo do que o law in the action.

4. O Direito de audição e de participação da criança em Portugal

Portugal constitui um dos Estados-Membros que ratificou a Convenção sobre os Direitos Da


Criança, sendo que a mesma acabou por entrar em vigor no nosso ordenamento jurídico em 1990.
Ora, nos termos do artigo 12º da Convenção, na sua redação atual, “Os Estados Partes garantem
à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre
as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da
criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.

Desta forma, quando a lei permite que a criança seja ouvida e que a mesma participe nos
assuntos que a ela lhe afetam significa reconhecê-la como um verdadeiro sujeito de direitos, tendo
a mesma o direito a falar, a expressar a sua opinião e, ainda, a ser escutada, por forma a envolver-
se ativamente nos processos judiciais. Ora, por forma a realizar este direito é, por outro lado, tido
em consideração a idade da criança, o seu nível de desenvolvimento, a sua maturidade e

4 VIANNA, Silvana Correa – A Audição da Criança na Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, P 38.

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discernimento, isto é, é necessário aferir a capacidade da criança para compreender a situação e
conseguir perceber a sua opinião. Assim, tal como é mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça5 “se antes da entrada em vigor da Lei nº 141/2015 se exigia que o tribunal ouvisse as
crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem idade inferior, ponderasse a sua
maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a criança tivesse uma idade em que
é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a sua entrada em vigor
essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando a ser dispensada quando
for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha”.

Assim, nos processos judiciais, o direito de participação e de audição da criança é efetivado


através de um diálogo com a criança, podendo esta expressar de forma livre a sua opinião. No
entanto, têm de ser criadas condições para que a criança se sinta confortável a falar perante um
terceiro que lhe é alheio e que a mesma desconhece, por forma a que a mesma não se sinta
desconfortável. Neste seguimento, o Comité dos Direitos das Crianças fez uma recomendação no
sentido de explicar como é que a criança deve ser ouvida: “ao fornecimento e transmissão de
informações adaptadas às crianças, à provisão de apoio adequado para a defesa dos próprios
interesses, à formação adequada de pessoal, ao desenho de tribunais, à vestimenta de juízes e
advogados e a disponibilidade de telas de proteção visual e salas de espera separadas” (Comité
dos Direitos das Crianças das Nações Unidas, 2009 6). Ora, por forma a acolher a recomendação
do Comité, Portugal veio a alterar a lei nº141/2015 - Regime Geral do Processo Tutelar Cível – no
sentido de concretizar a forma como a criança deve ser ouvida.

Neste sentido, no ordenamento jurídico português, temos várias concretizações do Direito de


Audição e de Participação da Criança. Tal como já mencionado supra encontramos no Regime
Geral do Processo Tutelar Cível, nos artigos 4º e 5º, uma concretização deste princípio
fundamental. Nos termos do artigo 4º, nº1, alínea c) um dos princípios orientadores deste regime
é o princípio da audição e da participação da criança, sendo que “a criança, com capacidade de
compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre
ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria
técnica do tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por

5
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de dezembro de 2016, Processo nº268/12.0TBMGL.C1.S1,
disponível em www.dgsi.pt., consultado em 02/12/2023.
6
General Comment nº12 (2009, The right of the child to be heard, disponível em G0943699.pdf, consultado em
02.12.2023.

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adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse”. E o artigo 5º contém uma série de
números e de alíneas que concretizam regras para a execução da audição da criança nos
processos tutelares cíveis.

Também encontramos disposições legais neste sentido na Lei de Proteção de Crianças e


Jovens em Perigo, nomeadamente no art.4º, alínea j), que à semelhança do RJPTC também
consagra aqui o Princípio da audição e participação da criança como um princípio orientador. Já
no artigo 84º do diploma está concretizado que “as crianças e jovens são ouvidos pela comissão
de proteção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à
aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção”. A par destes diplomas
nacionais temos outros, nomeadamente, no âmbito do processo judicial de adoção (artigo 3º e
54º, nº1, alínea c) do Regime Jurídico do Processo de Adoção), onde o adotando deve ser
obrigatoriamente ouvido pelo juiz, com a presença do Ministério Público, sendo necessário o
consentimento do adotando maior de 12 anos (artigo 1981º, nº1, alínea a) do Código Civil); no
âmbito do processo de apadrinhamento civil (artigo 11º, nº6 e artigo 14º, nº4, alínea a) do Regime
Jurídico do Apadrinhamento Civil), sendo que a audição da criança é obrigatória, sendo necessário
o seu consentimento quanto seja maior de 12 anos; no âmbito da intervenção tutelar educativa
(artigo 47º e 96º da Lei Tutelar Educativa), onde a audição é sempre realizada por uma autoridade
judiciária; por fim, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais (artigo 1878º, nº2;
1901º, nº3), onde, de acordo com a sua maturidade, a criança tem direito a expressar a sua
opinião relativamente aos “assuntos familiares importantes”, assim como “reconhecer-lhes
autonomia na organização da própria vida”, sendo que quando os pais que estão casados não
cheguem a acordo relativamente às questões de particular importância, e a conciliação não for
possível, o “tribunal ouvirá o filho antes de decidir, salvo quando circunstâncias ponderosas o
desaconselhem”.

Conseguimos verificar que, aparentemente, a criança é ouvida e tida em consideração nos


processos judiciais que lhe dizem respeito, no entanto, será que na prática isto é mesmo assim?
Veremos!

5. Jurisprudência

Analisando a mais recente jurisprudência verificamos que, não raras vezes, os Tribunais
proferem sentenças onde há preterição de formalidades, nomeadamente, quanto ao direito de

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audição e de participação da criança, sendo este um direito fundamental, reconhecido tanto a
nível interno como a nível internacional, como já mencionado e explicado supra. Desta forma,
vamos analisar alguma desta jurisprudência!

O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto7 surge no seguimento de um processo de regulação


do exercício das responsabilidades parentais relativamente 2 menores, um de 11 anos e outro de
10 anos. No caso em apreço, o Tribunal a quo veio proferir uma decisão sem, contudo, ter
procedido à audição dos menores, nomeadamente aquando da realização da conferência de pais
e, por outro lado, o mesmo nunca apresentou qualquer justificação para a sua não audição. Desta
forma, o tribunal veio a “julgar a apelação procedente, anulando a decisão recorrida e determinado
que o processo baixe à 1ª instância a fim de ou serem ouvidas as crianças, se a sua capacidade
de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição”.

Ademais, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8 surge também num processo de


regulação do exercício das responsabilidades parentais, no entanto, aqui, o Tribunal da Comarca
de Viseu decidiu aplicar uma medida de confiança a instituição com vista a futura adoção. Ora,
esta decisão veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pois “considerou que os
factos provados demonstram cabalmente que os menores se encontravam em situação de perigo
dada a falta grave e reiterada de cuidados elementares aos menores, nomeadamente em relação
à saúde, alimentação e educação”. No entanto, foi interposto recurso de revista excecional, sendo
que os recorrentes “suscitaram a questão de os menores não terem sido ouvidos no processo”.
Desta forma, o Supremo Tribunal de Justiça anulou o acórdão recorrido e determinou que o
processo baixasse a fim de, “ou serem ouvidos os menores, se a sua capacidade de compreensão
assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição”.

Assim, a par destes dois acórdãos temos muitos outros onde verificamos que, na realidade, o
direito de audição da criança acaba por não ser exercido na prática, sendo que muitas vezes não
há sequer uma justificação fundamentada pelo juiz acerca da não audição da criança. É imperioso
mudarmos esta mentalidade!

7 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de maior de 2022, Processo nº 526/21.2T8SJM-B.P1, disponível


em www.dgsi.pt., consultado em 02/12/2023.
8 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de dezembro de 2016, Processo nº268/12.0TBMGL.C1.S1,

disponível em www.dgsi.pt., consultado em 02/12/2023.

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Conclusão
Concluindo, a evolução do conceito de infância ao longo dos séculos permite-nos refletir sobre
a importante mutação da sociedade, reconhecendo a criança como um sujeito de direitos. Sendo
que a consolidação do princípio da audição e participação da criança, tanto no contexto nacional
como no internacional, constitui um marco importante na promoção do superior interesse da
criança e na garantia dos seus direitos fundamentais.

Não obstante, após o aqui exposto constata-se uma desconexão entre a teoria jurídica e a
prática nos tribunais, evidenciando desafios substanciais na implementação efetiva destes
princípios. Sendo que a falta de formação adequada dos magistrados para lidar com questões que
envolvam a audição e a participação da criança nos processos judiciais acaba por comprometer a
aplicação plena dos direitos destes. Desta forma, parece-nos imperativo um esforço contínuo na
formação e na sensibilização dos profissionais do sistema judiciário, por forma a estes
compreenderem a importância crucial da audição da criança nos processos judiciais que a ela
digam respeito. Além do mais, é também crucial incentivar a criação de espaços adaptados e
seguros para que as crianças se sintam confortáveis a dar a sua opinião, livre de qualquer coação.

Cremos que a materialização efetiva do direito de audição e participação da criança requer


um comprometimento coletivo, envolvendo diversas áreas do saber, nomeadamente, legisladores,
profissionais do direito, educadores, sociólogos, psicólogos, médicos e, acima de tudo, a
comunidade em geral. Só assim, através desta abordagem integrada, é que podemos garantir que
a ideia contemporânea da criança como sujeito de direitos, seja plenamente respeitada e aplicada
nos contextos jurídicos. Só assim é que teremos o fortalecimento de uma sociedade mais justa e
comprometida com o bem-estar das gerações futuras.

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Catarina – Os direitos da Criança: as Nações Unidas, A Convenção e o


Comité, in Portal do Ministério Público, Gabinete de Documentação e Direito Comparado.

DIAS, Cristina Araújo, BARROS, João Nuno, CRUZ, Rossana Martingo - Regime Geral do
Processo Tutelar Cível: anotado, Almedina, 2021

Manual da Audição da Criança – Direito a ser ouvida – Assessoria Técnica aos Tribunais
– Área Tutelar Cível; Versão 01 – janeiro 2017.
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RIBEIRO, Alcina Costa – O Direito de Participação e Audição da Criança No Ordenamento
Jurídico Português, in Data Venia, Revista Jurídica Digital, nº4, dezembro de 2015.

VIANNA, Silvana Correa (2017) – A Audição da Criança na Regulação do Exercício das


Responsabilidades Parentais (Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho),
RepositóriUM – Repositório da Universidade do Minho. https://hdl.handle.net/1822/76456

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