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Introdução
A diferença de gênero foi definida de formas distintas ao
longo do tempo e do espaço, muitas vezes, como a partir do
século XVIII, se apoiando em determinadas marcas corporais a
fim de naturalizá-la como imutável. Os diversos conhecimentos
desenvolvidos pela humanidade, incluindo a ciência, fizeram parte
desse processo de constituição da diferença de gênero desde a
Antiguidade até os dias atuais. Como aponta Thomas Laqueur
(2001), que efetua uma história das ideias acerca da construção
da diferença sexual entre homens e mulheres da Antiguidade até
o século XIX: “A ciência não investiga simplesmente, ela própria
constitui a diferença” (p. 28). Até o século XVIII, as diferenças entre
homens e mulheres eram marcadas mais pelo comportamento do
que pelo sexo, o corpo. Na verdade, acreditava-se que homens e
3 mulheres possuíam o mesmo sexo, mas com níveis de perfeição
distintos. Laqueur (2001) denominou esta concepção de “modelo
do sexo único”. Enquanto isso, a partir do final do século XVIII,
predomina o “modelo de dois sexos”, em que homens e mulheres
passaram a ser definidos como seres opostos e diferentes a
partir da sua formação biológica imutável. Desde então, a ciência
vem buscando em determinadas marcas corporais o cerne da
masculinidade e da feminilidade.
Os médicos eram responsáveis por identificar as distinções
corporais de ambos os sexos. Não só a genitália, mas todas as
partes do corpo servem para definir o sexo e as suas diferenças.
As diferenças definidas pela natureza eram irredutíveis e não
poderiam ser modificadas por qualquer ação social. A biologia,
portanto, se sobressairia sobre a ordem social (LAQUEUR, 2001).
Fabíola Rohden (2001), ao pesquisar a produção científica sobre
a diferença sexual no Brasil do século XIX, nota que a medicina,
19 19 20 20 19 19 20 20 19 19 20 20
80 90 00 10 80 90 00 10 80 90 00 10
DÉCADA
1 5 6 14 1 3 3
Philosophi-
cal Tran-
sactions of
the Royal 1
Society B:
Biological
Sciences
Cerebral
1 1 1 1
Cortex
Journal of
Neuropa-
thology and
1 1
Experi-
mental
9 Neurology
PERIÓDICO
Revista
Diagnóstico
& Trata-
mento
The journal
of neuros- 1 1 1 1
cience
Neuros-
cience and
1
Biobehavio-
nal Reviews
The
behavioral
1
and Brain
Science
Proceedings
of the Natio-
nal Academy 2
of Sciences
(PNAS)
Develo-
pmental
Cognitive 1
Neuros-
cience
NeuroImage 1 2
Human
Brain 1
Maping
SCAN 1
PERIÓDICO
Neuroscien-
1
ce Letter
10 Cortex 1
Epigenomics 1
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sileira de
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trícia
Arquivos
Brasileiros
de Endocri-
1
nologia e
Metabo-
logia
Endocrino-
1
logy
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Neuroscien-
ce Research
Intelligence 1 2
Persona-
lity And
2
Individual
Differences
PERIÓDICO
Biological
1
Psychiatry
Neuros-
1
cience
Hormones
and Beha- 1
vior
11
Predomínio
4 4 10 1 1
de homens
AUTORIA
Predomínio
de mulhe- 1 1 2 1 1 2 2 1
res
Não identi-
3
ficados
INGLÊS 1 5 6 14 1 3 2 1
IDIOMA
PORTUGUÊS 1 1
ESPANHOL
TOTAL 26 4 6
15
GRÁFICO 4: Autoria de homens e mulheres na teoria hormonal ao
longo das décadas.
19
23
A diferença sexual cerebral: as teorias neurocientíficas
acerca do tamanho cerebral de homens e mulheres
Entre os artigos de neurociência, de língua inglesa, das
décadas de 1990 a 2010 analisados, observei que tanto a diferença
de tamanho e volume cerebral entre homens e mulheres quanto
as suas consequências para ambos os sexos se constituem em
objetos de controvérsias, e não em fatos instituídos, na medida em
que mobilizam suas condições de produção a partir de referências
a outros autores e realizam diferentes testes com o objetivo de
“comprovar” suas hipóteses.
Dentre os artigos analisados, o zoólogo Claude Davison
Ankney (1992), contestando Ho et al. (1980), defende que o cérebro
dos homens seria maior que o das mulheres mesmo comparando
com o peso e o tamanho da superfície corporal. O peso cerebral
feminino seria 100g mais leve que o masculino. “Clearly, at any given
surface area or height, brains of white men are heavier than those
of white women, as are brains of black men compared to those
of black women [Claramente, em qualquer área de superfície ou
altura, os cérebros dos homens brancos são mais pesados do que
os das mulheres brancas, assim como os cérebros dos homens
negros em comparação com os das mulheres negras].” (ANKNEY,
1992, p. 331). Segundo o autor, o tamanho cerebral estaria
relacionado com a “inteligência de modo geral”, mas haveria um
paradoxo na medida em que as mulheres se saem melhores em
testes de QI. Diante disso, o autor propõe algumas hipóteses que
podem explicar este paradoxo: 1) As mulheres possuiriam uma
maior eficiência que os homens e, por isso, estes precisariam de
mais 100g para obter as mesmas habilidades; 2) Os testes de QI
podem estar, tendenciosamente, favorecendo as mulheres; 3)
Homens e mulheres diferem em habilidades específicas e aquelas
24
em que os homens são melhores podem exigir maior esforço
do sistema cerebral do que aquelas em que as mulheres são
melhores. Com isso, Ankney (1992) acatou a tese de que não há
diferença de inteligência de modo geral entre ambos os sexos, mas,
para explicar a diferença de tamanho defende a última hipótese.
Assim, os homens seriam melhores em habilidades espaciais,
matemáticas e de raciocínio, já as mulheres seriam melhores em
habilidades verbais, espaço pessoal e coordenação motora.
O trabalho de Richard Lynn (1993), por sua vez, defende
ainda que, além da superioridade na inteligência, os homens
também seriam superiores nas habilidades em que as mulheres
são consideradas melhores, como as atividades verbais:
27
We hypothesize that ‘spatial brains’ would tend to be larger
in absolute terms, due to an increase in GMV enabling more
‘powerful’ spatial performance. Instead, ‘verbal brains’ would
show higher GM–WM ratios, not requiring additional energy-
consuming brain tissue and preserving an efficient size.
(BURGALETA, 2012, p. 67).4
Considerações Finais
A neurociência, portanto, se constitui numa ciência que
compartilha da mitologia segundo a qual o indivíduo, a sua
personalidade individual, se localiza no seu cérebro. Além disso,
acreditam que todos os fenômenos da vida humana, desde a
inteligência até as diferenças entre homens e mulheres, podem ser
explicados a partir do e localizados no cérebro. Com isso, os estudos
analisados são responsáveis por uma redução biológica e pela
naturalização de questões sociais mais complexas. Ao defenderem
29 que as mulheres possuem inteligência inferior aos homens
devido ao tamanho e volume do seu cérebro ou são melhores
em habilidades verbais enquanto os homens se sobressaem em
habilidades espaciais e de raciocínio, estes estudos corroboram
com a marginalização e a exclusão da mulher de postos mais altos
no mercado de trabalho e nas carreiras científicas de ciências
exatas.
Com o objetivo de persuadir o leitor de que um enunciado é
um fato, os artigos científicos são construídos sem fazer referência
aos processos sociais e históricos da sua constituição, como ao
contexto em que são produzidos, e a partir da utilização de testes
e instrumentos frutos de fatos já consolidados no meio acadêmico.
Pelo contrário, como aponta Fausto-Sterling (1992),
5 No cerne da questão “Quem é mais inteligente, homens ou mulheres?” há decisões mentirosas sobre como ensinar leitura e matemá-
tica, sobre se meninos e meninas devem frequentar escolas separadas, sobre escolhas de emprego e carreira e, como sempre, sobre
dinheiro - quanto os empregadores terão que pagar a quem e quais salários os funcionários, homens e mulheres, podem comandar.”
(FAUSTO-STERLING, 1992, p. 13, tradução nossa).
6 “Nesse quadro, a sociedade emerge como equitativa e justa. Não há discriminação significativa de salários ou de empregos. A capa-
cidade determina a distribuição da renda; a pobreza resulta da incompetência individual. Nem há nada de errado com a forma como
nosso sistema educacional funciona. Se as mulheres fazem mal em matemática é porque seus cérebros funcionam de forma diferente.”
(FAUSTO-STERLING, 1992, p. 206, tradução nossa).
7 “Somente em uma sociedade totalmente comprometida com a equidade educacional podemos desenvolver programas de pesquisa
que se concentrem no processo de aprendizagem e ensino, e não na possibilidade de deficiências raciais ou sexuais inerentes. Somente
em uma cultura totalmente comprometida com a igualdade econômica e social podemos ter programas de pesquisa que examinam
o comportamento no contexto da possibilidade presente e futura, em vez de limitação permanente. E somente em uma cultura que
genuinamente respeite e valorize os membros de ambos os sexos emergirão análises respeitosas e saudáveis de problemas médicos
femininos e masculinos, análises que reconheçam as diferenças reprodutivas como normais e que possam fazer distinções bem infor-
madas entre atividades fisiológicas saudáveis e estados incapacitantes da doença.” (FAUSTO-STERLING, 1992, p. 222, tradução nossa).
Referências Bibliográficas
AZIZE, Rogério. A Nova Ordem Cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na
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485–501. Tradução por Fernando Manso. Disponível em: http://
www.necso.ufrj.br/Trads/O%20ovo%20e%20o%20esperma.html.
Acesso em: 10 out. 2021.
Artigos de neurociência
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