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RAFAEL CEPA PEREIRA

Esfera armilar
Reflexão sobre esfera armilar no reinado de D.
Manuel I em diálogo com a cultura portuguesa

Trabalho de Introdução à Cultura Portuguesa realizado


sob orientação de:
Prof. Pedro Clementino Vilas Boas Tavares

Porto
2019
Resumo

Refletir sobre a esfera armilar de D. Manuel I é estudar sobre questões

importantes da humanidade, da cultura ocidental e europeia para depois poder alcançar

um plano nacional que necessariamente, pela natureza do próprio objeto, extravasa esse

plano nacional para um plano mais que ocidental e europeu, mas universal.

Palavras-chave:

Esfera armilar

D. Manuel I

Messianismo
Introdução

A escolha deste tema surge após a leitura dos livros Identidade Nacional do

professor José Mattoso, Quinas e Castelos de Miguel Metelo Seixas e Portugal

Portugueses de José Manuel Sobral e depois de reter o conteúdo das aulas. Então,

refletindo sobre a identidade cultural de Portugal e curvar-me diante da imensidão

heráldica, achei de particular interesse um elemento heráldico que vive connosco ainda

hoje, ainda hoje nos falando, a esfera armilar. Pesquisando, encontrei a tese de mestrado

de Carlos Eduardo Ferreira Godinho intitulada A Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão

Celestial e Providência Astral, a partir da qual decidi trabalhar.

Contudo, o que me propus a fazer não consiste numa recensão dessa obra, mas, a

partir dela, dialogar com as aulas, com a teologia, com os livros que foram propostos e

com o meu sentido crítico de maneira a criar em mim uma ideia de identidade cultural

portuguesa. Portanto, o que aqui vamos estudar é uma viagem pela esfera armilar na

história da humanidade e tentar perceber de que maneira é que ela chega ao Reino de

Portugal e que caminho ela faz no reinado de D. Manuel I para se tornar um dos

símbolos nacionais mais importantes.


1. O que é a esfera armilar?

Neste primeiro capítulo procurar-se-á perceber em que consiste a esfera armilar

num contexto geral, introduzindo já algumas questões que trataremos mais adiante.

Explicar qual a origem da esfera armilar é algo difícil e impossível. Esta divisa

manuelina, encontramo-la já na civilização grega, na China e nas civilizações islâmica e

cristã, com relevante significado. Este objeto exige um pré conhecimento astronómico,

pois ele é uma representação esférica do cosmos e do seu funcionamento, ou seja, figura

a ordenação perfeita e simétrica do cosmos. Portanto, encontramos já aqui algo que

advém desta estrutura, é que ela ordena um ideal de beleza da estrutura da totalidade da

existência. Falaremos mais adiante da influência neoplatónica e judaica na simbologia e

praticidade deste objeto, mas Carlos Godinho chama-nos já à atenção para dois

conceitos importantes: o conceito de belo, presente na filosofia neoplatónica e na ideia

de criação judaico-cristã e o conceito de positividade do mundo criado, pois se foi

criado por Deus, tal como nos diz o livro do Génesis da tradição judaico-cristã, é porque

é bom. Carlos Godinho define assim a esfera armilar: «modelo do sistema cósmico

pelos círculos imaginários do movimento dos astros, que encontra no seu centro o

mundo elemental (a Terra) suscetível à sua influência»1.

Assim, tomamos conhecimento de que este objeto traz consigo um conceito de

universalidade indiscutível, desvelando também algum terreno para depois, como

veremos posteriormente, ser tomado como um talismã astro-mágico capaz de receber

poderes celestes, muito por influência da investigação astrológica judaica.

Neste sentido, são-nos dados aqui alguns dados para entendermos a força deste

objetos que, aliado ao contexto manuelino, ganha grande importância na cultura

nacional portuguesa a partir do século XVI. Mas a que contexto manuelino nos

referimos? Podemos dizer que no contexto em que D. Manuel foi educado existia uma
1
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016), 4.
grande influência das interpretações bíblicas judaicas, onde a astrologia tinha um

significado importante. Contudo, também o cristianismo, imbuído do contexto político-

religioso da época vive um tempo de grande desejo de entendimento cosmológico e

teológico da realidade no seu todo.

2. A esfera armilar na Península Ibérica e a atribuição da divisa a D.

Manuel

Atribui-se o surgimento da esfera armilar na península ibérica primeiramente

num contexto islâmico, fruto da ocupação islâmica da península. Albas Firnas que
trabalhava para o emir ` Abd al-Rahman II é o nome pioneiro na península, construindo

o instrumento para uma função muito específica: indicação do horário das orações

islâmicas, caso o sol e as estrelas não estivessem visíveis para indicar esse momento.

Isto no século IX, seguindo-se no século X pela mão de um judeu, líder da comunidade

hebraica andaluza. É referenciada também nos Libros del saber de Afonso X, sofrendo

uma difusão por toda a Europa. A esfera armilar constitui-se, portanto, como um

instrumento de investigação capaz de revelar factos astronómicos para no século XVI

ser considerado um instrumento de luxo. Mas porque D. Manuel recebe por divisa a

esfera armilar?

Primeiramente, tentaremos perceber como D. Manuel ocupa o trono português,

visto ele não ser filho de rei. D. João II reinava em Portugal no final do século XV e D.

Manuel não tinha grande importância na corte régia. O irmão mais velho de D. Manuel,

D. Diogo duque de Viseu, tinha mais importância no reino, contudo, acusado de traição,

é morto pelo então rei de Portugal. Com a morte deste em 1484, o futuro Afortunado

recebe o título de duque de Viseu, mas só em 1489 é que D. João lhe atribui o ducado

formalmente. D. João II procurava assim assegurar sucessão direta de muitas formas.

Acredita-se que o infante D. Afonso lhe sucedesse, porém este morre, tentando,

portanto, legitimar o seu filho bastardo D. Jorge. O Príncipe Perfeito vai mais longe,

pois não conseguindo legitimar seu filho ilegítimo como seu sucessor, ordena que D.

Manuel dê a D. Jorge um conjunto considerável de territórios, coisa que o Afortunado

não cumpre. Neste sentido, Fernão Lopes diz na Crónica de D. João de 1504 que o

Príncipe Perfeito terá dado como divisa a esfera armilar a D. Manuel esperançado de

que este o viria a suceder. Somos obrigados pela historicidade a refutar esta afirmação

do cronista, apoiando-nos ainda noutro facto. É que em 1490 no casamento de D.


Afonso, príncipe herdeiro, D. Manuel faz uso da esfera armilar, isto num tempo em que

nada fazia prever que este viria a assumir o trono do Reino de Portugal.

Encontramos na infância e formação do futuro rei algum fundamento para a

escolha desta divisa por parte do seu antecessor. D. Manuel foi instruído na ciência

astronómica, o que de resto vai de encontro ao ambiente cultural renascentista que se

vivia na época e ao passado astronómico da península. Porém, Carlos Godinho

acrescenta-nos um outro caminho: a associação da esfera armilar à virtude teologal da

esperança. Ele apresenta-nos um fresco que se encontra na Igreja de Ognissanti em

Florença da autoria de Sandro Boticelli, onde Santo Agostinho surge a contemplar uma

esfera armilar, ou seja, «o instrumento seria um meio extático de meditação que permite

Agostinho vislumbrar algo divino além da própria materialidade do objeto» 2.

Vislumbra-se aqui a virtude teologal da esperança, pois pela contemplação Agostinho

espera e deseja a realidade última. É interessante aqui ser evocada a figura de

Agostinho, grande santo da Igreja, pois vislumbram-se aqui alguns aspetos de que

falaremos. Já nos referimos à importância do neoplatonismo no século XV e XVI à

volta da esfera armilar. Agostinho é uma referência da racionalidade cristã como meio

para chegar a Deus, o que confere uma grande autoridade a este objeto como algo que

não é talismânico, contrariamente ao que veremos mais adiante. E outro aspeto

interessante é que Agostinho é bastante platónico, bebe muito de Platão, como fará o

movimento filosófico do neoplatonismo, como veremos a partir de Marsílio Ficino.

2
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016),
33.
3. O Talismã esférico e a virtude da esperança

Nesta parte do estudo, vamos debruçar-nos na obra de Marsílio Ficino para

tentarmos perceber qual a sua influência na esfera armilar de D. Manuel.

Marsílio Ficino cria uma teoria que nos será importante, a Teoria da Redenção,

ou seja, a conjugação da teoria platónica da cognição e a doutrina cristã da graça. Carlos

Godinho diz-nos a este propósito que «A totalidade da existência, emana de Deus como

um ato de amor, que lhe é retornado, por usa vez, pela redenção da Humanidade. A

existência é, portanto, como um ciclo descendente e ascendente da luz divina.»3 e que

«o propósito da existência do ser humano é a sua ascensão cósmica para Deus, origem

da sua criação»4. Assim, a ascensão do ser humano faz-se por via de três esferas, a

esfera material ou sensível, a esfera inteligível e a esfera divina, alcançando assim a

purificação e divinização. Ou seja, a ascensão cósmica do ser inicia-se pelo afastamento

do sensível, depois utilizando via da cognição do mundo alcança-se a cognição de Deus

por mediação divina para, finalmente, pensar ideias divinas. Esta é a Teoria da

Redenção de Ficino que encontra paralelo com as três virtudes teologais, respetivamente

por cada esfera enunciada, fé, esperança e caridade. A esperança é, portanto, o elo de

ligação entre as antípodas esferas, é a que possibilita ao ser humano tomar consciência

do amor divino, que só se concretizará totalmente na ressurreição final. Onde apenas

resta uma virtude teologal, a caridade, o amor, a única virtude teologal que Deus possui

na tradição cristã.

Introduzidos na Teoria da Redenção de Ficino, tentaremos perceber o que esta

tem que ver com a esfera armilar. Já referimos anteriormente a partir da figura de

Agostinho a relação entre a esfera armilar e a virtude teologal da esperança. Platão diz-

3
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016),
42.
4
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016),
43.
nos que a verdade tem de ser necessariamente bela. Para o cristianismo a causa e

fundamento da beleza é Deus e, portanto, esta é um meio para chegar a Ele. A ideia de

criação cristã coloca o cosmos numa perspetiva de Beleza, pois criado por Deus. Sendo,

a esfera armilar uma representação do cosmos, ela é necessariamente uma expressão de

beleza, através da qual se contempla já a Beleza última, a última morada, o amor de

Deus. Sendo que a morte constitui a perfeição dessa participação no amor de Deus.

Portanto, a imagem do universo é um mecanismo espiritual para vislumbrar a caridade

perfeita, sendo a esfera armilar esse intermediário que, capaz de captar a cognição de

Deus, faz o ser humano caminhar para a perfeição e já participar dela.

Deste modo, Ficino atribui cores à esfera armilar em diálogo com esta teoria.

Essas mesmas cores encontrámo-las na esfera armilar de D. Manuel I expostas numa

gravura da Câmara de Lisboa. Haverá uma relação direta? É provável que não, mas a

corte portuguesa era uma corte europeia e, portanto, também ela estava imbuída pelos

movimentos culturais e intelectuais da época. Acrescenta-se a isto que Ficino numa das

suas obras refere tradições caldeias e arábico-hebraicas, assim como mestres de

astrologia ibéricos, sendo também este um contexto cultural próximo ao monarca

português.
4. Esfera messiânica

Antes de entrarmos propriamente no tema da esfera messiânica, vamos procurar

fazer uma ponte entre a astrologia e o messianismo, em que contexto este messianismo

aparece e que formas ele toma. Dialogando com o último capítulo diz-nos Carlos

Godinho que existia uma «Influência de um conjunto de pensadores judeus no

sincretismo cultural florentino»5 no qual estava Ficino. Portanto, podemos encontrar

pontos comuns entre o pensamento de Ficino e o pensamento judaico português. Era

próprio já no judaísmo do século XII encontrarmos conceções astro mágicas também

com influências neoplatónicas e uma hermenêutica bíblica, especialmente do

Pentateuco, influenciada pela astro magia. O «Tabernáculo e Templo de Salomão

tinham um funcionamento talismânico de captação do fluxo celeste e eram alusões à

própria estrutura celeste»6. Situamo-nos aqui numa exegese astronómica judaica. Mas

não terá existido também uma exegese astronómica cristã? Claramente que sim, até

porque no século XV era importante o conhecimento astronómico cristão também como

meio de converter os judeus ao cristianismo.

Parece-nos importante assumir estes dados para podermos pensar o messianismo

judaico e cristão, que de resto não se diferenciam muito, visto que ambos se apoiam no

Antigo Testamento. Para os judeus, o messias, que será anunciado pelos astros,

restituirá o Templo de Salomão. Para os cristãos o templo já fora restituído, pois o

Templo é o próprio corpo de Cristo. Os judeus esperam a primeira vinda do messias, os

cristãos esperam a segunda vinda, o fim dos tempos, contudo ambos têm em comum um

messianismo corpóreo, encarnado. Esta ideia de um messias encarnado, será muito

5
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016),
59.
6
Carlos Eduardo Godinho, “Esfera Armilar de D. Manuel I: Visão Celestial e Providência Astral”, (2016),
107.
importante para que D. Manuel assuma o seu messianismo com grande certeza e

convicção, parece-me.

D. Manuel viveu num contexto cristão, onde tudo o que acontecia tinha uma

justificação bíblica. Herdou uma história, uma forma de pensar, de fazer política e viver

a fé, tão importante para a formação da cultura nacional. O Afortunado sente-se,

portanto, como descendente de David, portanto, sente como sua missão restaurar o reino

de David e formar uma monarquia universal, de um só Deus e um só Senhor.

Acreditava-se que o fim dos tempos estava próximo, fazendo-se já cálculos sobre a data

exata e, por isso, este constituía mais um motivo para D. Manuel sentir o seu reinado

como messiânico, talvez como o último. Isto quer dizer que toda a linhagem da

monarquia portuguesa era, também ela, descendente do rei David. Nada que nos

surpreenda tendo em conta estar muito vivo no imaginário o milagre de Ourique, onde

Cristo toma a linhagem de Afonso Henriques como protegida, como predileta, quase

como se fosse o novo povo escolhido de onde emergiria o messias. Esta relação poderá

não ser direta, mas é possível que este messianismo seja fruto de um longo caminho e

de releituras sucessivas da história e da literatura oral.

A esfera armilar que D. Manuel fez proliferar por forais, monumentos por todo o

reino trazia consigo uma ideia de universalidade, esperança e messianismo bastante

forte e não passou despercebida. Para além de que, como já vimos, a esfera armilar tem

um papel bastante prático, para o conhecimento de latitudes, entre outras coisas. Ela

constitui-se, por isso, como um instrumento de grande importância para a expansão

portuguesa. Esta expansão tinha para D. Manuel um propósito claro: reconquistar

Jerusalém e restaurar o reino de David. Apesar de isto não ter acontecido, foi no reinado

de D. Manuel que se fizeram as maiores descobertas que também foram alvo de


exegeses bíblicas a partir dos profetas e para os judeus como o congregar das dez tribos

perdidas depois do exílio na Babilónia.

Deste modo, podemos afirmar que o sentido messiânico de D. Manuel era muito

forte e estava presente nesta divisa que ganhou múltiplas significações. Por isso mesmo,

após a morte do monarca ela acabou por extravasar o próprio monarca, passando a ser

ao longo dos tempos um símbolo nacional que designa a nação portuguesa a uma

missão especial, tendo como fim uma realidade futura da qual desconhecemos forma.
Conclusão

Olhar para a cultura portuguesa através desta viagem é perceber que ela é fruto

de uma diversidade imensa que conflui depois num ideal messiânico bastante forte que

atravessará a história da nação ainda de forma mais fervorosa a partir de D. Sebastião.

Mas também é compreender que a identidade cultural portuguesa é necessariamente

judaico-cristã. Este estudo permitiu fazer uma releitura cultural da história e dar-me

armas para dizer que a heráldica nos continua a falar, assim como o cristianismo. Num

mundo que continua dominado pela guerra, é importante que Portugal se assuma como

construtor de uma fraternidade humana que, apesar de não ser confessional tem as suas

raízes no catolicismo. Afirmando também que a sua bandeira é símbolo de paz, pois

possui em si um elemento heráldico que perspetiva uma realidade futura de amor,

caridade, contudo já não assumida como teológica. Escutar a história é permitir que ela

nos aponte o caminho futuro.


Bibliografia

Sobral, José Manuel. Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional,

Fundação Francisco Manuel dos Santos: Lisboa, 2012.

Seixas, Miguel. Quinas e Castelos Sinais de Portugal, Fundação Francisco

Manuel dos Santos: Lisboa, 2019.

Mattoso, José. A Identidade Nacional, Gradiva: Lisboa, 1998.

Godinho, Carlos Eduardo – “A esfera armilar de D. Manuel I: Visão celestial e

providência astral”. (2016) Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/24875.


Índice

Resumo…………………………………………………………………………………..
2
Introdução………………………………………………………………………………..3
1. O que é a esfera armilar?...............................................................................................4
2. A esfera armilar na Península Ibérica e a atribuição da divisa a D. Manuel………….6
3. O Talismã esférico e a virtude da esperança………………………………………….8
4. Esfera messiânica……………………………………………………………………10
Conclusão………………………………………………………………………………13
Bibliografia……………………………………………………………………………..14

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