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Arras e consumação prévia de atos


de concentração econômica sob a
perspectiva do Cade

JOSÉ CARLOS JORDÃO PINTO DIAS


Doutor e Mestre em Direito (UERJ).

LEONARDO DA SILVA SANT'ANNA


Doutor em Saúde Pública (Fiocruz). Mestre em Direito (UGF). Professor da
Faculdade de Direito (UERJ).

Artigo recebido em 15/2/2019 e aprovado em 13/7/2020.

SUMÁRIO: 1 Introdução • 2 O controle preventivo dos atos de concentração pelo Cade • 3 Gun
Jumping: noções gerais • 4 Arras: breves observações • 5 O Gun Jumping nos Julgamentos do
Cade • 6 O Guia do Cade sobre Gun Jumping • 7 Procedimento Administrativo para Apuração
de Ato de Concentração no 08700.005408/2016-68: dissociação entre Arras e Gun Jumping
• 8 Conclusão • 9 Referências.

RESUMO: O presente artigo examina se o pagamento de arras, antes da aprovação


da operação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade),
configura hipótese de consumação prévia de ato de concentração econômica,
também conhecida pela expressão inglesa gun jumping. O método utilizado foi
o dedutivo, valendo-se de pesquisa bibliográfica e documental. O artigo trata,
primeiramente, do controle preventivo dos atos de concentração econômica
pelo Cade. Em seguida, apresenta breves considerações sobre os institutos Arras
e Gun Jumping, para, adiante, expor casos de consumação prévia julgados pelo
Cade. Faz-se ainda breve digressão pelo Guia Para Análise da Consumação Prévia
de Atos de Concentração Econômica, publicado pelo Cade, para, então, examinar
detidamente o Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração
no 08700.005408/2016-68, em que o pagamento de sinal foi especificamente
analisado pelo Cade, oportunidade em que foram expostos posicionamentos
conflitantes. Ao final, são apresentadas conclusões sobre o trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Consumação prévia de ato de concentração econômica • Arras


• Sinal • Atos de concentração econômica • Cade.

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Down payment and gun jumping in Cade’s perspective

CONTENTS: 1 Introduction • 2 The preventive control of concentration acts by Cade • 3 Gun jumping:
general notions • 4 Down payment: brief remarks • 5 Gun Jumping at Cade’s judgments • 6 Cade's
Guide of Gun jumping • 7 Administrative Procedure of Concentration Act no. 08700.005408/2016-68:
dissociation between down payment and Gun Jumping • 8 Conclusion • 9 References.

ABSTRACT: This paper analyses whether down payment configures a hypothesis


of gun jumping, previously to its approval by the Brazilian Administrative
Council of Economic Defense (Cade). The research applies deductive method,
using bibliographical and documentary research. Firstly, the article deals, with
the preventive control of mergers by Cade. It comments briefly about earnest
payment and gun jumping, and exposes cases judged by Cade. Then, it uncovers
the Gun Jumping Guide, elaborated by Cade. Next, it examines the Administrative
Procedure no. 08700.005408/2016-68, for Investigations on Mergers in which
down payment was specifically analyzed by Cade, including conflicting positions.
At the end, conclusions regarding the work are drawn.

KEYWORDS: Gun jumping • Earnest payment • Down payment • Mergers and


acquisitions • Cade.

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Arras y consumación previa de actos de concentración económica en la perspectiva


del Cade

CONTENIDO: 1 Introducción • 2 El control preventivo de los actos de concentración por el Cade


• 3 Gun Jumping: nociones generales • 4 Arras: breves observaciones • 5 El Gun Jumping en los
Juicios del Cade • 6 La Guía del Cade sobre Gun Jumping • 7 Procedimiento Administrativo para
la Determinación del Acto de Concentración no 08700.005408/2016-68: disociación entre Arras y
Gun Jumping • 8 Conclusión • 9 Referencias.

RESUMEN: El trabajo analiza si el pago de arras, antes de la aprobación de la


operación por Consejo Administrativo de Defensa Económica (Cade) del Brasil,
configura hipótesis de consumación previa de acto de concentración económica,
también conocido por la expresión inglesa gun jumping. El método utilizado
fue el deductivo, valiéndose de investigación bibliográfica y documental. El
artículo trata, primero, del control preventivo de los actos de concentración
económica por el Cade. En seguida, presenta consideraciones sobre arras y gun
jumping, y expone casos de consumación previa juzgados por el Cade. Hace
breve digresión por la Guía para el Análisis de la Consumación Previa de Actos de
Concentración Económica, publicado por el Cade, y examina el Procedimiento
Administrativo de Acto de Concentración no 08700.005408/2016-68, en que el
pago de anticipo fue específicamente analizado por el Cade, oportunidad en que
fueron expuestos posicionamientos conflictivos. Al final, presenta conclusiones
sobre el trabajo.

PALABRAS CLAVE: Consumación previa de acto de concentración económica • Arras


• Anticipo • Actos de concentración económica • Cade.

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1 Introdução

Ao celebrar um contrato que possa acarretar concentração econômica, as


partes devem tomar precauções para que não haja infração à legislação
antitruste, que exige, no atual sistema legal, a aprovação prévia da operação pelo
Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
A doutrina e a atuação do Cade têm sido cada vez mais fecundas ao abordar
o instituto do Gun Jumping, inclusive ao apontar para os agentes econômicos
boas práticas negociais. Assim sendo, há uma série de modalidades de cláusulas
contratuais que são desejadas em operações desse tipo, ao passo que outras
cláusulas são apontadas como indícios de consumação prematura da operação.
Desse modo, constata-se nos contratos a inclusão de dispositivos que orientam
como as partes convenentes devem se comportar até que a decisão final seja
proferida pelo Cade, além de estabelecer previamente as consequências quer em
caso de aprovação quer em caso de reprovação pela autoridade antitruste.
É importante frisar que, durante esse período de espera compreendido entre
a notificação da operação feita pelas partes e a decisão proferida pelo Cade,
as partes devem permanecer como entes econômicos distintos. Permanecem
concorrendo no mercado entre si. Depois de proferida a decisão será o momento
oportuno para a consumação da operação ou de desfazimento do ato, consoante
os termos do ato administrativo.
Há um conflito de interesses nessas operações de concentração econômica. Ao
chegar a um acordo, as partes tendem naturalmente a coordenar suas atividades,
ainda que em termos informais. De outro lado, devem aguardar a decisão da
autoridade antitruste para consumar a operação.
Interessante notar que as partes também devem se resguardar ao fornecer
informações de seu negócio, pois caso contrário, se a transação não for autorizada, a
outra parte pode se beneficiar indevidamente.
Esse período de espera mencionado gera certa insegurança do ponto de vista
empresarial. Para contorná-la, ou menos atenuá-la, as partes podem ter pactuado
o pagamento prévio de um montante inicial a título de sinal, ou arras, como é
corriqueiro nas relações contratuais.
Ora, o presente trabalho trata exatamente do seguinte problema jurídico:
o pagamento de sinal configura hipótese de consumação precoce do ato de
concentração econômica?

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2 O controle preventivo dos atos de concentração pelo Cade


Em sua missão institucional de promoção e defesa da concorrência, o Cade
pode atuar de modo repressivo ou preventivo. No primeiro caso, o Conselho pune
atos anticompetitivos praticados por determinado agente econômico. Na atuação
preventiva, ao contrário, a autoridade antitruste intervém nos atos e negócios
jurídicos que tenham potencial de concentração de mercado, bem como efeitos
concorrenciais indesejados; são os atos de concentração (Alves; Coelho, 2014, p. 5).
O art. 90 da Lei no 12.529, de 30 de novembro de 2011 (Brasil, 2011) apresenta
a tipificação dos atos de concentração:

Para os efeitos desta Lei, realiza-se um ato de concentração quando:


I – 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; II – 1
(uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou
permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações,
ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro
meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; III – 1 (uma)
ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou IV– 2 (duas) ou
mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture.

Estipula a Lei no 12.529, de 2011 (Brasil, 2011) a obrigatoriedade de notificação


prévia ao Cade das operações de concentração, seguindo a orientação dos sistemas
europeu e dos EUA, sistema este que também é chamado de pre-closing.
O prazo para a análise dos atos de concentração pelo Cade é de 240 dias, mas
pode ser prorrogado por 60 dias, por solicitação das partes, ou por 90 dias, mediante
decisão fundamentada do Tribunal.
Segundo o art. 88 da Lei no 12.529, de 2011 (Brasil, 2011), a notificação é
obrigatória caso a) pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha
registrado faturamento bruto no ano anterior à operação equivalente a R$ 400
milhões em território nacional; e b) pelo menos um outro grupo envolvido na
operação tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente
a R$ 30 milhões no Brasil.
Esse novo regime, que estabelece a notificação prévia, tornou mais efetiva a
atuação do Cade no que se refere ao controle das estruturas de mercado.
Registre-se que no regime anterior não havia a exigência de notificação prévia,
nos termos do art. 54, § 4o, da Lei no 8.884, 11 de junho de 1994 (Brasil, 1994). As
partes podiam notificar o Cade após a consumação da operação, desde que sob
condição suspensiva.

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3 Gun Jumping: noções gerais


Gun Jumping pode ser conceituado como a concretização de ato de concentração
econômica antes da decisão final autorizadora proferida pela autoridade antitruste.
O instituto é originário dos EUA, que instituiu o sistema de notificação prévia para os
atos de concentração em 1976, com a promulgação do Hart-Scott-Rondino Antitrust
Improvements Act1.
A finalidade do instituto é ensejar a defesa da concorrência antes da finalização
do ato de concentração econômica, dando maior efetividade ao controle de estruturas
realizado pela autoridade antitruste.
Frise-se que a operação fica sob condição suspensiva (Silva, 2013, p. 13-15), e que
o ato de concentração submetido ao Cade tem a natureza de ato jurídico complexo.
Na análise do instituto do Gun Jumping, é crucial apontar quais atitudes das
partes envolvidas configuram indícios da consumação prematura da concentração,
antes da decisão final do Cade.
Desse modo, a fase inicial das tratativas e a fase seguinte da celebração do
contrato assumem fundamental importância, no sentido de que devem prever
como as partes celebrantes se comportam, desde o início dos contatos até o último
momento, com a concretização da operação.
Não basta que os agentes envolvidos sejam cautelosos somente na fase da
celebração do contrato. Desde a fase das tratativas as partes precisam se acautelar,
pois já nesse momento pode haver a transmissão de informações sensíveis. Daí
a importância da realização de due diligence e a utilização de clean terms2 no
planejamento de transição. Importância esta não apenas para evitar uma possível
reprimenda da autoridade antitruste, mas também para que o contratante se proteja
da má fé da outra parte, que pode ter acesso a informações relevantes, e vir a
utilizá-las indevidamente, caso desista da operação.
Não obstante, informa-se que não há uma orientação exata sobre o modo
como as empresas devem permanecer até que o Cade tome a decisão final
(Saito, 2013, p. 94).
Este é um ponto sensível, pois gera insegurança para os agentes econômicos,
que não sabem quais são os limites de atuação, de modo a não infringir a lei.

1 Nos EUA, o controle preventivo dos atos de concentração econômica tem amparo em três leis federais:
Seção 7A do Clayton Act (Hart-Scott-Rondino Antitrust Improvements Act), Seção 1 do Sherman Act e Seção
5 do Federal Trade Commission Act.

2 Documento que disciplina a relação contratual.

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Essa é uma questão que dependerá de uma construção com base nas decisões
proferidas pelo Cade.
Importante analisar que, para a configuração do Gun Jumping, a consumação
da operação deve ocorrer antes da decisão final da autoridade antitruste. O lapso
temporal entre a notificação e a decisão final é chamado pela doutrina nos EUA
de waiting period. Para que não se configure a consumação prematura, as partes
envolvidas devem permanecer como entidades econômicas distintas. Caso já
exista uma unidade econômica, ainda que informalmente, estará configurado
inegavelmente o Gun Jumping.
Costumeiramente, a parte que investe na operação exige da outra parte a
realização de ações durante o tempo de espera, bem como procura prevenir-se da
existência de efeitos adversos que possam vir a ocorrer até a data de consumação.
Com isso, visa-se, no primeiro caso, a diminuição dos riscos da operação, e, no
segundo, a realocação dos riscos, com a finalidade de a outra parte manter o valor
do ativo (Silva, 2013, p. 24-25).
Para configurar a existência de Gun Jumping, o Cade deve demonstrar que a
consumação da operação ocorreu antes de proferir a decisão. Surge, desse modo,
a importância de se estabelecer o marco temporal da consumação do ato de
concentração econômica. Ocorre que a consumação, em um caso concreto, pode ter
ocorrido em diversos momentos: antes ou depois da notificação; antes ou depois da
decisão final do Cade.
Em razão disso, a doutrina estrangeira aponta a existência de duas modalidades
de Gun Jumping: procedimental e material. No primeiro caso, o Procedural Gun Jumping
ocorre quando o ato de concentração é realizado sem a notificação da autoridade
antitruste. No segundo caso, o Material Gun Jumping ocorre da seguinte maneira: as
partes praticam a coordenação das atividades antes da consumação formal do ato
de concentração (Winterscheid; Dubrow; Amezcua, 2014, p. 12).
A doutrina relaciona alguns atos que configuram indícios da existência de Gun
Jumping (Saito, 2013, p. 98-102):

a) alocação de clientes: caso Computer Associates (2002);


b) unificação de gestão: casos Arco I (1990) e Arco II (1992);
c) ações que alteram os incentivos entre os agentes do mercado: caso
Computer Associates;
d) unificação do exercício de poder dentro das empresas: caso Arco II;
e) campanhas de marketing: caso Gemstar/TV Guide (2003);
f) atuação nos pontos de venda;

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g) redução da competitividade dos preços: caso Computer Associates; e


h) compartilhamento de informações concorrencialmente sensíveis3: caso
Titan Wheel (1996).

Assim, busca-se evitar a ocorrência desses indícios, que são como que o disparo
do gatilho, configurando a existência de Gun Jumping.
Outra questão suscitada é se para o caso em tela seria aplicada a regra per se
ou a regra da razão. Essa análise é utilizada pelas agências dos EUA na análise do
ato de concentração à luz do Sherman Act. Por meio da regra per se, são questionados
acordos de restrição comercial ou que visam à restrição da concorrência, ocorrendo
a ilicitude pela simples execução do que foi acordado. Por outro lado, pela regra da
razão, as condutas não são ilegais em si mesmas, se não restringirem a concorrência
de modo desarrazoado. Assim, uma prática que, à luz da regra per se seria ilícita,
pode ser legitimada, demonstrando-se que os efeitos concorrencialmente positivos
sobrepujam os efeitos negativos.4
Assim, deve-se analisar qual regra a ser utilizada em caso de pagamento de arras.
No Brasil, estipula o Regimento Interno do Cade, em seu art. 147, § 2o, que:

As partes deverão manter as estruturas físicas e as condições competitivas


inalteradas até a apreciação final do Cade, sendo vedadas, inclusive,
quaisquer transferências de ativos e qualquer tipo de influência de uma
parte sobre a outra, bem como a troca de informações concorrencialmente
sensíveis que não seja estritamente necessária para a celebração do
instrumento formal que vincule as partes (grifo nosso).5

No que tange ao pagamento de arras, o ponto mais sensível do art. 147, § 2o,
do Regimento do Cade (Brasil, 2017) é o que veda a existência de qualquer tipo de
influência de uma parte sobre a outra, conforme destacado. Assim, deve-se analisar

3 Ou seja, informação que pode desequilibrar a situação de concorrência existente, ex. margem de lucro,
preços do produto, estratégias e políticas competitivas, orçamento, marketing, investimento, custos de
produção, clientela etc. Nos EUA as agências permitem a troca de informações desde que de boa-fé, ou
seja, quando não implicarem em alteração das condições competitivas. Ainda assim, admite-se de modo
excepcional a troca de informações concorrencialmente sensíveis, desde que autorizada pela autoridade
antitruste, e sob cláusula de confidencialidade, como no caso Computer Associates.

4 Nos EUA, a regra per se foi reduzida a três situações: fixação de preços, alocação de mercados e recusa
de contratar. Porém, mesmo nesses casos, as autoridades analisam o caso com a finalidade de decidir se
a regra per se deva ser adotada.

5 Percebe-se a influência da legislação dos EUA. O Sherman Act, em especial, determina que as partes
permaneçam como entes distintos até a aprovação do ato.

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no caso concreto se passa a existir algum tipo de influência após o pagamento


das arras, ou se as partes mantiveram as estruturas físicas e as condições de
competição inalteradas.
O art. 88, da Lei no 12.529, de 2011 (Brasil, 2011), estipula sanção de multa no
valor de R$ 60 mil a R$ 60 milhões em caso de prática de consumação da operação
de submissão obrigatória à autoridade antitruste antes do momento adequado. Além
disso, segundo a lei, o Cade poderá abrir processo administrativo para apurar infração à
ordem econômica, bem como declarar a nulidade dos atos já praticados pelas empresas,
inclusive podendo tomar medidas judiciais e administrativas para desfazê-los.
O Regimento Interno do Cade estabelece, em seu art. 147, § 1o, que a notificação
seja preferencialmente após a assinatura do instrumento que vincula as partes
envolvidas na operação (Brasil, 2017). Desse modo, instrumentos de due dilligence6 e
planos de integração não são considerados gun jumping.
Por outro lado, nos termos do art. 59, § 1o, da Lei no 12.529, de 2011 (Brasil, 2011),
a Superintendência Geral e o Tribunal podem admitir a realização precária e liminar
do ato de concentração, desde que se mostre para o caso concreto a necessidade e
a razoabilidade da operação.
O art. 155 do Regimento Interno (Brasil, 2017) estabelece condições cumulativas
para a realização precária do ato: i) não haver perigo de dano irreparável para
as condições de concorrência no mercado; ii) reversibilidade das medidas
adotadas; iii) a demonstração de iminente ocorrência de prejuízos financeiros
substanciais e irreversíveis para a empresa adquirida, caso a autorização precária
não seja concedida.
Em vista do exposto, o que vai configurar o jumping the gun será a coordenação
das atividades das partes. Será necessário examinar se o pagamento de sinal
configura um gatilho para a coordenação das atividades ou não.
Amanda Martins (2012, p. 73-74) sugere que o Cade concentre sua análise
em três critérios principais: cláusulas do acordo, atividades das partes e
troca de informações.
Com relação às cláusulas, geram preocupação antitruste: não concorrência;
fixação de preços; divisão de mercado; permissão à empresa adquirente de emitir,
vender, penhorar ou onerar os valores mobiliários da empresa a ser adquirida;
cláusula extraordinária na condução do negócio que não é encontrada em acordos
de concentração econômica.

6 Documento que contém a análise dos riscos contratuais.

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Ora, como salientado, o instituto em comento nasce do conflito entre a natural


necessidade de acordo de interesses e troca de informações entre os agentes na fase
negocial, o que é necessário para se fechar o negócio, e por outro lado, a exigência
legal de esperar a aprovação da operação pela autoridade antitruste, como bem
aponta a doutrina (Arnt, 2014, p. 9).

4 Arras: breves observações


As arras, ou sinal, representam um reforço ou garantia para a fiel execução de
um negócio jurídico. As partes demonstram a intenção de contratar e levar o negócio
adiante. Como será visto abaixo, o pagamento do sinal não completa em si a execução
do contrato. Importante, desse modo, analisar a natureza jurídica do instituto.
Para a doutrina alemã, bem como para a brasileira, o sinal tem natureza acessória
de caráter real, tendo por finalidade provar a celebração da avença, tornando as
partes reciprocamente vinculadas. Tem, portanto, a função de dificultar o direito de
arrependimento, reforçando a obrigatoriedade do negócio jurídico. Por ser acessório,
segue o destino da obrigação principal. Sendo real, o sinal somente se aperfeiçoa
com o próprio pagamento do sinal, ou seja, enquanto não for pago não há sinal.
Sob a perspectiva francesa, em sentido oposto, as arras consistem na entrega
definitiva de valor ou bem, servindo de garantia para eventual arrependimento para
qualquer das partes contratantes. O enfoque principal é dado em resguardar as
partes em caso de arrependimento. Exige-se, para que seja válido, que o direito de
arrependimento esteja previsto no instrumento contratual (Sombra, 2012, p. 77-78).
Caso não haja estipulação em contrário, as arras são confirmatórias, cuja
finalidade é justamente reforçar a intenção de contratar, evitando o arrependimento.
Caso o contrato disponha sobre o direito de arrependimento, as arras servem para
antever uma indenização, substituindo a indenização por perdas e danos.
Por isso, as arras são classificadas em confirmatórias e penitenciais.
O Código Civil de 2002, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a exemplo do
anterior, utilizou uma concepção mista, mesclando as vertentes alemã e francesa
(Brasil, 2002).
Estabelece o art. 417 que:

Se, por ocasião da conclusão do contrato, uma parte der à outra, a título de
arras, dinheiro ou outro bem móvel, deverão as arras, em caso de execução,
ser restituídas ou computadas na prestação devida, se do mesmo gênero
da principal. (Brasil, 2002).

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Assim, o valor pago a título de arras deverá ser computado no valor total a ser
pago, se for do mesmo gênero. Isso significa dizer que o sinal pode ser entendido
como início de pagamento, o que não lhe modifica a natureza.
O art. 418 disciplina as arras em caso de inadimplemento do contrato:

Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo
por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras,
poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução
mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais
regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado. (Brasil, 2002).

Esse artigo se aplica em caso de arras confirmatórias, sem direito de


arrependimento preestabelecido.
O art. 419 foi uma inovação do Código de 2002, consolidando entendimento
jurisprudencial, ao permitir que a parte peça uma indenização superior
ao valor das arras:

A parte inocente pode pedir indenização suplementar, se provar maior


prejuízo, valendo as arras como taxa mínima. Pode, também, a parte
inocente exigir a execução do contrato, com as perdas e danos, valendo as
arras como o mínimo da indenização. (Brasil, 2002).

Nesse caso, há uma cumulação das arras com perdas e danos, se ficar
comprovado que as perdas superam o valor do sinal. É uma forma de evitar o
enriquecimento sem causa.
O art. 420 é o único que trata das arras indenizatórias, servindo as arras nesse
caso de prefixação de perdas e danos:

Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer


das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste
caso, quem as deu perdê-las-á em benefício da outra parte; e quem as
recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os casos não haverá
direito a indenização suplementar. (Brasil, 2002).

Podem as arras estar presentes nos contratos preliminares.


No julgamento do Recurso Especial no 1.513.259-MS, cuja relatoria coube ao
min. João Otávio de Noronha, o STJ admitiu a redução equitativa do valor das arras
em razão da desproporção entre a quantia paga inicialmente e o preço ajustado:

Se a proporção entre a quantia paga inicialmente e o preço total ajustado


evidenciar que o pagamento inicial englobava mais do que o sinal, não
se pode declarar a perda integral daquela quantia inicial como se arras

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confirmatórias fosse, sendo legítima a redução equitativa do valor a ser


retido. Quanto às arras, deve-se destacar que elas têm duas funções:
a) confirmatória (principal); e b) penitencial (secundária). As arras
confirmatórias podem significar princípio de pagamento, na medida em
que o negócio efetivamente se concretizar. Marcam, portanto, o início da
execução do negócio. Convém esclarecer que o valor dado a título de arras
confirmatórias deve ser integralmente perdido, ou seja, quando a parte que
deu as arras não executar o contrato, não terá direito à devolução do "sinal"
por ter dado causa à rescisão. Mas, se o valor do pagamento inicial englobava
mais do que o sinal, o percentual de retenção deve ser reduzido. Isso porque
não é razoável o entendimento de que todo o referido valor inicial pago
seja enquadrado como sinal ou arras confirmatórias e, em consequência,
sujeite-se ao perdimento em prol do vendedor. Entender de forma diversa
implicaria onerar excessivamente a parte que deu as arras, ainda que a ela
tenha sido atribuída culpa pela rescisão do contrato, e beneficiar a parte
que as recebeu. Em outras palavras, seria uma fonte de enriquecimento
desproporcional. Observe-se que a orientação jurisprudencial do STJ é
no sentido de que a fixação das arras confirmatórias se dá em percentual
inferior a 20% do valor do bem, variando, mais precisamente, entre 10% e
20% [...]. Nessa linha intelectiva, convém mencionar o Enunciado n. 165
da III Jornada de Direito Civil do CJF: "Em caso de penalidade, aplica-se a
regra do art. 413 ao sinal, sejam as arras confirmatórias ou penitenciais".
Esclareça-se que o art. 413 do CC estabelece que "a penalidade deve ser
reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido
cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente
excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio".
(Brasil, 2016, grifo no original).

Assim, cabe a atuação do judiciário para trazer o valor das arras


a termos equitativos.

5 O Gun Jumping nos julgamentos do Cade


O leading case sobre o tema foi o Ato de Concentração no 08700.005775/2013-19,
julgado em 28 de agosto de 2013, sob relatoria da Conselheira Ana Frazão, em operação
que envolveu OGX Petróleo e Gás SA e a Petrobras (Brasil, 2013).
A operação analisada consistiu na intenção de aquisição pela OGX de participação
de 40% detida pela Petrobras em um contrato de exploração de petróleo e gás em
um campo de exploração na Bacia de Santos.
A OGX já possuía participação em atividades referentes ao contrato de concessão
do mesmo bloco de exploração, configurando hipótese de concentração horizontal.

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José Carlos Jordão Pinto Dias • Leonardo da Silva Sant'anna 705

O acordo de concentração celebrado entre as partes apresentava cláusulas


que foram consideradas Gun Jumping, por possibilitar a troca de informações
concorrencialmente sensíveis, inexistindo cláusula de confidencialidade, bem como
por conferir à OGX a participação em decisões da Petrobras sobre a comissão que
tratou da operação.
Inicialmente as partes negaram a existência de consolidação prematura, porém,
em um segundo momento, reconheceram sua prática e buscaram uma solução
conciliatória com o Cade.
Não obstante, considerou o Cade que a operação não apresentava preocupações
concorrenciais em razão da pequena fatia do mercado titularizada pela OGX.
Contudo, entendeu que a possibilidade de tomada de decisões colocou a OGX
na posição jurídica de titular dos ativos antes da aprovação do ato de concentração.
Em Acordo de Controle de Concentração, ficou estabelecido o recolhimento de R$ 3
milhões ao Fundo de Direito Difusos, conforme solicitação das Requerentes.
Outro caso analisado pelo Cade foi objeto do Ato de Concentração
n 08700.008292/2013-76, julgado em 5 de fevereiro de 2014, relator conselheiro
o

Alessandro Octaviani, e envolveu a UTC Óleo e Gás SA e a Potióleo AS (Brasil, 2014a).


A operação consistiu na aquisição pela UTC da participação de 50% detida pela
Potióleo em um contrato de concessão em um bloco de exploração, no qual outra
empresa do grupo UTC já detinha 50% de participação.
O Cade também considerou não haver na operação preocupações concorrenciais,
em razão da baixa participação no mercado nacional, mas entendeu que as partes
implementaram direitos e obrigações contratuais antes da notificação.
Neste caso não houve a transferência de poder decisório, mas sim o usufruto de
ativos antes da aprovação, pois o contrato permitia a participação da UTC nos custos
e resultados do contrato de concessão, além de fixar pagamento de remuneração
firmada entre as partes antes da aprovação do ato.
O Relator considerou a existência de infração à ordem econômica pelas
seguintes razões: a) a data de vigência do contrato foi anterior à própria assinatura
do documento; b) o pagamento do valor da operação foi feito antes da notificação ao
Cade; c) inexistência de cláusula suspensiva dos efeitos do contrato até a autorização
do Cade; d) a única condição suspensiva adotava como dies ad quem a data do
pagamento, o que já tinha acontecido, o que acabou por alterar as estruturas de
mercado e o centro decisório.

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 25 n. 137 Set./Dez. 2023 p. 693-719


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706 Arras e consumação prévia de atos de concentração econômica sob a perspectiva do Cade

No ato de concentração no 08700.008289/2013-52, também julgado em 05 de


fevereiro de 2014, sob a relatoria de Ana Frazão, e que também envolveu a UTC, o
Cade declarou a existência de Gun Jumping (Brasil, 2014b).
A operação consistia na aquisição pela UTC de participação de 37% detida pela
Aurizônia Petróleo SA em contrato de concessão em um bloco de exploração de
petróleo, no qual o Grupo UTC já detinha participação de 38%.
Também nesse caso, houve a transmissão de usufruto de ativos e o pagamento
de valores, valendo as mesmas considerações. Em ambos os casos foram celebrados
acordos de concentração com o pagamento de multa de R$ 60 mil.
Importante ressaltar que nesses dois casos o Cade considerou ilegal o pagamento
do valor do contrato antes da aprovação do ato de concentração.
O Ato de Concentração no 08700.007899/2013-39, sendo o Relator Alessandro
Octaviani, envolveu a Total E&P e a Petrobras (Brasil, 2014c). A operação consistia em
contrato de cessão de direitos e obrigações sobre um bloco de exploração de petróleo.
A Superintendência do Cade apontou os seguintes indícios de consolidação
prematura: a data de vigência anterior à assinatura do contrato; o pagamento da
operação; acesso a informações concorrenciais; ausência de condição suspensiva no
contrato; a existência de acordo de operações conjuntas que previa a instituição de
conselho operacional com a finalidade de supervisionar e gerir os blocos de exploração.
As partes demonstraram que o acordo de operações conjuntas ainda não tinha
sido implementado, bem como o conselho não tinha sido instituído. Ainda foi
comprovado que não houve de fato troca de informações sensíveis. E em relação
à data de vigência, esta seria apenas um marco temporal para o cálculo do valor
da operação. Demonstrou-se ainda que o pagamento não fora realizado. O Cade
não impôs sanções nesse caso. Além disso, o Relator considerou que a ausência de
cláusula suspensiva não tem o poder de configurar o Gun Jumping isoladamente.
A operação foi aprovada sem restrições.
Outro caso que repercutiu foi o presente no Ato de Concentração
no 08700.002285/2014-41, que envolveu a Fiat SPA e Chrysler Group LLC, julgado
em 14 de maio de 2014 (Brasil, 2014d). A relatoria coube ao Conselheiro Márcio de
Oliveira Júnior.
A operação consistiu na aquisição do restante das ações da Chrysler pela Fiat,
que já detinha cerca de 59% de participação acionária. A operação ocorreu em 21 de
janeiro de 2014, mas a notificação foi feita somente em 17 de março de 2014.

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 25 n. 137 Set./Dez. 2023 p. 693-719


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José Carlos Jordão Pinto Dias • Leonardo da Silva Sant'anna 707

As Requerentes celebraram Acordo em Controle de Concentrações, reconhecendo a


prática de Gun Jumping. Houve o pagamento de multa no valor de seiscentos mil reais.
No caso Goiás Verde e Brasfrigo (Ato de Concentração no 08700.010394/2014-32),
a Superintendência-Geral tomou conhecimento da operação por meio da imprensa
(Brasil, 2015a). A operação consistiu na aquisição de ativos da Brafrigo pela Goiás
Verde. As partes alegaram que não era caso de notificação obrigatória, devido aos
valores envolvidos. As partes celebram Acordo, reconhecendo a existência da infração.
A multa foi R$ 3 milhões.
No caso GNL Gemini Gaslocal e Gasmig (Ato de Concentração
n 08700.000137/2015-73), sobre o comodato de um terreno, o contrato foi firmado
o

em janeiro de 2014 e a notificação ocorreu em janeiro de 2015 (Brasil, 2015b). O


Cade identificou uma série de atividades concorrencialmente sensíveis: realização
de ações em terreno da Gaslocal antes da notificação, pagamento feito à Gaslocal
pela Gasmig, pagamento por um tanque que foi construído no terreno, e a assinatura
de contrato sem a cláusula de submissão ao Cade. As partes reconheceram a infração
em ACC, com multa no valor de R$ 90 mil.
No caso Technicolor e Cisco (Procedimento Administrativo para Apuração de
Ato de Concentração no 08700.011836/2015-49), houve a aquisição pela Technicolor
de uma subsidiária da Cisco (Brasil, 2015c). A Superintendência-Geral tomou
conhecimento do ato pelo site da Technicolor. As partes firmaram ACC reconhecendo
a infração pela prática de Gun Jumping. O valor da multa foi de trinta milhões de reais.

6 O Guia do Cade sobre Gun Jumping


Em maio de 2015, o Cade publicou o Guia Para Análise da Consumação Prévia
de Atos de Concentração Econômica, de natureza não-vinculativa, com o objetivo de
“estabelecer alguns parâmetros sobre os quais as partes de um ato de concentração
podem se basear no desenho de suas operações” (Brasil, 2015).
O Guia (Brasil, 2015) estabelece três grupos de atividades concorrencialmente
sensíveis, que podem configurar Gun Jumping: a) a troca de informações entre os
agentes econômicos envolvidos em um determinado ato de concentração; b) a
definição de cláusulas contratuais que regem a relação entre os agentes econômicos;
c) atividades das partes antes e durante a implementação do ato de concentração.
Com relação ao segundo grupo, o Guia (Brasil, 2015, p. 8) estabelece os
seguintes exemplos:

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708 Arras e consumação prévia de atos de concentração econômica sob a perspectiva do Cade

a) cláusula de anterioridade da data de vigência do contrato em relação à


sua data de celebração, que implique alguma integração entre as partes;
b) cláusula de não-concorrência prévia;
c) cláusula de pagamento antecipado integral ou parcial de contraprestação
pelo objeto da operação, não reembolsável, com exceção de (c.i.) pagamento
de um sinal típico de transações comerciais, (c.ii.) depósito em conta
bloqueada (escrow), ou (c.iii.) cláusulas de break-up fees (pagamentos
devidos caso a operação não seja consumada);
d) cláusulas que permitam a ingerência direta de uma parte sobre aspectos
estratégicos dos negócios da outra, tais como a submissão de decisões
sobre preços, clientes, política comercial/vendas, planejamento, estratégias
de marketing e outras decisões sensíveis (que não sejam mera proteção
contra o desvio do curso normal dos negócios e, consequentemente,
proteção do próprio valor do negócio alienado);
e) de forma mais genérica, quaisquer cláusulas que prevejam atividades
que não possam ser revertidas em um momento posterior ou cuja reversão
implique em dispêndio de uma quantidade significativa de recursos por
parte dos agentes envolvidos ou da autoridade, etc. (grifo nosso)

Observa-se, portanto, que a alínea c estabelece que o pagamento integral ou


parcial do valor da operação, se não for reembolsável, indica a consumação da
operação. Contudo, abre exceções, dentre as quais figura justamente o pagamento
de sinal ou arras (subalínea cii). Frisa-se que as três subalíneas são alternativas; não
é preciso o cumprimento de todas as três para se permitir a exceção assinalada.

7 Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração


n 08700.005408/2016-68: dissociação entre Arras e Gun Jumping
o

No Ato de Concentração no 08700.003462/2016-79, Relator Conselheiro Burnier


da Silveira, o Cade (Brasil, 2016b) analisou operação que envolveu Reckitt Benckiser
(Brasil) Ltda. e Hypermarcas S.A..
A operação consistiu na aquisição, pela Reckitt Benckiser, do negócio de bem-estar
sexual (preservativos masculinos e lubrificantes), titularizados pela Hypermarcas.7
O contrato de compra e venda de ações, celebrado em 29 de janeiro de
2016, pactuava que a Hypermarcas, previamente à implementação da operação,
deveria cumprir determinadas condições, como a reorganização societária para

7 Marcas Jontex, Olla e Lovetex de preservativos, e Jontex e Olla de lubrificantes. A Reckitt Benckiser já
detinha as marcas KY (lubrificante) e Durex (preservativo).

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José Carlos Jordão Pinto Dias • Leonardo da Silva Sant'anna 709

segregação dos ativos do negócio objeto do contrato, a ser transferido para à


Nance Holdings SA, empresa do Grupo Hypermarcas constituída para esse fim. A
operação gerou, assim, sobreposição horizontal nos mercados de preservativos
masculinos e lubrificantes íntimos.
O contrato também foi objeto do Procedimento Administrativo para Apuração
de Ato de Concentração (APAC) no 08700.005408/2016-68, que analisou se o
pagamento de sinal configurou pagamento antecipado no caso concreto, o que
caracterizaria infração à ordem econômica por prática de Gun Jumping. Esse
Procedimento será abordado mais adiante. Como será visto, o Tribunal do Cade
arquivou o feito, por entender que o pagamento do sinal no caso concreto não se
configurou a consumação prematura.
A Superintendência-Geral deu parecer no sentido de impugnação da
operação, ao constatar preocupações concorrenciais no mercado geradas
pela operação, por acarretar concentração de marcas em um mesmo fabricante,
bem como pela existência de barreiras à entrada e baixa competitividade,
resultando em dominação do mercado. Frisa-se que a Superintendência dividiu o
mercado de bem-estar sexual em dois segmentos: de preservativos masculinos e de
lubrificantes íntimos.
O Departamento de Estudos Econômicos, atendendo solicitação da
Superintendência, emitiu duas notas técnicas, de modo a analisar os efeitos
concorrenciais produzidos pela operação nos dois segmentos. Os seguintes métodos
de análise foram utilizados: upward pricing pressure, gross upward pricing pressure e
proportionally-calibrated almost ideal demand system.
Com os resultados da análise feita pelo Departamento, a Superintendência
concluiu que a operação dificilmente geraria acréscimos de preços no mercado
de preservativos, ao passo que no segmento de lubrificantes a probabilidade de
aumento de preços seria alta, tanto nos produtos dos requerentes quanto nos
produtos dos concorrentes.
O Departamento de Estudos Econômicos analisou ainda o grau de eficiência
da operação. Concluiu que as eficiências não seriam acentuadas, conforme
alegado pelas partes.
As Requerentes ofereceram Recurso de Oposição em face do parecer da
Superintendência, com a alegação de que a operação não acarretaria a existência
de poder de portfólio de marcas no segmento sob exame. Além disso, apresentaram
proposta de acordo de controle de concentração.

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710 Arras e consumação prévia de atos de concentração econômica sob a perspectiva do Cade

Outra questão suscitada foi sobre a dimensão geográfica do mercado relevante,


pois as partes alegaram que, no caso do mercado de preservativos, o mesmo poderia
ser definido como internacional, já que cerca de 35% do consumo nacional tem
origem em importações.
No julgamento, o Tribunal aprovou a operação, condicionada à celebração de
Acordo em Controle de Concentrações.
Eis a ementa:

Ato de Concentração. Operação realizada no Brasil. Procedimento ordinário.


Rito da Lei no 12.529/2011. Aquisição do negócio de preservativos
masculinos e lubrificantes íntimos da Hypermarcas pela Reckitt Benckiser.
Conhecimento da operação com base no art. 88, incisos I e II, da Lei
no 12.529/2011. Prazo de apreciação pelo CADE: 139 dias corridos. Taxa
processual recolhida. Parecer da SG pela impugnação da operação.
Nota técnica do DEE. Mercado relevante de preservativos masculinos e
lubrificantes íntimos. Mercado relevante geográfico nacional. Sobreposição
horizontal. Aprovação condicionada à celebração de Acordo em Controle de
Concentrações. Medidas estruturais. (Brasil, 2016b).

Ao aprovar a operação com restrições, o Relator Burnier da Silveira ponderou,


no mérito, que a Reckitt Benckiser passaria a deter controle de elevada parcela do
mercado, podendo, dessa forma, exercer poder de mercado.
Considerou ainda que o mercado relevante nos dois segmentos tem dimensão
nacional, visto que existem barreiras significativas à importação, como a alta
alíquota de importação, as fortes barreiras técnicas e legais, e os canais de
distribuição existentes.
O Relator acrescentou que há correlação dos mercados de preservativo e
lubrificante, tornando inviáveis os remédios que os distingam, pois verifica-se a
complementariedade entre os produtos, ao menos em relação à confiabilidade das
marcas. Essa integração pode ser identificada em relação aos canais de distribuição,
gerando redução nos custos de transação e, em consequência, impondo barreiras à
entrada. Também há integração na gestão das marcas e nas estratégias de marketing,
visto que as empresas tentam transferir o valor da marca de preservativos para os
lubrificantes íntimos, já que o grau de confiança na marca gera externalidades para
os demais produtos com identidade visual semelhante.
Por fim, o Relator considerou não ser provável o incremento na eficiência
econômica decorrente da operação, conforme apontado pela Requerente,

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por não haver qualquer comprovação de que a eficiência seria repassada em


benefício do consumidor.
Aprovada a operação com restrições, as partes celebraram Acordo em Controle de
Concentrações, comprometendo-se a adotar remédios estruturais com o intuito de sanar
os problemas concorrenciais originados das sobreposições horizontais nos mercados
de preservativos masculinos e lubrificantes íntimos, sobretudo nos dois pontos críticos
apontados pelo Cade: barreiras à entrada decorrentes da fidelidade do público às marcas
e da correlação entre os dois segmentos de mercado.
Como principal remédio, a Reckitt Benckiser propôs o desinvestimento da marca
KY no Brasil para um agente econômico com forças para concorrer com a empresa
fusionada, no mercado de lubrificantes íntimos.
Em conformidade com as boas práticas de negócios, a Reckitt Benckiser
se comprometeu a preservar a viabilidade econômica, a comercialização e a
competitividade da marca e do negócio a ser desinvestido.
Além disso, no contrato de cessão da marca há previsão de que o preço não
dependa do desempenho da marca após a transferência de titularidade, bem como a
obrigação de as partes, como concorrentes, não compartilharem nenhuma informação
concorrencialmente sensível, de modo a guardar a posição de concorrente com o
terceiro interessado.
O Acordo prevê ainda a existência de terceiro independente, com poderes de
monitoramento, intermediação e negociação do contrato de cessão da marca KY
com terceiro interessado.
Conforme exposto acima, no Procedimento Administrativo para Apuração de
Ato de Concentração (APAC) no 08700.005408/2016-68, o Cade (Brasil, 2016c), a
partir de requerimento da Superintendência-Geral, teve a oportunidade de apurar
se o pagamento de arras configura por si só caso de Gun Jumping.
Em nota técnica, a Superintendência-Geral concluiu que o pagamento inicial
realizado pela Reckitt Benckiser à Hypermarcas constituiu consumação da operação
antes da análise do Cade, caracterizando a prática de Gun Jumping. Recomendou a
aplicação de multa às Representadas.
De acordo com a Nota Técnica, o contrato celebrado entre Reckitt Benckiser e
Hypermarcas continha cláusula que previa um pagamento inicial equivalente a 20%
do valor total da operação, pagamento este antecipado, disponível, ou seja, podendo
ser levantado, e não reembolsável em caso de reprovação da operação pelo Cade.
Não obstante, o contrato previa outras hipóteses específicas de reembolso.

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712 Arras e consumação prévia de atos de concentração econômica sob a perspectiva do Cade

Em resposta, as Representadas alegaram que houve transparência na operação,


que o pagamento dos 20% teve natureza de arras, que o pagamento dos 80%
restantes foi efetuado em conta caução indisponível (escrow), que houve retenção
do valor a título de break-up fee8 reversa, que não houve alteração das condições de
concorrência, bem como invocou jurisprudência estrangeira sobre o tema.
Em uma segunda manifestação, as Representadas alegaram a necessidade de
aplicação da regra da razão para verificar a alteração das relações de concorrência.
A Superintendência considerou que pode haver consumação da operação, ainda
que parcialmente, sem que sejam alteradas as relações de concorrência entre as
empresas envolvidas, e vice-versa, pode haver alteração das relações de concorrência
sem que a operação seja consumada.
Em seguida, a Superintendência tratou de casos semelhantes julgados
pelo Cade. No caso UTC & Aurizônia as partes reconheceram que o desembolso
de parcelas do pagamento do contrato desde a assinatura do acordo de cessão
implicou a consumação do ato. A Conselheira do caso, Ana Frazão, afirmou no voto
que a consumação da operação ocorreu tão somente pelo pagamento adiantado de
parcelas relativas à cessão da participação no empreendimento, o que não gerou
efeito sobre o ambiente concorrencial nesse caso concreto, pois a UTC já detinha
participação na exploração do bloco.
Observe-se que, no caso UTC & Aurizônia, o Cade considerou o pagamento
adiantado por si só causa de configuração de Gun Jumping, pois ficou expresso no
voto que não houve alteração no ambiente concorrencial. No caso Petrobras & Total,
o Conselheiro Alessandro Octaviani seguiu o mesmo entendimento.
A Superintendência concluiu, na esteira da jurisprudência do Cade, que o
pagamento integral ou parcial do valor da operação é suficiente para caracterizar
a prática de Gun Jumping, a despeito da existência de alteração nas relações de
concorrência, pois o pagamento antecipado de 20% do valor do contrato representou
consumação de um ato relativo à operação.
Concluiu, ainda, que a não aprovação da operação pelo Cade deve ser uma das
causas de reembolso dos valores pagos, de modo a resguardar a plena reversibilidade
da operação. Frisou, outrossim, que o Guia de Gun Jumping não tem caráter vinculativo.
Acrescentou que a consequência legal da não consumação da operação no caso
de arras confirmatórias é a restituição dos valores antecipados, e que na break up fee
o valor é pago a posteriori, em caso de não consumação da operação.

8 Multa pela desistência.

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José Carlos Jordão Pinto Dias • Leonardo da Silva Sant'anna 713

Considerou também que o contrato denomina a cláusula de Pagamento Inicial,


sem fazer qualquer menção no sentido de ser um sinal.
Em parecer apresentado pelas Requerentes, o Prof. Sílvio de Salvo Venosa expôs
que a redação do contrato “denota nitidamente o caráter de arras ou sinal, porquanto
serve de garantia para o cumprimento da obrigação e consequente ressarcimento
mínimo no caso de incumprimento”. Acrescentou que o pagamento de sinal é usual
em contratos empresariais e civis e que o Guia de Gun Jumping prevê expressamente
tal exceção. A Prof.ª Gisela Sampaio da Cruz e o Dr. Paulo Cezar Aragão deram parecer
no mesmo sentido.
Em réplica, as Requerentes sustentaram entendimento de que o contrato permitiria
o reembolso dos valores pagos em caso de não aprovação da operação pelo Cade.
O plenário do Tribunal, em decisão unânime, votou pelo arquivamento do
feito, por considerar que o pagamento se enquadrou na hipótese prevista do Guia
de Gun Jumping:

EMENTA: Procedimento Administrativo para Apuração de Ato


de Concentração (APAC). Suposta violação do art. 88, § 3o, da Lei
no 12.529/2011 e do art. 1o, inciso I, da Resolução no 13/2015. Operação
de notificação obrigatória. Sinal. Break-up fee. Recomendação da SG
para imposição de sanções por prática de gun jumping. Inexistência
de pagamento antecipado indevido. Exceção prevista no Guia de gun
jumping. Arquivamento. (Brasil, 2016c).

No voto, o Relator Burnier da Silveira considerou que, de fato, o contrato previa


a retenção dos valores em caso de reprovação da operação pelo Cade, mas que o
“Pagamento Inicial” (Brasil, 2016c) previsto no contrato se enquadra nas exceções
previstas no Guia, pois configurou sinal típico de transações comerciais. Aduziu que
o conteúdo da cláusula importa mais que o nomen juris atribuído. Em acréscimo,
destacou que o contrato original, firmado em língua inglesa, utilizou o termo Down
Payment, que pode ser traduzido como sinal, em despeito de o tradutor juramentado
ter traduzido como pagamento inicial.
Em seguida, o voto assinala que as cláusulas contratuais estão em conformidade
com as disposições do Código Civil. A Cláusula 4.1 afirma que o montante dado em
Down Payment seria computado no valor total do preço, em harmonia com o art. 417.
Em relação às consequências do inadimplemento, o contrato prevê que, em caso
de inadimplemento da Reckitt Benckiser (compradora), a Hypermarcas não deverá
efetuar a devolução do sinal, em consonância com o art. 418 do Código. Em caso de

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714 Arras e consumação prévia de atos de concentração econômica sob a perspectiva do Cade

inadimplemento da Hypermarcas, o contrato não prevê a devolução do valor mais o


equivalente, mas apenas a devolução singela do valor pago.
Esclarece o Relator que a norma do art. 418 do Código, que exige a devolução do
valor mais o equivalente de quem recebeu as arras, tem natureza supletiva, podendo
ser alterada pela vontade das partes.
O contrato previu ainda que a parte prejudicada possa pedir indenização ampla,
não limitada ao valor do sinal, como estabelece o art. 419 do Código Civil.
O art. 420 do Código, por sua vez, não seria aplicável, pois o contrato não previu
o direito de arrependimento.
O Relator chegou à conclusão que a natureza do sinal no contrato foi
de arras confirmatórias.
Com relação à retenção do sinal em caso de impossibilidade de execução
contratual por fato externo não atribuível a nenhuma das partes, em especial
em caso de reprovação da operação pelo Cade, o Relator ponderou que as partes
contratantes possuem autonomia para estabelecer as consequências jurídicas, não
havendo norma de ordem pública que proíba a retenção do sinal.
Outrossim, essa hipótese contratual de retenção não possui, segundo o voto, o
poder de alterar a natureza jurídica do pagamento. Configura hipótese de assunção
de risco antitruste por uma das partes, o que torna a proposta mais atrativa, visto
que há custos significativos em caso de reprovação pelo Cade, como os que foram
destinados a consultorias financeiras, assistência jurídica, bem como o custo de
oportunidade de não negociar com outras empresas interessadas na operação.
Concluindo, o Relator assinala a importância de que, em casos futuros, as partes
tenham o cuidado de elaborar cláusulas contratuais de modo a deixar claro que não
se trata de pagamento antecipado indevido, nos termos da proibição que existe na
legislação concorrencial brasileira. No caso concreto, o Relator afirma que as partes
tiveram esse cuidado e que, a título de sinalização para o mercado, a regra é a
proibição de pagamento antecipado, sendo o sinal uma das exceções.

8 Conclusão
Em resposta à questão formulada na introdução, o melhor entendimento é o de
que as arras, quer confirmatórias, quer penitenciais, não configuram por si só caso
de consumação prematura de ato de concentração econômica.

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As negociações entre os agentes devem apresentar o maior grau de eficiência


possível, porém sem infringir a lei antitruste, que exige a aprovação prévia dos atos
de concentração econômica.
Importante analisar não apenas se houve consumação da operação antes da
decisão do Cade, mas observar os efeitos produzidos ou que venham a existir caso o
ato de concentração econômica se consuma.
Passados já alguns anos de vigência da Lei no 12.529/2011 (Brasil, 2011), o
grande foco de estudo do instituto do Gun Jumping não deve ser mais determinar
o marco temporal da consumação do ato de concentração – Procedural Gun Jumping.
O foco principal passa a ser justamente detectar se houve a consumação
de modo oblíquo, ou seja, ainda que as partes tenham notificado previamente o
Cade, ainda que não tenham tomado nenhuma atitude que configure indício de
consumação prematura, poderá haver uma coordenação informal das atividades
econômicas – Material Gun Jumping. É tarefa hercúlea identificar essa modalidade
do instituto.
Então, poderão ocorrer casos em que houve o pagamento de sinal cumulado
com atividades que configuram indício de consumação da operação.
O pagamento do sinal deve ser entendido como um instrumento de tutela
jurídica da confiança entre as partes contratantes. Com efeito, trata-se de um reforço
no interesse de contratar.
Não é possível estabelecer a priori um percentual definido do valor do sinal que
caracterize infração antitruste. O valor deve se basear em usos e costumes do meio
comercial. Também não pode esse valor ser excessivo, o que seria burla à proibição
de pagamento antecipado indevido.
Além disso, em caso de pagamento de sinal, deve-se aplicar a regra da razão.
Como visto no caso Reckitt Benckiser e Hypermarcas, ao celebrar o contrato, as
partes devem demonstrar conhecimento das boas práticas de negócios, sinalizando,
no pagamento das arras, que se trata de uma exceção ao pagamento anterior à
aprovação da operação pelo Cade

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